Victor de Aveyron, o garoto selvagem

lucas araujo
4 min readAug 15, 2015
Victor foi representado por Jean-Pierre Cargol no filme “O garoto selvagem”, de 1970

Muito do que somos é construído nos primeiros anos de vida. É essa a minha conclusão quando descubro histórias como a de Victor de Aveyron, um “menino-lobo” que foi achado na França, em 1800, ainda criança. Apesar de ter sido adotado por um educador que procurou lhe dar modos humanos, Victor nunca se adaptou completamente a civilização. Ele morreu com cerca de 40 anos e conseguia dizer poucas palavras.

A suspeita é que o menino sofreu uma tentativa de assassinato quando tinha 3 ou 4 anos de idade. Ele tinha uma cicatriz de um corte de cerca de 4,5cm no pescoço, provavelmente feito na tentativa de degolá-lo. Mas sobreviveu na floresta até ser achado.

O educador que o adotou, Jean Marc Gaspard Itard, montou um diário sobre o menino e seu aprendizado. Tal registro inspirou o filme dirigido por François Truffaut em 1970, “O garoto selvagem”. Mas a história de Victor ainda é cercada por mistérios e a metodologia de Itard para torná-lo civilizado é questionável. Quem explica melhor essa história é o sociólogo Anthony Giddens no livro “Sociologia”:

No dia 9 de Janeiro de 1800, uma estranha criatura surgiu dos bosques próximos ao povoado de Saint-Serin, no sul da França. Apesar de andar em posição ereta, se assemelhava mais a um animal do que a um ser humano, porém, imediatamente foi identificado como um menino de uns onze ou doze anos. Unicamente emitia estridentes e incompreensíveis grunhidos e parecia carecer do sentido de higiene pessoal, fazia suas necessidades onde e quando lhe apetecia. Foi conduzido para a polícia local e, mais tarde, para um orfanato próximo.

A principio escapava constantemente e era difícil voltar a capturá-lo. Negava-se a vestir-se e rasgava as roupas quando lhes punham. Nunca houve pais que o reclamassem. O menino foi submetido a um minucioso exame médico no qual não se encontrou nenhuma anormalidade importante. Quando foi colocado diante de um espelho parece que viu sua imagem sem reconhecer-se a si mesmo. Em uma ocasião tratou de alcançar através do espelho uma batata que havia visto refletida nele (de fato, a batata era segurada por alguém atrás de sua cabeça). Depois de várias tentativas, e sem voltar a cabeça, colheu a batata por cima de seu ombro

Posteriormente, o menino foi enviado para Paris, onde se ocorreram tentativas sistemáticas de transformar-lhe “de besta em humano”. O esforço resultou só parcialmente satisfatório. Aprendeu a utilizar o quarto de banho, aceitou usar roupa e aprendeu a vestir-se sozinho. No entanto, não lhe interessavam nem as brincadeiras nem os jogos e nunca foi capaz de articular mais que um reduzido número de palavras. Até onde sabemos pelas detalhadas descrições de seu comportamento e suas reações, a questão não era a de que fosse retardado mental. Parece que ou não desejava dominar totalmente a fala humana ou que era incapaz de fazê-lo. Com o tempo fez escassos progressos e morreu em 1828, quando tinha por volta de quarenta anos.

Além desse depoimento, quando vemos o filme dirigido por Truffaut, nota-se que o professor Itard, em suas incansáveis tentativas de fazer de Victor comportar-se como humano, o colocava num ritmo estudantil insuportável, resultando em ataques de fúria do menino gerados pelo estresse. O filme não é lá muito movimentado nem um dos mais amados do diretor, mas vale pela história.

Além disso, o filme mostra umas curiosidades interessantes. Como a questão do nome Victor. Ele foi escolhido porque o professor e sua governanta notavam que o menino respondia e olhava quando ouvia o som “o”. Ou quando se pronunciava a letra “o” ou em alguma palavra na qual o “o” faça parte de sílaba tônica. O professor tentou vários nomes, mas o menino só olhou quando ele o chamou de Victor.

Como vimos, ele aprendeu a dizer poucas palavras. E a primeira foi “leite” (“lait”, em francês, que se pronuncia “lê”), isso porque ele passeava todos os dias junto ao professor até a casa de um colega. Toda vez que ia lá ele podia tomar o seu leite. Numa tigela. Era uma “recompensa”. Durante o seu treinamento, quando Victor fazia algo certo ganhava um copo d’água, como um cachorro treinado, que ganha um pouco de comida quando faz uma gracinha.

Victor de Aveyron, uma história extraordinária, mas não única. Existem alguns registros de “meninos-lobos” ao longo da história. O ponto comum: nenhum conseguiu se adaptar completamente a civilização. Isso mostra o quanto os primeiros anos são importantes para a construção da personalidade. De certa forma, tudo é uma construção. Ao longo do tempo, os “meninos-lobos” aprenderam a fazer suas necessidades no lugar certo, falaram algumas palavras e usaram roupas, mas a construção inicial permanece.

Lembre-se da importância dos primeiros anos. Mostre desde cedo as coisas do mundo para os seus filhos e para as crianças que conhecer. E desde cedo dê a elas uma visão tolerante, de preocupação ambiental, de valorização das pessoas. Ensine o bem desde cedo. Os frutos disso virão ao longo da vida.

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