Ouvir música clássica na paisagem que nos leva a pintar para a acolher

O fim de semana do Festival de Música na Paisagem foi um "milagre" de abertura de corações a um mundo de emoções sem receios.

Já ouviste e sentiste em todo o corpo uma peça de Mozart ou de Igor Stravinsky numa paisagem de montanha? É algo que fica connosco!

Comigo foi na aldeia de Montesinho no meio do Parque Natural com o mesmo nome. Bem no Norte de Portugal, na chamada zona raiana, perto de Espanha. Assisti aí ao primeiro Festival de Música na Paisagem em finais de junho de 2019. Conforme escreveram os músicos: “É um convite à escuta, em harmonia com as características do lugar.”

Os músicos que iam tocar vieram, na semana anterior ao Festival, ensaiar numa das casas da aldeia e entre pequenos ensaios, passeios e refeições criou-se um delicioso ambiente de acolhimento, descoberta e mistério envolvendo os poucos habitantes de modo a todos se sentirem construtores do Festival que iria trazer muitos amigos e convidados…

O fim de semana do Festival de Música na Paisagem foi um “milagre” de abertura de corações a um mundo de emoções sem receios. O «Música na Paisagem» procura ser um evento anual que tem lugar na aldeia de Montesinho. Reúne um grupo internacional de músicos de câmara para, durante uma semana, prepararem em conjunto um programa que apresentam ao público, interagindo assim com a dinâmica local. Acontecem no âmbito da programação do Teatro Municipal de Bragança.

A experiência sentida por mim ao ouvir a música na natureza em Montesinho em 2019, tinha-me levado a desejar pintar enquanto ouvia a música. Não sei como explicar, mas foi um impulso que logo me conquistou.

A experiência sentida por mim ao ouvir a música na natureza em Montesinho em 2019, tinha-me levado a desejar pintar enquanto ouvia a música. Não sei como explicar, mas foi um impulso que logo me conquistou. E porque não proporcionar a outros esta possibilidade ligada ao próximo Festival de Música na Paisagem? Lancei a ideia a quem estava mais envolvido na iniciativa e acabei por ser desafiada a dar corpo e alma ao projeto. Quanta emoção e responsabilidade…

Fiquei de animar um atelier artístico que envolvesse os habitantes e visitantes. O programa para o Festival a realizar em 2020 passaria por recitação de poesia e de um conto durante os concertos. O conto encenado seria “A História do Soldado” de Igor Stravinsky, composto em 1918, a partir do texto do escritor suíço Charles-Ferdinand Ramuz, baseado em contos populares russos recolhidos por Alexander Afanássiev.

A peça busca exprimir aquilo que o ser humano é capaz de fazer em nome dos seus desejos, vaidades e sede de poder, através da história de um soldado que vende sua alma ao diabo, simbolizada pelo único bem de valor que o protagonista traz consigo – seu violino. O conto é encantador e provoca o nosso imaginário de hoje a refletir sobre a sede de dinheiro e poder descontrolada e nunca posta em causa.

Ganhou então em mim e no grupo que organizava o Festival a ideia de pintar, com a colaboração de quem gostasse, grandes cenários para embelezar o espaço onde seria apresentado o conto. A Casa do Povo na praça da aldeia dispôs-se a ceder o espaço do alpendre para essa atividade e foi com muita emoção e alguma incerteza sobre a adesão das pessoas que me lancei ao trabalho de preparação.

Preparei tintas para cenário em papel com 7 metros de comprido, onde se iria pintar um curso de água que no espaço cénico representaria o rio de que o soldado se abeirava. E outro tipo de tintas para tecido onde, numa faixa também com 7 metros, pintaríamos uma trepadeira ornamentada por muitas flores e pássaros. Combinámos colocar a faixa depois de pintada na lateral do espaço cénico com o objetivo de lhe emprestar mais cor e beleza.

Foi uma surpresa imensa! A experiência de colaboração e criação artística de tantos encheu-me a alma e senti que gostaram mesmo de participar dando um sentido de maior pertença ao que seria apresentado.

Entretanto, a pandemia veio condicionar toda a programação, obrigando a adiá-la de junho para setembro. Mas organização conseguiu superar todas as dificuldades e o segundo Festival Música na Paisagem fez fervilhar a aldeia de Montesinho de movimento, pessoas e animação durante os primeiros dias de setembro, mostrando que, com os devidos cuidados e muitas adaptações, é possível concretizar projetos que tinham sido imaginados antes de estarmos sujeitos ao impacto da Covid-19.

Com os músicos e a atriz narradora da “A História do Soldado” escolheram-se algumas das frases mais interpeladoras do conto que transcrevemos para cartazes que alguns dias antes dos concertos colámos em algumas paredes da aldeia. Embora discretos, os cartazes criaram novidade e geraram conversas.

E nos dois dias que antecederam os espetáculos pintei com a colaboração de habitantes e visitantes as duas grandes faixas. Uma com motivos da natureza e a outra sugerindo um fio de água cheio de diferentes peixes. Como combinado, colocámos as duas faixas no cenário do espaço onde seria apresentado o Conto.

Foi uma surpresa imensa! A experiência de colaboração e criação artística de tantos encheu-me a alma e senti que gostaram mesmo de participar dando um sentido de maior pertença ao que seria apresentado. Valeu mesmo a pena!

Propor atividades abertas à colaboração artística da comunidade é criar memórias que projetam no futuro um enorme sentimento de gratidão!

 

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.