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Jovem congressista quebra tabu sobre aumento de impostos para os ricos nos EUA

Descrita pela imprensa como 'queridinha da esquerda e pesadelo da direita', democrata nova-iorquina Alexandria Ocasio-Cortez popularizou discussão, antes evitada por membros de seu partido
Congressista democrata Alexandria Ocasio-Cortez, em frente ao Capitólio, em Washington Foto: SAUL LOEB / AFP
Congressista democrata Alexandria Ocasio-Cortez, em frente ao Capitólio, em Washington Foto: SAUL LOEB / AFP

NOVA YORK - Alexandria Ocasio-Cortez pode nem sempre concordar com Joseph Overton, o falecido defensor do livre mercado. Mas ela faz um poderoso uso do conceito que o deixou famoso: a janela de Overton. O termo se refere ao escopo de ideias que, em determinado momento, são consideradas dignas de serem discutidas publicamente. Graças em boa parte a ela, a janela de Overton no que diz respeito ao índices de impostos se moveu de maneira significativa para a esquerda.

Ocasio-Cortez, a popular nova-iorquina do Bronx, de 29 anos, é a mulher mais jovem a ser eleita para a Câmara dos Representantes. Numa aparição no programa 60 Minutes com Anderson Cooper no dia 6 de janeiro, ela falou sobre o Green New Deal, um plano para fazer com que os Estados Unidos atinjam 100% de energia renovável até 2035. Cooper a questionou, afirmando que o programa implicaria num aumento de impostos. “Existe esse elemento, é verdade, no qual pessoas terão que começar pagar uma porção justa”, ela respondeu. Perguntada sobre especificidades do programa, ela respondeu: “Quando chegarmos aos que estão no topo, podemos ver impostos altos, de 60 ou 70 por cento”

Setenta por cento! Para deixar claro, o imposto mais alto cobrado de acordo com a lei aprovada em dezembro de 2017 é de 37%. E agora, de repente, um número tão extremo que ninguém numa sociedade cordial teve coragem de proferir se torna uma questão de debate. Os fãs de Ocasio-Cortez — ela tem 2,4 milhões de seguidores somente no Twitter — adoraram. Alguns analistas apresentaram pesquisas econômicas defendendo impostos na casa dos 70%. Outros afirmaram que Ocasio-Cortez estava na verdade nivelando por baixo: os impostos aos mais ricos chegavam a 90% ou mais nos anos 1960. Defensores dos baixos impostos a soterram com críticas, o que se voltou contra eles, pois inflamou seus apoiadores.

O que Ocasio-Cortez entende é que fazer com que uma ideia seja discutida, mesmo que de maneira pouco favorável, é um passo necessário, ainda que seja insuficiente, para que ela seja adotada.

— A coisa mais fácil é dizer “Não, não podemos mudar nada” — diz Eric Foner, historiador premiado com o Pulitzer e recém aposentado pela Universidade de Columbia. — A maioria das grandes ideias na História americana começou com grupos radicais que ouviram “Não, vocês nunca conseguirão isso”.

Alexandria Ocasio-Cortez foi eleita pelo Partido Democrata a uma vaga no Congresso pelo distrito do Bronx, em Nova York Foto: DON EMMERT / AFP
Alexandria Ocasio-Cortez foi eleita pelo Partido Democrata a uma vaga no Congresso pelo distrito do Bronx, em Nova York Foto: DON EMMERT / AFP

Foner vê paralelos entre as estratégias dos democratas esquerdistas atuais e os republicanos radicais que combateram a escravidão antes da Guerra Civil, que consistia em “divulgar uma agenda com a consciência de que nem tudo poderia ser conquistado de uma vez só”

— Com isso, mudava-se o discurso político ao defender essas ideias, e depois trabalhava-se com aqueles dispostos a conquistar pontos dentro dessa agenda — diz o historiador.

Na verdade, Ocasio-Cortez foi bem menos radical do que poderia ter sido no 60 Minutes. Ela deixou passar a oportunidade de mudar a Overton Window em outro de seus temas de estimação: déficits orçamentários. Ela segue uma doutrina chamada Teoria Monetária Moderna, cada vez mais popular entre os políticos jovens de esquerda e também entre os mais veteranos. Sua ideia central contraintuitiva é a de que os déficits não importam se você pedir emprestado em sua própria moeda, desde que eles não causem inflação. A menos que a economia corra o risco de superaquecer, dizem os analistas da TMM, pagar por um novo programa do governo não exige cortes de outro nem aumento de impostos.

Ocasio-Cortez poderia ter dito: “Não, Anderson, não precisaríamos aumentar os impostos para pagar pelo Green New Deal. Mas quero aumentar os impostos de qualquer maneira, porque acredito em redistribuir o dinheiro dos ricos para os pobres”. Isso realmente teria agitado a internet. Randall Wray, um teórico da MMT e acadêmico sênior no Levy Economics Institute da Bard College, escreveu em um e-mail que estava “um pouco desapontado” por Ocasio-Cortez ter ligado os aumentos de impostos ao Green New Deal. Stephanie Kelton, outra teórica do MMT e assessora econômica de Bernie Sanders durante sua disputa pela indicação democrata na corrida presidencial de 2016, diz acreditar que reduzir a desigualdade é a verdadeira razão pela qual Ocasio-Cortez favorece taxas mais altas para os ricos: “É um reconhecimento de que os níveis de renda e a desigualdade de riqueza se comparam às da década de 1920”.

TAXAÇÃO DOS MAIS RICOS
Impostos cobrados sobre maiores rendas foram iguais ou superiores a 70% durante quase metade dos últimos cem anos nos EUA
100%
70%
50%
0
1913
1940
1960
1980
2000
2018
Fonte: Tax Policy Center
TAXAÇÃO DOS MAIS RICOS
Impostos cobrados sobre maiores rendas foram iguais ou superiores a 70% durante quase metade dos últimos cem anos nos EUA
100%
70%
50%
0
1913
1940
1960
1980
2000
2018
Fonte: Tax Policy Center

Quaisquer que sejam as particularidades, Ocasio-Cortez quer aumentar — e bastante — as taxas de impostos. Desde a Revolução Reagan dos anos 1980, os democratas têm sido quase tão alérgicos quanto os republicanos a aumentar os impostos. Hillary Clinton não defendeu o aumento das taxas sobre os maiores rendimentos durante sua campanha presidencial de 2016. Até mesmo Sanders, aquele socialista selvagem de Vermont, ousou propor uma taxa máxima de apenas 52% quando tentou concorrer à Presidência. Mas com Ocasio-Cortez, os conservadores anti-impostos imediatamente perceberam que um tabu estava sendo quebrado, que uma rachadura se abriu na represa que eles passaram décadas construindo e reforçando. No Twitter, Grover Norquist, o presidente do grupo Americans for Tax Reform (“Americanos pela Reforma Fiscal”), que em 1986 inventou o famoso Compromisso de Proteção ao Contribuinte — que compromete os signatários a votar contra qualquer aumento líquido de impostos — comparou sua proposta à escravidão. “Escravidão é quando seu dono leva 100% da sua produção. A congressista democrata Ocasio-Cortez quer 70% (segundo a CNN). Qual é a palavra para 70% de expropriação?”, ele tuitou.

Norquist agora diz que continua confiante de que as taxas de impostos não subirão para 70%, porque “é uma ideia péssima”. Na verdade, ele diz que acha que os democratas estão apenas se prejudicando ao dar ouvidos a essas propostas. Ocasio-Cortez, diz ele, é uma “flautista de Hamelin” levando seu partido à morte. Não está claro, porém, que impostos mais altos sobre os ricos sejam uma questão perdida para os democratas. Uma pesquisa da Hill-HarrisX, realizada entre 12 e 13 de janeiro, mostrou que 59% dos eleitores registrados apoiaram a ideia de aumentar a taxa máxima para 70%. Isso incluiu 45% dos eleitores republicanos. Graças talvez à campanha presidencial de Sanders, que como Ocasio-Cortez se considera um socialista democrático, até mesmo “socialismo” não seja mais um palavrão: o instituto Gallup relatou em agosto que 57% dos democratas e aqueles com inclinação a votar nos democratas tinham uma visão positiva do socialismo, enquanto apenas 47% tinham uma visão positiva do capitalismo.

O que uma taxa de impostos de 70% faria à economia e às empresas dos EUA? O revés em relação aos altos impostos é que eles desencorajam o trabalho e promovem o desperdício da proteção fiscal. Mesmo muitos economistas que acham que os ricos pagam muito pouco dizem que a melhor solução é eliminar as brechas — sujeitando mais renda à tributação do que tributando uma base estreita a altas taxas.

Norquist argumenta que uma alta taxa de 70 por cento provocaria um êxodo de indivíduos de alto rendimento dos EUA, afirmando que a última vez que as taxas eram tão altas no país, elas também eram altas em outras nações, reduzindo o incentivo para se mudar. A Tax Foundation (“Fundação Tributária”), um centro de estudos de centro-direita, disse em 14 de janeiro que uma alíquota de 70% sobre rendimentos (excluindo ganhos de capital, como dividendos) superiores a US$ 10 milhões “não geraria muita receita”. “Pouca receita”, neste caso, significa um total estimado de US$ 189 bilhões ao longo de 10 anos — ou US$ 292 bilhões antes de considerar a probabilidade de que as pessoas nessa faixa de imposto trabalhassem menos e investissem menos em seus negócios não corporativos.

Por outro lado, economistas que apoiam Ocasio-Cortez foram rápidos em apontar que a Dinamarca tem um dos padrões de vida mais altos do mundo, apesar de uma taxa de 56,5% sobre os rendimentos anuais acima de US$ 80 mil, um limiar muito menor do que seus US$ 10 milhões. Um artigo de 2011 de Peter Diamond, vencedor do Prêmio Nobel do MIT, e de Emmanuel Saez, da Universidade de Berkeley, defendeu taxas de impostos totais (federais e estaduais) para os americanos mais ricos, de 73% sobre renda ordinária (novamente deixando de lado ganhos de capital). Eles se basearam na ideia de que um dólar extra de renda para alguém nessa faixa tem muito pouco valor em comparação a um dólar recebido por uma pessoa de baixa renda. Críticos de suas pesquisas disseram que Diamond e Saez tratam os ricos como ovelhas a serem despojadas e subestimam o quanto altas taxas de impostos desencorajariam as pessoas a obter diplomas avançados ou iniciar negócios. Diamond rejeita as críticas, cita a necessidade de mais investimentos públicos e diz: “Estou perfeitamente confortável com a taxa de 70% de Ocasio-Cortez”.

Uma coisa que a maioria das pessoas não sabe sobre Ocasio-Cortez é que ela era nerd científica no ensino médio em Westchester County, Nova York. Em 2007, de quase 1.500 estudantes de 46 países competindo na Feira Internacional de Ciências e Engenharia da Intel, ela foi uma dos quatro segundo colocados na categoria de microbiologia (sua pesquisa foi sobre o efeito de antioxidantes em lombrigas.) É um detalhe biográfico que acrescenta uma outra dimensão à história de uma jovem nascida no Bronx, descendente de porto-riquenhos, que se tornou a primeira em sua família a ir à faculdade. Enquanto ela estava na escola, seu pai morreu, levando a família à beira da ruína financeira. “Quando você vem de um passado de classe trabalhadora, muitas vezes parece que você está a apenas um desastre de distância de tudo caindo aos pedaços", disse ela em um vídeo no Instagram há cerca de um ano.

Como o ex-presidente Barack Obama, Ocasio-Cortez se tornou uma organizadora comunitária depois de se formar na faculdade, em 2011, e se sustentou como garçonete e bartender. Ela trabalhou para a campanha de Sanders em 2016. Depois disso, as coisas aconteceram rapidamente. Ela concorreu à indicação democrata em seu distrito congressional no Bronx-Queens e derrotou Joe Crowley. Presidente do Caucus democrata da Câmara, Crowley foi visto como um candidato para suceder Nancy Pelosi, da Califórnia, como presidente da Câmara. Ele gastou 18 vezes mais que Ocasio-Cortez e teve apoio do governador de Nova York, Andrew Cuomo; do prefeito da cidade de Nova York, Bill de Blasio, e de ambos os senadores do estado. Mas ela venceu com larga vantagem.

Ninguém altera a janela de Overton sobre qualquer assunto sem fortes habilidades de comunicação, e Ocasio-Cortez é uma ninja nesse departamento. Ela emociona os partidários indo atrás dos críticos nas redes sociais, que ela usa da mesma forma que uma geração mais velha usava comícios de rua. “Acredito firmemente que a organização nunca para”, disse ela a Cooper na entrevista do 60 Minutes. Um de seus primeiros atos depois de sua eleição foi visitar o escritório de Pelosi — não para buscar sua bênção, mas para apoiar os ativistas da mudança climática que estavam ocupando o escritório da futura presidente da Câmara. Agora Ocasio-Cortez trabalha a duas portas de distância de Pelosi, mas não para ela. Ela levantou a ideia de criar uma bancada progressista entre os democratas, modelando-a na poderosa Freedom Caucus da direita. Entre seus aliados estão os novos membros Ilhan Omar, de Minnesota, a primeira somali-americana eleita para o Congresso; Deb Haaland, do Novo México, uma das primeiras nativas americanas eleitas para o Congresso; e Rashida Tlaib de Michigan, a primeira palestina-americana do Congresso. “Isso é um movimento; isso não sou eu”, disse Ocasio-Cortez em um vídeo no Instagram no ano passado.

Tanto Ocasio-Cortez quanto Trump são virtuosos de mídia social. Eles se destacam em reverter os ataques à sua credibilidade. Tentativas de questioná-los sobre os fatos chegam aos seus defensores como mal-intencionados e injustos — a reação instintiva do establishment tentando suprimir as vozes externas. Foi assim que Ocasio-Cortez disse erroneamente nas redes sociais no ano passado que o Pentágono havia perdido US$ 21 trilhões em fundos, um valor que era cerca de 30 vezes o orçamento anual do Departamento de Defesa. Ao contrário de Trump, ela corrige seus erros. “O mais difícil é que você seja perfeito o tempo todo, sobre todos os temas e todas as coisas”, disse ela no Instagram no ano passado.

Implícito nessa afirmação: Ocasio-Cortez tem muito mais janelas de Overton para mudar e nenhuma intenção de desacelerar para os críticos. Além do Green New Deal e do aumento dos impostos sobre os ricos, ela favorece o Medicare para todos, a garantia federal de um emprego, a abolição do Departamento de Imigração e Alfândega dos EUA e faculdades ou escolas profissionalizantes de ensino gratuito. Ela também quer reduzir gastos militares, proibir armas semiautomáticas e trazer de volta a Glass-Steagall, a lei da era da Depressão que separava bancos comerciais e de investimento.

Isso tudo pode soar como um risco para as empresas americanas, que vêm desfrutando de desregulamentação sob o governo de Trump. Saikat Chakrabarti, chefe de gabinete da Ocasio-Cortez, diz: “Este é o tipo de plano em que você não pode apresentar primeiro aos executivos de Wall Street para tentar convencê-los a adotá-la. Você tem que mostrar a eles”.

A questão é se ela poderá mostrar a eles ou a qualquer pessoa. Uma semana depois que Ocasio-Cortez chegou a Washington, colegas democratas reclamaram que ela era perturbadora e não uma jogadora de equipe. O maior entre os seus pecados: ameaçar apoiar os principais opositores dos membros do Congresso que não são liberais o suficiente para ela. “Tenho certeza que a Srta. Cortez tem boas intenções, mas há uma regra quase inviolável: não ataque seu próprio povo”, disse o deputado Emanuel Cleaver II, do Missouri, ao site Politico. "Nós simplesmente não precisamos de franco-atiradores na nossa bancada democrata”.

Para aprovar qualquer uma de suas iniciativas, Ocasio-Cortez e seus aliados terão que derrotar a comprovada estratégia republicana de usar déficits orçamentários como justificativa para se opor a novos gastos. É aí que entra a Teoria Monetária Moderna. Ela diz que um governo pode gastar dinheiro sem aumentar os impostos — na verdade, sem sequer pedir empréstimos aos fundos públicos por meio de títulos. O governo simplesmente cria dinheiro novo para pagar suas contas. A única restrição em gastos sob a TTM é que o governo poderia usar muito da capacidade produtiva do país, o que resultaria em inflação alta. Enquanto a inflação permanecer baixa, como está agora, os déficits não são um problema. A resposta usual de outros economistas é que mesmo uma nação que deve em sua própria moeda pode sofrer uma crise se os investidores perderem a fé em sua capacidade de pagar a dívida sem recorrer à impressão.

Um recinto no qual os déficits ainda importam, e a TTM certamente não, é o gabinete do Presidente da Câmara Pelosi. Em 3 de janeiro, sob sua direção, a Câmara aprovou uma série de regras, incluindo o sistema de repartição, que exige uma legislação que aumentaria o déficit a ser compensado por aumentos de impostos ou cortes de gastos. O PAYGO, como é conhecido, é contrário ao espírito da TTM e atinge os democratas liberais, tornando impossível a maioria de suas iniciativas de gastos. Ocasio-Cortez foi um dos três únicos democratas a se opor à disposição, junto com Ro Khanna, da Califórnia, e Tulsi Gabbard, do Havaí.

Ocasio-Cortez teve outro contratempo quando foi preterida para uma cobiçada vaga no Comitê de Formas e Meios, que supervisiona os impostos, o Seguro Social e o Medicare. Mas ela se recuperou muito bem ao conseguir um assento junto a outros progressistas no poderoso Comitê de Serviços Financeiros da Câmara, liderado por Maxine Waters, da Califórnia. Carolyn Maloney, uma colega democrata de Nova York, diz: “Eu já fui uma jovem que outras pessoas tentaram controlar. Eu certamente não acredito em fazer isso com mais ninguém. A congressista Ocasio-Cortez está trazendo nova energia e uma nova abordagem, e todos nós devemos abraçar isso”.

O desrespeito de Ocasio-Cortez pelas sutilezas políticas é, ao mesmo tempo, sua qualidade mais forte como uma ativista e, potencialmente, seu calcanhar de Aquiles como congressista. Ela não mostra nenhum sinal de recuo. De um jeito ou de outro, diz Kelton, a conselheira econômica, “a conversa está mudando. O espaço está se abrindo”.