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Sob Bento 16, Vaticano tentou interferir politicamente na América Latina

Joseph Ratzinger em sua primeira aparição ao público já como papa Bento 16, na praça São Pedro, no Vaticano, em abril de 2005 - Max Rossi/Reuters
Joseph Ratzinger em sua primeira aparição ao público já como papa Bento 16, na praça São Pedro, no Vaticano, em abril de 2005 Imagem: Max Rossi/Reuters

Colunista do UOL

31/12/2022 12h22

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O regime cubano, a "ameaça" de Hugo Chávez, a situação no Haiti, a crise em Honduras ou mesmo os acordos comerciais do Brasil. O Vaticano sob o pontificado de Bento 16, longe de ter uma postura de mero espectador, adotou iniciativas políticas nos bastidores para influenciar a situação na América Latina, defender seus interesses e questionar a esquerda.

Isso é o que revelam mais de 130 telegramas publicados pelo grupo Wikileaks, apontando para as entranhas das relações políticas do Vaticano desde 2005 na região latino-americana, que representa mais de 40% de seus fieis no mundo.

Tentando ter um papel político central no continente, a Santa Sé chegou a tratar de algumas das crises no hemisfério com o próprio presidente Barack Obama. Documentos revelam que o cardeal Tarcísio Bertone, secretário de Estado do Vaticano, chegou a fazer propostas concretas para a Casa Branca sobre a situação em Honduras quando se reuniu, em 10 de julho de 2009, na Casa Branca.

Num telegrama de 15 de julho de 2009, a embaixada americana junto à Santa Sé relata um encontro de diplomatas americanos com Monsignor Francisco Forjan em que o Vaticano rejeita chamar a retirada de Manuel Zelaya da presidência como um "golpe de estado".

A Igreja pedia ao governo americano para que insistisse com seus parceiros para que explicasse ao público as "ações anti-constitucionais de Zelaya que precipitaram a crise". "As ações de outras instituições governamentais para remove-lo do poder não poderiam ser entendidas sem esse contexto", indicou a Igreja.

Para a Santa Sé, Zelaya havia adotado "ações ilegais que minavam a democracia" e governos como o da Venezuela estavam tentando "sequestrar" o assunto.

O líder da Igreja nesse assunto era o cardeal Oscar Rodriguez Maradiaga, arcebispo de Tegucigalpa e que chegou a ser considerado como um dos potenciais candidatos à Papa. Além de apoiar o novo governo, a Igreja pedia que sanções não fossem impostas e que governos não retirassem seus embaixadores de Honduras, algo que o Brasil fez.

Cuba

Um dos temas mais constantes nas reuniões entre diplomatas americanos e cardeais do Vaticano era a situação de Cuba. Um telegrama de 19 de agosto de 2009 revelava que uma viagem de cardeais e bispos americanos à Cuba naquele ano não era apenas uma visita episcopal. A meta era também a de pressionar o governo de Havana em relação aos prisioneiros políticos, um pedido de Washington.

O telegrama escrito pela representação americana em Cuba conta como o cardeal de Boston, Sean O'Malley, se reuniu com o presidente da Assembléia Nacional de Cuba, Ricardo Alarcon.

O documento pede para os nomes dos religiosos americanos fossem mantidos em sigilo para sua segurança. Mas revelava que os cardeais e bispos relataram ponto a ponto ao governo americano como havia sido a conversa com Alarcon. "Apreciamos o fato de a delegação (de religiosos) ter levantado os problemas de prisioneiros políticos", indicou o telegrama. "É bom quando o governo de Cuba ouve tais mensagens de terceiras partes".

Num telegrama do dia 21 de janeiro de 2010, a embaixada americana diante da Santa Sé revela um encontro entre diplomatas dos EUA com o representante do Vaticano em Cuba, Monsignor Accattino.

O representante da Igreja insistia para o fato de que o governo americano devia adotar uma postura de diálogo com Cuba e que, ainda que os temas de direitos humanos devam ser sempre tratado, Washington não pode bloquear uma aproximação apenas com base nisso. "Afinal de contas, americanos e europeus tem relações com outros países como a China, apesar de sua situaçao de direitos humanos", indicou.

Mas Accatiino admitiu que estava "preocupado com a situação econômica desastrosa na Ilha e tensões políticas que poderiam levar a um banho de sangue".

No dia 15 de janeiro de 2010, o Vaticano chegou a fazer uma sugestão concreta ao governo americano para enfraquecer o regime cubano: baratear os custos de ligações entre Cuba e os EUA. A proposta foi apresentada pelo monsignor Nicolas Thevenin, conselheiro político de Bertone. "Isso poderia ter um impacto positivo em promover uma mudança política", indicou.

Chávez

Se Cuba era amplamente tratado pelo Vaticano, era a Venezuela de Hugo Chávez que estava apresentada pela Santa Sé como a grande preocupação na região. Para Accattino, um endurecimento da posição dos EUA diante de Cuba poderia acabar ajudando Chávez, "o novo sucesso de Fidel Castro na América Latina. "A diferença é que ele tem os recursos do petróleo", alertou.

O Vaticano, em diversas conversas com diplomatas americanos, deixou claro que Caracas vinha pressionando a Igreja e transformado a Santa Sé em um de seus alvos de crítica.

Três anos antes, em 2007, um encontro entre o embaixador americano em Caracas, William Brownfield e o cardeal Jorge Cardenal Urosa Savino na capital venezuelana daria demonstrações claras das intenções do Vaticano.

O encontro ocorreu na casa do núncio apostólico, justamente para evitar que Chávez acusasse a Igreja de uma aproximação com Washington.

No encontro realizado no dia 1 de fevereiro de 2010, o embaixador e o cardeal discutiram a possibilidade de que o Papa Bento 16 usasse sua viagem que faria naquele ano ao Brasil para pressionar Chávez. Uma viagem oficial à Caracas estaria descartada pelo Vaticano. "Chávez não o convidaria", disse o cardeal.

Os dois passaram a debater a possibilidade de que o avião que traria o Papa de Roma a Sao Paulo fizesse uma parada de 45 minutos em Caracas, com a justificativa de reabastecer. Nesse período, o papa receberia bispos e faria uma declaração.

"O cardeal concordou que qualquer parada teria uma importância simbólica", indicou o telegrama, apontando para a reação positiva de Savino. A parada não seria realizada em maio daquele ano.

"O cardeal indica que Chavez está dando passos grandes em direção ao autoritarismo e prevê anos difíceis para a Igreja", afirmou o documento. Na reunião, Savino pediu a ajuda do governo americano para manter seus programas.

"Tendência Perigosa"

Desde o início do pontificado de Bento 16, em 2005, a tendência política na América Latina vinha chamando a atenção da Igreja.

Num telegrama de 3 de abril de 2006, a diplomacia americana na Santa Sé revelava a intervenção
da Igreja, pedindo uma ação dos EUA sob o governo de George W. Bush na América Latina.

No dia 28 de março daquele ano, o cardeal mexicano Juan Sandoval se encontraria com o embaixador americano junto ao Vaticano. "Sandoval repetiu o que alguns de nossos interlocutores no Vaticano estão apontando quanto às preocupações sobre líderes de esquerda na América Latina - Castro, Chavez, Evo Morales, Nertor Kirchner, Bachelet, e talvez Lopez Obrador", concluiu.