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Poesias

do Abade de Jazente
(Paulino Antnio Cabral)
TOMO II

CONTROVRSIA ENTRE PAULINO CABRAL DE VASCONCELOS E TEODORO DE S COUTINHO DE AZEVEDO A RESPEITO DA IDADE.

AOS ANOS DE TEODORO DE S COUTINHO


ROMANCE ENDECASSLABO

Que ser Santos Deuses, que no posso Hoje a frauta afinar? Movo, tempero, Componho em modos mil os lbios rudes, E nada sei tocar, e nada acerto! O sopro, que o seu cncavo penetra, Parece o rouco som dum arvoredo, Quando o Noto, agitando as tempestades, Assobia medonho nos desertos. Nada posso afinar: tudo discorda; A frauta, o peito, a boca, o sopro, os dedos. Que ser? Quem o sabe? sempre o Fado Estorvos acrescenta nos empenhos. Hoje que dum amigo alguns instantes Os ouvidos queria achar atentos, Felicitando harmnico os bons anos, Que formam hoje o crculo primeiro. Hoje me deixa a frauta; hoje discorde De todo enrouqueceu: que sortilgio Dizei-me, Musa, lhe embaraa agora A doce melodia dos seus ecos? No sou ingrato Musas; bem recordo Que foi ddiva vossa este instrumento, Que o Douro algumas vezes suspendia, Que movia outras vezes os penedos.

Bem me lembro, que estrada abri patente Por meio desta frauta em muitos peitos, Que Amor circunvalou de mil durezas, Para que fossem Trias dos desejos. Confesso, que esta frauta (inda por isso Lhe estampo agora agradecidos beijos) Confesso, que o rigor da minha Nize Alguma vez deixou menos severo. Tudo confesso, Deuses; mas que importa? Se muda a frauta est, quando pretendo Mostrar ao Sbio Amigo em mil cadncias, Que de dar-lhe os bons anos no me esqueo? Tomai, Musas, pois a vossa prenda, Outra vez a aceitai; eu vo-la entrego; Que deve rejeitar-se o benefcio, Que no pode ser til nos disvelos. Tomai a receb-la; porque julgo Poupareis desta sorte um sacrilgio. Mas ah! vs no quereis? Agora vede, Que maior desacato vos cometo. Vem tu c, frauta ingrata, que contigo, Antes de castigar-te, falar quem. Quanto deves quele Sbio amigo, Para cujo louvor muda te vejo? Ele o primeiro foi, que destramente Me ensinou a inspirar-te o doce alento: Ele te enobreceu, ele te aplaude: E tu deixas seu nome hoje em silncio? Ele foi quem s pode libertar-te Do patbulo infame, onde pendendo Por funesto cordel, foste da gente Espectculo triste em outro tempo. Ele foi quem do rstico Carvalho Te soube desatar piedoso, e destro, Esgalhando a vergonta, que sustinha Do teu cncavo buxo o leve peso. Do teu libertador, do Sbio Amigo, Do Mestre, dos aplausos, dos obsquios, De tudo enfim te esqueces? Vai-te, vai-te, Vergonhoso instrumento dos meus erros. Vai-te ao cho fica agora submergida Nesse msero canto sujo, e feio, Onde sem lustre algum, sem honra estejas Na torpe habitao do esquecimento. Fica a, onde nem por teus buracos Se digne de passar o leve vento: Fica a onde Aracne s te encubra Com sua frgil teia o rude aspecto. Fica ai ... Mas que fao ? A culpa minha: Tens razo em calar-te. Eu me arrependo:

Eu torno a levantar-te, amada frauta, E deste meu furor perdo te peo. Tens razo, pois daquele Sbio amigo Os bons anos precisam de algum plectro, Onde tocasse Orfeu; onde provasse A voz, e a melodia o mesmo Febo. Tens razo em calar-te: anos to grandes Os felicite a Ctara de Homero. Mas tu, querida frauta, te contenta Com saber abrandar de Nize o gnio.

RIA Para o tempo, que os devora, Deixa, frauta, deixa os anos: Aos enleios, aos enganos Outra vez torna de Amor. Outra vez de Nize agora, Outra vez lhe move o peito: Causa nele um tal efeito, Que lhe abrandes o rigor.

AOS ANOS DE TEODORO DE S COUTINHO


ROMANCE ENDECASSLABO

Conversemos um pouco, meu Teodoro, Nas mudanas do mundo. Nada fica No prprio ser, que a velha Natureza Deu s cousas da mquina rolia. Tudo se altera; nada perdurvel: Faz o mundo mudanas to vadias, Que o mais ligeiro Ingls as no pudera Executar no passo de uma giga. Muda-se o vento: vemos pelas torres, Que no tm persistncia as suas grimpas: Por uma parte o Norte frio bufa; Por outra o quente Sul nos assobia. Muda-se o mar, pois muda de carrancas Mais vezes, do que morde as penhas frias; Ou quando encapelado rouco berra, Ou quando sossegado alegre brinca. Muda-se a Terra, aonde nos parece, Que tudo nela o prprio centro firma; Pois com seus terremotos tragadores Tomba montanhas, mrmores derriba. Muda-se enfim tambm o Cu distante, Que incorruptvel fez o Estagirita; Pois vemos novos Astros, e Cometas Jogar o esconde-esconde l por cima. Mas deixemos as Fsicas, Teodoro, Sempre incertas. Um pouco moraliza Comigo nas mudanas, que notaste Nas mais grandes, e firmes Monarquias. Tu viste em Portugal (s j bem velho!) Mudar-se, na catstrofe de um dia, De um para outro Irmo o Ceptro Augusto, O Poder, os Palcios, a Rainha. Tu viste a grande Casa de Castela Passar para Borbon; e todavia Da poda, que se fez na rama da ustria, Inda agora presumo, que suspiras. Tu viste a sucesso da Gr Bretanha Passar aos Protestantes, toda a vida Ficando o Cavalheiro de S. Jorge A jogar pelo mundo a bugalhinha. Tu viste na Polnia trs Monarcas, Na Rssia uma mudana to temida, Um Sucessor j posto na Sucia, Hoje sobre a Curlndia mil intrigas. Tu viste o Gro Senhor ficar deposto, Na Prsia o Koulikan, e l na China 5

Governarem os Trtaros, aonde Trs mil anos reinou outra famlia. Tu viste em sessenta anos tais mudanas, Mortes, batalhas, roubos e conquistas, Que parece mais fcil sucederem, Que em outro tanto tempo referi-las. S tu (tens bons sessenta, meu Teodoro) S tu nunca mudas; pois ainda Aos afagos das Musas folgazonas Nessa idade caduca te arrebitas. S tu, outra vez digo, te no mudas; Pois inda fazes versos, quando as iras Do tempo engolidor te despovoam Os dentes, o cabelo, a fora, a vista. No s folgas, mas bebes na taberna, Quando por velho j me parecia, Que trocavas os diques de Hipocrene Pelas torneiras hmidas da pipa. Inda montas no Pgaso, correndo Por toda essa montanha bipartida: Pois olha, que o caminho bem custoso, E a besta no consente felistrias. Suponho, que tambm nela montaste, Por fazer mais depressa uma tal Silva, Que apareceu com gosto dos ouvintes Na nossa Episcopal Academia. S nela censurei, (valha-te Apolo) Que afectando as burlescas melodias, Viesses com os pfaros agrestes Enrouquecer o som das minhas liras. S nela censurei um par de versos, Em que tu por Poeta me apelidas, Bem que no claramente; pois douravas A plula da hipcrita harmonia. Os poetas tm parte de Divinos; Haver no pode neles mediania: Pois ser desvario do compasso, Tratar cousas imensas por medida. Para ser bom Poeta necessrio, Que um furor arrebate a fantasia: Para ser mau, supe-se logo falta No discurso, que estlido se anima. Com que fim, meu Senhor, por doudo ou tolo, Em me chamar poeta, me avalias. Em qualquer dos extremos, que me ponhas, A pulha no tal, que se digira. E mais, quando por consequncia justa Me vens a chamar tolo; pois sabida A maior, de no ser eu bom Poeta, A concluso qualquer rapaz a tira.

Antes tu me tratasses como doudo, Que dessa sorte tanto o no sentira; Que o perder-se o discurso por sublime, cousa, que mil vezes acredita. Contudo sacra imagem da Amizade Sacrificava a dor da ofensa minha; Porque visse uma vez o mundo exemplos De aces to raramente acontecidas. Calei-me; mas porm, como buliste O correio passado nas feridas, Hei-de gritar, no tem remdio: arre. Hei-de gritar, no tem remdio: irra. Ora pois tu no queiras, que ns ambos Demos que conversar do mundo s lnguas; Que o ser das gentes fbula loucura, A no ser por aces esclarecidas. No faamos mais verses: v que Homem (Homero basta s que te repita) Por despido, e por cego, na velhice Um Cupido barbado parecia. Os mais exemplos calo; porque basta O que acabo de expor: as doutas cinzas, Se tem por Mausolus firmes memrias, Tambm tem por Padres tristes runas. Eu por mim dou-te a mo: eu te protesto De no fazer mais verses, bem que a linda .... outra vez faa arrastar-me O dourado grilho, que me prendia. Inda que Procisses haja em Monchique, E me peam Romances, e Letrinhas, Loas de Santa Clara,, e de S. Bento rias Italianas, ou Latinas: Inda que mil funes o Bispo tenha, Inda que muitos partos a Sobrinha, Inda que o Conde faa noventa anos, Inda que haja fara de Senhoritas: Inda que bufe ao lume a servilheta, A quem dei uma capa de ratina; E me d outra vez jocoso assunto minha alegre, rstica, Tlia. Inda que a Valongueira desenvolta reata me traga, inda que as filhas Daquele, que l mora no teu bairro, Tornassem a morar minhas vizinhas. Inda que me pedisse a Irm do .... Para a moda da Fofa trs cantigas: Inda que dessa terra, me influssem Do Tmega as correntes cristalinas. Enfim, inda que amor ao carro atado Me tornasse a levar, no poderia

Tirar-me do propsito de nunca Tornar mais a beber na Cabalina. Eu para a Lomba vou, amada ptria, Que o ser monte no rompe a simpatia Dos suaves grilhes, com que nos prende O stio, onde passamos a puercia. Das rvores virentes, que algum tempo Plantaram meus Avs (porque me sirva Agora a grata sombra, que primeiro Dos sculos passados foi fadiga,) Pendente deixarei a frauta doce, E tambm o frautim de travessia, Por castigo do mal, que tem tocado, Nas forquetas dos ramos suspendidas.

Estas, que vs aqui, Caminhante, Enforcadas nos ramos de um Carvalho, Um tempo das Camenas agasalho, Hoje da gente escndalo constante: Estas, que vs de plido semblante, Serem dos mochos hrrido espantalho, De Dlio um tempo harmnico trabalho, Hoje o exemplo de estragos de um amante. Estas, que vs aqui amortecidas, Um tempo suspenso do Deus menino, Hoje dos ares grossos s feridas: Estas, que vs, por msero destino, Desse verde patbulo estendidas, Estas foram as frautas de Paulino.

RESPOSTA DE TEODORO DE S COUTINHO SILVA Para que, meu Paulino, Queres, com temerrio desatino, Mostrar na antiguidade das Histrias As penosas memrias Da minha antiguidade? Para que arrastas tanta imensidade De casos sucedidos, De que tenho atroados os ouvidos, Se isto no faz ao caso do teu conto? Pois o principal ponto Da tua arenga toda, Que o teu discurso a mim mal acomoda, mostrar-me a velhice Na douta parvoce, Com que me fazes ser, e aos mais amigos Testemunhas de casos to antigos? Se velho no princpio me chamaras, O trabalho pouparas De andares mendigando antiguidades, Para mentir verdades, Que o mundo sbio j tanto aborrece; Porque velho s quem o parece. Ora supe, que eu tenho os meus sessenta, E tu s quinze tens: ento que intenta Mostrar-me a tua Musa impertinente? Ser velho sem calor? Tu moo ardente? Assim : porm ouve-me uma histria, Que me est latejando na memria. Entrou pois, de um certame na ocorrncia, Um velho com um moo em competncia: Ria-se o moo, e o velho mais sisudo Ia vencendo, ia logrando tudo; Flor, e fruto colhia no que obrava, E os frutos sazonava; Sendo assim tanto a tempo o que dizia, Que em todo o tempo flores produzia. O moo, convertendo em ira o riso, Frentica a razo, turbado o siso, Contra o velho calnias mil formava, E o rosto com os anos lhe manchava. Mas o velho, zombando da arrogncia, Da faccia, da raiva, e petulncia, Com plcido semblante, Com voz jocunda, e nimo constante, Repousando em si mesmo, e em si todo,

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Lhe falou livremente deste modo: Sabei, menino, que na minha terra, Onde a lei da razo pura se encerra, E onde sem desabono O seu d cada um sempre a seu dono, Tm assentado os homens de talento, Por discreto, e cabal conhecimento, Que um burro de quinze anos se experimenta Ser mais velho, que um homem de sessenta: E assim sabei, rapaz, por esta conta Que em vs, e mais, que em vs, um velho monta. E por ir de uma vez logo s do cabo, Dito isto, lhe voltou mui srio o rabo. No sei a que respeito Me subiu esta imagem ao conceito. Sou velho, e sobre velho tambm tonto: Porm tu, que s rapaz, e que s mais pronto, Enquanto lhe penetras a medula, P ante p irei na tua mula Entrando pelo centro do Parnaso, Porque me no pressinta o Gro Pegaso, E dos altos relinchos ao estrondo, No saia de si fora o Deus redondo. Assim sem mais, nem mais, montado nela, Chegarei a par dele com cautela, E, sem ser conhecido, Serei, por ir na mula, bem ouvido; E tu, com seres tolo, Sei, que s o Fr. Gaspar do Deus Apoio. Pedir-lhe-ei, que mande expressamente, Que nunca faas versos de repente; E outrossim, que te mande em alto brado, Que sempre faas verses de pensado. Item, quando a ...nha armar a teia, Lhe faas dois versinhos candeia; E tambm de Monchique s Procisses Fars sempre Romances, e Canes: E que faas s Claras, e s escuras Em verso setecentas diabruras; E rias para S. Bento peregrinas Italianas, Gregas, e Latinas. Item mais, que s funes do teu Prelado Sempre vs, mas que seja em p quebrado, Nos partes da Sobrinha no se escusa, Que faa de Lucina a tua Musa; E quando ela tambm de parto esteja, Para que todo o mundo o excesso veja, Que assim como estiver, ou nua, ou crua, Saia correndo co seu parto rua. Item, que quando o Conde fizer anos,

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Que sero outros tantos desenganos, Ao som de um rouco, e fnebre instrumento, Lhe cantars aos anos um memento. E s Senhoritas todas Em faras, em funes, bailes e bodas, Faas a tua Copia, ou Madrigal, Como der, e vier, ou tal, ou qual. Item, que servilheta do vizinho, Por quem andaste sempre mui tolinho, E sem Jpiter ser, nem ela Europa, Transformado te vi por ela em 'stopa, Teus verses faas sempre, que preciso, Inda andando confuso, andar com siso. Que a essas Valongueiras, Que andam metendo formas de arrieiras, Em verso chulo, em mtrico desgarre Dirs uma vez x, outra vez arre: E se a voz dos orneios no sussurro Se perder, poders em voz de burro Tambm metrificar, Que vem a ser o mesmo, que zurrar. Item, que s do meu bairro Ninfas belas Fars verses; porm com tais cautelas, Que de todo h-de encher tuas medidas, E as Slabas tero bem aferidas: E que moda da Fofa, a Irm do Trs mil cantigas faas s por s, To claras, to brilhantes, to cadentes, Que escuream do Tmega as correntes. Item, que ao carro atado Sejas em corpo, e alma arrebatado Ao cume desse outeiro, Que bipartido at pelo traseiro; Para que ali sem rplicas, e escusas, Beijes os nove cus das nove Musas: E feita esta novena, Ao som da frauta, em doce cantilena, Venhas, como quem zomba, A buscar por teu p a ptria Lomba, Aonde nos Carvalhos, Em vez de frutas achars bugalhos, Por castigo fatal, douto escarmento Do teu louco, e errado pensamento. Isto lhe pedirei, e sem conselho, Espero a condescendncia do bom velho; Por que tem procederes mui honrados, E juzo por cima dos telhados: teu Amigo enfim, isso te basta; E por Pai, e por Me de boa casta. Ora, certo tu j no bom despacho,

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Podes sem nojo algum, ou sem empacho, Fazer versos com mos, e mais com ps, j que ests no teu tempo, e no teu ms; Porque seria asneira conhecida, Deixares de ganhar a tua vida Por este honrado modo. Coitados dos Conventos, e de todo O pobre padecente namorado, Que, para dar em verso o seu recado, Te no tiver a ti, e a mim tambm. No sei que tem, Amigo, o fazer bem! Do prximo fatal necessidade Acudir de Apoio caridade; E eu, e tu bem sabemos os aumentos, Que logramos por tais merecimentos. vista do que, logo eu mesmo esgalho O ramo do Carvalho, Em que as frautas suspensas, e enforcadas Estavam a morrer sentenciadas. E enquanto a liberdade lhes prometo L tu de teu vagar esse Soneto.

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J no vers, alegre Caminhante, As frautas de Paulino em um Carvalho; Pois das Ninfas do Tmega agasalho Sero sempre, em suave som constante. J no vers com plido semblante, As que foram de amor doce espantalho; As que do amante, e lnguido trabalho, Em eco repetiram s o amante. J no vers de todo amortecidas Aquelas prendas, com que o Deus menino Curava de seus golpes as feridas. J no vers, por fnebre destino, Por esses verdes ramos estendidas, E enforcadas as frautas de Paulino.

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(De Paulino Cabral idade de Teodoro de S.) Quando apenas das mos do Omnipotente Tinha do Mundo a Mquina sado, O Tempo novamente produzido, Se mostrou contra os homens inclemente. Dos primeiros mortais foi lentamente As vidas devorando endurecido; Depois, barbaramente enfurecido, Em pouco espao engole a mais da gente. S tu, Teodoro, eterna resistncia Lhe soubeste fazer: da mocidade Conservas sempre a cndida aparncia. Comunica-nos pois tal raridade; Ou dize onde aprendeste essa cincia, Faremos imortal a nossa idade.

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(Resposta de Teodoro de S.) Trs anos uma seve inteira dura, Por mais que o lavrador se sirva dela: Um co trs seves dura, se a cautela O livrar da pedrada, que o procura. Dura um burro trs ces, se a desventura Chagas lhe no abrir da albarda, ou sela: Trs burros dura um homem na mais bela Disposio, que a sorte lhe segura. Como queres pois ter, dize Paulino? Aquela durao, aquele aspecto, Que o homem tem por graa do destino? Trs de ti durarei, e eu te prometo, Que sempre me ho-de ver moo, e menino, Tu Paulino, teu filho, e mais teu neto.

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(De Paulino.) Vs, que um tempo fostes Ninfas belas, Hoje tardas Avs, caducas Tias, Que me ouvistes com leves melodias, Cantar do vosso amor as bagatelas: Vs, que me vistes com subtis cautelas, Velando as noutes, e dormindo os dias, Evitar rondas, iludir espias, Escalar muros, e assaltar janelas: Vs, ficai-vos em paz, e cubra embora Um eterno silncio estas, que choro, Memrias vs da juvenil Aurora. Basta-me s, que a ver-me com decoro Danar com vossas Netas inda agora, Diga alguma de vs Olha o Teodoro!

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(Resposta de Teod.) Pastando a relva mole andava um dia A mais bela manada de jumentas, Umas de cor escura, outras cinzentas, A quem um burro calvo, amor fazia. A este que as rondava, e que as seguia, Disse uma das mais novas Tu que intentas? Tendo corrido j tantas tormentas, Inda o corpo te pede hoje folia? Sim (diz o burro) eu sigo o meu destino; Que suposto dos quinze a idade choro, Para brincar convosco sou menino. Pois (diz outra) se em quinze inda h namoro, Bem podemos dizer Olha o Paulino! Quando alguma disser Olha o Teodoro!

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(De Paul.) A Tenra Meninice se endurece Com as pausas do tempo, e a Mocidade, Perdendo o mimo da primeira idade, Os dourados cabelos escurece. A viril Robustez nos fortalece, Mas rouba a gentileza uma ametade: Sbia a Velhice mestra da verdade; Mas falta a vida, assim que se conhece. Assim por graus nos vem buscando a Morte, De cuja eterna lei se no isenta Dos mseros mortais a triste sorte. Eu somente sei um, que ousado intenta Perverter esta lei; pois sempre forte, Parece moo, e passa de setenta.

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(De Teod.) Entra o homem no Mundo, e seu pecado Chora logo, suposto o no conhece; Porm a Uno Sagrada o fortalece Da corrupo do p, de que formado. Dos singelos discursos desatado, Em mais altas ideias se enobrece; E quanto mais a idade nele cresce, Mais se v nas Cincias sublimado. Que muito pois, que um homem de setenta Te parea inda moo, se esta idade As vigorosas foras lhe acrescenta? O que me faz pasmar, (falo a verdade) que um burro de quinze inda experimenta A mesma fora, a mesma actividade.

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(De Paul.) Faamos paz, Teodoro, que loucura Dos anos teus fazer-te to lembrado: Basta que os fie a Parca, e os conte o Fado; E tarde o Tempo os leve sepultura. O ofcio seu, dem-lhe eles a mensura, Que vida dos Mortais tem destinado; Sem que tomem as Musas por cuidado A triste ocupao da Morte escura. Mas se inda em fazer versos premeditas, Busca outro assunto, aonde o gnio meta Figuras para rir mais esquisitas. Tens aquele que toca a castanheta, Tens certos chichisbus, tens Senhoritas, Tens os golpes subtis da ardente seta.

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(De Teod.) Cantaste meu Paulino, que loucura! Dos longos anos meus sempre lembrado: Canta agora dos teus, antes que o Fado V correndo contigo sepultura. Laqusis fia deles a mensura, E Cloto doba o fio destinado; Mas tropos tomou por seu cuidado, Lanar nos teus primeiro a fouce escura. Faamos paz, se nela premeditas; E o teu crtico gnio bem se meta Do silncio nas margens esquisitas. Agora dana, e toca a castanheta, Celebra os Chichisbus, e as Senhoritas De Cupido o carcs, e ardente seta.

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(De Paul.) Dos bons anos, Teodoro, eu s queria Uma entrada feliz anunciar-te; Porm temo, que chegue a desgostar-te. O que aos mais motivo de alegria. No jbilo comum eu no devia Imaginar razes de magoar-te; Mas gosto to geral no h, que parte Da sorte no funeste a tirania. Calemos pois; que louco o que recorda Do mal, que sem remdio, os tristes danos, A quem se v do precipcio borda: Pois fora indiscrio dos desenganos, Na cadeia ao ladro falar em corda, E a quem se v j velho, nos bons anos.

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(De Teod.) Eu aceito os bons anos, sem que o susto De poder desgostar-me, me entristea; Que suposto, que velho te parea, Conto setenta e seis, forte, e robusto. Para ti guarda o medo; pois justo, Que dos quinze a lembrana te estremea: Porque bem, que o seu dano reconhea. Quem sentiu da atafona o giro adusto. A mim nunca me pode ser molesto Esse reparo teu: os desenganas Da minha idade tenho no meu gesto. Mas louvo-te com termos sempre urbanos, No falares em corda; se um cabresto A runa tem sido dos teus anos.

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(De Paul.) Teodoro, a Vida breve, e a Sorte escassa, O Tempo tragador, e finalmente A idade, que parece mais florente, Logo se murcha, e pouco a pouco passa. Depois, sujeita s iras da desgraa, A mais firme se v, e a decadente A cada instante o duro golpe sente, Com que a Morte cruel nos ameaa. Por fim segue-se aquela noute escura, Que os olhos tapa a todos os humanos, Noute infeliz, que eternamente dura. Ento, para trofus dos desenganas, Tudo se vai sumir na sepultura, Excepto sempre os teus compridos anos.

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(De Teod.) Paulino, estas imagens da verdade, Que pinta a tua voz sempre eloquente, Parece, que as anima um zelo ardente, E so vus com que encobres a maldade. Mas se queres pregar com liberdade, Lava a sobrepeliz; pois diz a gente Que algumas ndoas tem, e no consente Repreenses sem exemplo a nossa idade. O teu Sermo ao vivo representa Da morte o desengano: e era cordura, Que a ambos nos lembrasse esta tormenta: Pois sabes por discreta conjectura, Que se perto da morte andam setenta, Os quinze borda esto da sepultura.

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(De Paul.) O Filho de Neleu1 tanta eloquncia Ao brao esgrimidor, prudente unia, Que fazia discreta a valentia, Mostrando ser intrpida a Cincia. No sei se o valor seu, ou se a prudncia Venceu de Tria a trgica ufania: Mas ambas, em bem rara companhia, Lhe abateram das torres a eminncia. Sempre o seu nome do Castlio Coro Clebre pois ser, e dos Troianos, Com susto ouvido, e nunca sem decoro, Mas de uma larga idade os desenganos Tanta fama deveu.., tem mo, Teodoro, Que eu falo de Neleu, no dos teus anos.

Nestor, bem conhecido no stio de Tria pela sua longa idade e consumada prudncia.

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(De Teod.) Nem a Prudncia, nem a Valentia Do Grego astuto pode felizmente Os triunfos cantar ela Teucra gente, Sem usar de uma infame aleivosia. Com devota oblao (quem tal diria?) A Palas ofereceu traidoramente De madeira um Cavalo, e o bojo ardente Rebuava a traio da oferta impia. face deste voto peregrino, Os muros pem por terra, e sem pens-lo Sentem logo do Grego o golpe indigno. Pergunto, qual venceu? Mas j me calo; Pois justo que um burro 2, meu Paulino, As valentias louve de um Cavalo.

No parea estranha a palavra burro to repetida por este poeta; porque sempre se refere primeira metfora do soneto, que comea Trs anos uma seve, etc.

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(De Paul.) Aqui, onde o Maro das nuvens perto, E aonde a Estgia gua regurgita, O cume empina, as fraldas precipita, Medonho vista, ao passo sempre incerto: Aqui, onde somente encontra aberto Caminho o lobo, quando a brenha agita; E aonde apenas pobremente habita O rstico Cultor deste deserto: Aqui, onde um regato, que iracundo penha golpes d, ao tronco abanos, Salta do monte, e forma um vale fundo: Aqui, na habitao dos desenganos, Deixando o jogo, apostrofando o mundo, Contemplo de Teodoro os largos anos.

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(De Teod.) Inda do frio Inverno a dura fronte Queima os Campos; e o gado espavorido, Como o prado da relva v despido, Em queixosos balidos busca o monte. Inda o Tmega inchado, e a turva fonte Muda o som doce em spero rudo; E do fundo do vale ao monte erguido Nada alegre se v no Horizonte. Inda teima Paulino nos enganos De querer (quando a idade me apresenta) Mostrar-me da velhice os desenganos. Mas se com reflexo pouco violenta Contar quer a runa dos meus anos, Mais contar em quinze, que em setenta.

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(De Paul.) De brbaro Cultor, do curvo arado O Campo, onde foi Tria, hoje se fende: Hoje entre brenhas msero se estende O despojo de Mnfis destroado. Hoje ao muro de Elisa arruinado rabe pescador a Cimba prende: Hoje escola o Liceu, onde se aprende, Que tudo est sujeito lei do Fado. Nestes sacros exemplos, que a vaidade J debilmente na lembrana anima; (Que at memrias traga a antiguidade) Nestes destroos do remoto clima Aprende a recear a larga idade: Toma tabaco, fala tua Prima.

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(De Teod.) Do tirano cultor, que ao frreo arado, Depois que j foi Tria, os campos fende; De Mnfis, que as Pirmides estende Nas cavernas, despojo destroado; De Elisa, se hoje ao muro arruinado O cauto Navegante o barco prende; Da lio do Liceu, Paulino, aprende, Que ests tambm sujeito lei do Fado. Se mostrar-me pretendes por vaidade Das guerras os estragos; se te anima A memria da minha antiguidade: Nos exemplares desse estranho clima Tu deves aprender, que a minha idade Do tempo inda se v na Estao prima.

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(De Paul.) Deixa, Teodoro, verde mocidade Das Ninfas, e das Musas o disvelo; Pois se o peito no brota um Mongibelo, Perde amor, perde o plectro a actividade. Deixa a melhores anos a vaidade De afectos, e conceitos; que flagelo Empregar com ardor, tbio, e singelo Em Gnido, e no Parnaso a tarda idade: O mundo deixa, e trmulo te assenta Junto do mar, de algum penedo em cima, Por ver seguro as ondas, e a tormenta: E se inda acaso algum fervor te anima, Pede uma grade, e frio engenho aquenta, Toma tabaco, e fala tua Prima.

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(De Teod.) Douto Paulino, a minha mocidade Das Musas sempre foi todo o disvelo; E das Ninfas a tua Mongibelo De agudo frio, e ardente actividade. Dos anos meus quiseste por vaidade (E passam de setenta) ser flagelo; Mas no podes deixar de ser singelo, Que trs lustros no Contas mais de idade. Deixa o nome de Gnido, e hoje te assenta No fundo do Parnaso; porque em cima Com Apoio vai l grande tormenta. E se a tomar lio Vnus te anima Da frauta, e mais da lira, que te aquenta, Sopra ao canudo teu, e atesa a prima.

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(De Paul.) Renova a pele a esqulida Serpente, A pena a guia, as pontas o Veado, As flores o jardim, a relva o prado, O bosque a folha, as guas a corrente. Renasce o Mundo, e em cada Abril florente, De novas produes condecorado, Parece, que inda h pouco foi formado Pela Suprema Me do Omnipotente. No caduca com tanta antiguidade: Os anos conta, os sculos numera, E afronta sem pavor a Eternidade. Assim dos Orbes se sustenta a esfera; E assim, Teodoro, a tua longa idade Nunca envelhece, sempre Primavera.

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(De Teod.) Que discreto, que ests, e que eloquente No concurso da sbia Natureza! De teus versos a harmnica beleza Me quer fazer a idade florecente. Mas falemos, Paulino, seriamente; Deixemos dos rebuos a destreza: Eu discorro, que a tua subtileza Alguma ideia encobre delinquente. Porm seja o que for, a nossa idade Passar pelo tempo sem desmaio; Mas sempre com reserva na igualdade. Vivamos pois, e neste alegre ensaio Enganemos do tempo a edacidade; Eu no meu fresco Abril, tu no teu Maio.

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(De Paul.) Se de moscas me vs coberto agora, Triste, frouxo, incapaz, fraco, e doente, Deitado nesta margem de Jazente, Quando no Cabedelo melhor fora: Se da burra cinzenta a f traidora Me deixou por um burro mais valente; Pois me vs esperar do voraz dente Os ltimos estragos de hora em hora: Sabes que antes de ter quinze de idade, Por minhas rebusnantes aventuras, Fui cobridor do Termo, e da Cidade. Porm hoje de tantas travessuras Eu s conservo, homens, que impiedade! Quinze espraves, com trinta mataduras.

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(De Teod.) Qualquer homem, que conta setenta anos, Robusto pode ser, forte, e valente; Mas um burro de quinze apenas sente Do chicote os verges, da espora os danos. Um homem de setenta sem enganos Foras tem, filhos faz, brincos consente; Mas um burro de quinze, s patente Cemitrio de moscas, e gusanos. Sempre as partes do homem so fecundas, Mas as do burro desiguais, e toscas; Umas amveis sempre, outras imundas: Aquele mostrar rugas, ou roscas, Este com espraves, chagas profundas, Um sempre com vigor, outro com moscas.

38

(De Paul.) Oh! como devagar o tempo passa Na solido de uma pequena aldeia! Inda at para aquele, que receia Do importuno credor a espera escassa. Amanhece, e apesar daquela graa, Com que a primeira luz o Sol ateia, Lhe parece a manh comprida, e feia, A quem pesado, e s, no tem, que faa. cada dia um ano: e tanto dura Da noute negra a escura soledade, Que inda apesar do sono, sem mensura. Eu s lhe posso dar com certa idade, Cujos anos j servem de figura Para nos explicar Eternidade.

39

(De Teod) Quem me dera, Paulino, quem me dera Passar-te a certido da tua idade; Mas o assento de um burro na verdade Em livros no se encontra, nem se espera. Inda pelos desfechos bem pudera Conhecer tua oculta antiguidade; Mas se serrado ests, fora asnidade, Contar-te os anos, descobrir-te a era. Tu em parte puseste o pensamento Na nova Certido, com que procuras Desluzir-me o valor, prostrar-me o alento. Mas olha, que a uma queda te aventuras; Que se eu conto os meus anos nesse assento, Tu contars os teus nas mataduras.

40

(De Paul.) Meio sculo o tempo devorado Com tanto estrago tem, que a mocidade J no recorda em tanta antiguidade De seus Avs o nome sepultado. Mas, Teodoro, s tu tens apostado Desafiar a mesma Eternidade, Tendo parte feliz na nossa idade, Nascendo l no sculo passado. O tempo tudo estraga, mais valente Que o rpido, e sulfreo Meteoro; Porm tu lhe resistes igualmente: Nele o violento, em ti o forte adoro, A fora, a resistncia; finalmente Tudo me pasma. tempo! Teodoro!

41

(De Teod.) Mil tojos tem um burro devorado Nos seis anos da sua mocidade; Mas nos seus quinze o tem a antiguidade Nas prprias mataduras sepultado. Porm, Paulino, tu tens apostado Com teu cio vencer a Eternidade; Pois contando dos quinze a larga idade, Parece que nem cinco tem passado. Feliz tu, que no zurro ao mais valente Burro, que vencer pode um Meteoro, No ligeiro emparelhas igualmente. S nas tuas mataduras no adoro: Porm com elas podes felizmente Ser gil Burro do Baro Teodoro.

42

(De Paul.) Um ano mais, Teodoro, principia A dividir o sculo presente: A metade acabou, outra igualmente Toda a posteridade desafia. Foi larga a durao, mas todavia Breve memria apenas nos consente: Grande espao correu, j se no sente; Enfim passou, parece-nos um dia. Assim nos foge o Tempo. Afortunado Do Sbio, que desfruta o valor puro Do crculo das horas apressado. Feliz mil vezes tu, que j maduro, Colhendo desenganos do passado, Ds ao mundo lies para o futuro.

43

(De Teod.) Quando um novo jumento principia A saltar, porque tem a Me presente, E com brincos, e coices igualmente A riso todo o mundo desafia. No muito que seja todavia Dos olhos chamariz: mas no consente O gosto, que um, que quinze aos lombos sente, Queira brincar de noite, e mais de dia. Porm s tu, Paulino, afortunado Sempre sers no teu rebusno impuro, Atrs do qual me levas apressado; Pois inda que nos anos s maduro, Todas as mataduras do passado Mais graa te daro para o futuro.

44

(De Paul.) Teodoro, ei-la l vem, que a fantasia Nem sempre h-de enganar-me; ela, ela, Que te vem procurar, seca, amarela; E por sinal que a curva fouce afia. Traz consigo o pavor, traz a agonia, E tudo quanto aos homens atropela: Despedaa, desfaz, consome, rela, E leva quanto encontra campa fria. No tens que lhe fazer, que o mais valente No sabe resistir lei da sorte: Os olhos tapa pois, inclina a frente. Mas ah!, que digo? ela suspende o corte; Ela passa adiante, e finalmente Os teus anos respeita, e foge a Morte.

45

(De Teod.) Que pretendes Paulino? Intimidar-me? Ora inventa as histrias, que quiseres; Que por mais que os estragos me ponderes, Nunca o medo pueril h-de ocupar-me. Se da Parca o furor queres mostrar-me, No temo a Parca, enquanto tu viveres; Porque, como na idade me preferes, S depois de levar-te h-de levar-me. Mas Ah! que j me cerca algum cuidado; Porquanto ouo da Parca dura, e fera Os Ecos tristes do instrumento arpado. Ei-la l vem; no cuides, que quimera: Tu no vs, que com passo acelerado Vem dizendo... Paulino, espera, espera?

46

(De Paul.) Subjuga o Tempo indmitos pescoos, E com dente voraz, perptua fome Nos arranca, nos traga, e nos carcome Os cabelos, a pele, a carne, os ossos. Mas que muito, se os mrmores mais grossos Na durao dos sculos consome? Despedaa, desfaz, devora e come, Torres, Templos, Pirmides, Colossos,? Enfim, Teodoro, as nossas mocidades Engolem pouco a pouco sem demncia O dia, o ms, os anos, as idades. Nada pode fazer-lhes resistncia: E se tu queres ver estas verdades, Tira a peruca, apalpa, e tem pacincia.

47

(De Teod.) No sexto dia o burro foi criado, E por burro foi logo conhecido; Que as asneiras de um burro presumido, As alcana um discurso moderado. Depois do burro o homem foi formado, E em grandeza maior constitudo; Que o criar-se depois, prodgio h sido, Que o burro no alcana, inda picado. Infira agora assim, Senhor Abade, A ilao, que se tira do argumento, Que no pode negar por ser verdade. Ergo claro se v com fundamento Na teimosa questo da nossa idade, Ser o homem mais novo que o jumento.

48

(De Paul.) O Tempo apurador dos membros nossos, Para dar alimento prpria fome, Nos arranca, nos ri, traga, e consome Os cabelos, a carne, a pele, os ossos. At mordendo os mrmores mais grossos, Pelas bocas dos sculos os come; Desbarata, destri, desfaz, consome Torres, Templos, Pirmides, Colossos. Sorver o Mundo inteiro enfim procura; Porque apesar dia sua permanncia, Abate, quebra, rompe, e desfigura. Mas em Teodoro encontra resistncia; Pois com ter quinze lustros, nele dura O brio, a fora, o nimo, a potncia.

49

(De Teod.) Que importa que do Tempo a edacidade Das Torres arrune a arquitectura, Se o homem de setenta anos procura Vencer de seus estragos a impiedade? Mas no assim o burro, cuja idade O Tempo sempre aos quinze desfigura; E se apenas trs lustros vivo dura, Ao quarto desfalece sem piedade. Resiste pois o homem, que valente, s inquietas paixes do Tempo irado Com valor sempre firme, e permanente. Morre o burro dos quinze estropiado, Sem ter memria alguma do presente, Nem conservar lembranas do passado.

50

(De Paul.) Aqui, pois mo permite a soledade Deste mudo deserto, aonde habito, Aqui, douto Teodoro, premedito Do Tempo na pasmosa imensidade. Lembro-me ento da tua longa idade: Os lustros conto, os sculos repito; At que pouco a pouco no infinito Me vou perder da escura Eternidade. tudo um Mar Oceano profundo, Aonde a mais afouta fantasia Tomar no pode inda nas praias fundo. Oh! queira o Cu, que em santa companhia Os anos, que te aplaudo c no mundo, No paream no Cu menos, que um dia.

51

(De Teod.) No digas, no, que muda soledade, Essa, 6 Sbio Paulino, aonde moras; Pois com tua presena a condecoras, Fazendo de um deserto uma Cidade. Nem te lembras da minha longa idade, Se a tua com razo nunca melhoras; Deixa correr os meus dias, e horas, Sempre atento mortal fragilidade. S te peo por termo derradeiro, Que vendo-te no Cu livre de enganos, Porque enfim pela idade hs-de ir primeiro; Nessa posse de gostos soberanos, Esquecido da pena, e do tinteiro, S te lembres de mim, no dos meus anos.

52

(De Paul.) J de louro, e de mirto a douta frente Apelo, e Amor te tem ornado: agora Com dobrado triunfo condecora Do rico Douro a lquida corrente. Dos Cisnes seus escuta a voz cadente, Que para te aplaudir se faz sonora; Das Ninfas ouve os vivas, e demora Na ptria venturosa em paz contente. bem que ds descanso longa idade: De glria duplicada enriquecido Pendura a frauta, e cobra a liberdade. E se outra vez teu peito for ferido Das Musas, ou de afecto, na saudade Ri-te de Febo, e zomba de Cupido.

53

(De Teod.) Inspirado nas Musas doutamente, E ferido de Amor com tirania, Juntaste, Sbio amigo, a melodia Ao violento estridor da chama ardente. Foste Poeta; ouviu-te um tempo a gente, Da doce frauta a plcida harmonia: Foste amante; de Nize a aleivosia Te enriqueceu o som da voz cadente. Eu por mais que o mistrio desenrolo, No posso compreender o como urdido Foi deste infeliz caso o feio dolo. Somente sei te vejo convertido, Do Cisne mais harmnico de Apolo, No Cuco mais nojento de Cupido.

54

(De Paul.) J, Teodoro, o cabelo me embranquece, Parte me cai, e parte se arrepia, Encrespa-se-me o rosto, e principia O Tempo a declarar que me anoitece. Tarda-me a mo, a planta se entorpece, A vista dos meus olhos se desvia; Tudo me enfada, tudo me enfastia, E tanto que at Nize me aborrece. Enfim tenho alcanado, caro amigo, Que a estao dos tardios desenganos Me bate porta, e vem lutar comigo. Triste penso dos mseros humanos! Que todos... mas tem mo, no contigo, Que a velhice no entra nos teus anos.

55

(De Teod.) Agora, que de neve se embranquece Aquele monte, e o burro se arrepia, chegado o Inverno: principia, Paulino, a ver que cedo te anoitece. Se o rosto encrespa, a planta se entorpece, Se tarda a mo das Musas te desvia; Se j teu canto ia todos enfastia, E at Nize de ouvir-te se aborrece; Agora sim, agora, sbio amigo, tempo de abraar os desenganos, Que o Tempo a todos d: mas no comigo. Vai-te enfim despedindo dos humanos; Que a velhice cruel entra contigo, E nunca tens de a ver nestes meus anos.

56

(De Paul.) Eu que tanto, 6 Teodoro, um tempo disse Dois grandes anos teus, que impertinente Tantos versos lhes fiz, at que gente, Sofrimento faltou, com que me ouvisse. Eu nunca imaginei, que em mim se visse Despovoada a boca, e calva a frente; E posto em termos tais, que finalmente Imagem fosse da infeliz velhice. Mas foram pragas tuas, ou crueldade Do rude Tempo, que me tem contado J mais de meio sculo de idade. Nada me falta mais, que ao duro Fado O resto consagrar da humanidade: Ah! Teodoro, Teodoro, ests vingado.

57

(De Teod) Que tarde, meu Paulino, resplandece Na tua boca a cndida verdade? Tarde sim; porm sempre a longa idade De sbias instrues nos prevalece. Que ests arrependido me parece De me insultar com tanta impiedade: Eu tudo te perdoo, que a piedade Mais que a vingana as almas enobrece. Vai-te em paz, e se l no Elsio prado Vires Nestor, pergunta-lhe se assenta Qual de ns j mais anos tem contado. Escuta-lhe o seu voto humilde, atenta, E vers que te diz o velho honrado Que os teus quinze so mais que os meus setenta.

58

(De Paul.) Tu que foste, Teodoro, em outra idade Das Damas, o cultor, hoje o tirano, Em paz as deixa, e toma um desengano, Que logo intentes, que aos demais agrade. Vai procurar a muda soledade, Metido no burel de Franciscano; Para l num deserto desumano Penitncia fazer de tal maldade. Fiquem dos verses teus enfim proscritas As satricas vozes; que empiora O canto teu as cousas mais bonitas. E se tu, por estares l por fora, Pretendes escapar s Senhoritas, Olha que um Chichisbu te avisa agora.

59

(De Teod.) Alegra-te Jazente, pois agora Visitados vers com glria inteira O tojo inculto, a rstica silveira, O rodante moinho a frtil nora. Alegra-se, que cedo a voz sonora Do que j quinze conta na carreira, De brados encher tua ribeira, Qual rouxinol de l no ms de Flora. Alegra-te; pois tens (com bem o eu conte, Jazente feliz) neste talento Mais glrias do que Febo tem, e Etonte. Os Parabns recebe em tanto aumento; Pois o que h-de habitar teu frtil monte De Rocinzinho3 veio a ser jumento.

O Rev. Ab. esteve para ser Ab. de Recezinhos. Fim da Controvrsia.

60

(De Paul. Este e o seguinte soneto, bem que no pertenam Controvrsia, se juntaram aqui por serem feitos a Teodoro de S e terem as suas respostas.) Enquanto do Nordeste o sopro frio Murcha o rosto gentil da Ninfa bela, Os Prados queima, os pntanos congela, s guas sorve pouco a pouco aio rio: Enquanto o lavrador com voto pio A chuva pede ao Cu, e se disvela Em tapar os cristais na falta dela, Que escasso verte o cncavo sombrio: Enquanto tu, Teodoro, os membros assas De dia posto ao Sol, de noite ao fogo; E as longas horas, como podes, passas: Eu busco outro diverso desafogo; Passo em casa as manhs, janto, dou graas, Monto a cavalo, e vou-me para o jogo.

61

(Resposta de Teod.) Deixa Paulino, deixa a travessura Do jogo, a que te arrasta o gnio inquieto: Sossega um pouco mais, e circunspecto A orgulhosa paixo vencer procura. Mais que o fogo, e que o Sol, mostra a cordura, Que assa, e queima do jogo o falso objecto; Pois se s vezes te mostra alegre aspecto, Logo em pesares mil troca a ventura: Com o tal Whist te isca o namorado De teu dinheiro; e perdes de embalada Apostas, e partidas enfadado. Queres jogar depois a Arrenegada; Vs um bolinho, tenta-te o pecado, Vais Menina, e fica codilhada.

62

(De Paul.) Aqui, onde o Miaro no frontispcio Mostra medonho ao peregrino atento, Que ou dos Orbes bruto fundamento, Ou do despenho brbaro edifcio: Aqui, onde somente por indcio Vereda encontra a vista, a planta assento, Notando em cada monte um espavento, Topando em cada ponha um precipcio: Aqui, Teodoro, a plida saudade Rouca me deixa a voz, o plectro rude, Aluno enfim de tanta soledade. Deuses: ou vs fazei, que o stio mude De habitao to triste, ou pior piedade Me dai para a suster maior virtude.

63

(De Teod.) Sbio, e feliz pastor, to desejado Te fazes dos pastares desta aldeia; Que inda mais tua vista os lisonjeia, Que a verde, e imole relva ao manso gado. Apenas pes os ps neste montado, Todo o Zagal contigo se recreia, Jogando a luta sobre a branda areia, Lanando a barra sobre o verde prado. Do Maro no te assuste esse obelisco, Sempre vista medonho, e na verdade S alvo dos estragos de um corisco. Se tens de Maioral a dignidade, Com Cabana abundante, e largo aprisco, Porque acusas dos Deuses a impiedade?

64

(De Paul.) Triste, s, melanclico, e doente, Na muda solido desta espessura, Estou, Teodoro, ia mais mortal figura, Que a Tristeza at agora fez patente. Tenho um barrete sujo sobre a frente, A cabea inclinada, a vista escura, E reclinado estou em tal figura, Que mais pareo um morto, que um vivente. Submergido no prprio pensamento... Mas l vem geme, algum talvez me saca, Deste meu solitrio aturdimento. o Miqu'lete... adeus: d-me a casaca; J sei que h no Seixedo ajuntamento: Joo, no ouves? Aparelha a faca.

65

(De Teod.) Que esteja triste o centro da alegria! Que viva na espessura a flor do prado! E com barrete sujo, e mal lavado, Quem gema do asseio, e bizarria! Que hoje incline a cabea, que devia Aos Corifus da Frana dar cuidado! Que o corpo encurve, como estuporado, Quem dana com Madamas noite, e dia! Isto no pode ser: isto matraca, Ou so faltas, Paulino, de dinheiro; Que a nossa bolsa s vezes velhaca. Mas tem mo ... j l vem pelo terreiro Quem te alegre: Joo prepara a faca; Que chegado o socorro ido rendeiro.

66

(De Paul., morte de Teod. de S.) Se tu (sejas quem fores) que parado Observas esse frio monumento, Que contra o taciturno esquecimento Gravou cinzel de amiga mo guiado: Se teu gnio no tens s Musas dado, Constante na amizade, honra atento; Se do bom gosto vives sempre isento, E se das Graas nunca foste ornado: Ento tu me perdoa, inda o repito, (Que a infame adulao mal condecora Este dos mortos fnebre distrito) Ento passante, ento no te demora A ler o que essa pedra guarda escrito; Ela cobre Teodoro: Vai-te embora.

67

(Do mesmo ao mesmo assunto.) Enfim, Teodoro, enfim a escura sorte Te abateu como aos mais endurecida; Talvez piara elevar desvanecida O instrumento cruel do triste corte. Quis a fouce provar contigo, e forte Executando o golpe enfurecida, Acabou de mostrar que a maior vida, Inda que tarde, se sujeita morte. Mas deixa, alma feliz, que por vanglria Se jacte a Parca ao resto dos humanos, De que de ti logrou falsa vitria: Pois tu, para evadires os seus danos, No menos que no Templo da memria Abrigaste com tempo a dos teus anos.

68

SONETOS DE PAULINO CABRAL DE VASCONCELOS Um de meus Bisavs foi mercador, Outro foi de Alfaiate oficial, Outro tendeiro foi sem cabedal, E outro, que Juiz foi, foi lavrador. O meu paterno Av foi professor De latim, que ensinou ou bem, ou mal; E o materno viveu no seu casal, De que inda agora eu mesmo sou senhor. Meu Pai Mdico foi, e homem de bem, Minha Me Dom teria, porque enfim Muitas menos do que eia agora o tm. Abade eu fui, e se saber de mim Alguma coisa, mais quiser algum, Saiba, que versos fao, e os fao assim.

69

Aquele tu, e vs, quando algum dia Havia em Portugal sinceridade, Acabou, comeando a nossa idade A dar a uma merc a primazia. Depois foi-se exaltando a Fidalguia, E entrou tambm na plebe essa vaidade; E tomando a merc de propriedade A nobreza subiu Senhoria. No parou inda aqui tanta loucura; Porque vai j querendo uma Excelncia Quem tinha a Senhoria por ventura. Mas sabeis o que causa esta demncia? Faz que os crticos vo sepultura Fazer-lhe anatomia na ascendncia.

70

Fizeram com tal arte trs Pintores Da Tristeza um painel, que certamente No podia o pincel o mais valente Lanar-lhe as linhas com mais negras cores. A desonra, os remorsos, os furores, A saudade, a morte: finalmente Pintaram nele quanto pode gente Causar assombros, infundir horrores. At nele se via debuxado Os olhos baixos, e encolhido o cerro Um homem sem dinheiro, sendo honrado. Uma falta s tinha, mas no erro, Que nele se no via retratado Um valido de um Rei no seu desterro.

71

No desejo chegar a tal grandeza, Que aduladores vis cerquem meus lados, Nem Palcios magnficos dourados, Ricas alfaias, nem polida mesa. No me lembram heranas, nem riqueza, Que me obrigue a pr nela meus cuidados, No ocupar honrosos Magistrados, Nem outras cousas vs, que o mundo preza. Quisera s fugir de tanta estima, Livrar-me deste plago profundo, Mudar da natureza, que me anima; Subir da Lua ao globo alto, e rotundo, E depois de apanhar-me l de cima, Desatar os cales, c... no Mundo.

72

Eu que me ri da Nigromancia preta, Dos sonhos vos, da Mgica aparente, Das Larvas, dos Espectros, e da gente Que conta entre os portentos um Cometa. Que me ri de ver, que inda h quem se meta A produzir do ferro ouro luzente, A profundar tesouros, finalmente De mentidos Brases, de Dons de peta. Eu mudei de sistema, e transformado De Heraclito em Demcrito, deploro As voltas que no Munido se tm dado. Eu vejo tanta causa, que o decoro Me precisa a calar, e magoado Em lugar de me rir confuso choro.

73

(s criadas do Convento em um Abadessado.) vs, que em Santa Clara de Amarante, Suposto que sirvais, sois moas belas, E uma vez na cozinha, outra nas celas Defumais aos braseiros o semblante; Vs que, para avistar algum amante Cobris o rosto com subtis cautelas, E umas vezes olhais pelas janelas, Outras vezes estais pelo Mirante: Vs fartai-vos agora, que este dia De tanto alvroo traz licena tanta, Que tudo se permite rapazia. Alto pois, afinar essa garganta, E d mote com sbia melodia Aquela, que de vs for mais chibanta.

74

Agora sim falar pretendo ousado, Depois que s me resta a sepultura; Porque enfim pouco ou nada se aventura, Quando j se receia a lei do Fado. De lustros dezasseis, que tenho andado, No h mais que esperar, que a morte dura, E tanto mais do golpe me segura, Quanto mais o pressinto avizinhado. Paga-se tudo pois; e por piedade O Mundo ou me respeite, ou me suporte Por devida ateno larga idade: J que to infeliz a humana sorte, Que para claro abono da verdade No basta a vida, necessria a morte.

75

Quem te viu, quem te v, Portugal! To brbaro, grosseiro, tosco e vil! Hoje ests mais polido, e mais civil custa do teu prprio cabedal. Algum dia poupavas teu real, E fizeste j caso de um ceitil; Hoje gastas cruzados mil a mil, Inda que a renda seja tal ou qual. Lanou a astuta Frana o seu anzol; E armando-te com isca de ouropel, Te vai pondo na espinha,, e tudo ao Sol. Mas enquanto no chega o S. Miguel, Se no houver dinheiro, ir ao rol; Vai tu sempre fazendo o teu papel.

76

Se algum espreitador da vida alheia, Gente, que as Assembleias condecora, Pois nelas tudo diz, tudo empiora, E tudo quanto sabe patenteia: Se acaso algum dos tais diligenceia Saber astuto em que me ocupo agora, Pelo no precisar a vir c fora, Eu lhe digo o que fao nesta aldeia. Eu como, eu bebo, eu durmo, e se runa Pressinto na sade, nada pago, Inda que o ser me deu, Medicina. Porque das queixas no maior estrago, Se alguma mais rebelde me amofina, Vou-me deitar, tomo uma ajuda e c...

77

Nize, eu no posso mais, e a minha idade J no resiste tua gentileza, Porque em mim j desmaia a natureza, E em ti inda te alenta a mocidade. Enquanto eu pude, e tive actividade, Nenhuma exprimentou em mim tibieza; E se queres saber esta certeza, Tua av te dir toda a verdade. Pergunta-lhe o que fiz, e a valentia Com que do ardente amor acompanhado Nas campanhas de Vnus combatia: Mas j hoje da guerra estropiado, S conservo na vaga fantasia Estas tristes memrias do passado.

78

Tem-se feito entre ns tanta mudana, Que Portugal to rstico algum dia J nas Naes estranhas se avalia Por aluno fiel da douta Frana. J se vai ao Teatro, ao jogo, dana, J se conversa, e no se desconfia; Pois de um, e doutro sexo a companhia, Em lugar de inquietar-nos, nos descansa. J liteiras no h, pois na Cidade S Berlindas se vem, se vem Boleias Rodar com mais gentil velocidade. E seguindo-se de amor novas ideias, No se ataca das Freiras a piedade, Vai-se tomar lugar nas Assembleias.

79

(A um Abadessado) Nos braos nasce o Sei da bela Aurora, Sendo bero gentil Ilustre Oriente, Sobe ao Znite excelso, e em giro ardente Em Ttis busca o Sol o bem que adora. Logo a Lua na Esfera brilhadora, Vigaria das Estreias refulgente, Rege o Plo, mas cede obediente, Quando renasce a chama triunfadora. Este Claustro feliz do Firmamento Na Lua, nas Estrelas, no Sol claro, Prottipo exemplar, copia a face. Por isso, por ter firme o luzimento, rsula egrgia, Sol com giro raro, Nasceu, subiu, girou, ps-se e renasce.

80

Avizinhar-se Flis quis ao Cu, Para mais o ilustrar: que fez? subiu; E porque o Claustro as luzes lhe encobriu, Fez nova habitao no coruchu. Mudou-se pois, certo; mas labu Na pureza da f no produziu; Que como o amor os voos lhe infundiu, Na mudana lucrou maior trofu. Fez Flis muito bem: quis ir viver Onde pudesse as graas ostentar, De que tanto se soube enriquecer. Somente deve o mundo recear, Que a vela toda a luz lhe deixe ver, Pelo risco que corre em se abrasar.

81

Enfim, bela infiel, teu gnio impuro J no h-de alentar minha esperana, Pois rompeste com prfida mudana Tanto amor, tanta f, tanto seguro. Nem j pretendo achar, nem j procuro Em peito to mudvel segurana; Pois desta ofensa a trgica lembrana Exemplo me h..de ser para o futuro. Acabe pois afecto o mais egrgio, Pois que no me guardou teu peito ingrato Ao menos da presena o privilgio. No quero que outra vez teu falso trato Faa contra o respeito um sacrilgio, Cometa contra amor um desacato.

82

Caiu esse penedo sem segundo Da humilde Pacincia intitulado: Que o ferro, o bronze, enfim quanto criado, Nada resiste s quedas deste Mundo. Ali se via com pesar profundo J um amante bengala encostado, J rasgar os acenos um barbado, J fazer rapazias cego, e imundo. Mortal, aprende, deixa essa vaidade: Em ti cai, asneiro, que inda tens F... Sofrendo quanto traz esta maldade: Pois 'tquele, ao ver tanta borracheira; Com ser pedra, no pode mais idade O peso suportar de tanta asneira.

83

Se magro como um co algum mie visse Em terra estranha roto, e desprezado, E do pobre vestido esfrangalhado Cardumes de piolhos sacudisse: Se doena maligna perseguisse Meu corpo de ossos s organizado; Se em terrvel priso, no cho deitado De fria cama a terra me servisse: Se feito objecto ascoso a toda a gente, Aquele, que me visse a vez primeira, Ou fugisse, ou pasmasse de repente: Se meu corpo por fim visse a lazeira De cego, surdo, e mudo juntamente; Antes tudo sofrera que ter F...

84

bem feliz por certo, o que somente Ao rstico lavor acostumado Conduzir sabe os bois, reger o arado, E dar terra a provida semente. A arte de a lavrar sempre inocente Estuda s, e ignora afortunado As novas leis, as mximas de Estado, E os documentos de enganar a gente. Projectos vos no forma, e sempre isento Da soberba ambio, nunca a Lisboa Foi dobrar o joelho ao valimento. Cabana humilde, onde nasceu, povoa; E seguro no prprio abatimento, S tem modo do Cu, quando trovoa.

85

Agora em duas glrias dividida Na passada, e presente Prelatura, Vos considera a minha conjectura Com ambas igualmente enobrecida. Na primeira do acerto revestida Felizmente adornais esta clausura, E a dita eternamente nos segura A segunda depois de conseguida. Nas duas prelaturas de maneira O Cu as esperanas nos fecunda, Que faz a glria de ambas verdadeira. Mas se nisto a disputa s se funda, Por passada menor a da primeira, Por presente maior a da segunda.

86

Quando talvez na vaga fantasia Projectos formo, e mquinas invento, Entro em Lisboa, o Rgio Errio aumento, Arbtrios dou, e alargo a Monarquia. Meu voto o S. ....... se confia, O Marqus de ...... me escuta atento, O Rei Bispo me faz, em um momento O Padre Santo Cardeal me cria. Mandam me a Roma, as dvidas componho, Fao a paz, morre o Papa, e finalmente Quase a Tiara na cabea ponho... Nisto chega um credor impertinente, Que me interrompe to alegre sonho; Bate-me porta, e vejo-me em Jazente.

87

(Ao enterro do Excelentssimo Marqus de P.) Marcha em paz, Marqus, e afronta ousado Da fria sepultura a escuridade; Que a ser do Elsio, o que se diz verdade, Inda nele o teu Rei te ofrece o lado. Tu lhe guardaste a vida, o Trono, o Estado; Tu lhe assististe enfim com tal lealdade, Que se o Letes no muda de vontade, Ters inda alm dele o Rgio agrado. Marcha, torno a dizer, sem que a vanglria Deixe as tuas aces em bronze escritas, Ou forme delas volumosa histria: Pois te basta sem frases esquisitas, Que mostre o teu sepulcro esta memria: Aqui jaz quem deu fim aos Jesutas.

88

(Ao mesmo.) tal, Marqus preclaro, tal o aumento, Que s Armas tens, que tens s letras dado. Que o lustre, que se deve ao teu cuidado, Te dobra, e no distingue o luzimento. Da muda habitao do esquecimento As soubeste extrair, e afortunado Logra com elas o florente Estado Numas defesa, e noutras ornamento. Tu com progresso igual na concorrncia Lhe fizeste recproca a vitria, Sem que ceda nenhuma a preferncia. E tanto que inda as Filhas da Memria Se lembram nesta nobre competncia De dous triunfos teus, uma s glria.

89

(Recitado) Eu, que me ri na flor da mocidade, Dessa ardente paixo, que a honra infama, Que a tanto homem de bem, que a tanta dama Mancha o decoro, e rouba a liberdade: Que me ri desse Nume sem piedade; Que com profano ardor, com voraz chama Abrasa aos Sbios, aos Heris inflama, E acende at no Trono a Majestade: Eu, que me ri do Amor, eu finalmente, Que lhe chamei rapaz, e um louco encanto, Que delrios produz no mais prudente: Eu, convertendo agora o riso em pranto, Arrastando os grilhes, como a mais gente, Adoro a Nize; e a palindia canto.

90

RIA Ningum, no, de Amor se ria; Que cruel, e pode tanto, Que mudar-lhe o riso em pranto Algum dia Lhe far. Se o tiver por inimigo, Se acautele, e tenha medo; Porque enfim ou tarde, ou cedo O castigo Lhe dar.

91

Enfim, Penafiel, do teu Bispado Despojada te vs: tem pacincia; Que tudo o que acontece consequncia Do sistema, em que o mundo est fundado. Ele mudvel , e contra o fado No vale dos mortais a diligncia; Pois s pode fazer-lhe resistncia No mudo sofrimento um desgraado. Encolhe os ombros pois; e sem vaidade Depe a pompa, que te fez ufana Na fugitiva luz da claridade. Pouco tempo a lograste, e se te engana Inda o ttulo novo de Cidade, Recorda o nome antigo de Arrifana.

92

Volta, Penafiel, volta contente Da antiga Me ao grmio sacro, e agora No te separes dela, como a Aurora Se no sabe apartar do Sol luzente. Volta a beijar-lhe a mo, e obediente No materno regao outra vez mora; Porque a filha, que dele se sai fora, No torna, como tu, sempre inocente. Tu mesma abonas hoje esta verdade; Pois bem que ilesa vens, vens mais ufana Por vir trajada em forma de Cidade. Ningum te contradiz: mas desengana Esses novos adornos da vaidade Com os outros antigos de Arrifana.

93

( Fortuna.) Agora sim, agora sem vaidade Podes alar, Penafiel, a frente; Pois j com nome novo, e florecente Passas de Vila aos foros de Cidade. Do teu novo esplendor na claridade Lisonjear te podes, e contente Ostentar sem rubor do mundo gente A antiga feira, a nova Dignidade. Agora sim (se acaso no receias Desperdiar os timbres, que ainda guardas, Dos edifcios teus sobre as ameias). Agora podes nas paredes pardas Meter por luminrias as candeias, Estender por bandeiras as albardas.

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Descobre, 6 Deusa cega, muito embora O escondido topete louca gente, Que suspender-te intenta, e diligente Da passagem feliz te observa a hora. Dos votos teus o templo condecora, As splicas lhe escuta, e finalmente Aceita obsquios mil, que reverente Te faz o mundo, que feliz te adora. A riqueza, o poder, a dignidade, Objectos vos de um infeliz cuidado Ofrece a quem te tem por Divindade: Que eu de teus falsos dons desabusado S aspiro feliz mediocridade, Por viver a meu modo:, e descansado.

95

Ela l vai a infausta Companhia,, Aquela cabisbaixa atreioada, Que da falsa virtude mascarada Tanto mal Repblica fazia. Ei-la l vai, a mesma, que algum dia Formava em Portugal tanta embrulhada: Ei-la l vai banida, abandonada, E exposta at do vulgo zombaria. Coitada! que objecto de piedade A que causava inveja a muita gente; Mas torne a culpa sua iniquidade. Vai para Roma, a pobre, onde somente As portas lhe abre Sua Santidade, E lhe faz cumprimento :o Pretendente.

96

(Ao Excelentssimo Marqus de P.) Marqus, tinhas razo; e o Mundo agora Da tua persistncia a valentia Por prudncia feliz tanto avalia, Que de eterno louvor te condecora. A mesma Roma em seu triunfo arvora O Decreto, que extingue a Companhia: Tarde teu grito ouviu, mas todavia Te deu maior abono na demora. Persististe, venceste, e um monumento A teu nome j clebre prepara, Capaz de resistir ao esquecimento. A aco toda foi tua, e to preclara, Que a faltar-te das mais o luzimento, A fazer-te imortal esta bastara.

97

Lisboa me comuna,, e to clemente, Que no seu seio a todos agasalha; Ao desvalido alenta, ao rico engalha, Ama o feliz, e alegra o descontente. Ao pobre, ao litigante, ao pretendente Promessas mil, se mais no pode espalha, E tanto em agradar, tanto trabalha, Que a todas as Naes se faz patente. S nela, e com razo, foge a ventura Daquele em quem se encontra tal bondade Que as coisas diz, e no as desfigura. Pois sempre, e muito mais na nossa idade Se teve por delito, ou por loucura Seguir a Corte, e professar verdade.

98

Esta vida mortal, que a estime embora Quem nunca pleitos teve, e independente No teme que um credor pouco clemente Do paterno casal o lance fora. Que a estime o que em Lisboa inda at gora No despachou servios; finalmente O que nunca foi ru, nem pretendente Sofre repulsas, nem desprezos chora. Mas quem com pretenses na Corte estraga Os bens, que lhe deixaram seus passados, Esse louco ser se a vida afaga; Pois melhor morrer de outros cuidados, Que sofrer em Lisboa a infame praga De alguns Ministros, e dos seus criados.

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Neste pardo penedo levantado, Que ao p do Douro fica, aqui me assento, S por ver se divirto o pensamento De funestas imagens carregado. L vejo vir ao longe o manso gado Caminhar vagaroso em passo lento, Talvez buscando o rstico aposento, Que a ventura lhe tem j destinado. L diviso tambm o tenro amanho, O rafeiro fiel, o bom pastor, Ditosas esperanas do rebanho. Oh! feliz gente, vida superior! Que vivais to contentes no estranho; Porque enfim no sabeis, o que amor.

100

Ora a pesca, ora o jogo, ora o passeio, Ora da Frana um livro me entretinha, E ora na casa alheia, ora na minha Dos amigos lograva o doce enleio. Ora a pintada truta, ora o recheio, Ora a gorda perdiz na mesa eu tinha; Sustentava cavalos, ces mantinha, E via o ptio meu de pobres cheio. Ora talvez das Musas no regao Cantava com cadente suavidade, Fazendo alguma delas o compasso: Mas tudo enfim l vai; foi com a idade: E somente (que tristes versos fao!) Me ficam as lembranas, e a saudade.

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Trema por toda a parte embora a Terra, Enfurea-se o Mar, solte-se o Vento, E a tudo dando o Fogo acabamento Faa contra os mortais medonha guerra. Mande c fora o Inferno quanto encerra De frias, de pavor, e de espavento; Porque eu s tenho medo ao meu tormento, Que o mais, seja o que for, me no aterra. O meu mal maior que tudo quanto Na ideia mais aflita se presume, Que aos orbes cause um mortal quebranto. Porque mais que do Abismo o negro lume, Me causa mais horror, e mais espanto A mudana de Irene, e o meu cime.

102

Esta vida mortal de males cheia, Aquele que feliz, que a estime embora; Que a dilate, quem nunca as faces cora, Que de nada se di, nada receia. Que a guarde quem contente em paz granjeia O seu casal, sem dele sair fora, Quem soberbo valido nunca adora, Quem Ministro sagaz no lisonjeia. Esses que vivam sim; mas ao que trata A sorte, como a mim, com mil rigores, Esse far bem mal se se no mata: Pois melhor morrer, que os desfavores Sofrer de uma cruel, e de uma ingrata, Que belos olhos tem, mas so traidores.

103

O Galo, que partindo a noite escura As asas bate em cima do poleiro, Alegre canta, enquanto no ribeiro Saudoso o rouxinol a voz apura. Agora que o pastor na serra dura, Vigiando os currais sobre um outeiro, Porque afugente o sono sorrateiro, Cantando atento despertar procura: Agora que cantando a roca espia No sero a paisana, e o doce encanto, Com que a prende Morfeu, de si desvia: Assim das sombras no medonho espanto, Por ver se o meu tormento se alivia, Eu tambm choro, e ao mesmo tempo canto.

104

Leva-me a sede adusta fonte fria, A calma sombra amena; e mole cama, Assim que a noite a escurido derrama, O doce sono pela mo me guia. Durmo, sonho, desperto, e a luz do dia Do mundo ao espectculo me chama; E aquele objecto ento, que mais me inflama A mover as paixes me principia. Se elas contrrias so fico indifrente, Enquanto me no move o que mais forte; Que ento sigo obrigado a mais valente. Obro ento contra mim; pois desta sorte Conduzindo-me a Nize o amor ardente, Dela me faz fugir o horror da morte.

105

Eu tanto triste choro, eu tanto gemo, Deste mundo o mais mal aventurado, Que chego a duvidar que possa o fado Remontar o meu mal a mais extremo. No pode ser; que enfim ao grau supremo A fria do meu mal j tem chegado: Mas nisso em parte fico consolado; Pois ser mais infeliz eu j no temo. Assim permita o Cu, que eu me conforte, Porque inda que pretenda ser mais dura No o pode j ser a minha sorte: Pois roubando-me Nize a Parca escura, Inda que a mim tambm me desse a morte, Em lugar de desgraa, era ventura.

106

Adeus caro Peixoto, adeus: e enquanto Passas do Elsio a eterna claridade, Recorda-te de mim; se que a amizade Sobre o Lotes no sofre algum quebranto. Tu l nesse lugar alegre, e santo Concede ao meu pesar uma piedade; E ao menos, para alvio da saudade, Aceita grato o meu amargo pranto. Nele vers (se tu do esquecimento As guas no levaste ao Cu contigo) A grandeza cruel do meu tormento: Pois mais do que nas vozes, que te digo, Nas lgrimas, que choro cento a cento, Vers que fui, que sou, constante amigo.

107

Eu decidir no sei, Tio amado, Qual fosse para mim mais transcendente, Se a nova, que me deste de doente, Se a notcia de teres melhorado. Deixou-me aquela o peito trespassado, Esta de todo me deixou contente; Mas qual das duas fosse a mais valente, Julg-lo inda no sabe o meu cuidado. Por isso procurar vossa presena Com esta indeciso intento agora, Sem declarar qual fosse a mais intensa; Para vos dar unidos na demora, Os psames mais tristes da doena, E os parabns mais gratos da melhora.

108

Esta vida de mil misrias cheia Estime-a o venturoso muito embora; Que eu intento com nsia dela fora Ir do Letes calcar a muda areia. E se certo que ento nada receia Quem no Elsio pas ditoso mora, Habit-lo quisera; que j gora Este mundo falaz me no recreia. Nessa estncia dos Bem-aventurados Lograr iria sem nenhuns temores Esses campos em tudo afortunados; Nos quais sem arrepios, sem temores, Sem sustos, sem suspeitas, sem cuidados Veria junto a mim os meus credores.

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Se se chegasse .a ver o que se passa Dentro dos coraes de toda a gente Pode ser que se visse alegre a frente A quem sofre no peito uma desgraa. Pode ser que depois lstima faa Algum, que nos parece o mais contente, Se acaso se fizesse aos mais patente Quanto lhe faz sofrer a sorte escassa. Mas cada qual com nobre fingimento (Porque crime tambm ser desgraado) Oculta como pode o seu tormento. Mas o meu tem subida a tal estado, Que rompendo os grilhes do sofrimento, Me obriga a publicar o meu cuidado.

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Guarda, Amor, os grilhes com que tirano Fazes que o munido a liberdade chora; Grilhes que no sacode a planta fora, Se acaso lhos no rompe o desengano. Fabrica outras prises: que o seio ufano Para os Esposos, que feliz adora, As de ferro no sofre, que atgora Te bateu Bronte, e retorceu Vulcano. Quebra os cordis enfim; e neste dia Mostra que um doce lao te engrandece Mais que os baraos, que o rigor te fia: E no excelso Himeneu, que te enobrece, Deixa ver em que lugar da tirania, Hoje os laos de Amor a glria tece.

111

O Capito depois do vencimento Repartindo os despojos ao Soldado; Nos braos de quem ama o namorado; O Ru, depois que alcana o livramento; Depois da noite escura o luzimento Ao triste Naufragante em mar irado; A Me, que julga morto o filho amado, E o encontra depois em nobre aumento; O homem de bem, que passa em um s dia Do extremo da misria ao da riqueza; O sequioso, que chega fonte fria; Imagens todos so, que a Natureza Quis colocar no templo da Alegria, Como a mim me pintou no da Tristeza.

112

Eu no sei, douto Rocha, se prudncia, Se foi ventura em vs; sei to somente Que Amarante s pode ser contente Merecendo lograr vossa assistncia. Ela vai com maior magnificncia Fazer ao caminhante enfim patente, Que a nova ponte, dando passo gente, Foi do vosso cuidado a consequncia. Este foi tal, que quase em um momento Fez expedir, e fez que hoje se conte O Decreto Real por um portento. Mas em prmio vereis que aqui defronte Se ho-de elevar ao vosso mer'cimento Trs arcos triunfais nos desta ponte.

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Os espinhos, que Rosa algum censura, So guardas, que lhe ps a Natureza, Que em vez de ser labu da gentileza, So reparo feliz da formosura. Eia vive com eles mais segura De uma atrevida mo; porque a Beleza A no ter neste mundo uma defesa, Murchara logo, ou ficaria impura. Na boca ponham pois agora o dedo Os que o nome lhe do de desalinhos, Ou se algum quer falar, fale em segredo: Porque a saber to rsticos caminhos Se h-de vingar a Rosa: e tenham medo Se no dos versos meus dos seus espinhos.

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Corre, Tmega, corre, e arrebatado Bate com fria, e morde sem demncia Das montanhas a dura corpulncia, Dos penhascos o sempre firme lado. No, no lhe fazes dano, inda que irado Lhe queiras abalar a permanncia; Pois eles com constante resistncia Tm de ti por mil sculos zombado. Eu vos imito assim; pois permanente, Por mais que me combata o meu tormento, Ileso fico, e mostro airosa a frente: E qual penedo ao seu furor isento, Rebato dos meus males a corrente, Sem lhe opor nada mais, que o sofrimento.

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Eu como, eu bebo, eu durmo, e a vida passo Ora bem, ora mal, como sucede: Tomo tabaco, e ch; e se mo pede O gnio alguma vez, eu Nize abrao: s vezes jogo, s vezes versos fao, Que mais que a arte a natureza mede: E talvez por saber como procede Em se mover o Sol, crculos trao. Alguma vez me agrada a soledade, Outras vezes a nobre companhia; E desta sorte vou passando a idade: E espero assim que venha a morte fria Com o manto da eterna escuridade Encobrir-me de todo a luz do dia.

116

Se no Piloto uma infeliz loucura Encaminhar a proa contra o vento, tambm nos mortais um louco intento Largar as velas contra a desventura. Pois por mais que trabalhe, sorte dura Ningum pode mudar o movimento, Se primeiro tambm do Firmamento No souber arrombar a arquitectura. Tudo est nele escrito, ou denegrida, Ou cndida se mostre a nossa sorte; Sem poder ser dos homens conduzida: Porque por fim no h peito to forte, Que possa dilatar de um ponto a vida, Nem apressar de um s instante a morte.

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A Fnix s por sculos numera Dos anos seus a peregrina idade; Pois afrontando a mesma eternidade, Nas chamas morre, e a vida recupera. Sempre se v gentil, nunca se altera; Pois, renovando a bela mocidade, Com nova pena, e nova raridade A maior durao feliz supera. Assim o Cu clemente a imortaliza: E se ele escuta os rogos dos humanos, Assim queira fazer hoje a Lusa: Para que, sem sentir do tempo os danos, Assim como os da Fnix eterniza, Faa o Cu imortais hoje os seus anos.

118

H muito que a ilustrar-te principia, Douto Ribeiro, a fama mais segura Nos rasgos, com que alinhas a Pintura, Nas vozes, com que adornas a Poesia. As Artes irms so; mas todavia Tu fazes delas to feliz mistura; Que os debuxos fabricas com doura, E os conceitos expes com simetria. Persiste pois na rara habilidade, Com que o Cu te dotou; que a sorte ordena, Que passe mais alm da nossa idade: E enquanto o mundo morte os mais condena, No templo te dar da Eternidade Aplausos o pincel, glrias a pena.

119

Se tudo anda de sorte encadeado, Que os sucessos no sofrem resistncia; Pois tudo o que acontece consequncia Do sistema, em que o mundo est fundado. Se nada nele pode ser mudado, Por mais que faa a humana diligncia; Sofrer quero o meu mal; que a pacincia S pode resistir lei do Fado. Mas se h acaso algum, que soa-te escura Se atreva a dar um novo movimento, Ele, se tem tal arte, esse que o faa: Pois eu tenho to rude o entendimento, Que para rebater qualquer desgraa Mais remdio no sai, que o sofrimento.

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No, no desmaies no, gentil Rosa, Ouvindo a rouca voz dos teus censores; Pois sendo sem motivo os seus clamores No te podem fazer menos airosa. Sempre a mesma hs-de ser; pois majestosa Ters vassalos mil por defensores; Que para dominar as outras flores Te produzes no mundo a mais formosa. Mostre uma embora uma infeliz constncia, E outra de um nome vo jacte a beleza; Que no pode causar-te a menor nsia: Pois vences as Perptuas na grandeza, Os amores perfeitos na fragrncia, E todas as demais na gentileza.

121

Seja embora a Perptua por constante De um toucado adorno, e o amor perfeito Desempenhe o seu nome em algum peito, Que faz protestaes de fino amante: Que se jactem tambm a cada instante Dos atributos seus: Eu lhos respeito; Sem que ofend-los possa o meu conceito, Inda que a Rosa por mais bela eu cante. Dela sim celebrar intento agora As graas com que sbia a Natureza Por senhora das mais a condecora. Ela a vitria alcana na certeza, De que entre as filhas da brilhante Flora Sempre excede s demais na gentileza.

122

Se tanto gosto a tua tirania Recebe, Fera, em ver um desgraado, Pe os olhos em mim; v se te agrado, Que eu te farei constante companhia. No precisas, que brbara Turquia Vs ver sobre as gals algum forado; Pois eu, mais infeliz, junto ao teu lado Avivarei a tua rebeldia. Se o teu prazer enfim, cruel, consiste Em teres por objecto um descontente, A quem a desventura sempre assiste; No vs mais longe, no; porque presente Tem feito o teu rigor de mim um triste, O mais triste, que cobre o Sol luzente.

123

Quando s prises de amor te vejo atada, E s do dever, Dama gentil, cingida, Dessas cruis paixes to combatida Vens a ser a mulher mais desgraada. Uma te fez amar toda abrasada, Outra te fez gelar endurecida; E nestes dons extremos dividida Tu nem bem amante s, nem bem honrada. No tens remdio no: ou tu constante Arrasta esses grilhes, que a honra encobre, Ou no te apartes dela um s instante; Pois tu, para que o mal mais se te dobre, No sabes com o nome de galante Juntar no mundo o ttulo de nobre.

124

Nessa Esttua fiel, que fabricaste, Padro da Fama, assunto da Memria, O teu nome feliz na larga histria, Sbio Bartolomeu, tambm gravaste. De grandes impossveis triunfaste; Da inveja conseguiste a maior glria: Todo o triunfo teu, toda a vitria; S o prmio maior nisso alcanaste. Das leis do esquecimento s bem livrado, Quando imortais trofus da heroicidade Ptria, ao Rei, e a ti tens levantado. Chegue enfim a voraz posteridade, Corra o tempo veloz, e arrebatado, Que presente sers a toda a idade.

125

Entre penas amargas todo o dia Passo as horas aflito, e descontente; E tudo o que consola a humana gente Me serve de maior melancolia. Trago to estragada a fantasia, Que nem sombras de alvio me consente: Se algum bem finjo ao longe, de repente Mo troca logo em msera agonia. Porm conserve o Fado rigoroso Embora contra mim seu brao alado, Ou descarregue o golpe mais penoso: Que como eu vivo j desenganado De viver 't morte desgostoso, Sempre me h-de encontrar no mesmo estado.

126

Aqui, Passante, a gente mais impura, Que fala o Portugus faz sociedade, Aqui sem pundonor, e sem verdade Diz quanto quer, e quanto quer censura: Aqui se ultraja a fama bem segura, Se escurece Nobreza a claridade; E at da mais perfeita santidade Se chega a dizer mal, e se murmura: Aqui somente enfim ar empestado Pela boca do Averno se evapora, Que contamina alvergue to malvado: Aqui, passante, pois te no demora, Se ser Cristo, se queres ser honrado: Faz o sinal da Cruz, e vai-te embora.

127

Tu me juras, meu bem, que a Natureza Primeiro mudar de movimento, Que deixes de querer-me; eu nisso assento, Pois nem sempre mudvel a beleza. Tu constante sers; porque a Nobreza Tambm serve ao Amor de fundamento; E sendo atada s leis do juramento, Nas promessas, que faz, tem mais firmeza. Enfim at morrer, Mrcia querida, Prometes minha ser constante, e forte; Mas de mim na constncia s excedida: Que tal em te adorar a minha sorte, Que hei-de ser teu no s por toda a vida, Mas inda te hei-de amar alm da Morte.

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De ser eterna a sua descendncia Teve a promessa Afonso, e o Cu luzente Para algum seu remoto descendente Guardou de um quinto Imprio a permanncia. Ento dos orbes claros a influncia Far fecunda a terra, e a humana gente Renascer outra vez ver contente A justa paz, a cndida inocncia. Mas qual seja o Heri, a quem tal graa Do Cu, que nunca engana, se segura, E dos homens se encobre luz escassa; Se subir pode a tanto a conjectura, No bero ele o v j; pois na desgraa s vezes tem princpio uma ventura.

129

to tenaz o mal, que me angustia, Tanto a mim se agarra, que atgora Descansar me no deixa em paz umhora, Ou seja noite escura, ou claro dia. Anoitece, e a ferir-me principia; Chega a manh, e o peito me devora: Sempre comigo est, comigo mora, E nunca do meu lado se desvia. Comigo ao rio vai, comigo ao prado, Comigo solido; ultimamente Comigo vem, se volto, ao povoado: E to rebelde enfim, tanto inclemente, Que inda at se eu subisse ao Cu Sagrado, Sempre o teria at no Cu presente.

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Lsia liberal, Me clemente, E nela encontra o mundo inteiro agrado; Regalo o rico, emprego o afortunado, Socorro o pobre, alvio o descontente. Ela faz a fortuna a toda a gente: Engrossa o Mercador, sobe o Soldado, O Ministro despacha, e traz guiado Da crdula esperana o pretendente: Ela a todos ofrece um pronto abrigo, Menos ao que to bom, que na verdade Por no entender mais se mostra amigo: Pois comete na Corte uma impiedade Aquele que, falando ao modo antigo, s cousas nome d com claridade.

131

Se os afectos de Amor em mil sentidos, O corao inquietam com cuidados, Com razo tm assim os namorados Certo alvio no canto a seus gemidos. Os amantes em penas mais perdidos, Que sacrificam firmes seus agrados, Tambm cantando vo nos seus estados Os delrios de amor mais repetidos. Se tudo enfim cantando se alivia, E com vozes se explicam os conceitos Da paixo, da tristeza, ou da alegria: Qual ser que no cante entre os efeitos Do mesmo Amor a grande valentia, Com que vence, e destri tantos defeitos.

132

Um ano mais aos seus Lusa aumenta Neste dia feliz, e os condecora; Pois com virtudes tais tanto os melhora, Que cada vez mais lustres lhe acrescenta. Ela os quer ocultar; mas mais os ostenta O fogo, que se abafa, e oculto mora; Pois quando as faces a modstia cora, A nobreza das almas a presenta. Assim a durao da sua idade, Por mais que a cubra com subtis rodeios, Hoje mostra uma excelsa claridade: Porque apesar de to humildes meios, Faz ver, que os anos seus so na verdade Mais de virtudes, que de dias cheios.

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Longe da Corte, e nisso afortunado Vive alegre um Pastor sobre uma serra, Onde apenas conhece que h mais terra, Que o rstico pas do seu montado. Ministro l no vai, no vai soldado Formar-lhe pleitos, intimar-lhe guerra; Pois na humilde cabana, em que se encerra Mais despojos no tem que o pobre gado. Seguro dorme enfim; porque no teme Que roda do curral lhe faam ronda, E que Esbirro sagaz as mos lhe algeme. Vive feliz sem ter de quem se esconda; Nem jamais muda a cor, nem jamais treme, Inda que escute o nome da Caconda.

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Musas adeus, e adeus eternamente; Porque j rouca a voz, e a mo fria Perde, se canta, a doce melodia, Rompe, se toca, a Ctara cadente. Se algum tempo ateno me dava a gente, Se talvez com prazer Nize me ouvia, Tudo enfim se acabou; porque a harmonia Depois da mocidade se desmente. Tudo me falta enfim; o engenho, a Arte, E tudo o mais, que ao peito dos humanos O vosso Apolo, quando quer, reparte: E apenas s conservo nos meus anos O vigor para dar, inda que tarde, Documentos fiis de desenganos.

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(Alegria na deixao de Nize por vir no conhecimento das suas falsidades.) Adeus bela Infiel; que Amor tirano Me deixa respirar um pouco agora; Porque toda a desgraa se melhora Na evidncia infeliz do prprio dano. Conheo, ainda que tarde, o triste engano, Com que tu me juraste a f traidora; Mas quando a emenda as faltas condecora, Sempre alegre se avista o desengano. O tempo enfim chegou, em que o destino Desatou dos grilhes a liberdade, Que presa tanto andou ao cego indino. J palpo o negro horror da falsidade; E, mandando carqueja o deus Menino, Tomo tabaco, e zombo da Saudade.

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Musas adeus, que a voz se me enrouquece, E no sustenta a vossa melodia: Acabou-se esse tempo; hoje a Poesia Em lugar de esquentar-me me arrefece. Se dos anos na flor prenda parece, Na velhice labu; pois tarde, e fria Se trata afectos loucos enfastia, Se sbios desenganos aborrece. Adeus volto a dizer, e vos protesto De jamais invocar-vos; pois da idade Em paz passar desejo o triste resto. Deixemos esse emprego mocidade; Que eu no quero mais gente ser molesto Quer eu cante de Amor, quer da verdade.

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POESIAS VRIAS MOTE Cruel fortuna, ergue a mo, Fere, mata-me a teu gosto; Que no se me enfia o rosto, Nem me bate o corao. GLOSA No cuides te hei-de temer, Fortuna cruel, por mais Que me mostres os sinais Do teu supremo poder: E se melhor queres ver Quanto eu obro nesta aco, Eu te ofreo um corao, Que no tem medo da morte: Anda, executa o corte, Cruel fortuna, ergue a mo. Tenta o ferro penetrante, Afia-lhe a aguda ponta, E o golpe mortal aponta, Que eu j te espero constante: Eu te ponho por diante Um peito a morrer disposto; E enfim, sem mudar de posto Sem temor, e sem receio, Sem armas te of'reo o seio; Fere, mata-me a teu gosto. No, no me pode alterar Neste mundo algum tormento, Pois no mudo sofrimento Sei meus males tolerar: Nada me pode afrontar, Nada causar-me desgosto; E estou enfim to disposto A morrer contente, e forte, Que nem me desmaia a morte, Que nem se me enfia o rosto. Leva as lgrimas que choro. At j desenganado Dos atractivos de amor Chego a ter tanto valor,

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Que os grilhes tenho quebrado: Veio Nize; e sem cuidado De saber se firme, ou no, Vivo com tal iseno, Que inda estando junto dela Nem o sangue se me gela, Nem me bate o corao.

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MOTE rio que vais correndo, Passa a ver um bem que adoro: Se te faltarem as guas, Leva as lgrimas que choro. GLOSA Monte deves mover-te, O Rio deves parar-te, Se meu mal chego a contar-te, Se meu mal chego a dizer-te; Pois se a sorte me perverte Na dor que estou padecendo, Pode ser que enternecendo Te v tambm meu cuidado; O Monte que ests parado, O Rio que vais correndo. Se em ti, Rio se retrata De meu peito a triste fonte, Se a tua dureza, Monte, Representa a minha ingrata; Por condescendncia grata A tua piedade imploro; Tu Rio, que vs que choro; Tu Monte, j que te empenho; Fica a ver o mal que tenho, Passa a ver um bem que adoro. Tu Monte com ardor tanto Exceders o Vesvio, Exceders o Danbio Tu, Rio, com meu pranto: Vs ambos tereis, enquanto Persistirem minhas mgoas, Tu de ardor intensas frguas, Tu de lgrimas dispndios, Se te faltarem incndios, Se te faltarem as guas. Mas se a sorte no consente, Que perverta a natureza, O Monte, a tua dureza, O Rio, a tua corrente: Nesse penhasco eminente, Nesse teu cristal sonoro, Tu nos ecos, que te imploro,

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Tu nas mgoas, que te inflamo, Guarda as queixas, que derramo, Leva as lgrimas, que choro.

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DCIMAS Gentil Arminda, to forte Da tua ausncia o tormento, Que ir ver-te esta tarde intento, S por ver se lhe dou morte: Quero ver se desta sorte Minoro a sua crueldade; Pois como alguma piedade Espero achar nos teus braos, Nos seus amorosos laos Darei garrote saudade. Quero ver-te, e o meu pesar Vou em gosto converter; Pois somente sem te ver Posso as saudades matar: Quero sim ir procurar Dos teus braos a conquista; Quero fazer que me assista No meu mal tua demncia, Para que as sombras da ausncia Me afugente a tua vista. Eu no sei qual mais lugar Em meu peito chega a ter, Se a pena de te no ver, Se a glria de te lograr: Sei somente, sem julgar Qual em mim mais notria, Que na aco contraditria, Que amor entre ns ordena, Que em te no ver tudo pena. Que em te lograr tudo glria. Enfim, Arminda querida, Lindo bem, amado emprego, Minha alma no tem sossego Se est de ti dividida: Faz-me sim perder a vida De tua ausncia a impiedade; E morrerei na verdade Nesta pena, que te digo, Se no for hoje contigo Aliviar a saudade.

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AO TERREMOTO DO PRIMEIRO DE NOVEMBRO DE 1755


ROMANCE FNEBRE

Que medonho Espectculo! Lisboa No horror de um terremoto agonizando Faz formar uma ideia bem conforme Ao negro assombro do primeiro caos. Um desusado som, como se sente4 Ou ando prende no feno o fogo avaro, Ou quando gira um coche, ou quando se ouve A gente armada ir pisando o campo, O tremendo prego foi da desordem, Em que tudo se v; pois alterados Se batem de tal sorte os Elementos, Que teme o imundo o seu total desmancho. A firme terra treme, e os leves Ares5 Comovidos do trmulo contacto Fazem unicamente planta, vista Perder o tino, perverter os raios: A planta temerosa no segura No globo palpitante o dbil passo: A vista desmaiada no suporta A confusa impresso do objecto vago. Sorve as praias o mar, onde h bem pouco Tinha o fecundo armento o doce pasto: Forceja a chama nas sulfreas minas, E abala o peso enorme dos penhascos. O pvido pastor com medo observa Ir-lhe fugindo os flutuantes prados; E teme o Corteso que outro Vesvio Sobre o Tejo vapore o fumo ingrato. Neste ponto infeliz a triste Corte Sente todo o furor do insulto irado; Se acaso o repentino da desgraa Sentimentos permite ao peito humano. Um s momento, um s, porm terrvel Abre, rompe, destri, faz em pedaos Os doces lares, as sublimes torres, Os Templos Santos, e os Palcios altos. A rude queda das paredes rotas Devora vidas mil por modos vrios; Pois sendo um s destino, bem diversa A morte que resulta dos acasos. Alguns no brando leito inda dormindo Sentem da Parca o golpe desumano;
Sicut sonitus quadrigarum, sicut sonitus ignis devorantis stipulam, velut populis fortis praeparatus ad proelium... 5 A facie eius contremuit terra. Joel, c.2.
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Sendo esta vez Morfeu da morte escura Mais do que imagem, verdadeiro ensaio. Outros das prprias casas oprimidos Tm por verdugos os Penates caros, E viro converter no seu destroo Em desabrigo o cmodo agasalho. Outros sentem o golpe mais violento Na mesma corpulncia dos Palcios; Servindo-lhes das torres a grandeza A fazer o despenho mais infausto. Mutos no Templo, Cus! e aonde pode Encontrar-se lugar mais sacrossanto Pois a casa, que e centro da piedade, Agora se converte em cadafalso? Deve acabar-se o mundo, ou nos espera Inda mais fero, e nunca visto caso; Pois j no h nos Templos assistentes, Altares, Sacerdotes, holocaustos.6 As Dricas colunas abatidas, Os cncavos zimbrios despenhados, As bbedas abertas ferem, prostram, E despedaam, quanto est debaixo. Agora sim, agora contra a morte No se encontra em Lisboa algum reparo; Pois ela corre afoita, e vai soberba, Depois que penetrou no Santurio. Muitos acabam pela rua as vidas: Uns correndo, outros indo, outros voltando: Outros nas praias, outros escondidos: Outros enfim aonde os topa o fado. Anda a consternao por toda a parte As Almas afligindo, e debuxando Dos mortais no semblante espavorido O susto, a confuso, o medo, o pasmo. Ali naquele cmulo de pedras Forceja um homem com robustos braos: Um salta: outro cai: outro nos ares De frgil tbua fica pendurado. Alm uma mulher se precipita: Outra chama o consorte, outra d brados: Outra no seu pavor encontra a morte Primeiro, que na fria dos estragos. O avaro entre os tesouros, entre a vida, Indeciso esta vez no amor de entre ambos, Quer fugir, transportar quer as riquezas, E nada faz; que o tempo passa em tanto. Avarento Jaso do metal ouro carga infame os ombros recurvando,
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Deficiet hostia, et Sacrificium, et erit in templo abominatio desolationis. cap. 9. in fine.

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Do peso da riqueza, e dos penedos Duas vezes fica opresso e sepultado O pio observador da Lei celeste De dous impulsos esta vez tocado Na vida emprega, e nas imagens sacras O acordo, que lhe deixa o sobressalto. Toma a carga imortal nas mos piedosas, E mais feliz Eneias resguardando Vai do incndio voraz, vai no destroo, Mais do que a vida, os simulacros santos. A donzela, que teme o ver-se exposta Sem o decoro do decente ornato, Chega porta trs vezes, e outras tantas Se torna a recolher com giro incauto: Parte, fica, lamenta, e sempre incerta Do susto, e do rubor no duro assalto, Sem partir, sem ficar, irresoluta, Primeiro perde a vida que o recato. A pudica matrona o filho aperta Mais que nunca piedosa ao peito casto, Por ver se lhe dilata acaso a vida Naquele terno derradeiro afago: Mas pervertida a lei da natureza, Abraa, e suca no fatal desmaio A Me, em vez do filho, os seixos duros, O filho, em vez do leite, o sangue amargo. Brada o Pai, o Senhor, chama o Ministro: E se enrouquece o Capito mandando; Mas no sabem por ora obedecer-lhe O filho, o servo, o sbdito, o soldado. Tudo desordem, tudo: e o fogo ardente Vem dar cruel remate ao resto escasso Dos rotos edifcios abatidos, Dos pobres coraes desalentados. A chama prende, e nada deixa isento: Consome, abrasa, e traga tudo quanto Tinha de rico, e precioso o Ganges Enviado em mil naus ao Tejo largo. tudo incndio, e fumo, tudo assombro, Confuso, desconcerto, e desemparo; De sorte que somente os homens podem Achar no Cu remdio a mal tamanho. Desta verdade eterna comovido O estpido se v, se sente o sbio, Um sensvel se mostra, outro sujeito Ao supremo motor dos orbes claros. Aquele que jamais despertar soube voz de um trovo, luz de um lampo, Acorda ao movimento, com que a terra Lhe feriu desta vez o ouvido tardo.

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Este que sempre andou da Natureza Indagando os recnditos arcanos, Busca de um tal portento em Deus a causa, E deixa em paz o fogo subterrneo. O mesmo fazem todos, bem que opostos Discorram entre si nos dogmas falsos; Pois sabe unir o Cu diversos cultos, Quando do seu poder ostenta um rasgo. O vagabundo Hebreu, que inda calcula7 Das msticas hedmadas o espao, Sem ver que perde o tempo inutilmente No estudo pertinaz de dilat-lo; O prfido Agareno, que de Cristo8 Reconhece o poder, e quer profano Conceder-lhe os divinos atributos Na mesma humanidade colocados. O Rico Ingls, e quantos cria o Norte Povos gentis, mas tristemente errados; Pois mais por pundonor, que por sistema Renovam parte dos delrios de Arrio: Enfim quantas Naes o mundo envia Extrair de Lisboa o ouro amado, Clamam, pedem piedade, e reconhecem Todo o poder do Omnipotente brao. Neste ponto imortal concordam todos, Inda que sejam no demais contrrios: Mas para os convencer foi-lhe preciso Sentir a Terra um to violento abalo. Foi preciso que ardesse uma Lisboa, Por tirar aos mortais do seu letargo: E qual fosse o seu sono se contempla Da trompa, que tocou a despert-lo. Lisboa, sim Lisboa, que algum tempo Dos Lusos ptria, asilo dos Romanos, Velhacouto do Mouro, e depois Corte De mil Heris, de Prncipes preclaros. Reinou soberba, e dando lei ao mundo Levou pelo insondvel Oceano As sacras quinas nas douradas popas Ainda mais alm do Idaspe claro. Lisboa te perdeu. Ah, triste Lsia! Quem te esquecera neste transe amaro! Poupara-te o tirano das memrias, Roubando-te a piedade dos sufrgios. Deveras sepultar entre as runas Estes da mgoa fnebres retratos; Porque ao menos ficasse o sentimento No mesmo teu destroo amortalhado.
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Daniel cap. 9. Alcor. cap. da hora Sexta.

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Mas, ah Corte infeliz, o teu desastre No pode das lembranas ser riscado; Pois nesse teu funesto acalamento Se perpetua agora o nosso pranto. Das cinzas quentes da prostrada Tria Ulisses te fundou: mas deu-te cauto Para abater-te a glria, a que subiste, Nos mesmos fundamentos os pressgios. Eu bem sei, que inda agora esses fragmentos So relquias, so restos venerandos; Mas sempre so motivos da saudade As ilustres memrias do passado. Roma inda jacta, mas com mgoa interna, Os restos do sublime Anfiteatro; Mnfis os Obeliscos, e os nascentes Muros de Elisa conserva inda Cartago. Podes fazer o mesmo; mas repara, Que formas desses mrmores tombados Um perptuo sepulcro da vanglria, Um constante padro do desengano.

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justa Lsia a dor, que te trespassa Do teu caso infeliz na mgoa dura; Pois s para padres da desventura Deveste um triste resto sorte escassa. Das rotas pedras na disforme massa Tudo mais entregaste sepultura; Mas consola-te enfim, porque a ventura s vezes tem princpio na desgraa. Bem cedo, melhorando a majestade, Nas memrias do teu destino avaro Motivos no vers para a saudade; Que a sempre augusta mo do Rei preclaro Far com liberal heroicidade, Maior que o teu destroo, o teu reparo.

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Excelentssima Senhora Condessa dAlva assistindo em dia de S. Gonalo a um festejo no Porto ROMANCE Herona feliz, Condessa Ilustre, Nas aces, e nos ttulos Preclara De quem mais resplendor tem recebido, Do que comunicado as luzes dAlva; Assim Senhora Excelsa, assim que ao Douro Lhe enobreceu a vossa vista as praias, Rico esta vez da cpia dos fulgores Mais, que da inundao das prprias guas, Assim soberbo o rio da ventura, Que na vossa presena agora alcana, Para mostrar-se em vosso obsquio grato, Comea a formar ideias altas. Convidava os alunos de Mavorte Para as sonoras, lisonjeiras salvas; Vulcano para os fogos de artifcio, Neptuno para encher as naus de galas. Decorava no prprio pensamento Dum, e doutro teatro as cenas vrias, Ora as do Tibre na Tragdia triste, Ora em doces sainetes as de Espanha, Mil outras cousas mais em vosso culto Na mente flutuante aparatava; Porque ao menos no vrio dos obsquios Soubesse agradecer-vos glria tanta. Porm, como os projectos mais sublimes Costuma o tempo retardar com pausas, Ps logo parte em obra, e deixou parte Entregue um pouco s suas esperanas. Mas enquanto entregar no pode tudo pronta execuo, s Ninfas manda, Que para recrear vossos ouvidos Movam da voz as doces consonncias. Manda, que os Cisnes seus ao monte voem, Que a doce melodia avaro guarda, Porque lisonjeando ao vosso gnio, O canto afinem, remontando as asas. Um deles (talvez por atrevido) Chegou do cume excelso s penhas sacras; Porque mais que a prudncia predomina A sorte nas empresas temerrias. Eu fui: confesso o crime; porque tenha Na confisso a vnia antecipada: Eu fui o que subi junto at onde O mais alto depsito descansa.

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Era um pequeno mrmore, que o cofre da Trompa mais harmnica, formava; Daquela que cantou do Heri Troiano A fugida, a piedade, o amor, as armas. Quis a pedra volver, por ver se acaso O feliz instrumento assim lograva; Para vos modular mais dignamente As prendas, a virtude, o sangue, as graas. Curvando um p, firmando outro mais longe, Ao seixo frio aplico a curva espdua; 0 penedo removo, e me aparece Do sacro Vate a Trompa, a Lira, a Frauta. Venero os sacros restos, e contemplo De um, e outro instrumento a arte sbia: Na Frauta as pastoris, na Lira as belas, E na Trompa as Hericas faanhas. Depois levo atrevido, e no sem medo A sacrlega mo Trompa clara; Mas no meio da aco uma vez rouca Me suspende, me assusta, e me embaraa. Simples (assim me disse a voz medonha, Que saa da gruta solitria) Seria a tua empresa mais louvvel, Se fosse aos teus esforos mensurada: Celebrar de Constana o sangue egrgio; Que antigo ilustra as veias mais preclaras; O Sbio Genitor nos gabinetes; E o valente Consorte nas campanhas: Referir-lhe as virtudes, em que tanto Tem adornado a destruda Ptria; O gnio com a Msica polido, As prendas com as artes granjeadas; Das suas perfeies assim na cpia Engolfar toda a mente arrebatada; Hoje fora um dever bem prprio ao culto, Que em creas gentis se lhe prepara: Que interpolando o som dos instrumentos Parte do obsquio o seu louvor formara; E a recitao dos elogios Pausa seria da concorde dana. A Trompa, que ests vendo, sim seria Neste assunto imortal proporcionada; Mas que sopro h-de haver, que lhe encha os tubos, Se o lbio que a inspirou, ao mundo falta? Assim foi pelos bosques de Erimanto Do forte Alcides, a pesante maa Vencendo um tempo monstros; porm hoje Brao no h, que intente manej-la. Calou-se a voz: deixei cair a pedra: Deixei do sacro monte a verde falda,

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E castigo o meu atrevimento, Abato o voo, e fico s vossas plantas.

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CARTA Snr. .............. Hoje a primeira vez que ide todo me acometeu a melancolia, motivada primeiramente da complicao dos meus negcios, cujo sistema em um deles est bastantemente crtico: Depois a hipocondria do meu temperamento: o solitrio da casa e finalmente (quem tal presumira!) a saudade. Na saudade, que padeo Esmoreo; Pois no meu triste retiro Nem suspiro, Nem ao menos dou um ai. Ah! se Nize isto soubera, Menos fera, Mais constante, Mais amante D teria do meu mal. Quem seja a senhora Nize, veja Vm. l: (folhagem) se os esplendorosos raios dos seus olhos no fizeram um metamorfose na sua vista de perspicaz Lince. ... No disse nada: pacincia. Que esta at'gora a que vai paliando o meu mal, enquanto um rcipe de esquecimento mo no acaba de extinguir. As lembranas de umas glrias, Se a record-las me ponho, Me aparecem, corno em sonho, No teatro das memrias: Ali das gratas histrias Me mostra amor uma cena; Mas se nesta ideia amena A dar-me um alvio estuda, A bela aparncia muda, E me deixa a triste pena. Parece, que a meus ouvidos De trs belas Divindades Chegam mil suavidades De Bemis, e sustenidos: Parece os vejo feridos Do mais harmnico canto; Mas, passando o doce encanto Desta aparncia contente, Depois escuto somente O triste som de meu pranto. Passa avante Amor inquieto, E me mostra a Rapariga, Que sacudindo uma estriga Me roubou o meu afecto:

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Mostra-me depois o aspecto Da bela Maria Preira, Que no tempo de solteira Nas minhas rapaziadas Me obrigou a trs jornadas, E a fazer mais de uma asneira. Mostra-me Anarda tambm Na aco de fazer costura; E mostra-me a noite escura Do seu mal, e do meu bem: Na qual, sem ver-nos algum, Ela a dar ais, e eu calado Passei assim bem cansado At junto madrugada; Por sinal no glosei nada Em um certo Abadessado. Tambm representa Amor A meus olhos magoados Os dous braos entroncados Da frescalhona Leonor: E para maior rigor Da ferida renovada Me mostra a faca afiada, Com que Leonor me feriu, Quando o meu descuido a viu A fazer uma salada. Mostra-me trs lavadeiras Umas boas, outras fracas, Com quem gastei mil patacas Ou falsas, ou verdadeiras: Mil casadas, e solteiras, Em chusma me representa: E tirano Amor intenta Tanto nisto maltratar-me, Que inda para envergonhar-me Me recorda a dos quarenta. Sim Senhor: eis-a tem Vm. um pedao da minha vida passada, que espero de Vm. no mostre a olhos masculinos; no s por ofenderem a gravidade Abacial; mas porque estou fazendo isto de repente para me divertir com Vm. da minha melancolia. Saber Vm. que quis o meu destino embrulhar-me com uma Senhora de... que despreza os meus rendimentos por mais que lhe proteste a sinceridade deles; por dous motivos; o primeiro por querer guardar lealdade Senhora D.F. ..., de quem diz ficara presa desde a ocasio, em que ela esteve em... O segundo por entender, que eu estou logrando: a este propsito lhe fiz uma ria; mas falta a solfa: Ei-la aqui = No despreze, no, Senhora, Esta f, que lhe prometo, Este meu rendido afecto, Este meu prostrado amor;

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Que este peito to constante, Quando amante se v preso, Que inda estima o seu desprezo, Que inda adora O seu rigor. Temos justo uma partida de galhofa, em que entra Teodoro de S, Antnio Peixoto, um Amigo, e este seu criado: porm isto passar la vida, y no ms, porque depois das S... dessa Cidade as demais no fazem milagres: e seno, veja Vm. que se h-de esperar de umas Senhoras, que esto dobando janela; Ah sacro Dio! Quando terei eu a ventura de tornar a ouvir cantar uma ria pelas Senhoras ........ Ponha Vm. os nomes, que sabe, aonde esto os pontinhos. Esta j vai sendo grande; mas ao menos diverti parte da melancolia, che mi piomba sul core. J a Vm. adverti, que no mostrasse esta, nem ainda aos meus Amigos. Regale-se, coma, beba, durma, descanse, e escreva a mido; que eu vou fazer um minuete a uma saudade. Volte Vm., e vejamos, se a prpria mgoa me inspira umas tristssimas cadncias. MINUETE 1. Ah no certo Que algum tormento Acabamento vida d 2. Pois que a saudade, Que esta alma chora, Inda at gora Vivo me traz. REMATE Aquele dia Deu ver a Nize, Saudade dize Quando ser? Quando ser? Inda no o sei: mas suponho, que para o dia de Ora deixemos bagatelas. Mande-me novas da sua sade, e as novidades do tempo, etc. ... E mais que tudo mande-me ocasies, em que eu possa mostrar-lhe que em toda a parte sou De Vm. Am. P. 1. Se a dor matasse, Eu sem conforto H muito morto Seria j. 2. Porque a saudade, Que o peito sente, mais veemente, Que todo o mal.

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A uns abrunhos e rs que se mandaram a uma Senhora. ROMANCE Dos abrunhos, e das rs Soube o sucesso, Senhora; Pois mal se guarda um segredo, Que deve encobrir ms novas. Dizem, que foram as rs Entre os abrunhos envoltas; Porque no faltasse fruta Uma bicha tentadora. Bem sei, que a comparao No deve passar por boa, Por no ser mas a fruta, Por no ser as bichas cobra: Mas contudo sempre em parte Com o texto se conforma; Pois se a Serpente faltou, Entendo, que as Evas sobram. Eu conheo algumas delas, Que a tentar uma pessoa Lhe basta de um s sorriso Dar uma pequena mostra: Outra s de um volver de olhos As vontades aprisiona, Sem deixar aos alvedrios Mais, que idas prises a glria: Alguma com um suspiro Tanto os coraes transforma, Que uma imagem da saudade Nos mais rebeldes coloca: Uma faz, que cego o mundo Inda os desprezos lhe adora; Outra acende com afagos Maior incndio, que em Tria. Enfim por modos diversos Males mil nos causam todas, Evas tanto mais cruis, Quanto mais tm de formosas. Por isso a pea das rs Foi uma bem feita cousa; Pois quanto passou de graa, Foi de vingana demostra. Se vs nos dais o veneno Dourado nas graas vossas, Foi razo, que entre os abrunhos Fosse das rs a peonha. Mas eu sempre culpo a quem

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Comps da oferta a galhofa; Pois foi, para graa, muita, E para vingana, pouca. Para nos vingar das mgoas, Em que uma Dama nos prostra, Em vez ide rs, e de abrunhos, Um rosalgar melhor fora. Para gracejar um pouco, Entre as amantes lisonjas Devero ficar os brincos, Sem se chegar s afrontas. Quem vos mandou os abrunhos Quis-vos dar tambm a prova De no querer mais ameixas Do quintal de Dona Rosa. Quem as rs vos enviou Bem claramente vos mostra, Que do amor o mar sagrado Converte em charco, e lagoa. Abrunhos s presente Digno duma pobre moa; Pois bem que a pea os disfarce, Sempre o rstico os desdoura. Rs cousa peonhenta, Que no limo, e lama engorda; E em pouco mais vos estima Quem assim convosco zomba. Mas torno a dizer: o Amor Tem causas bem engenhosas; E seria uma fineza O que parece vergonha,. Quis nadar rio mar do afecto De algum amante a vanglria Que fez? Foi pr-se na praia, Pegou nas rs, e soltou-as. Andaria o tal sujeito Nadando em seco at gora; E quis ver que gosto tinha Mergulhar do amor nas ondas. Por isso a dar-lhe desculpa Outra vez a pena torna; E a lastimar-me de ver-vos Cair em tal corriola. Queira Deus que se no saiba Matria to vergonhosa, Por no dar assunto s Musas, E novas letras solfa. As Freiras desses Conventos, As meninas c de fora, Em Coimbra, os Estudantes,

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E os Militares nas Tropas, Fim rias, em Minuetes, E em outras diversas modas Cantariam desta sorte A vossa infeliz histria = R, r, que s to bonita, Ensina-me a nadar; Pois eu quero buscar No mar A minha dita: Sim, sim No mar de Amor. R, r; rim, rim; rou, rou, Que eu vou nadar, que eu vou, Rou, rou, R, r, rim, rim, raia, rou, Que eu vou, rou, rou, Nadar, r, r, No mar do cego Amor.

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A certo Eclesistico tendo um cravo ao peito. DCIMA Tendes o cravo no peito, O lugar imprprio ; Pois se o tivsseis no p, Era o lugar mais perfeito: No julgueis, que o meu conceito Vos faz a menor censura; s com doce brandura, E sem vos fazer agravo, Dar-vos pancada no cravo, Sem tocar na ferradura.

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DCIMAS MOTE Todo o mal sente em extremo Quem com amante fervor Morre em nsias, e tem zelos Vive ausente, e tem amor. GLOSA Quem ama sempre extremoso De amor os rigores sente, Vendo-se s vezes ausente, Chorando-se outras zeloso. No seu mal o mais penoso Da dor toca o mais supremo: Assim na mgoa, em que gemo Entre ausncias, e cimes, O meu peito entre deus lumes Todo o mal sente em extremo. Bem sei, que este padecer Em todos no igual; Pois s padece este mal, Quem com f sabe querer; Quem sabe excessos sofrer, Quem pena com nobre dor, Quem ama com puro amor, Quem com eterna constncia, Quem com brio, quem com nsia, Quem com amante fervor. Chora ausente desta sorte Dum cime a alma ferida; Pois sem deixar de ter vida Tem da dor no excesso a morte: Nesse tormento o mais forte Sobe ao auge os seus disvelos: E em distintos paralelos Da duplicada impiedade, Vive ausente, e tem saudade; Morre em nsias, e tem zelos. Tende pois de mim piedade, vs outras Ninfas belas, Ou pelo menos aquelas, Que de amor fere a crueldade: Vede a fera atrocidade

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Da minha brbara dor; Pois por dobrar-lhe o rigor, Aumentando-lhe a aflio, O zeloso corao Vive ausente, e tem amor.

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DCIMA Tudo morre, aonde vivo Holocausto amor acende; E s no peito se prende O fogo, que abrasa activo: Duro, cruel, e excessivo, O amor no perdoa a nada; Rompe ao mais a seta irada Obrando extrema crueldade; Pois bem morra a vontade, Se s vive a prenda amada.

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DCIMAS Dizem, que certa parede, Em que se anda a trabalhar, Vs a quereis embargar Pela luz, que vos impede: Mas julgo, que mal se mede A causa que vos disvela: Vs no tendes razo nela, E deix-la melhor fora; Que a luz no vai c de fora, Mas vem da vossa janela. Esse embargo unicamente Nos deve a ns competir; Pois nos querem encobrir A luz a mais permanente: Mas nem a ns competente O embargar a obra ; Porque todos sabem, que Sobe o Sol nos Horizontes; E que inda apesar dos montes Sempre a clara luz se v Enfim digo, que razo, Senhora Stuard bela, Fazer vossa janela Um bem grande paredo: A vossas iras ento Talvez que o mundo resista; Pois nesta de Amor conquista, Onde as almas correm risco, A uns olhos de basilisco justo tirar-se a vista.

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OUTAVA Culpai, Senhora, a sorte, que avarenta Em dar os prmios curtos premedita; No culpeis as vontades, onde ostenta Amor uma extenso qual infinita. Um imenso desejo vos aumenta O que o breve de um Claustro vos limita; Que o ser o vosso prmio limitado; Culpa nossa no foi, mas sim do fado.

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DCIMA Quando Amor em toda a parte Mostra o seu poder imenso, Nos ares tremula um leno, Que lhe serve de Estandarte. Porm desse baluarte, Aonde os seus tiros espalha, A este costuma falha Quando noute nos flechou; Pois o sinal, que mostrou, No foi leno, foi toalha.

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DCIMA Presidenta da harmonia Hoje vos fez o destino; Porque lugar to divino Somente a vs competia: A aula da melodia Assim chegais a ilustrar; Pois vossa voz singular, Quando no canto se engolfa, D nova doura solfa, D novo lustre ao lugar.

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VERDADES SINGELAS Estas verdades singelas, Sem artifcio, e conceito, Pode-as ler qualquer sujeito; E se vir que alguma delas L pela boca lhe toca, Tape a boca. Dizer um Senhor Fidalgo, Que tem trs contos de renda; E que gasta uma fazenda S em sustentar um galgo, Que todas as lebres mata; Patarata. Querer outro Senhoria Quando tinham seus avs Um tu, um voc, um vs, Somente por cortesia Do Cura, ou do Senhorio; Desvario. Trazer de luto os criados Um Senhor mui reverente; E dizer a toda a gente, Que gastou trs mil cruzados De seu Pai no morturio; Gabatrio. Andar outro embonecrado, Ter amores, ter afectos; E depois de ter j Netos, Andar ainda namorado, Sem se lembrar da velhice; tontice. Dizer um por vrios modos Que nos seus antepassados Tem trinta Reis Coroados Do claro sangue dos Godos, Que pelas veias lhe gira; mentira. Andar outro corno brasa Vendendo soberba a molhos, E metendo pelos olhos Os brases da sua casa, E de seus avs o foro; Desaforo. Andar um para casar, Buscando uma entre mil Senhora rica, e gentil; E entender que h-de achar Por cima disso Donzela;

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Bagatela. insultar sem causa a gente, Dar empuxes em quem passa; Querer, que lhe faam praa, E ser por ofcio valente, Ser carrancudo, e severo; Destempero. O que consente mulher Andar ria dana aos bolus, Escrever a chichisbus, E que lhe deixa fazer Fim tudo a sua vontade; V ser Frade. Na de amor louca contenda Andar sempre em viva roda; Gastar nisto a vida toda, O tempo, a vida, a fazenda, Depois ficar Pelitrate; Disparate. O ter sempre a mesa posta, Jogar, andar em caadas, Ter Dama, fazer jornadas, E nunca tornar resposta A quem lhe pede dinheiro; Cavalheiro. O que tendo filha ou filho, Os v fazer a mido, Este calo de veludo, Aquela rico espartilho, E mostra, que no entende; Que pretende? Sustentar doze cadelas, Um caador, um furo, S por numa ocasio Sair ao monte com elas; E caar coelhos poucos; de loucos. Ficar um filho segundo Sendo da casa embarao; E viver como madrao, Com um sossego profundo Tocando, frauta, ou viola; Mariola. A viva rica e Nobre, Que na Igreja muito atenta Lana devota gua benta Do seu marido na cova S com a ponta do dedo, Casa cedo. A que no conhece o ms,

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E que diz que tem catarro, Ou velha, ou come barro; Ou algum excesso fez, Que a curar lhe leva s vezes Nove meses. A que entende nunca que Pode Amor entrar com ela, Seja ingrata, seja bela, L lhe h-de vir a mar, Em que caia a formosura De Madura. A Senhora a quem o criado Descala o sapato, e meia, Se ela no muito feia, E o moo no for honrado, Faz um bucho retrocido A seu Marido. A que tem dores da madre, Que remdio aos Mestres pede, Que vai ao Padre da Rede, Ou toma cedo compadre, E acrescenta a gente em casa, Ou se casa. Se no rica uma Dama, E estraga airosa veludos; Se acaso os homens sisudos Lhe lanam ndoas na fama, Pela ver com indecncia; Pacincia. A que dana de arremesso, Que faz versos, e corts, Que joga, e fala Francs, Enfim mulher, que eu conheo, Seja clara, seja bela; Fugir dela. A que l livros de Amores, Que sabe deitar um mote, Que estraga holandas a cote, Que faz cortejo aos Senhores; Se por milagre Donzela; Ter mo nela. Sair sem causa da terra, Ir vagar pelas estranhas, Ir por vontade s campanhas, E trazer sempre na guerra Pendente a vida de um fio; Desvario. Ser de Damas Confessor, E ser Cnego em S vaga, E ter quem lhe cure a chaga

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Do tirano e cego amor L muito pela escondida; Boa vida. Servir a El-Rei toda a vida, E depois em recompensa Ter trinta mil reis de tena, Que somente recebida L no cabo da velhice; Parvoce. Trazer ttulos de Roma, Sem primeiro ver que gaste, E ser Bispo de Tagaste, Sem ter j rendas que conta, Pagar Bula, e Gabela; Bagatela. Uma Fidalga novia, Que quer com grande insolncia, Ser tratada de Excelncia Com chinelas de cortia, E manto de tafet; Arre l. Jogar de abono, e perder, E no ter com que pagar; Ter amor, e ver mudar A Dama que bem se quer, E no ter lenha no Inverno, inferno. Ministro que l Descartes Em vez de ler por Temudo, Ou que faz na solfa estudo Mais, que nos feitos das Partes, Est mui bem premiado Aposentado. No que tem Filhas bonitas, E no dia de seus anos Consente, que alguns manos Lhe faam no s visitas, Mas tambm algum calote, Bom chicote. A que bebe sem vergonha, Que toma tabaco, e dana, Que do jogo no se cansa, Que toda guapa, e risonha, Se por milagre Donzela; Ter mo nela. Ser Bispo sem jursdio, Capito de Auxiliares, Cadete nos Militares, Cavalheiro de Esporo, E casar-se na velhice;

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Parvoce. O que passeia montado O Sobre rocim muito podre, Com xairel de pele de odre; Com teliz esfarrapado, E lacaio de capote; Dom Quixote. A que tem um s amante E lhe manda a consoada; E se o v fazer jornada, Nunca mais sobe ao mirante, Pelo respeitar ausente; inocente. Ver uma Dama, novia, Querer ela ser Senhora, Tendo vindo de Pastora, Que de algum o afecto atia, S por ter quem a sustente; No gente. Ver andar de ceia em ceia. Alguns, que aqui no nomeio, Ir ao jogo, ir ao passeio, E pretenderem que eu creia, Que vo s tomar caf; No bof. Naquela que anda em carroa, E pretende Senhoria, Sem se lembrar que algum dia Andava seu pai de crossa, E sua Me de tamanca, Boa tranca. Letrado que atrasa a causa Com mil enredos astutos, Que l feitos circunductos, E se passeia com pausa, Falando s no Escritrio; Farelrio. Mercador que faz rebates Depois de casar as filhas, Que manda Navio s Ilhas, E no paga aos calafates Seno depois de citado; Tem quebrado. O que nega a mo direita A todo o Clrigo, e Frade, E o que por mais vaidade A Senhoria lhe aceita, E lhe fala impessoal; Animal. O que namora a mulher

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Na Igreja, ou no Camarote; E que a deixar dar um mote Em noite de baile, e quer Que aos mais parea discreta, pateta. O que vai sempre ao caf, Que traz papis no cabelo, Que d muito ao cotovelo, E que em passo de cup, Caminha pelo ladrilho; Peralvilho. Se s vezes traz a verdade Algum dissabor consigo, Aquele, que das que digo No mostrar nunca vontade, Tenha ao menos por prudncia Pacincia.

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Nos Desposrios do Sr. Teotnio Manuel de Magalhes e Azevedo, Fidalgo da Casa de Sua Majestade, etc., com a Excelentssima Senhora D. Mcia Pereira de Castro e Lira. ROMANCE HENDECASSLABO De Teotnio, e Mcia o sacro enleio Pretendi celebrar: que glria tanta, Como fora de mim, do Pindo ao cume Nas asas do desejo me elevava. verdade, que um resto de discurso Me fazia abater a confiana; Porque at no fervor do entusiasmo Penetram da razo as luzes claras. A grandeza do assunto, o limitado Do meu dbil engenho ponderava; Mas julguei, que talvez um sucesso Pendia de uma empresa temerria; Sigo o primeiro impulso: o Nume invoco: Movo a voz: tento a Lira: afino as pausas: Mas tudo enrouqueceu, tudo foi rude, O som na Lira, as vozes na garganta. Do rebelde instrumento em modos vrios Vibrei, mas sempre em vo, as cordas baixas; Porque no pude (e porfiei bastante) Afinar-lhe do toque as consonncias: Enfim cansei-me. O sono que ao trabalho Docemente sucede, me avassala; Que para resistir aos seus ataques So pequenos redutos as pestanas. Mas apenas cerrado os olhos tinha, Quando da fantasia as sombras vagas Me vem desinquietar; que at dormindo Quem sente algum cuidado no descansa: E maneira do intrpido soldado, Que se pulsou de dia as gneas armas, Inda de noite em sonhos lhe parece, Que escuta o das hrridas bombardas: Assim me aconteceu: sonhei no mesmo, Que o discurso desperto meditava; E tratando na ideia o grande assunto, Juntava ao verso harmnicas palavras. Mas inda at sonhando vi, que a Lira Rebelde sempre a voz desafinava; Porque quando os empenhos so to altos Inda em sonhos a sorte os embaraa. Ah! brbaro instrumento, disse irado, Tu na empresa maior me desamparas? Tu quando de Teotnio canto as glrias,

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No cncavo sonoro a voz embargas? Acabars assim, ctara infame, s mos do meu furor despedaada; Se apesar dos afagos, que me deves Me deixas hoje, nunca tanto ingrata. Disse: e contra um penedo arrebatado Movo o brao na aco de espeda-la: Mas antes de que o golpe executasse De uma Musa gentil a voz me atalha. Louco, tem mo: que fazes? Grita a Deusa: Esse instrumento somente desmaia Na grandeza do assunto: o seu silncio, Em vez de culpa, um mrito lhe lavra: Quando dbil a voz para os aplausos, Maior obsquio faz, se atenta cala; Que ao menos a demncia mover pode A confisso modesta da ignorncia. Louco mil vezes tu; porque devias Antes de entrar na empresa medit-la; Que os acertos so filhos dos acasos, Quando a prudncia nos projectos falta: Quem pretende subir s eminncias, Deve as asas tentar, deve ensai-las; Pois nem sempre a fortuna aos temerrios Nos seus atrevimentos acompanha. Se tu dos felicssimos Esposos (A Deusa continua) procuraras, Felicitar devoto a firme glria, O sagrado Himeneu, a Ilustre casa; Devias ponderar, que dessa glria Mil crditos espera alegre a Ptria Na srie de uns heris, que ao grande Tronco Ho-de aumentar bem cedo a egrgia Rama. Que se ho-de ver em numerosa Prole Sucederem aces hereditrias De uns Avs, que inda agora a Fama os louva, O valor, as virtudes, as faanhas. Devias recordar-te, que dos grandes Meneses, Magalhes, Castros, e Laras Descende o sangue Ilustre, que nas veias Dos sublimes Esposos se dilata: Que de uma, e de outra parte o grande Nuno Ilustra dos Pereiras a Prospia: E que as guias dos claros Azevedos Lhes coroam do Escudo as nobres Aspas. Devias... Mas em vo quero explicar-te Da sublime Ascendncia a srie larga; Se apenas no volume das Histrias De to altos brases cabe a lembrana. De um, e doutro consorte enfim devias

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Contemplar a virtude, e as prendas raras; Por ser um novo esmalte, que os adorna, Mais devido cultura, que s heranas. Devem-se os timbres, devem-se as riquezas Da Deusa cega prfida inconscincia; Mas a prtica nobre da virtude devida somente s grandes almas. Tal se ostenta em Teotnio um gnio afvel Um valor com prudncia: uma entranhas Cheias s de piedade, umas mos rotas, Que abertas quanto mais, mais agasalham. Tal se mostra em Mcia uma beleza, Que parece, que a Vnus, Juno e Palas, S para as melhorar, roubou sem crime De umas as perfeies, doutras as graas. Se tudo (continua a Deusa ainda) Quanto aqui te pondero breve mapa, Igual queles, aonde do Oceano Se reduzem a pontos as campanhas: Como, simples, te engolfas, como intentas Surcar um grande mar com frgil barca; Sem ver que de atrevidos navegantes Cobrem despojos mseros as praias? Deixa pois, pobre Aluno, a grande empresa, A que um louco desejo te arrebata: Abate o voo, e basta-te, somente, Que o lbio estampes do degrau das aras. Pequeno embora seja o teu obsquio: Porm como de um puro afecto saia, A comprida extenso de uma vontade Pode suprir das vtimas a falta. Que o louro favo, ou cndido cordeiro Que aos Deuses o pastor fiel consagra, Talvez lhes so mais gratos, que os aromas, Que avaro mercador conduz da Arbia. Deixa pois, outra vez to recomendo, Se a tanto peso encurvas as espduas, A glria desse assunto para os vivas, O nome dos Heris para as estampas. Basta-te s de Amor em breve metro Cantar as flechas da luzente aljava, Sem, que por isso intentes temerrio De um sagrado Himeneu tratar as chamas. Mas no quebres a Lira; cujo toque, Se reverente agora se acobarda, Te soube abrir um tempo enternecida Em duros coraes feliz estrada. Celebra a tua Anar...... Sorriu-se a Musa Antes de proferir de todo Anarda; E ao som daquele nome acordo, e vejo,

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Que somente era sonho o que passava. Mas bem que delirasse a fantasia, Reconheci, que a Deusa me inspirava; Porque to concertados documentos Tinham mais, que em Morfeu suprema causa. Segui-lhe os seus preceitos; e tirando To somente da Lira uma voz branda, De um fiel parabm aos votos puros Reduzi tudo quanto meditava.

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AO NATAL Que ser, que todo alegre O corao me palpita? Eu no sei; mas grandes glrias Certamente me adivinha. Quem diz, que a esperana alenta, Nunca teve afecto fino; Seno veja o que me custa Esperar o meu Querido. Inda agora, pois que espero, inda agora estou sentindo; Porque as horas da esperana So idades de martrios. Mas se Amor me no engana, J me alegram os indcios; Pois quando a esperana aflige, O termo lhe traz alvios. O corao feiticeiro J c me diz ao ouvido, Que esta noite meia noite Se h-de ver o Sol Divino. Diz Amor, que adere, e espere, Que o desejo est cumprido; Que esta noite o Bem, que espero, H-de vir amante fino. Ningum me d por piedade Notcias do Bem, que espero? Que ansiosa, que sentida, Que perdida estou por v-lo? Se algum sabe aonde agora O meu Bem se est detendo; Tenha d de mim, que amante O procuro, e o no vejo. Mas ah! ningum me responde; Ningum sabe do meu Belo: costume da esperana, Dilatar sempre os desejos. Porventura o meu Querido Andar pelos desertos? Pois hoje quem quer constncias As acha s nos rochedos. Talvez que entre as ondas ande, Como fez em outro tempo, No para dilvios de guas, Mas para enchentes de afectos. Quem soubera aonde estava O meu lindo, o meu pequeno! Faria Amor nas distncias

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Mais crescidos os excessos. Mas o corao se alegra Talvez por ser feiticeiro; Pois me diz, que o meu Querido J daqui est bem perto. Diz, que como amante chega, As sombras vir rompendo; Porque Amor sempre costuma Fazer de noite os extremos. vs, que o meu Belo Com nsia, e disvelo Nascido buscais: Passinho de manso, Que em doce descanso Dormindo ali est. Dormindo est gora Nos braos da Aurora Um Sol imortal: Mas brilha dormindo; Pois sempre luzindo Fulgores nos d. Se vindes amantes, Busc-lo constantes, Que acorde esperai: Deixai; pois em tanto Alivio do pranto O sono lhe traz. No chora imagino, Que dorme o Menino, Pois cessa o seu mal; Deixai, que descanse, Porque se no canse Com tanto penar. Mas ah! que a um amante, Se adora constante, Descanso no h. Que s penas conforme Quem ama no dorme, Se sabe adorar. J chora, j pena; Que Amor j lhe ordena, Que amante d ais: Sossego no sente Um tenro inocente, Que adora leal.

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SONADA Chorai, Belo Infante; Que timbre de amante Sentir, e penar. Chorai; pois quem chora Minora o seu mal. Chorai, doce Encanto, Que a mgoa, que o pranto De amor sinal. Chorai; pois etc. Chorai; meu Querido, De afectos ferido, Vertendo cristais. Chorai; pois etc. Se a mgoas sujeito Est vosso peito No excesso de amar: Chorai; pois etc. Se vs por Menino, Por terno, por fino Calado penais: Chorai; pois etc. Se a voz dos afectos Em lEos discretos Se sabe explicar; Chorai; pois etc. Chorai, doce vida E da alma ferida Dous rios formai. Chorai; pois etc. Se da alma o retiro Somente um suspiro O pode mostrar; Chorai; pois etc. Chorai, pois que a queixa Somente vos deixa As vozes dos ais. Chorai; pois etc. Se acaso, meu Belo, De amor o disvelo Calado vos faz; Chorai; pois etc. Chorai; porque as frguas Nem sempre nas guas Se vo apagar. Chorai; pois etc. Se a frase de um triste Nas vozes consiste,

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Que o pranto lhe d; Chorai; pois etc.

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LETRA Meu querido, entre a neve Tritando estais: Mas ardendo entre afectos Vos abrasais. Arder, tritar Entre a neve, entre afectos Amor vos faz. Vossos olhos desfeitos Vejo em cristais: Mas o peito nas chamas Vejo abrasar. Arder, tritar Entre o fogo, entre o pranto Amor vos faz. De frio estais tritando, Ardendo estais de amor. T'ritar, arder Meu Bem, se v, Somente em Vs. Que frio, meu Lindo, Que chamas, meu Belo, Vos causam as neves, Vos move o afecto! Ah! meu Pequeno, Amor vos faz Com tal disvelo Arder, tritar.

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SONADA Que excesso, meus Amores, Padecer assim vos faz? Que padeo, Que esmoreo. De vos ver assim penar. Tende d, Belo Amor, do que penais: Se fineza o lacrimares, Sim., chorai, mas devagar; E de extremo To supremo No sejais to liberal. Tende etc. o pranto, meu Querido, Um indicio do que amais; Que o chorares, Que o penares de amar firme sinal. Tende etc. Se as ponhas, meus Amores, Com suspiros abrandais; Qual o peito, Que desfeito Em piedades no ser? Tende etc. Mas ah! que o mundo ingrato No merece excesso tal; Que os favores Com rigores Costuma recompensar. Tende etc. Que efeitos to contrrios Entre os homens, e Vs h! Vs amante, Mas errante; Sempre o mundo desleal! Tende etc.

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LETRAS Vs chorais, Divino Infante? sinal, que amante sois; Porque a todos os tormentos Quem sabe amar se entregou. Se Amor obriga a tanto; bem tirano Amor! Dessas lgrimas bem vejo, Que o afecto a causa foi; Porque Amor, que aos olhos chega, Nunca bem se disfarou. Se Amor etc. Nesse vosso pranto belo Tal excesso Amor formou, Que por dar mais lustre s penas, Nelas, toda a glria ps. Se Amor, etc. Pode haver quem sentir saiba Dos tormentos o rigor; Mas formar a glria deles O sabeis somente Vs. Se Amor etc. Padeceis a maior pena, Que Amor cruel inventou; Porque o mundo ingrato sempre Desse pranto no tem d. Se Amor etc. Padecer correspondido Fizera a pena menor; Porm amar com agravos Extremo divino s. Se Amor etc. no amar o vosso excesso To singular, que apostou Recompensar tiranias Com a fineza maior. Se Amor etc. To barbar'mente o mundo Vossas lgrimas causou, Que vos faz sentir a pena, Quando a culpa a temos ns. Se Amor etc. No choreis; meu belo Infante, No choreis, ser melhor, Que se veja em ns o pranto, Que se veja o riso em Vs. Se Amor etc. No choreis, no, no, Querido,

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Aumentando a vossa dor; Porque d infausto anncio Vir com lgrimas o Sol. Se Amor etc. Mas, meu Bom, se o vosso pranto de amor puro crisol; Derramai os cristais belos, Temperando o activo ardor, Se Amor etc. Chorai pois; e veja o mundo Nesse pranto o que alcanou: Se a fineza to imensa O Pode o mundo dar valor. Se Amor etc.

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RIA A SOLO I. PARTE Chorais, Divino Infante; Se mostra o mundo in:grato: Que lgrimas, que pranto! Que brbaro rigor! II. PARTE. Nos homens tudo agravos; Em Vs tudo fineza: Que prfida dureza! Que grande, e fino Amor!

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O POMO DE OURO ou O MRITO PREMIADO Drama


Para se representar na eleio da Preclarssima Senhora D. Leonor do Cenculo de Almeida Carvalhais

ARGUMENTO. Vnus, amante dos Portugueses conduziu ndia, e amparou os Heris daquela navegao; entre os quais foram, como diz Cames, os temidos Almeidas por quem sempre o Tejo chora. Como a Senhora D. Leonor do Cenculo de Almeida e Carvalhais, ilustre ramo destes preclaros Ascendentes; se finge, que a Deusa no dia dos seus festejos quer tambm concorrer com a oferta de um pomo de ouro, que j foi prmio da sua beleza. O resto faz a composio, e ornato do presente Drama.

ADVERTNCIA. A Cena ao p do monte Atlante. A primeira mutao de praia de mar com vista ao longe do jardim das Hesprides. A segunda do dito jardim das Hesprides, que ser composto de rvores as mais luzentes, que possa ser, para o que devem ser douradas; uma das quais ter o pomo de ouro, donde se h-de colher o que se oferecer nova Prelada. No so necessrias outras Cenas mais que as de uns ramos dourados com cousas aparentes, de uns dos quais se h-de cortar o pomo.

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INTERLOCUTORES. VNUS Amante de Adnis. MARTE Amante de Vnus. ADNIS Amante de Vnus. HESPERTUSA Filha de Hspero, amante de Alcido. ALCIDO Amante de Hespertusa. HSPERO Rei da Etipia, Pai das Hesprides. SEGREDO Confidente de Vnus e Adnis. As trs GRAAS, duas GUARDAS, e alguns AMORES. PRIMEIRA PARTE. Praia do mar nas fraldas do monte Atlante: e perspectiva do jardim, e palcio das Hesprides. CENA I. Os Amores brincando; as trs Graas cantando. GRAC. I. bela Vnus. Me dos Amores, Os teus primores Ostenta j.9 GRAC. II. bela Vnus, Que tudo enlaas, Mais lustre s graas Hoje lhes d. GRAC. III. Prepara, Vnus, O teu tesouro; Que o pomo de ouro Vencido est. GRAC. I. LEONOR somente Prmio to belo Ao teu disvelo Merecer. GRAC. II. Qual Palas sbia,
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Repetem todas a Quadra.

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Qual Juno Augusta, Prudente, e justa Governar. GRAC. III. Das Graas todas Como tesouro, O prmio de Ouro Alcanar. TODAS. bela Vnus, Me dos Amores, Os teus primores Ostenta j. GRAC. I. O bela. etc. CENA II. Vnus e Adnis. VEN. Basta: o sonoro canto Suspendei por um pouco, Graas belas: E vs, Filhos gentis, ide com elas Brincar na areia mole, Alegres apanhando As conchas retrocidas; Se mais vos no recreia Ir nas asas do vento Algum peito alastrar de amor isento.10 E tu, querido Adnis, Doce prenda desta alma, Ao menos por um pouco Longe do irado Marte Vem ter na minha glria a melhor parte. ADNIS. Ah, Vnus bela! ah sempre Apetecido encanto! Quanto te devo, e quanto! No bastava, querida, Fazer-me possuidor dos teus afagos? Que tudo quanto pode Dar a fortuna ao mais feliz amante: Mas pes-me vista objecto to brilhante! Dize-me (e no me tenhas
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Partem os Amores, e Graas.

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Por mais tempo indeciso)11 Dize-me: estas areias No brilhante metal, de que esto cheias, So trazidas do Ganges? So do Paictolo acaso? Ou so acaso do soberbo Tejo? Ouro puro, Querida, quanto vejo. Dize-me: aquele bosque,12 Que acol se divisa, porventura aonde o Sol luzente Se retira, depois da sesta ardente? Pois tanta cpia de ouro S pode vir a ser do Sol tesouro. VNUS. Estas praias, Adnis, No so as que imaginas; Mas so de Atlante as preciosas minas. Das Hesprides sbias cultura o jardim, que vs atento. Ali guarda um Drago naquela planta13 Os pomos reluzentes Companheiros daquele, Que premiou a minha gentileza. ADNIS. Nunca esperei de ver tanta riqueza! VNUS. Hspero, que as Esferas Sabe douto medir; das trs filhas O claro genitor: o Rgio dono De raridade tanta, Que hoje aqui me conduz, que a ti te espanta. ADNIS. Mostrar-me no podias Ao depois do teu doce, e lindo aspecto Outro mais grande, e mais luzido objecto. VNUS.

Olhando admirado para o fundo do teatro, que h-de ser um bosque todo dourado, e o mais brilhante, que se possa fingir. 12 Olhando para o bosque. 13 Aponta para onde est a rvore, que tem o pomo, e ramo, que se h-de oferecer.

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Mostrar-te determino Outro maior ainda, Quando a Leonor preclara For levar por tributo Da planta, que ali vs, o belo fruto. ADNIS. Tu queres, cara prenda, Obrando excessos tais, que eu no me encontre, No mar de teus favores submergido, Na luz dos teus fulgores desinquieto, Expresso, que me mostre agradecido; Recompensa, que baste a tanto afecto. RIA. Se acabar por ti, Querida, Fora prmio a tal fineza, Eu te dera hoje a certeza De morrer por ti fiel. Mas se perco amando a vida, Inda lucro, e no te pago; Pois mais val um teu afago, Do que a morte mais cruel. VNUS. Basta: sei, que me adoras: Deixa os extremos teus; que agora tempo, Que eu v eia rica planta Empobrecer os ramos, Para colher-lhe um pomo, Que seja de Leonor um prmio justo: Se pode premiar-se um peito augusto. Mas intento primeiro Valer-me de Hespertusa, Uma das Ninfas sbias, Que guarda esse jardim; porque adormea A serpe vigilante, Que enroscada na planta radiante Guarda a luzente fruta: Mas ei-la acol vem atende, e escuta.14

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Olhando para a parte por onde vem Hespertusa.

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CENA III. Hespertusa, e os mesmos. HESPERTUSA. Deusa do Cu terceiro, Me bela dos Amores, Das plantas produtora, Dos brutos incentivo, Universal enleio, Dos Deuses glria, e dos mortais recreio; Que caso to feliz, te trouxe aonde Este oculto tesouro s mais se esconde? VNUS. Bela Hespertusa, o caso, Que agora me conduz sobre estas praias, Certamente feliz: Tu no ignoras Que da excelsa Leonor so os Almeidas Preclaros Ascendentes; Que fortes, que temidos, que valentes... CENA IV. Segredo, e os mais. SEGREDO. Senhora... VNUS. Que tens, Segredo? SEGREDO. Tenho Senhora VNUS. Acaba

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SEGREDO. Tenho medo. ADNIS. De qu? SEGREDO. De que h-de ser? De uma fantasma. HESPERTUSA. cousa, de que um sbio se no pasma. E sendo tu Segredo por discreto, muito, que te pasme um vo projecto. SEGREDO. No vo, real; e to medonho, Que at de nome-lo me envergonho. VNUS. So disparates teus, Cala-te, ou parte. SEGREDO. Sim, no hei-de ter medo, vendo a Marte?15 ADNIS. Quem? SEGREDO. Marte, idem per idem.

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Em aco de partir.

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VNUS. Pobre de ti, querido, Se Marte nos encontra! E msera de mim, que do teu risco A causa infeliz sou! ADNIS. No te entristeas Da minha adversa sorte; Porque sendo por ti, me doce a morte. VNUS. Ah! no fales assim, que me atormentas. SEGREDO. Adeus; porque no quero Ser triste testemunha Dos furores cruis do Deus da guerra. VNUS. V se podes sust-lo algum momento;16 Que eu logo tambm parto, Para ver se o retiro Com um falso suspiro Com um fingido afecto, Com um sorriso inquieto, Com um favor escasso. E se mais no puder, com um abrao. SEGREDO. Fiem-se l das belas, Que at sabem fingir as mais singelas.17 VNUS.
16 17

Para Segredo. Vai-se.

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Tu, discreta Hespertusa, Para dar mais calor ao nosso engano, Fica; e finge-te ser do belo Adnis Amante enternecida: Que eu vou correndo, vida,18 Mostrar por teu respeito Cheio de um falso amor o inquieto peito. ADNIS. E quem sabe, meu bem, se essas ternuras Falsas, e lisonjeiras, Em meu dano se faam verdadeiras? VNUS. Vida, no tenhas susto; Que esta alma s por ti sente, e suspira; E o que a Marte disser tudo mentira. RIA. S por ti morro, Adnis belo, O meu disvelo Por ti s . Se a lngua afagos Promete a Marte, A ti de amar-te Promete a f. Fica seguro; Porque constante Meu peito amante Sempre hs-de ver.19 ADNIS. Foi-se o meu bem, que pena! HESPERTUSA. No te aflijas, pastor afortunado; Pois eu tambm adoro,
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Para Adnis. Vai-se.

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E ausente do meu bem nem sempre choro. ADNIS. Quem diz que viver pde Do que adora distante, Ou no diz o que sente, ou no amante. HESPERTUSA. Mas preciso s vezes Mostrar alegre o recomposto aspecto, E sentir na alma um bem contrrio afecto. Mas ah! Porque se me no a vista engana,20 A vista cintilante, E de iras o blico semblante, Marte a ns se avizinha. ADNIS. Decide agora o Cu da sorte minha. HESPERTUSA. Serena-te; no temas: E ponhamos em uso O meditado engano; Que s vezes tem remdio o maior dano. CENA V. Marte, Alcido ao pano, e os ditos. MARTE. Belos habitadores Desta luzente praia, Dizei-me cortesmente Onde se oculta a Deusa dos amores: Quando no de outra sorte, Sentireis os furores, As iras, e os estragos de Mavorte.

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Reparando por onde h-de sair Marte.

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HESPERTUSA. H pouco ouvi das Graas Uma silva sonora, Que faziam Deusa da Beleza. MARTE. Porm dizei-me aonde Vnus gentil a sua luz esconde? ADNIS. Junto daquela planta, Que tanto vista avulta, A Deusa bela o seu fulgor oculta. MARTE. Na face, e no vestido Peregrino pareces nestas praias.21 ADNIS. Fencio sou: por nome tenho Elmiro. MARTE. Mas dize-me; te rogo, Que motivo te traz da ptria ausente? ADNIS. Um destino inclemente: Mas aqui na beleza de Hespertusa Encontro quanto a sorte me recusa. ALCIDO. (Que escuto?)...22
21 22

Para Adnis. parte.

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HESPERTUSA. E no meu peito Amor igual ferida me tem feito. MARTE. Ninfa afortunada! venturoso amante! ALCIDO. ( Princesa cruel, dama inconstante!) ADNIS. Entre ns os momentos Se passam docemente Em doce paz, em plcido retiro. MARTE. Afortunado Elmiro! HESPERTUSA. Somente o teu semblante De dios, e de iras cheio Perturbar pode agora o nosso enleio; Que teme o teu furor; mas no o acusa. ALCIDO. (Infiel Hespertusa!) MARTE. Vivei fieis amantes: Vivei em paz segura; Pois eu tambm ferido Dos tiros de um amor o mais ardente,

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Zeloso, e desinquieto, Invejo, e no perturbo o vosso afecto. RIA. Invejo em dons amantes A paz, que no possuo: Invejo, e no destruo O seu constante ardor. As armas fulminantes Entre os Heris emprego, E em plcido sossego Deixo os Heris de amor.23 ADNIS. Adeus, que eu deste encontro Vou dar aviso a Vnus.24 ALCIDO. J que enganado estou, vingado amenos...25 HESPERTUSA. Detm-te, Alcido: espera.26 ALCIDO. Deixa-me ingrata, deixa... HESPERTUSA. Agora sem motivo a tua queixa. ALCIDO. sem motivo, 6 falsa?
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Vai-se. Vai-se por diversa sada de Marte. 25 Puxa pela espada. 26 Detendo-o.

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Eu no te ouvi (que pena!) Eu no vi, que de Elmiro... Amante 27... Espera... Foi-se? ah que eu deliro!28 HESPERTUSA. Sossega um pouco, vida. ALCIDO. Ah brbara! ah cruel! ah fementida!29 CENA VI. Hspero, e os ditos. HSPERO. De Gentes Estrangeiras Vejo cheias, 6 filha, estas ribeiras; E cuidadoso venho Mas como Alcido aqui? como iracundo30 Com a luzente espada Em acto de ferir? Dei-te licena De pretender humilde Aquela mo negada A mil outros amantes: tu soberbo Com iras, com furores Pretendes conquistar os seus favores? Contemplo nessa espada, Contra um peito gentil enfurecida: Na tua vista vejo Irada, e cintilante Uma nova inveno de ser amante. HESPERTUSA. Senhor, sem culpa Alcido; E sem delito meu ...........31

27 28

Confuso. Atnito 29 Arrebatado. 30 Irado e colrico. 31 Com humildade.

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HSPERO. Queres, filha, Depois de tal ofensa Alcanar-lhe um perdo em recompensa? ALCIDO. Atende-me, Senhor, depois me acusa. Hspero sbio, a gente, Que viste nestas praias, Vem a roubar-te os pomos de ouro puros. Entre os mais um mancebo de Fencia, No s pretende infame Despojar-te o jardim dos ureos frutos; Mas tambm quer roubar-me, E com feliz sucesso, O corao ingrato de Hespertusa; Considera, Senhor, depois me acusa. RIA. Com este ferro agudo, Vibrando sem desdouro; Guardava o teu tesouro, Vingava o meu amor. Mas j perdido tudo Quanto de amvel tinha; J busca esta bainha, J cede ao teu furor.32 HSPERO. Dize-me, ingrata filha, Deste modo soubeste Guardar os dois depsitos sublimes, Que pus eu em teu poder? O meu tesouro Abandonado a gentes estrangeiras! As promessas, que fiz ao nobre Alcido Por incgnito amante Desfeitas, ultrajadas, E enfim da honra as santas leis quebradas! HESPERTUSA.
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Vai-se.

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Pai, Rei, e Senhor meu, sem me atenderes, No me deves culpar. CENA VII. Marte ao pano pela porta para onde Hspero tem as costas, e os ditos. HSPERO. Dize, que atendo. HESPERTUSA. H pouco neste stio ....... 33 MARTE. (Daqui pretendo oculto Nestes ramos amenos Ver se acaso me engana a bela Vnus) HSPERO. Acaba, que te impede? HESPERTUSA. Senhor ... (valha-me o Cu, se lhe descubro Do sucesso a verdade, Marte escuta, e crimino a bela Deusa) Senhor ........... HSPERO. Que te detm? HESPERTUSA. Alcido irado
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Repara em Marte.

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Correu ......... no pretendia (estou confusa!) MARTE. (Retiro-me: enganei-me, que Hespertusa somente a que vejo.)34 HSPERO. Na tua confuso, 6 filha ingrata, Conheo a culpa tua. HESPERTUSA. Ouve-me por piedade. HSPERO. Que hei-de ouvir-te? Mentiras. Infame, vai-te: e foge s minhas iras. RIA. Sou teu pai; mas ofendido: Sou teu Rei; mas ultrajado: Por motivo duplicado Devo agora ser cruel. Se me vs endurecido, A ti mesma torna a culpa; Porque tarde tem desculpa O delito de infiel.35 HESPERTUSA. Viu-se no mundo acaso, Mulher mais infeliz! Irado encontro Ao caro Genitor: vejo ofendido O meu querido bem. Um no me atende, Outro foge de mim, zeloso amante: Um me chama infiel, outro inconstante.

34 35

Vai-se. Vai-se.

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RIA. Amantes peitos, Enternecidos, Que j feridos Fostes de amor; Dizei, se a sorte Ao meu tormento Maior aumento Poder pr: Dizei, amantes, Com voz sincera Se h dor mais fera, Que a minha dor.36 CENA VIII. Vnus, e Adnis. ADNIS. Entre tanta desgraa Ao menos me alivia O doce bem da tua companhia: VNUS. E eu temo o teu destino; Porque conheo a Marte. Irado em toda a parte Me chama, me procura: E se acaso descobre O nosso puro ardor; vers, querido, Converter os afagos Em iras, em furores, em estragos. Ah! desgraado Adnis; Que o meu amor te obriga A padecer por mim tanta fadiga.37 ADNIS. Tu choras, caro bem? Ah! que esse pranto Esta alma me trespassa, Mais que todos os sustos da desgraa.
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Vai-se. Com ternura.

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Fujamos destas praias; Por evitar ao menos A vista de Mavorte. VNUS. Nem isso me concede a triste sorte; Pois eu de longe vejo38 Sobre a sombria frente Do fero Nume, a vria Plumagem tremular: j lhe descubro O reluzente arns, que ao Sol ferido Parece mais luzido. Ele j me parece, Que se avizinha a ns. Ah! pobre Adnis!39 ADNIS. Enxuga, dolo amado, As hmidas pupilas, E deixa o meu destino entregue sorte; Pois tanto no merece a minha morte. VNUS. A morte? Ah, que me Feres Na parte mais sensvel deste peito.40 ADNIS. Ah, querida, querida! Que fazes? porque choras? Ah! no me aflijas tanto, Que no vale o meu mal to belo pranto. DUO. ADNIS. Se fiel, meu bem, me adoras, Ah suspende o triste pranto, Pois no vale, vida, tanto,
38 39

Olha para dentro Chora. 40 Chora com mais fora.

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Quanto vs no meu penar. VNUS. Se tu fino amante adoras, Podes ver neste meu pranto, Que te estimo, vida, tanto, Quanto vs no meu penar. ADNIS E VNUS. Oh! se amor no desse s Almas Estas mgoas penetrantes; A fortuna dos amantes Era digna de invejar. Vo-se. Fim da primeira parte.

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SEGUNDA PARTE. CENA I. Jardim das Hesprides, onde se v a planta de ouro. Marte e Segredo. SEGREDO. No te enfureas, Marte, Vnus te adora, e busca em toda a parte (s avessas.) parte. MARTE. Pois como Nunca pude encontr-la, Correndo todo o monte a procur-la? SEGREDO. (Finjamos) como Vnus Te procura tambm; talvez por isso Vagos vos desviais. MARTE. Pois vai, e corre; Ao meu violento amor pronto socorre: Diz-lhe minha ingrata, Que junto praia espero, Acol ande irado Nas penhas bate o mar encapelado. RIA. Ao meu querido bem Dize-lhe o meu querer: Dize-lhe, que viver No sei sem ela. Dize-lhe, que me tem

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Envolto em tanto amor; Que chego a ter temor Por Vnus bela.41

CENA II. SEGREDO. Ali descubro a planta., Que os pomos de ouro brota. (Olhando para a rvore.) Que bela ocasio para ser rico! Se colho um pomo, um grande Senhor fico. Isto h-de ser 42: que importa O labu de ladro? com a riqueza Se compra todo o lustre da nobreza. Vamos, deixai-me um pouco Escrpulos da honra. Boa gente Enriquece sem nota de repente. Aqui ningum me v 43. Pendem os ramos Indinados do peso At junto da terra: fora simples Se teno fizesse resistncia, Por uns remorsos vos da conscincia. Esta bela ma de ouro luzente...44 Mas ah! que me devora uma Serpente. RIA. Senhor Drago no bula No me coma, no me enguia; Que eu no quero ser ladro. J no chego: no me logra45 pior do que uma Sogra46 O Diabo do Drago.47

41 42

Vai-se. Parte. 43 Vigia. 44 Vai a colher um pomo, topa com o Drago que bulir em acto de o tragar, e salta para trs. 45 Para o Drago. 46 Para o Povo. 47 Vai-se.

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CENA III. Hespertusa, e Alcido. ALCIDO. Em vo, falsa Hespertusa, Em vo me segues j. Deixa-me agora Lograr a liberdade; Que do infame grilho livre a vontade. HESPERTUSA. Aquele Elmiro, Alcido, A quem me ouviste h pouco Mentir afagos, e fingir afecto, Adnis , de Vnus caro objecto; Que por causa de Marte ALCIDO. No quero ouvir-te: de meus olhos parte. HESPERTUSA. Nunca o Ru se condena, Sem ser primeiro ouvido: Ouve-me enfim: depois me culpa Alcido. ALCIDO. E que podes dizer-me? HESPERTUSA. Que te amo, que te adoro; Que s por ti lamento, peno, e choro. ALCIDO. E como Finge a falsa!

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Deixa-me fementida, Prfida enganadora, Deixa-me o sossego, e vai-te embora. HESPERTUSA. Assim sem atender-me, Sem dar satisfao s tuas queixas, Te ausentas fero, e brbaro me deixas? RIA. ALCIDO. Te deixo, ingrata, alegre De ver-me livre agora: Uma alma enganadora fcil de deixar. Te deixo; sem que a perda Me faa a dor crescida; Porque outra fementida fcil de encontrar. CENA IV. HESPERTUSA. Foi-se? Deixou-me? Ingrato! Assim cruel me pagas Com tanta crueldade Tanto amor, tanta f, tanta lealdade? VNUS. Que tens, bela Hespertusa? HESPERTUSA. Que hei-de ter? Tu mesma Foste a causa inocente do que choro, Quando por teu respeito Amante me fingi do belo Adnis, Tudo em parte remota Ouvindo esteve Alcido:

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Foge-me irado, e deixa-me ofendido. VNUS. Sossega, gentil Ninfa; Porque tem o teu mal fcil remdio. HESPERTUSA. Tu queres, que eu sossegue, Vendo o meu bem queixoso? Quem sabe sossegar em tal tormento, Ou no diz a verdade; Ou todo o seu amor fingimento. VNUS. Oxal que eu pudesse Ver ao meu Adnis to segura, Como tu o teu Alcido. Descansa; porque logo Da mente perturbada Do teu querido bem toda a suspeita Pretendo desterrar, e em tanto a vara, Que adormece o Drago, cauta prepara; Pois quero antes, que acabe Um to alegre dia, Levar deste tesouro preclara LEONOR a ma de ouro. HESPERTUSA. Pronta, por dar-te gosto, A vergntea divina A procurar parto: Mas tu, Vnus, em tanto Te recorda piedosa do meu pranto. RIA. Eu parto, Senhora; Mas antes te entrego A paz, o sossego, Que esta alma no tem. Dos brbaros zelos

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Alcido defende: Engalha, e me prende, Se foge o meu bem.48 CENA V. Vnus, depois Adnis, e depois Marte. VNUS. No posso dilatar-me; Pois vai correndo o dia, Em que eu a LEONOR bela Pretendo por tributo Levar alegre o reluzente fruto. Mas amor me suspende, Embaraa-me Marte, Adnis me dilata; E por fim me atormenta a sorte ingrata.49 Ah! vem, querido Adnis, E consola-me enfim do meu tormento. ADNIS. Somos perdidos, vida, Marte deste jardim procura a porta. VNUS. Que havemos de fazer? vejo-me morta. Esconde-te... repara...50 Mas melhor, que tu por outra parte Mas se te encontra ... Cus, dai-me conselho.51 ADNIS. D-me maior angstia Essa tua aflio, que a minha sorte. VNUS.
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Vai-se. Entra Adnis. 50 Confusa. 51 Vacilante.

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Foge, foge ... Mas ah! l vem Mavorte. Esconde-te, querido, Entre essa rama; que ele entra enfurecido. ADNIS. Feliz, ou desgraado Decida o meu destino agora o fado.52 MARTE. Enfim depois de tanta Intil diligncia Chego, Vnus, a ver-te; Porm no sem receios de perder-te. VNUS. Porque, guerreiro Nume, Ostentas fero o blico semblante? MARTE. Porque adoro uma falsa, uma inconstante. VNUS. julgo, que de outra Deusa Deves falar; que Vnus S suspira por ti, por ti s morre. ADNIS. Pobre de mim, que ouvi! Quem me socorre?53 VNUS. Por ti deixei de Febo Os preciosos dons, e de Vulcano Deixei o casto toro para amar-te;
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Esconde-se enquanto entra Marte. Ao pano.

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Por seguir o furor que em ti respira: (Quanto a Marte disser, tudo mentira.)54 ADNIS. (Respiro. Mas se tanto De uns afagos fingidos Esta alma desconfia, que faria?)...55 MARTE. Mas tu, porque me foges Neste dia, inumana? VNUS. Ouve: que no te engana Este peito fiel. Leonor sublime Se v Prelada eleita Na clausura de Clara; E desta fruta rara Levar-lhe quero um prmio. MARTE. Ah! j sei: tu me faias Daquela flor brilhante, que os Almeidas Teve por ascendentes, To nobres, to temidos, to Valentes. VNUS. Da mesma. Mas pretendo Hoje um favor de ti. Eu no queria. Contigo funestar to grande dia: Leva contigo a guerra, Os dios, as runas, os estragos; E deixa-me levar graas, afagos, A paz serena, o plcido sossego s ribeiras do Tmega sombrio, Aonde vive agora A preclara Leonor, a quem tributo Daqueles ramos o dourado fruto.
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parte. parte.

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MARTE. No s por teu gosto Levar por outra parte intento a guerra, Para deixar em paz a ilustre terra, Onde essa Ninfa habita; Mas tambm porque quero Ir-lhe os claros parentes Nas armas adestrar; porque os Almeidas Com inteiro valor, com peito forte Alunos sempre foram de Mavorte: Mas parto receoso De um gentil estrangeiro, Que vi por estas praias. Tu se me enganas, Vnus... VNUS. Enganar-te meu bem? Tal no presumas: Toma este abrao, e parte. ADNIS. (Tem mo meu bem: ah! venturoso Marte.)56 MARTE. Com tal penhor seguro Me ausento, amada prenda. Mas olha ... Este Estrangeiro Nada ... Permita o Cu, que o no encontre. VNUS. Pois ele, que te fez? MARTE. Ofende a Morto Um zelo imaginado, Um receio falar, um vo cuidado.
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D um passo, e se torna a este stio.

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RIA. Bastam s os meus receios, Porque ostente os meus furores; Porque mostre os meus rigores Um cime basta s. Por fazer, que eu desbarate, Que eu destrua, que fulmine, Basta s, que te imagine Desleal, ao meu amor.57 CENA VI. Vnus, e Adnis. VNUS. Agora sim, querido, Podemos respirar. ADNIS. O Deusa bela! A tanto afecto teu, tanta fadiga Ingrato sou, por no saber, que diga. VNUS. No s ingrato Adnis: No; porque amor s vezes Nas vozes do silncio Tem maior eloquncia; E parece ignorncia o que cincia. ADNIS. Somente posso, vida VNUS.

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Vai-se.

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Basta ... que por instantes Acabando-se est o grande dia; E primeiro, que venha a noute fria Quero acabar a empresa. Vou buscar a Hespertusa; porque tarda Com a dourada vara, que adormenta Os olhos do Drago: aqui me atende, Mas no chegues Serpe venenosa; Que eu vivo receosa, Por um sonho, que tive, Que tu (no o permita a sorte austera) Estavas morto aos dentes de uma fera. ADNIS. Semelhantes pressgios Lana da fantasia E no nos turve um sonho esta alegria. VNUS. Disseste bem, querido: Hoje nos alegremos Sem ver, o que amanha suceder pode; E um sonho vo aos simples incomode. RIA. louco quem no centro Da plcida alegria Na sorte de outro dia Se pe a vacilar. Que dobra o seu tormento Quem vai do fado escuro Nas sombras do futuro Os males encontrar.58 CENA VII. Adnis, Segredo, depois Hspero, e Guardas. ADNIS.

58

Vai-se.

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Vem Segredo fiel, que j descanso; Pois j se ausentou Marte. SEGREDO. Ora enfim j l vai esse empecilho? Mas eu me maravilho Dele se resolver a deixar Vnus. ADNIS. Ela lhe fez afagos: Ela lhe disse afectos: Fia soube engan-lo com tal arte, Que se ausentou, e que nos deixou Marte. SEGREDO. Eu disso no me espanto; Que um sorriso gentil, que um falso pranto, Que um afago fingido, Um modo enternecido, Um no sei qu, que tm todas as belas, Ou Casadas, ou Freiras, ou Donzelas, capaz de enganar ao mais sisudo: Tanto nas belas de fingir o estudo! ADNIS. Nos defeitos das Ninfas, Moralizar no deves. SEGREDO. Assim parece; porque sou Segredo, Porm Hspero e Guardas. HSPERO. Guardas? Elmiro aquele, que ali vedes, Que prfido roubar-me

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Pretende os meus tesouros:59 Assegurai-vos dele Fazei-lhe o seu delito manifesto: Li me entendeis: executai o resto.60 SEGREDO. Ento, Senhor Adnis, Converteu-se em prazer tanta alegria? ADNIS. Quem tal presumiria! GUARDA I. Tem, gentil estrangeiro, tem pacincia.61 GUARDA II. Porque em vs forada esta obedincia. ADNIS. Oh! se eu morresse ao menos junto da minha Vnus! SEGREDO. O morrer dessa sorte Seria, Adnis, dita; Que h morte to feliz, que ressuscita. CENA VIII. Hespertusa, e os ditos. HESPERTUSA.
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Prendem-no. Vai-se. 61 Cruzam-lhe as mos.

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Brbaros, que fazeis? GUARDA I. Deixai, Senhora, Que este Rgio Decreto se execute. HESPERTUSA. Esperai, que primeiro Falar pretendo ao Genitor irado.62 ADNIS. Parte, Segredo, e dize Ao meu querido bem o meu destino. SEGREDO. Eu nunca vi sucesso mais mofino. RIA. Ningum ponha a confiana Na alegria mais segura, Porque a mais firme ventura Bem depressa se desfaz. Quem um crdito sincero No quer dar s minhas vozes, Veja entregue a dous algozes Esse msero rapaz.63 CENA IX. ADNIS. Inconstante fortuna, louco o que se fia No teu volvel giro: Incerta sempre, e sempre vaga volves Essa roda inconstante,
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Vai-se. Vai-se.

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Desgraada, e feliz no mesmo instante. H pouco que de Vnus Lograva com descanso A plcida ternura; Mas agora me abate a sorte dura. Miservel Adnis! Que longe do teu bem a vida acabas. Mas quer o meu destino Cruel, e desumano, Que eu morra aqui distante Da prenda mais querida, Por no volver vida; Pois fora de outra sorte Uma segunda vida a mesma morte. RIA. Adeus, amada prenda; Adeus, prenda querida; Adeus, que perco a vida; Prenda querida, adeus. Inda depois de morto Mostrar-te, 6 vida, espero O meu amor sincero Nos tristes olhos meus CENA X. Alcido e Adnis. ALCIDO. Agora, Elmiro, agora No poders fugir-me Ao zeloso furor, que me arrebata Contra ti, contra a Ninfa mais ingrata. ADNIS. No sou quem tu me chamas; No sei o que me dizes; Mas sei, que se no fora Destas correntes preso, Adnis no sofrera o teu desprezo.

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CENA XI. Vnus, depois Hspero os ditos. VNUS. Ah meu bem, quem se atreve A ter-te em tais prises?64 HSPERO. Quem sabe justo Delitos castigar ... Mas tu, Senhora, s deste roubador a protectora? Tu, doce, e bela Vnus, Sendo Deusa imortal, pretendes hoje Amparar um perverso, um delinquente? ADNIS. Bem cedo me vers ser inocente. HSPERO. Tu, que a roubar-me vinhas No s deste jardim a fruta ele ouro, Mas at de uma filha o meu tesouro ALCIDO. Eu bem te vi na selva ali confusa Ser amante atendido de Hespertusa. HESPERTUSA. Das suspeitas de Alcido Vnus a causa foi; eia que o diga: Se depois fr culpada me castiga. VNUS.
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Desprende-o.

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Basta: Ouvi-me: No deves65 Criminar Hespertusa, Culpar o meu Adnis. De Marte receoso Fingiu chamar-se Elmiro: Disse por meu conselho A gentil Hespertusa Mil fingidos afectos: Alcido ouviu, rompeu em mil furores, Que ajudaram tambm aos teus rigores; Pois deles induzido Prendeste ao meu querido, Cuidando receoso, que a roubar-te Vinha esta planta bela: Mas eu sou quem pretendo os pomos dela. HSPERO. Ah! perdoa-me, Vnus, Perdoa o meu engano. ALCIDO. Eu j torno a viver no desengano. HESPERTUSA. Em honra deste dia Perdoo os teus excessos. VNUS. Bem o podes dizer; pois neste dia De Leonor o mrito se mostra Coroado no emprego de Prelada: Leonor, que natureza Deve todos os dons da gentileza, Um belo, e nobre aspecto, Adornado de uns olhos cintilantes, Onde se vem unidos A brandura, os agrados, e o respeito, E tudo, o que de belo o Cu tem feito: Leonor, que ao nascimento
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Para o Rei.

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Deveu tal luzimento, Que pode sem o risco da vanglria, Dar fama trofus, lustre memria: Leonor, que subtil arte Deveu mil perfeies, ou instruda Na lio erudita das Cincias, Ou :das Artes nos nobres exerccios; Movendo a douta mo nas cordas doces, Ou para mais espanto, Movendo a voz nas clsulas do canto: Enfim Leonor, aquela Que a si mesma deveu fazer-se grande Na sagrada cultura das virtudes; Ora devota aos Deuses implorando, Ora sbia, e prudente governando, Ora humilde com nobre gravidade, Ora grave com plcida humildade; Atenta, liberal, benigna, sbia Enfim quantas o Cu perfeies belas Raras vezes por mimo terra envia, Todas nela se vem; bem que modesta A seu grande pesar as manifesta. Como Leonor descende Dos grandes, e temidos, Almeidas, por quem sempre o Tejo chora, De quem eu fui um tempo a protectora; Que os conduzi felizes Por mares nunca dantes navegados, Do remoto Ocidente Sobre as ardentes praias do Oriente: Quero tambm agora Lembrar-me desta filha de um tal tronco. Quero de ouro levar-lhe Um pomo afortunado, Que do seu nascimento, Que das suas virtudes, E que das prendas suas Sirva de prmio justo: Se pode premiar-se um peito augusto. HESPERTUSA. Como o Drago, que guarda A planta preciosa, Somente a mim permite Colher a rica fruta: Eu mesmo vou colher-te o melhor pomo.66
66

Colhe um pomo.

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VNUS. Serei agradecida a tal grandeza. HSPERO. Eu quisera encontrar maior riqueza Para prmio de tal merecimento. VNUS Se um mrito sublime Encontra sempre os prmios diminutos; Porque a fortuna avara Tem o poder nos homens limitado; Culpa nossa no , mas sim do fado. Vou levar a Leonor este tributo; Pois bem que curto dom, ao que merece, tudo quanto a terra nos oferece De maior esplendor, mais luzimento, Para oferecer ao seu merecimento. E vs, belos amantes, Suspendei por um pouco o vosso afecto, E seja s Leonor o vosso objecto; Para que todos Digais em voz festiva a nossa Prelada Leonor, viva. RIA. Para Prelada De umas Estrelas Claras, e belas Viva Leonor. TODOS ...Viva Leonor. VNUS Seja outra Fnix Desta clausura, Que sempre dura No seu rigor. TODOS Seja outra etc. VNUS Para Prelada De umas Estrelas, Claras, e belas

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Viva Leonor. TODOS Viva Leonor.

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CENA LTIMA. As Graas os Amores, e Vnus. VNUS Contenderam, Senhora, Por outro pomo igual trs Deusas belas: Juno alegava o trono, Por Smbolo sagrado da Nobreza; Palas virtude, e Vnus a beleza. Em vs tudo se encontra: E por isso da fbula, que h pouco Vistes representar, um o verdade Tirando, as companheiras Gratas, e lisonjeiras Me fazem condutora deste pomo; Porque em vs se divisa, Como l nas trs Deusas, Mas com mais luzimento, A beleza, a virtude, o nascimento. Cantam as Graas, e os Amores danam como no princpio deste Drama. GRAAS. Bela Vnus, Me dos Amores, Os teus primores Ostenta j etc. FIM.

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ODE AO OUTONO Dirigida ao Abade de Polvoreira, Jos Moreira da Silva J, Moreira, o tardo Outono Faz, que exceda a noute ao dia; E os celeiros principia O colono A preparar: Onde alegre, e com bonana V no rstico tesouro Recolhido o milho louro, Que esperana Lhe h-de dar. J na aldeia com recreio, Sem temer do Sol a chama, Se diverte a bela Dama, Com asseio Natural: Onde glria para ela, Recrear-se na fadiga De esfolar a loura espiga, E de vela Mascotar. J nas frias sossegado O Ministro atento, e srio Dormir deixa o Ministrio No fechado Tribunal: E a fadiga do governo Troca agora alegre, e manso Pelo plcido descanso Do paterno Seu casal. j deixando o tecto antigo, Ao ninho o voo a andorinha estende; Pois com ele se defende Do inimigo Bravo mar: Mas em tanto tem cautela O taralho com falcia Vai cair junto negcia Na costela Do rapaz. Baco alegre j na frente Por grinalda a parra embrulha, E da torpe, e suja pulha Faz o monte Retumbar:

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J na uveira a escada arrima, J chamando a todos anda; E festivo enfim nos manda A vindima Comear. Um se encosta junto ao feixe, Outro tira cuba o sarro, Outro chega o cesto ao carro, Outro mexe No lagar. O vilo desacatado Tinge nele descomposto De fervente, e novo mosto O gretado Calcanhar. A vil a landre apanha, Outra a noz, outra o calombro; Outra traz a vara ao ombro Da castanha Varejar: Qual solcita formiga das gentes o governo, Que temendo o Largo Inverno Se afadiga Em ajuntar. Tu somente amor segundo, Desfrutando um gnio manso, Com gordura, e com descanso Ests rindo Dos demais. Assim pois te ds por pago Como estejas com sossego, Ideando um doce emprego, Um afago Tal ou qual. Se ensinasses aos discretos Esse mtodo prudente, Bem podia a mais da gente Teus acertos Igualar; Porque nessa pedra dura, Ou sombra de um carvalho Poderia sem trabalho Com gordura Descansar. Ri-te pois do mundo ingrato, Porque as suas novidades, So traies, so falsidades, Que o teu trato Chega a dar:

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E recolhe por tributo Dos teus versos, a cadncia; Pois das Musas a influncia Melhor fruto Te h-de dar.

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LIRAS Ao mesmo Abade de Polvoreira. Enquanto, meu Moreira, Recordas com prudente seriedade De uma Nize matreira O engano, a traio, e a falsidade; E um porfiado estudo te maltrata, Para indagar o gnio dessa ingrata: Enquanto vais Vila, Umas vezes a p, outras montado; E o teu corpo destila Por mil poros aljfar delicado; Sendo cada cabelo (no me rio) Um tesouro de prolas em fio: Enquanto s escondidas Te ris de muita gente delirante, Que em finezas perdidas Mostra a sua fraqueza a cada instante; Sem ver, que so enganos manifestos Das Damas as constncias, e os protestos: Enquanto te recreias Ao jantar com peru, frango ou vitela, E guardas para as ceias A perdiz, o capo, lombo, ou costela, Com aquele acepipe ardente, e fino Da vagem, da azeitona, ou do pepino: Enquanto em copa fina Ou sorves o licor de Baco adusto, Ou nessa Cabalina Os influxos de Apoio sempre Augusto; Contemplando do mundo o desvario, Umas vezes alegre, outras sombrio: Enquanto traficante Buscas algum barulho no Convento, E fingindo-te amante, Zombas de to comum divertimento; Que quem neste vcio delinquente, Fica fora do resto da mais gente: Enquanto sem receio Dormes de tarde o sono sossegado, E procuras o meio De ficar para sempre estuporado; Pois quem dorme sem termo, e sem medida, Mais os passos encurta breve vida: Enquanto pela horta Recordas o rigor da prenda amada, Ou sentado na porta

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Esperas os progressos da caada Do Padre Gabriel, que amigo velho, L traz de quando em quando o seu coelho: Enquanto aos teus amigos Correspondes fiel cada correio, E os cuidados antigos Abrigas cauteloso inda no seio; Pois inda algum cuidado a alma te inflama, Sem querer apagar de amor a chama: Enquanto enfim esperas Do rendeiro a visita desejada, E sempre te exasperas Com a sua tardana costumada: Enquanto passas casos to diversos; Eu sem tantos cuidados fao versos.

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ADVERTNCIAS MORAIS ROMANCE Ao mesmo Abade. Ouve Moreira amigo estes das Musas Severos, mas prudentes documentos; E se a verdade um pouco for austera, Saiba ado-la o grato de teu gnio. Ora senta-te porta nessa pedra, Em que ests governando o mundo em seco No s feito estadista dos negcios, Mas tambm matemtico dos tempos. Inclina para a parte o teu barrete; Pe uma perna em cima do joelho; E assim nesta figura apoltronada Toma tabaco, escarra, ouve-me atento. O teu gnio com Damas sempre h sido Incansvel matria dos meus versos; Pois s que resistem solicitas, E as que se querem bem tratas severo. Nunca tiveste amor, que te durasse (Se falarmos verdade) um ms inteiro; Porque deste na asneira de querer Emendar de Cupido os desacertos. Nisto segues a fora do destino; Porque (aqui para ns) tu no tens jeito De amares cinco dias, sem fazeres Mil histrias por conta dos teus zelos. Quebras um copo, comes o presente, Abafas a toalha, e o tabuleiro; E levantas pobre o testemunho, No mais que por fugir ao desempenho. Chegado tens por consequncia certa ltima baliza, ltimo termo Da Qumica, que observa a mocidade, Do sistema, que seguem os modernos. Deixa pois essa vida, e s te lembre Da Parca dura o golpe assaz violento; E o pescoo vizinho a suport-lo Na memria se incline a receb-lo. Como cisne, que junto do Meandro Canta da vida os ltimos progressos, E na relva encolhido a morte espera Pela voz do seu cntico funesto: Assim devemos ns com rosto triste Esperar do destino o golpe incerto; E no gastar de amor nos desvarios

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Discretas expresses, doces requebros. Pes-te a fazer cartinhas engraadas, Glosas, Romances, Dcimas, Sonetos; E te esqueces do fnebre aparato Daquele dia trgico, e tremendo. Ora deixa, Moreira, os vos enganos Desse cego rapaz, deixa os teus versos; E depois de quebrar a, amor as setas, Rompe sobre um penhasco a lira a Febo. Ou quando no, do trfego das gentes Te retira na cova de ti mesmo; Porque o Sbio no meio do concurso Recolher pode canto o pensamento. E se alguma saudade inda sentires Desses do mundo vos divertimentos, To vos, que s nos deixam as memrias, Para serem da vida atroz flagelo: Ao menos dos prazeres inocentes Douto conserva algum pequeno resto; Porque nem sempre pode a vida humana Sustentar da tristeza o duro peso. Joga o teu chincalho, dorme de tarde, Senta-te porta, fala ao teu caseiro, Semeia o teu nabal, recolhe os gronhos, Passeia no jardim, deita-te cedo. Toma o teu ch, porm seja com leite, Usa de chocolate pelo Inverno, Come a tua perdiz, quando a achares, Escreve aos teus amigos no correio. Pelas dez te levanta em dia turvo, Manda logo recado ao teu rendeiro: Aprende do Marqus de S. Filipe As frases, as ideias, os conceitos. Isto deves fazer, que o mais, Amigo, quimera, fico, engano, enredo: Mas perdoa se acaso te magoam Estes simples, fieis, puros conselhos. FIM.

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****************************************************************** Transcrio de Jos Barbosa Machado baseada na edio de Bernardo Antnio Farropo, intitulada Poesias de Paulino Cabral de Vasconcelos Abade de Jazente (Porto, Oficina de Antnio lvares Ribeiro, 1786-1787), e confrontada com a edio de 1837 (Porto, Rolland Editor) e a de 1909 (edio de Jlio de Castilho, Lisboa, Parceria Antnio Maria Pereira). Projecto Vercial, 2003 http://www.ipn.pt/literatura ******************************************************************

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