Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Entre os anos de 1909 e 1922, Lukács passou por uma transição do anticapitalismo
romântico para o marxismo que culminou na análise psicológica da reificação, publicada
no ano de 1923 (LÖWY, 1990). Nesse trabalho, que influenciou diretamente a formação
do pensamento da primeira geração da teoria crítica, o autor húngaro construiu uma teoria
da identidade sobre as consequências da coisificação dos sujeitos na sociedade capitalista.
Para isso, Lukács se valeu da noção de fetichismo da mercadoria em Marx e do
racionalismo em Weber. Segundo o Dicionário do Pensamento Marxista, a reificação
(verdinglichung) é o “ato de transformação das propriedades, relações e ações humanas
em propriedades, relações e ações de coisas produzidas pelo homem, que se tornaram
independentes [...] do homem e governam sua vida” (BOTTOMORE, 2012, p. ??). É a
coisificação das pessoas e objetos, na qual a percepção de quaisquer características
humanas presentes é impedida. Em decorrência de uma “objetividade fantasmagórica”
assumida pela mercadoria, a relação entre os homens é ocultada e assume o caráter de
uma relação entre coisas. Neste sentido, a reificação é considerada como uma forma mais
radical e generalizada do processo de alienação (verfremdung).
Partindo da noção do feitiço exercido pelas características que são impregnadas
às mercadorias sem necessariamente fazerem parte dela, Lukács (2012/1923) se propõe a
analisar as consequências da estrutura mercantil no capitalismo moderno. Em Marx, o
fetichismo é tomado como uma forma de objetividade que é central na compreensão do
caráter ideológico do sistema capitalista e é essa noção que fundamentará a análise
lukacsiana. Na fase moderna do desenvolvimento capitalista, a forma mercantil não se
apresenta somente como um episódio isolado dentre os tantos que compõem a existência
humana: ela influencia toda a vida interior e exterior da sociedade. Por meio dessa
expansão para além da esfera econômica, a forma mercantil é capaz de confundir os
valores de uso e de troca, produzindo uma ação desagregadora na vida dos sujeitos, que
são capazes de perceber os objetos apenas a partir da perspectiva de seu preço.
O que há de mais pessoal nos sujeitos também se coisifica. Se as regras que regem o
mundo são tomadas como leis naturais e abstratas que independem da vontade dos
sujeitos, a elas é atribuído um caráter de imutabilidade. Segundo Lukács, “isso não é,
todavia, um abrandamento, mas, ao contrário, um reforço da estrutura reificada da
estrutura reificada da consciência como categoria fundamental para toda a sociedade” (p.
221). Nesse contexto, o sujeito é uma marionete cujas cordas movimentam-se de acordo
com as necessidades do mercado. Desse processo, decorre a unificação dos destinos dos
trabalhadores: transformados em massa amorfa, os sujeitos veem suas relações sociais
destituídas de quaisquer caracteres humanos e se culpabilizam por sua condição. Nesse
sentido, a perspectiva de Lukács é de que, já que a consciência da classe trabalhadora
encontrava-se unificada, poderia ser a gênese da constituição de uma consciência de
classe.
Crítica aos sistemas de conhecimento que não alcançam a totalidade e, por isso
mesmo, abandona os aspectos subjetivos, impedindo uma compreensão do todo social. A
soberania calculadora da ciência abarca o pensamento filosófico e conduz às antinomias.
Nessa oposição entre conceitos que não se anulam, forma-se a segunda natureza dos
sujeitos. À essa segunda natureza, cabe a dominação. É graças ao ideal matemático que
as antinomias se apresentam como a possiblidade de quantificação e apreensão total da
realidade. Se na relação econômica a mercadoria é fetichizada, na filosofia esse processo
ocorrer com os conceitos. As relações humanas são reduzidas à objetividade destes
conceitos e, assim, realiza-se o objetivo de “ampliar à sociedade os conceitos formados e
adquiridos nas ciências naturais” (p. 275). Abrindo um parêntese para a psicologia, a
ciência reificada se manifesta na forma de uma psicometria, na qual as relações humanas
são tomadas como imediatas em vez de mediadas socialmente. A partir dela “[…] as
propriedades e as faculdades da consciência não se ligam mais somente à unidade
orgânica da pessoa, mas aparecem como ‘coisas’ que o homem pode ‘possuir’ ou
‘vender’, assim como os diversos objetos do mundo exterior” (Lukács, 2012, p. 223),
ratificando a perspectiva lukacsciana de uma ciência que, ao se fragmentar, fragmenta o
seu sujeito de estudo. Na psicometria a quantificação do sujeito conduz ao o uso de
instrumentos como leis. Consequentemente, à fetichização dos conceitos.
Novamente, a alternativa para o contexto social fragmentado apresentado por
Lukács é a arte. Não a própria arte, mas a teoria da arte, que alcança a totalidade ao superar
a aparência de contrariedade entre os elementos que se fazem antinomias no pensamento
burguês. É pela perspectiva da teoria da arte que homem alcança o seu estado autêntico e
não contemplativo, o de natureza:
A natureza é, então, o ser humano autêntico, a essência verdadeira do
homem, liberada das formas sociais falsas e mecanizantes, o homem enquanto
totalidade acabada, que superou ou supera interiormente a cisão entre teoria e
práxis, entre razão e sensibilidade, entre forma e matéria. Para esse homem, a
tendência a criar a própria forma não é uma racionalidade abstrata que deixa
de lado os conteúdos concretos. Para ele, a liberdade e a necessidade
coincidem. (p. 286)
A fonte desse princípio da arte é buscada por Lukács na teoria estética de Schiller, que
nos apresenta o instinto de jogo como totalidade do homem. Nele, a existência social do
homem escapa ao mecanismo reificante. O mundo deve, portanto, ser estetizado. A arte
possibilita tanto “acrescentar um novo domínio à fragmentação do sujeito quanto
abandonar o terreno seguro da demonstração concreta da totalidade” (p. 293). É através
da arte que a possibilidade de se produzir o sujeito do produtor é encontrada, oferecendo
uma nova possibilidade à fragmentação do homem. E, com ela, o método dialético,
através da superação do racionalismo e do empirismo.
Na dialética, a gênese e a história se encontram. A oposição entre sujeito e objeto
se dissolve, pois o sujeito é simultaneamente produto e produtor desse processo. O
postulado dialético tem em Hegel a sua máxima expressão. A unificação humana
desaparece e as contradições se tornam autônomas:
O reestabelecimento da unidade do sujeito e a libertação intelectual do homem
tomam conscientemente o caminho da desintegração e da fragmentação. As
figuras da fragmentação tornam-se então etapas necessárias para chegar ao
homem reestabelecido e se dissolvem ao mesmo tempo no vácuo da
irrealidade, adquirindo sua justa relação com a realidade compreendida e
tornando-se dialéticas. (p. 294)