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CRIANÇAS SELVAGENS: AS MENINAS LOBO

Carlos Pires

“Nas regiões da Índia, onde os casos de crianças-lobos foram relativamente numerosos, descobriram-se, em 1920, duas
meninas - Amala e Kamala de Midnapore – que viviam numa família de lobos. A primeira, a mais nova, morreu um ano
depois; a segunda, Kamala, que deveria ter uns oito anos, viveu até fins de 1929.

Segundo a descrição do Reverendo Singh que as recolheu, elas nada tinham de humano, e o seu comportamento era
exactamente semelhante ao dos pequenos lobos, seus irmãos: incapazes de permanecerem de pé caminhavam a quatro patas,
apoiadas nos cotovelos e nos joelhos para percorrem pequenos trajectos e apoiadas nas mãos e nos pés, quando o trajecto era
longo e rápido; apenas se alimentavam de carne fresca ou putrefacta comiam e bebiam como os animais, acocoradas, com a
cabeça lançada para a frente, sorvendo os líquidos com a língua. Passavam o dia escondidas e prostradas, à sombra; de noite,
pelo contrário, eram activas e davam saltos, tentavam fugir e uivavam, realmente, como os lobos. Nunca choravam ou riam,
característica que se encontra em todas as crianças-selvagens.

Reintegrada na sociedade dos homens onde viveu oito anos, Kamala humaniza-se lentamente, mas, note-se, sem nunca
recuperar o atraso: passaram seis anos antes de conseguir caminhar na posição erecta. Na altura da morte apenas dispõe de
umas cinquenta palavras. Contudo, se esses progressos são lentos, são também contínuos e realizam-se simultaneamente em
todos os sectores da sua personalidade. Surgem atitudes afectivas: Kamala chora, pela primeira vez, quando morre a irmã,
torna-se, pouco a pouco, capaz de sentir afeições pelas pessoas que cuidam dela, especialmente pela senhora Singh; sorri
quando lhe falam. A sua inteligência desperta também; consegue comunicar com as outras pessoas, por meio de gestos,
gradualmente reforçados com algumas palavras simples de um vocabulário rudimentar; consegue compreender e executar
ordens simples, etc.

No entanto, a dar crédito a outro observador, o bispo Pakenham Walsh, que viu Kamala seis anos depois de ser encontrada, a
criança não tomava qualquer iniciativa de contacto, nunca utilizava espontaneamente as palavras que aprendera e,
especialmente, mergulhava numa atitude de total indiferença mal as pessoas deixavam de a solicitar.”

REYMOND-RIVER, O Desenvolvimento Social da Criança e do Adolescente, Ed. Aster.

Não consegui confirmar completamente a informação, mas aparentemente as fotografias retratam Kamala. Fotografias
encontradas aqui.

Disponível em: http://cadernosociologia.blogspot.com/2009/09/criancas-selvagens-as-meninas-lobo.html Acessado em


22/02/2011.
A TRISTE HISTÓRIA DAS CRIANÇAS LOBO OU NEM SÓ DE GENES E CÉREBRO VIVE O HOMEM

Lucas Rischbieter

O desenho animado "Mogli, o Menino Lobo", de Walt Disney, é bastante conhecido. Inspirado no "Livro da Jângal", de Rudyard Kipling, o
desenho conta a história de uma criança que, ainda bebê, perde-se de sua família e é adotada e criada por lobos, no coração da selva da
Índia. Na história original, Mogli cresce interagindo e conversando com os bichos e, quase adolescente, reintegra-se facilmente ao seu
grupo humano antes de ser expulso como "bruxo", devido ao seu poder sobre os bichos.
Kipling (1865-1936), que nasceu na Índia, inspirou-se em histórias contadas nesse país sobre crianças que se perdiam na selva e acabavam
vivendo com os bichos. E, de fato, existem registros claros, especialmente na Índia e na Europa, de alguns casos de crianças "selvagens".
Elas se perderam muito jovens de suas famílias, que viviam à beira de florestas, e cresceram sem contato com os humanos, antes de serem
encontradas e trazidas para a "civilização".
Infelizmente, em todos os casos conhecidos, as coisas se passaram de forma muito diferente do que na criação genial e romântica de
Kipling:
Uma das histórias mais bem documentadas envolvendo "crianças lobo" é a de duas meninas completamente selvagens, resgatadas por uma
expedição que massacrou os lobos com quem elas viviam, perto de um vilarejo no norte da Índia, em 1920.
O comportamento das duas crianças causou espanto, pois "quando foram encontradas, as meninas não sabiam andar sobre os pés, mas se
moviam rapidamente de quatro. É claro que não falavam, e seus rostos eram inexpressivos. Queriam apenas comer carne crua, tinham
hábitos noturnos, repeliam o contato dos seres humanos e preferiam a companhia de cachorros e lobos".
Amala, a menina mais nova, parecia ter um ano e meio e morreu pouco menos de um ano depois. Kamala, a outra irmã, tinha mais de oito
anos quando foi encontrada e sobreviveu por nove anos, morrendo em novembro de 1929.
A evolução de Kamala, registrada pelo casal de missionários que cuidava dela em um orfanato, foi significativa, porém limitada. Ela
conseguiu aprender a caminhar só com as pernas e mudar seus hábitos alimentares, aprendeu muitas palavras e sabia usá-las, embora nunca
tenha chegado a falar com fluência. Apesar dos progressos de Kamala, "a família do missionário anglicano que cuidou dela, bem como
outras pessoas que a conheceram intimamente, nunca sentiu que fosse verdadeiramente humana".
O processo de educação ao qual Kamala foi submetida pode ser extremamente criticado, do ponto de vista do que sabemos hoje, pois houve
uma grande ênfase na imposição de hábitos "civilizados" e, apesar do carinho dos que cuidaram dela, nenhuma preocupação com os
aspectos traumáticos que toda a experiência certamente tinha para ela.
Assim, ficamos sem saber até que ponto Kamala poderia ter evoluído, se tivesse passado por um processo mais terapêutico e menos
didático de reintegração ao mundo. O mesmo pode ser dito em relação a outras crianças selvagens que ficaram famosas, como Victor de
Aveyron, encontrado em 1798 na França e que o francês Jean Itard tentou educar de forma muito interessante, porém extremamente
diretiva.
Como não temos mais notícias de crianças selvagens desde a década de 20, não podemos fazer novas experiências de reeducação, e temos
que nos consolar com os poucos dados que a história nos oferece. Resta-nos a constatação de que, depois de anos de esforços pedagógicos
intensos, algumas delas chegaram a humanizar-se um pouco, mas, desprovidas por anos da riqueza das interações que levam as crianças ao
domínio da linguagem e dos símbolos, jamais chegaram sequer perto de poder ser comparadas com crianças normalmente socializadas.
Para Lucien Malson, que escreveu em 1963 um belíssimo livro sobre as crianças selvagens, a conclusão é clara: "Será preciso admitir que
os homens não são homens fora do ambiente social, visto que aquilo que consideramos ser próprio deles, como o riso ou o sorriso, jamais
ilumina o rosto das crianças isoladas".
A triste e comovente história das crianças selvagens, que sobreviveram quase milagrosamente entre os bichos e penaram para alcançar
apenas as mais básicas marcas de uma existência "civilizada", deixa uma lição que não pode ser ignorada: sem o denso tecido de interações
sociais do qual participa toda criança, simplesmente não há humanidade.
Um bebê sem outros humanos é algo tão impensável como peixes sem água, como uma planta sem terra nem sol. A psicologia, ciência dos
indivíduos, só pode existir se reconhecer o paradoxo em sua base: sem os outros, não há indivíduo. Teorias que esquecem ou ignoram essa
idéia básica deveriam ser relegadas às selvas do esquecimento...
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1. Humberto Maturana e Francisco Varela. "A Árvore do Conhecimento". Editora Psy, Campinas, 1995, página 159.
2. Em "A Árvore do Conhecimento", página 161.
3. Uma ótima discussão sobre Victor de Aveyron pode ser encontrada em: Luci B. Leite e Izabel Galvão (org.). "A Educação de um
Selvagem". Editora Cortez, São Paulo, 2000.
4. Traduzido de: Lucien Malson. "Les Enfants Sauvages". Editora 10/18, Paris, 1964, página 55.
Disponível em: http://www.educacional.com.br/articulistas/luca_bd.asp?codtexto=220 Acessado em 22/02/2011.

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