🇵🇹 O músico que somos é o reflexo do que a música nos faz, de como chega a nós 🇬🇧 The musician we are is a reflection of what music does to us, how it reaches us

Uma leitura de Bichos, de Miguel Torga para a obra Bichos, de Lino Guerreiro

Bichos, que o autor apresentou como uma colectânea de contos, teve a primeira edição em 1940. Em Coimbra, edição de autor, como tudo quanto Miguel Torga (1907-1995) publicou em vida, desde a obra de estreia (Ansiedade, 1928) à 19ª edição de Bichos, em 1995.

Na sua longuíssima carreira editorial, Bichos teve algumas variações, de vocabulário, mas também de conteúdo, com realce, aqui, para os dois novos “contos” – “Miura” e “O senhor Nicolau” – introduzidos na 2ª edição (1942) e o prefácio “Ao leitor”, que aparece na 5ª edição (1954).

Bichos constitui uma “leitura”, do autor, do seu próprio país, do seu tempo, e tem subjacente o desejo de que venha a mudar, tornando-se um país diferente. Quanto às personagens, bicho-animal e bicho-humano partilham características, nenhum é exclusivamente o que parece ser: o bicho-animal tem dimensão humana, interioridade de pessoa, é fulano ou sicrano que o leitor conhece; no bicho-humano, o autor põe em relevo a dimensão animal, que se conjuga com o que o faz pessoa.

Nos textos que seguem, elaborados a partir da 15ª edição da obra (Coimbra, 1985), dá-se o retrato dos bichos de Torga, adoptando-se na forma um tom e uma linguagem próximos da expressão do autor.

ass, Sebastião Baldaque

Lisboa, 31 de março de 2017

[INTRÓITO]
Bichos, é o que somos todos, bichos.
Burro, sapo, touro, galo, o cão, o pardal, o corvo, Ramiro, a cigarra, o melro, Madalena, Nicolau, todos nós, mulheres e homens, tu, eu. Com nomes diferentes, mas todos bichos.
Com o poder da palavra e o fulgor do poeta, Miguel Torga convocou alguns deles, deu-lhes identidade e circunstância e inscreveu-os na literatura.
Com nome próprio, aqui se trazem num outro registo – em música:
Tenório, o Galo,
Mago, o Gato,
Miura, o Touro,
Ladino, o Pardal,
Bambo, o Sapo,
Morgado, o Burro,
Nero, o Cão,
Vicente, o Corvo.
Fazendo uso da expressão de Torga, ao ouvinte, damos-lhe as boas-vindas ao portaló desta pequena Arca de Noé.

[TENÓRIO, o Galo]
Uma força da natureza, o Tenório. Com vossa licença, don Juan Tenório.
Quando cantou pela primeira vez foi como se o mundo tivesse sido criado outra vez.
Já era diferente quando a cabecita assomou fora da casca do ovo – crista tesa, de galo com marca de semental.
No galinheiro e lá fora, macho ou fêmea, todos sabiam que era ele quem mandava. Sendo necessário, ele saberia defender, à força, a honra e o que era seu, pondo cada um no lugar e a concorrência fora de jogo. Como fez ao galo da vizinha, com uma tosa monumental.
Frangas, pitas, galinhas, novas e velhas, asadas ou desasadas, era tudo dele, levava-as a eito, as de casa e, podendo, também as da redondeza.
E o que ele cantava, o peito inchado, vaidoso: ao amanhecer, como competia, o toque de alvorada; à meia-noite, por exibição; pelo dia adiante, feito don Juan, lançando a rede ao elemento feminino da vizinhança – fraquezas de quem é forte, bonito e com tamanho poder de sedução.
Fazia já três anos que reinava sobre todo aquele gentio. Sem queixas, que se saiba, do galinheiro ou da patroa.
Porém…
De uma das últimas ninhadas, filho dele como os outros, tinha saído um galarote que prometia, dava nas vistas.
Que se acautelasse – havia galo novo a caminho!

Em Outubro, Tenório teve o fim dos galos velhos naquela casa. O mesmo do don Juan que o precedera, quando puseram outro no seu lugar.

[MAGO, o Gato]
Quatro patas, pelo bem tratado, músculos, tendões e nervos capazes de se retesar para compor um salto – lá para fora, para a liberdade, como fazem os felinos.
Poder, podia, mas… e a vontade?
Mago, o gato, habituara-se àquilo, já não estranhava: o conforto da casa, os cobertores e almofadas, comidinha a horas, tardes de modorra e noites bem dormidas, a preguiça de todos os dias, os mimos e afagos da dona.
Ah!, sim, até cansava. Mas que havia de fazer? Culpa dela, da dona, que com bom trato o amolecera àquele ponto.
De vez em quando vinham-lhe umas ganas: ir-se embora, deixar tudo, aquilo não era vida. Mas, faltavam-lhe as forças, e ia ficando.
Os outros gatos lançavam-lhe provocações, algumas desfazendo no seu amor-próprio, insultos à dignidade de qualquer bicho. Aguentava; calhava achar que eram invejas, deixá-los falar!
Até um dia em que foi demais. Ofender não vale, meu menino! Que remédio, foi à luta.
Mas correu mal: o outro ganhou, e ele enterrou naquele momento o que ainda lhe restava de dignidade. Vencido, ferido e humilhado por um semelhante, tornava-se à dona: culpa dela ele já não ser o felino de outros tempos.
Outro, no lugar dele, desaparecia, não voltava àquela casa, renegando para sempre o conforto e a degradação que comportava viver ali; ele, não, voltava de livre vontade.
Remorsos? Cobardia? Ora, ora!

[MIURA, o Touro]
Têm-no preso entre quatro paredes, mal pode mexer-se, o corpo e a indignação submetidos pela laje fria do cárcere.
Lá fora, emoção, palmas, música e gritos de gente, espectáculo! Na praça, bem no meio, o calvário de paixão e morte desenhado para o sacrifício dos toiros. Uma festa!
Miura será o terceiro a sair. Bravo, espera-se.
No curro, tolhido de movimentos, só a memória mitiga o desespero do ser livre que foi – a planície imensa, a linha do horizonte, muito fina, tão longe, o céu infinito, o sabor da água fria que se bebe, a nostalgia do tempo ilimitado da liberdade perdida.
Até que chega a sua vez, ditada pelo toque alegre do cornetim, a entrada do terceiro toiro festejada por aquela mancha compacta de gente, para lá do tapume redondo de tábuas, entre barreiras, nas galerias e bancadas de sol e sombra.
Já esquecido do paraíso, Miura tremia de cólera e angústia, desorientado. Novo toque para a lide começar – era de luta que se tratava. Já lhe acontecera, na campina ribatejana, bicho contra bicho, luta dura, mas leal; naquela arena não, era luta de mentira, o homem escondia-se, ludibriava o toiro, o ímpeto deste desfazendo-se contra um pano vermelho, investindo com garra, mas marrando em falso, uma, dez vezes, quantas mais?
Por um instante, quando homem e toiro lutaram com verdade, arremeteu sobre o trapaceiro, varando-o com uma cornada. Depois, o jogo viciado recomeçou, massacrando o corpo suado e ferido, o toiro perdido num desespero de morte. Voltasse a jogar-se limpo, outro homem cairia, como o primeiro, e até mais.
Mas… subitamente, Miura percebe, começa a perceber: por mais toureiros que desbaste, o triunfo nunca será seu, o vencedor será sempre o homem.
A ele, toiro de morte, resta, pois, o sacrifício, deixar-se sacrificar.
Faça-se, concluiu! E numa arremetida, num acto de vontade, o toiro avança, resoluto, para o estoque que lhe vai tirar a vida.

[LADINO, o Pardal]
Nove meses de Inverno e três de Inferno sofriam naquela terra as criaturas. Ladino, nem tanto.
Os outros pássaros, levava-os a aspereza do tempo, a doença, as artes do bicho-homem. Ele, não.
Astuto em novo, finório quando calhava, hipócrita muitas vezes, manhoso se era preciso, Ladino apresentava-se gordo e aconchegado, em terra de frio e miséria.
Um milagre? Nem milagre, nem acaso; sapiência, sim; saber viver, sim senhor!
O pardal tinha o instinto afinado para o que era preciso, a recomendar-lhe, a todo o momento, as regras da sobrevivência:
«Sê prudente, Ladino, tem cautela, foge dos perigos, deixa os riscos para os distraídos e para quem queira corrê-los.
Aprendeste alguma coisa com a experiência, não foi? Aproveita essa sabedoria, pardal, para te defenderes.
Os outros têm problemas? Deixa-os, que os resolvam. Queixam-se de ser pobres? Pois, que tenham paciência.»
Relho de velho, Ladino, o pardal, presumia-se de ser eterno: morrer, só acabando-se de todo o milho em Trás-os-Montes.
«No entretanto», dizia, «tratar da vidinha – sossego e papinho cheio é o principal; e basta!»

[BAMBO, o Sapo]
O nome pode dizer muito de quem o carrega.
Ou muito pouco, como o de Bambo, o atarracado de pernas traseiras em dobradiça, de andar lento, a menear-se, como se dançasse.
Um andarilho, o senhor sapo, quem diria?
Estava-lhe na natureza, como hibernar de Outubro a Março, ou esconder- se durante o dia; ou, noite fora, sem pressas, banhar-se de luar, alheado do mundo, como os poetas.
Foi de vê-lo assim que tio Arruda se fez outro homem – aprendendo que há vida para além de comer e beber, cavar e resignar-se com a escuridão e a miséria, que um rústico pode ser gente.
Falou nisso aos outros da aldeia; cegos, como tio Arruda sempre fora, replicaram-lhe com bruxarias e magia negra, de artes do demónio oficiadas pelos sapos.
Não queriam ver? Deixá-los.
Quanto a eles, homem e sapo, entendiam-se em silêncio, tornando desnecessárias as palavras. Amorfo e apático na figura, Bambo era afinal um mestre do sentido da vida, que ensinou ao homem o entendimento e a comunhão com a natureza. Tio Arruda aprendeu mais:
a deslumbrar-se com as coisas simples, com a fecundação da terra, o germinar da semente, a beleza do orvalho na erva, ou o canto do rouxinol;
a deixar-se estar e olhar, perscrutando o inexplicado, adivinhando o segredo do que é complexo, conjugando o infinitamente pequeno com a imensidão de um céu estrelado;
o fascínio pelo mistério das causas primeiras e os fins últimos das coisas.
Um milagre!

[MORGADO, o Burro]
Tinha gostado do demónio do homem mesmo antes de o ter como dono.
Depois, foram anos de vida dura que lhe deu, que para isso se quer um burro; dele (Morgado orgulhava-se disso) também teve o almocreve quanto precisou – até mais.
Mas, trazia-o bem comido e bebido, como precisava qualquer bicho.
Com um homem assim por perto, mesmo quando há perigo e a aflição é grande, vai-se seguro, à confiança. Como ia o burro, em noite medonha, por caminhos ruins, azougado com o peso da carga – apesar da ameaça dos lobos que os acossavam.
Mas, enganava-se em relação ao homem: no desespero da vida em perigo, se a besta marchava oprimida pelo medo, o almocreve ia na mesma – moeu o burro de pancada, para que os safasse dali.
Pior: Morgado identifica no homem sinais de fraqueza, que está disposto a tudo – e que vai entregar às feras quem sempre foi seu amigo, para salvar a própria vida.
Não ter o almocreve vergonha!
E lá vai ele, serra acima, a fugir, levando consigo a albarda – que, assim, não perdia tudo. O animal, abandonado aos lobos, que o levasse o diabo!

[NERO, o Cão]
Em fim de vida, os velhos têm destas coisas.
Desfiam-se episódios, conhecimentos que se fizeram, as maluquices dos primeiros anos, nevões e o frio que se teve, as festas no lombo, as humilhações, as patas na terra e nas fragas, monte abaixo, a côdea de pão, o caldo e um pedaço de toucinho em dias assinalados, o filho que se foi, a primeira grande hora da vida ao abocanhar uma presa, o dia em que lhe deram o nome. Até um certo peso na consciência, de coisas que se fizeram – pronto, fraquezas de perdigueiro!
O que aquele cão tinha sido. E agora, ali, um autêntico farrapo. Outro tomaria o seu lugar.
Deixava saudades? É possível. A patroa nova, vendo-o assim, não lhe deitara aquele olhar tão triste? Consolava-o, enfim… Em momentos como aquele, sabia bem!
De resto, nada.
À volta, como se não se desenrolasse ali aquela tragédia, a vida corria como sempre. E ele a morrer, sem a companhia de filho, de bicho ou gente.
Sozinho, finando-se: Nero, cão de caça distinto, oito anos de idade.

[VICENTE, o Corvo, ou a Arca]
As comportas do céu tinham sido abertas há quarenta dias.
Durante quarenta dias e quarenta noites choveu torrencialmente, sem interrupção. Para castigar a iniquidade dos homens, Deus determinara aniquilar toda a vida na Terra. Mais tarde, chamaram ao episódio Dilúvio Universal.
Todavia, o Criador mandou que se salvasse um casal de cada espécie, para repovoar a Terra quando a divina cólera estivesse apaziguada.
Durante quarenta dias e quarenta noites, uma enorme caixa em madeira errou, à mercê dos elementos, sem rumo, por esse imenso oceano em que se transformara a Terra.
Dentro da Arca, Noé, o Patriarca de seiscentos anos, e toda a criação tremem de medo, não vá o Senhor arrepender-se de os ter poupado.
Mas, naquela massa anónima de desesperados, há um que não se submete: Vicente, o corvo negro. Inconformado com o procedimento de Deus, decide fugir daquela prisão. Naquele ser, nem a ameaça do castigo divino era suficiente para calar o anseio de ser livre.
Porém, o voo para a liberdade tinha os seus riscos: O-Que-Tudo-Manda não tolera a desobediência, muito menos a rebelião. Vicente sabia isso e, ao escolher, aceitara as consequências do seu acto.
E eis que o Todo-Poderoso põe em acção todos os recursos para castigo daquele que o desafiara. Num ápice, lá fora, com a Terra ainda coberta de água, um duelo opõe Vicente à fúria justiceira de Deus. Para quantos estão na Arca de Noé, o desfecho será a aniquilação do autor daquela ousadia.

Mas, em breve, aquele combate de morte toma outro rumo: nada podia vencer aquela vontade de ser livre. O Criador percebeu, e por isso ia ceder: pois, ao dar vida à sua criatura, Deus tinha-a reconhecido autónoma, livre!


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