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Falta de carne suína facilitou surgimento da Covid-19 na China, afirmam cientistas

Em meio à escassez de 2019, um número maior de animais silvestres foi comercializado como alimento no país, elevando risco de contato humano com novos patógenos
Criação de porcos na província de Sichuan, na China, em imagem de abril de 2009 Foto: STRINGER SHANGHAI / Reuters
Criação de porcos na província de Sichuan, na China, em imagem de abril de 2009 Foto: STRINGER SHANGHAI / Reuters

SÃO PAULO — As novas peças do quebra-cabeça na investigação sobre a origem da Covid-19 enfraquecem a teoria de que o vírus vazou de um laboratório e fortalecem aquela de que ele surgiu em morcegos, pegando carona em outro mamífero até os humanos. O estopim para o evento, afirma um novo artigo científico, foi falta de carne suína na China em 2019, que aumentou o comércio de animais silvestres como alimento.

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Essa hipótese, delineada por um grupo de cientistas chineses e britânicos, está descrita em um artigo publicado nesta semana pela revista Science. Liderado pelo virologista Spyros Lytras, da Universidade de Glasgow, o grupo afirma que a quantidade de eventos de contato humano com novos patógenos foi muito maior em mercados chineses do que em laboratórios de patógenos no país.

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"A emergência do Sars-CoV-2 tem propriedades consistentes com uma passagem natural de patógeno de animais para humanos", escreveram os pesquisadores.

Segundo o artigo, também assinado por cientistas das universidade chinesas de Suzhou e Guangzhou, o evento que desencadeou uma situação maior de risco de exposição a novos patógenos foi uma outra epidemia, a da febre suína africana, que varreu as fazendas na China entre 2018 e 2019 e culminou com o sacrifício de um rebanho de cerca de 150 milhões de porcos.

Com a falta do produto, dois mamíferos canídeos que já vinham sendo consumidos como alimento ocasionalmente em áreas rurais do país, passaram a ser mais procurados: o cão-guaxinim e o texugo. Além destes, outro, que já tinha implicado na epidemia da Sars havia uma década, a civeta, também passou a ser mais presente no mercado. Investigações mostraram que animais domesticados criados para o mercado de peles, como visons e raposas, também viraram comida no período.

O caminho da vírus pela China até virar uma epidemia

Segundo os pesquisadores, esse animais são vendidos em geral perto dos lugares onde são capturados, e faria mais sentido que a Covid-19 tivesse sido detectado em Yunnan, no sul do país, porque é lá que circula entre morcegos a variedade zoonótica do coronavírus que mais se assemelha ao Sars-CoV-2.

Um animal silvestre capturado no sul dificilmente teria sido vendido nos distantes mercados de Wuhan, mas um outro fator, também ligado à falta de carne de porco, tornou isso mais provável: a escassez de proteína suína fez com que o governo isentasse de pedágio os caminhões frigoríficos.

Barateando o frete, autoridades chinesas esperavam derrubar um pouco o preço do produto, que ficou muito caro pela falta de oferta. Reduzindo o custo de transporte, porém, surgiu um mercado temporário de carne de caça congelada, ampliando sua distribuição. É possível que o vírus tenha feito sua viagem de 1.500 km num animal preservado em freezer.

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É relativamente comum que moradores de áreas rurais se contaminem com vírus de animais silvestres, afirmam os cientistas, mas é raro que um desses eventos se transforme numa epidemia, porque numa população mais esparsa os surtos acabam sendo limitados. Na população densa da área metropolitana de Wuhan, porém, o vírus teria ganhado o combustível necessário para se perpetuar numa epidemia.

Investigação deve seguir nessa trilha de pistas, dizem cientistas

A maneira com que as peças se encaixam nessa hipótese, afirmam os pesquisadores, torna improvável que o Sars-CoV-2 tenha se originado de um vazamento do Instituto de Virologia de Wuhan (WIV). Cientistas ali trabalhavam com alguns coronavírus em 2019, mas análises genéticas mostraram que esses patógenos são distantes do Sars-CoV-2.

Se a instituição recebeu alguma amostra de vírus do sul não catalogada, a hipótese do vazamento de laboratório é "teoricamente possível", mas "extremamente improvável", escrevem Lytras e seus coautores. Com inúmeras oportunidades para circular em fazendas e mercados na China, dificilmente o vírus que desencadeou a pandemia teria surgido em uma das poucas oportunidades no ambiente controlado de um laboratório.

Para tentar fechar o quebra-cabeças, o cientista propõe que o trabalho continue nessa trilha de pistas. "A coleta de amostras, sorologia e entrevista com indivíduos, como caçadores, comerciantes e fazendeiros conectados às fontes de animais silvestres vendidos nos mercados de Wuhan em outubro e novembro de 2019 seria um próximo passo interessante em investigações futuras", afirmam os cientistas.