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Salazar morreu pensando que ainda governava Portugal, afirma biógrafo

Operação para enganar o ex-ditador envolvia reuniões falsas do Conselho de Ministros e a impressão de um jornal que excluía menções a Marcelo Caetano, novo mandatário
O ditador português António Salazar, que faleceu sem saber que não governava mais o país Foto: Reprodução
O ditador português António Salazar, que faleceu sem saber que não governava mais o país Foto: Reprodução

Ditador mais longevo da Europa, o português António Salazar deixou o governo em 1968, após 36 anos, devido a um acidente vascular cerebral que chegou a deixá-lo em coma. Em 27 de setembro, foi substituído na presidência do Conselho de Ministros por Marcelo Caetano, que comandou o país até a Revolução dos Cravos, que derrubou o Estado Novo fascista em 25 de abril de 1974. Salazar, porém, faleceu em 27 de julho de 1970 com a certeza de que ainda governava Portugal .

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Os médicos temiam que Salazar não resistisse à notícia de que fora apeado do poder. O ex-ditador continuou se reunindo regularmente com o Conselho de Ministros. Ele era o único que não sabia que a reuniões eram puro teatro. A operação é narrada no livro "A incrível história de António Salazar, o ditador que morreu duas vezes", do jornalista italiano Marco Ferrari. "Para dar mais verossimilhança à farsa, às vezes os interlocutores falavam mal de Marcelo Caetano", escreve Ferrari no livro, publicado no ano passado em Portugal .

A ficção de que Salazar ainda estava à frente do país era confirmada pelo jornal Diário de Notícias, de Lisboa. Toda noite, o diretor do jornal, Augusto de Castro, reescrevia as notícias, excluindo citações à Caetano e acrescentando referências às reuniões de mentira entre Salazar e os ministros. Apenas um exemplar desse jornal adulterado era impresso, destinado a Salazar.

O ex-ditador chegou a dar indícios públicos de que ignorava ter sido substituído no governo. Em entrevista ao jornal francês L'Aurore, perguntado sobre Caetano, respondeu: "É inteligente e tem autoridade, mas se equivoca ao não querer trabalhar conosco no governo. Porque, como vocês sabem, ele não é parte do governo. Segue dando aulas de direito na universidade e às vezes me escreve dizendo o que pensa de minhas iniciativas.”

— Entre 1932 e 1968, Salazar governou o maior império colonial de seu tempo. Foi da época de Hitler à dos Beatles. Manteve o poder com o apoio da Igreja, dos grandes proprietários rurais, suprimindo os sindicatos, a liberdade de imprensa e qualquer outro tipo de oposição política ou dissidência — disse Ferrari em entrevista ao jornal El Pais, nesta quinta-feira (3).

Em seu livro, Ferrari se apoia em depoimentos de mais de 20 mil dissidentes políticos presos pela PIDE, a temida polícia da ditadura. O aparato repressor de Salazar era formado por 20 mil agentes e 200 mil informantes. Em quatro décadas de Estado Novo, foram mortas 22.800 pessoas. Ferrari também roteirizou um documentário que conta histórias de algumas das vítimas do fascismo português.