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Cardíacas dos nervos
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Repórter especial e cronista do O POVO. Vencedor de mais de 40 prêmios de jornalismo, entre eles Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP), Embratel, Vladimir Herzog e seis prêmios Esso. É também autor de teatro e de literatura infantil, com mais de dez publicações.

Cardíacas dos nervos

Há algumas crônicas, escrevi sobre os periquitos do Benfica que estavam revoando e vocalizando no meio da noite na Cidade que extinguiu o breu
Tipo Crônica
0312demitri (Foto: carlus campos)
Foto: carlus campos 0312demitri

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Tenho visto meu corpo se derreter. E estou notando um comportamento estranho de um magote de formigas por onde me deito para atravessar a noite.

As formigas devem ter notado que meu corpo, com o passar do tempo, está perdendo, se esvaindo. Elas me comem ao meu dormir. Ínfimas picadas incômodas, como se algo tivesse se alimentando do desfazimento.

Não estou devaneando, noto que as formigas do apartamento estão perturbadas emocionalmente. Ansiosas, beliscam-me. Comem a pele dos envelhecidos na Cidade solar.

 

As formigas devem estar perturbadas nos pós-pandemia já que a covid falsamente nos isenta das mazelas antigas

 

Ruminam também a derma de um bando de meninas, meninos e jovens dormentes, sentados em frente ao Youtube, lacerados pelos games de gozar com a morte e a ilusão da ressurreição no metaverso. Tantas garotas e garotos depressivos!

As formigas devem estar perturbadas nos pós-pandemia já que a covid falsamente nos isenta das mazelas antigas, incharam depois de 2020. As sequelas coletivas estouram em quem sobreviveu.

As formigas parecem compulsivas, obsessivas, comendo muito mais ainda do que o costumeiro. Antes, esperavam que terminássemos o pão, o almoço, o sobejo da janta... mas agora, avançam feito cães de açougue.

 

Estão irreconhecíveis. Pode ser o tal calor, a matança de crianças e grávidas na Palestina, o passado mal resolvido

 

Sobem sem medo à mesa dos gigantes enfurnados de terapias. Disputam as colheres na boca e nos dentes, mordem os tomates, furtam os ovos, arrastam os pedaços apimentados de salmão, chupam as mangas moscatéis babadas.

Estão irreconhecíveis. Pode ser o tal calor, o El Nino no Pacífico, a matança de crianças e grávidas na Palestina, o passado mal resolvido, os textos ruins, o fim dos repórteres de rua, a falta de florestas.

São formigas nascidas em apartamentos e esse bando de cachorros e gatos do concreto, meio nutellas. Incapazes de serem menos frescuras humanas do abandono. Elas estão pirando com tanta humanização do formigueiro.

 

Estão tão cardíacas dos nervos que o canibalismo virou urgência emocional. Comem ruínas de meu corpo

 

Talvez por desespero e revolta, as formigas acabaram com uma festa encomendada por um casal de homens a comemorar o aniversário de um lulu-da-pomerânia. "Filho não-humano" e um buffet soberbo em Fortaleza.

Estão tão cardíacas dos nervos que o canibalismo virou urgência emocional. Comem ruínas de meu corpo que se despedaçam de um dia para o outro por causa do tempo lépido. Ou por causa do esfregado em outro corpo.

Há algumas crônicas, escrevi sobre os periquitos do Benfica que estavam revoando e vocalizando no meio da noite na Cidade que extinguiu o breu. Têm medo da insegurança, da paranoia de aterrarem mais rios e não desligam. Vivem na tentativa do zolpidem sem efeito.

 

As formigas estão enlouquecidas com o que enfiamos de porcarias, política, calmantes, Deus e a insônia a-romântica

 

As formigas do apartamento onde pernoito não estão bem. Elas devoram tudo, a bula e o meu corpo impermanente.

Zolpidem é um fármaco hipnótico, do grupo das imidazopiridinas, não-benzodiazepínico, de rápida ação e de curta meia-vida.

As formigas estão enlouquecidas com o que enfiamos de porcarias, política, calmantes, Deus e a insônia a-romântica.

Comem minha corpa, percorrem meu sono, entram nos suores da cama incomoda, amanhecem cansadas. São formigas enternecidas com as compras de Natal e as férias indesejáveis das crianças que não deveríamos ter parido.

 

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