O crime enquanto fenômeno reificado brandao p 117 136

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REVISTA

Jures



Conselho Editorial Prof. Ângelo Magalhães Silva Prof. Djamiro Ferreira Acipreste Sobrinho Prof. Emanuel Dhayan Bezerra de Almeida Prof. Evandro Minchoni Prof. Luiz Gonzaga Medeiros Bezerra Profa. Sheyla Paiva Pedrosa Brandão Prof. Thadeu de Sousa Brandão capa

Obra de Maria Aparecida D´Andrea de Medeiros

Produção

editorial e

Il Giornale texto & bureau Pisces Comunicação www.pisces.com.br

Arte


SUMÁRIO  APRESENTAÇÃO  ARTIGOS A FEDERALIZAÇÃO DOS CRIMES DE GRAVES VIOLAÇÕES AOS DIREITOS HUMANOS: A RAZOÁVEL DURAÇÃO DO PROCESSO COMO GARANTIA NO COMBATE À IMPUNIDADE OU INSTRUMENTO RETÓRICO?

8

Daniel Lyra A INFLUÊNCIA DO RACIONALISMO NO SISTEMA JURÍDICO

20

Emanuel Dhayan Bezerra de Almeida A PROVA E A COISA JULGADA

45

Ana Beatriz Rebello Presgrave A SOCIEDADE DOS POVOS COMO NORTEADORA DO DIREITO INTERNACIONAL SEGUNDO A DOUTRINA POLÍTICA DE JOHN RAWLS

65

Marco Jordão

CELEBRAÇÃO E INTEGRAÇÃO DOS TRATADOS INTERNACIONAIS NO DIREITO BRASILEIRO

77

Diogo Pignataro de Oliveira ESPAÇO URBANO E GOVERNABILIDADE – NOTAS SOBRE A CIDADE, METRÓPOLE E GOVERNABILIDADE

95

Ângelo Magalhães Silva O CONTEÚDO JURÍDICO DO PRINCÍPIO DO Acesso à justiça: POSSÍVEIS POSTURAS DEFINIDORAS E PROPOSTA

Antonio Gleydson Gadelha de Moura

106


O CRIME ENQUANTO FENÔMENO REIFICADO

117

Thadeu de Sousa Brandão POLÍCIA COMUNITÁRIA: INSTRUMENTO DEMOCRÁTICO 137 DE PROMOÇÃO DA SEGURANÇA PÚBLICA

Evandro Minchoni TRANSFORMAÇÕES SOCIAIS E SEUS REFLEXOS NA 149 RESPONSABILIDADE CIVIL: a prova do erro médico

Lidianne Araújo Aleixo

 RESENHAS A FILOSOFIA POLÍTICA E CRÍTICA DA SOCIEDADE BURGUESA : O LEGADO DE KARL MARX

Ângelo Magalhães Silva

160

NEOLIBERALISMO

Djamiro Acipreste

162

PODER POLÍTICO E CLASSE SOCIAIS

Ângelo Magalhães Silva

170


 Apresentação Apresentar a Revista JURES do Curso de Direito da Faculdade Câmara Cascudo/Estácio de Sá é uma honra e uma dupla satisfação. Primeiro, pelo elevado significado do lançamento pelo corpo docente do nosso Curso de Direito de sua revista acadêmica para ser, juntamente com outras de nosso Estado, veículo de divulgação dos resultados dos estudos e das pesquisas realizadas pelo alunado de graduação e de pós-graduação; segundo, por se tratar de periódico especializado na matéria internacional, fato que se destacará no conjunto das Instituições de Ensino Superior (IES) brasileiras e que, para nós, assume a dimensão agradável e inesperada de recompensa pelos tantos desafios enfrentados em sala de aula, na perspectiva do convencimento da relevância da matéria e das disciplinas do Direito no desenvolvimento e estruturação do pensamento científico e filosófico jurídico e das práticas indispensáveis à formação dos juristas hodiernos. A ideia da Revista JURES projeta os efeitos inovadores de um paradigma de formação do jurista com base no instrumental teórico-epistemológico da complexidade e da interdependência, permitindo compreender e trabalhar as instâncias científicas do direito, aplicando as ideias e os pensamentos aos doutrinários para pensar o direito na práxis, em que a pluralidade e a dinâmica dialética das conexões do direito e da política reúnem elementos essenciais às possíveis respostas e soluções dos desafios hodiernos da sociedade. O objetivo inicialmente é sedimentar tais intentos de pesquisa e análise acadêmica no seio do corpo docente deste Curso de Direito, no momento em que crescemos com o próximo reconhecimento oficial pelo Ministério da Educação e pela Ordem dos Advogados do Brasil, para somente após levar tal iniciativa para uma amplitude mais democrática e cristalizada, possibilitando ao alunado a submissão e a concretização do pensar jurídico desde os bancos universitários. Levar o estudante de graduação a pensar o direito sem negligenciar as conexões teóricas e práticas da política e localizar na política os valores indispensáveis da Ética e da Ordem consubstanciados na normativa jurídica, instância definidora e instituidora da vivência política, constitui o ideal articulador da ação de quem busca na docência universitária contribuir para a formação do Homem que pensa sua realidade, compreendendo a interdependência e a complementariedade das suas expressões, adquirindo, ao mesmo passo, bons instrumentos de intervenção social no nível local, nacional ou internacional.

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Entendemos a publicação da Revista JURES como uma iniciativa de quem ultrapassou o limite teórico e conceitual da dogmática jurídica, ampliando os conceitos doutrinários para pensar o direito num contexto de articulação com as demais ciências (Economia, Ciência Política, Antropologia, Relações Internacionais etc.), na diversidade de suas manifestações. Objetivamos, assim, propiciar a criação de um espaço de transformação da realidade, por intermédio de uma sucessão encadeada e ininterrupta de ações acadêmicas de debate e estudos, de pesquisa, de encontros e seminários, edificando referenciais filosóficos e científicos do direito a partir dos conflitos e dos questionamentos. A publicação de uma Revista de Direito para qualquer IES significa a realização de elevado objetivo acadêmico, a geração do pensamento crítico. Os desafios hodiernos que englobam problemáticas assimétricas, mas comuns a todos os povos, apresentam-se como objeto ideal de mobilização de interesses de estudantes de formações diversas, negando o particularismo para afirmar espaços de vivência integrada da política e do direito ou do direito e da política. A Revista JURES surge, portanto, neste cenário de transformação, sob o signo do desafio de tornarse um veículo de divulgação acadêmica de caráter plural para, dentro dos critérios técnicos e metodológicos, gerar referenciais inovadores dos estudos jurídicos.

Natal, 1 de maio de 2010.

Djamiro Acipreste Diogo Pignataro de Oliveira

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FEDERALIZAÇÃO DOS CRIMES DE GRAVES VIOLAÇÕES AOS DIREITOS HUMANOS: A RAZOÁVEL DURAÇÃO DO PROCESSO COMO GARANTIA NO COMBATE À IMPUNIDADE OU INSTRUMENTO RETÓRICO? Daniel Lyra

RESUMO Este artigo tem como objeto de estudo o princípio da razoável duração do processo aplicado à criação de um incidente de deslocamento de competência, quando da constatação de ocorrência de crime que viole gravemente os direitos humanos, de forma específica, com a sua federalização, com o fito de adequar a legislação aos anseios das transformações sociais. Em um primeiro momento, faz-se necessária uma exposição histórica breve acerca da gênese dos direitos humanos, em especial a sua importante evolução positiva no ordenamento jurídico brasileiro com o surgimento da Emenda Constitucional no 45, do ano de 2004, quando foram criadas regras bastantes para dar status constitucional aos tratados internacionais sobre direitos humanos, a serem posteriormente ingressados de maneira positiva, passando por trâmites de votação semelhantes a de projeto de emenda à Constituição. Em um segundo instante, deve-se discutir sobre o lacunoso conceito de grave violação aos direitos humanos, com a explanação acerca do paralelo que deve haver entre a federalização dos crimes que violam os direitos humanos e o principio constitucional da razoável duração dos processos, ambos inovações constitucionais recentes. Por fim, fundamental é uma análise jurídico-processual do incidente de descolamento de competência para a justiça federal, colocando os principais pontos de discussão, além de uma visão do rito propriamente dito. É imperioso esclarecer os aspectos legais do novel procedimento judicial, ante as suas possíveis violações a princípios e regras constitucionais, com mais afinco no principio da legalidade. PALAVRAS-CHAVE: Direitos Humanos. Princípio da razoável duração do processo. Garantias constitucionais. 8


1. Introdução “Não é exagerado dizer que o vocabulário dos direitos humanos é principal alimento que nutre o debate político contemporâneo.1” A grave violação aos direitos humanos, alicerce deste artigo, dá azo e promove diversos e calorosos debates, com relevância, sobretudo, no que toca às suas consequências no âmbito criminal. Mencionado debate acadêmico tem como gênese normativa e parâmetro o advento da Emenda Constitucional no 45, de 31 de dezembro de 2004. Além de outros apontamentos, ela modificou a competência judicial para o processamento desses delitos, mediante a criação de um incidente processual, quando satisfeitos alguns requisitos, e inovou com o princípio da razoável duração do processo. O conceito de grave violação aos direitos humanos será o ponto de partida de uma análise crítica em que se investigará a relação dos crimes que atentam gravemente aos direitos humanos, em uma perspectiva de federalização no julgamento deles, uma vez que servirá de instrumento de efetivação da razoável duração do processo, no combate à impunidade, exigência das transformações sociais. O instrumento jurídico criado é um incidente processual penal objetivo, de base constitucional, para mutação horizontal da competência criminal em causas atinentes a direitos humanos, ou seja, competência em razão da matéria. É uma garantia individual de efetividade do tão discutido Poder Judiciário e do princípio da razoável duração do processo penal, em uma luta incessante contra injustiças. No mesmo tom, é um mecanismo de substituição da atividade das Justiças Estaduais pelo Poder Judiciário da União, dentro do esquema de federalismo cooperativo, nos casos de violação a direitos humanos, sendo instrumento político precioso, destinado a proteger a responsabilidade da União perante a comunidade internacional, em função de tratados de proteção à pessoa humana compromissados por ela. Tem como objetivo a redução da impunidade e a concreta proteção dos direitos humanos. É preciso identificar o sentido da expressão “grave violação aos direitos humanos”, buscando a sua origem, em uma perspectiva de definição objetiva das infrações penais que serão analisadas pela Justiça Federal, novo lar para o processamento dos crimes que afrontem com gravidade os direitos humanos. 1 RABENHORST, Eduardo Ramalho. Direitos Humanos e Globalização contra-hegemônica: notas para o debate. In: LYRA, Rubens Pinto. Direitos Humanos: Os desafios do século XXI – Uma abordagem interdisciplinar. Brasília: Brasília Jurídica, 2002. p. 17.

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O problema que se destaca no instrumento é a existência de uma lacuna na Lei Maior, deixada pelo legislador, que dificulta a interpretação judicial nos casos a serem analisados na ocasião de um incidente processual, quando se pretenderá, nos moldes do instituto do desaforamento inserto no Código de Processo Penal, deslocar a competência de julgar e processar, que antes era da Justiça Estadual, pois inexiste a relação taxativa dos crimes de grave violação aos direitos humanos, o que, por sua vez, desrespeita o princípio da legalidade. Assim, é interessante esmiuçar a investigação no sentido de verificar a conveniência da criação de uma lei ordinária que apresente um rol taxativo (ou pelo menos exemplificativo) dos delitos que atentam gravemente aos direitos humanos (do quilate de uma legislação de crimes hediondos, talvez), ou então, deixar a cargo da interpretação livre e desimpedida dos nossos Tribunais. Dessa maneira, ante a identificação desses delitos, será proposta a federalização deles, para que tal medida torne-se um instrumento de combate à impunidade, em respeito à duração razoável do processo, e não mero instrumento retórico, de convencimento da opinião pública internacional, como aparenta ser. No mesmo tom, outros problemas são trazidos à baila, como o da análise constitucional do instrumento garantidor da efetividade no combate à violação grave dos direitos humanos e à impunidade, bem como da escuridão em que se encontra o procedimento do incidente de deslocamento de competência, além de saber da conveniência de uma imediata federalização de todos os crimes que atentam gravemente aos direitos humanos, em vez de sempre deslocar a competência para processar e julgar, para que se dê cumprimento ao princípio da razoável duração do processo. 2. Federalização dos crimes de graves violações aos direitos humanos: A razoável duração do processo como garantia no combate à impunidade ou instrumento retórico?

Para melhor compreensão do tema a ser abordado, incumbe dividir esta parte em tópicos, nos quais se terá uma visão panorâmica, porém aguçada, das teorias e abordagens doutrinárias que nortearão a execução deste artigo. 2.1. Evolução histórica Os direitos humanos tiveram a sua gênese mais expressiva a partir da Revolução Francesa, com as ideias de liberdade, igualdade e fraternidade, 10


aliadas aos princípios do cristianismo, numa perspectiva ocidental, muito embora a ideia de Direito Natural não fosse novidade. É o nascimento de um mundo novo, em que a chama da liberdade, da igualdade e da solidariedade irá iluminar e inflamar a Terra inteira.2 No mesmo sentido, não se deve desprezar a influência do sempre lembrado Beccaria, que colaborou como poucos para o processo de humanização do direito penal. Com o advento da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, em 1789, da Declaração Universal dos Direitos Humanos, em 1948, houve uma inserção desta espécie de Direito no ordenamento jurídico do Brasil, culminando com a promulgação da Carta Democrática de 1988. Sim, pois foi no final da Segunda Grande Guerra que o mundo ocidental passou por uma ampla e profunda revisão de seus valores, ainda sob o nefasto efeito das dezenas de milhões de vidas ceifadas, a partir de quando passou a dar primazia à defesa dos direitos humanos (...)3. A mencionada Constituição destaca em seu artigo primeiro, inciso III, que um dos fundamentos da nossa República é a dignidade humana. Nesse contexto, somando-se à criação da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, em 1959, à aprovação do Pacto de San José da Costa Rica, em 1969, o Brasil, através do Decreto Legislativo no 89/98, “passou a reconhecer a competência da Corte Interamericana de Direitos Humanos para julgamento de violações aos direitos humanos ocorridas em nosso país, que tenham permanecido impunes, cujas decisões obrigarão o Estado brasileiro4”. Em 1996 o Ministério da Justiça, na exposição de motivos do projeto da Emenda à Constituição, já atentava para a importância da federalização do processamento e julgamentos das graves violações aos direitos humanos. A obrigação internacional de investigação e processamento de crimes previstos em tratados internacionais passou a ser ainda mais importante na adesão do Brasil ao Tratado de Roma, de 1998, pois o país se submeteu à jurisdição do Tribunal Penal Internacional, tendo sido, em 2002, positivado no Direito brasileiro. A Emenda Constitucional no 45 previu, no § 4o do artigo 5o, a referida sujeição. Antes de sua aprovação, houve a criação da Lei no 10.446/2002, que facultava a atuação da Polícia Federal em casos de omissão e/ou demora na investigação de crimes que violam os direitos humanos com gravidade. 2 COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2001. p. 470. 3 PASSOS, Jorge Luiz Iesky Calmon de. Direitos Humanos na Reforma do Judiciário. In: Reforma do Judiciário: Primeiros ensaios críticos sobre a EC no 45/2004/Coordenação Teresa Arruda Alvim Wambier et al. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005. p. 350. 4 FRISCHEISEIN, Luiza Cristina Fonseca; BONSAGLIA, Mário Luiz. Federalização dos crimes contra direitos humanos. Correio Braziliense, Brasília, n. 13089, p. 1, 22 mar. 1999.

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“Desse modo, quando a investigação realizada pela Polícia Civil dos Estados não se mostra satisfatória, a Polícia Federal sempre pode atuar em conjunto ou não para esclarecer o fato criminoso e sua autoria.5” Nesse prisma, surge a Emenda Constitucional no 45, que prevê a possibilidade de deslocar a competência de processar e julgar os crimes contra os direitos humanos para a Justiça Federal, em casos de grave violação. O art. 5o, §3o, da CF/88 equiparou à emenda constitucional os tratados de direitos humanos. Em 8 de junho de 2005 tem-se, no Superior Tribunal de Justiça (competente para decidir conflitos de competência entre juízes vinculados a Tribunais diversos), o primeiro caso do incidente processual, no processo que apura a morte brutal da missionária Dorothy Stang. Em maio de 2005, a Associação Nacional dos Membros do Ministério Público e a Associação dos Magistrados Brasileiros ajuizaram a ADIN 3486/ DF, questionando o incidente de deslocamento de competência, o qual, até o momento não teve seu mérito apreciado. A expectativa é que o Supremo Tribunal Federal defina os limites e pressupostos do incidente processual. 2.2. Grave violação aos direitos humanos Indaga-se bastante sobre o significado da expressão “grave violação aos direitos humanos. É a fixação de um critério de competência condicional e fundado na pura subjetividade de uma única autoridade6”. Com a criação da EC no 45/2004, imperioso se faz o estudo da amplitude da expressão usada pelo legislador, com o fito de identificar o seu alcance no que diz respeito ao rol de crimes que estarão sujeitos ao deslocamento da competência para a Justiça Federal, a fim de que sejam processados e julgados. Em relação a esta situação lacunar, uma “comissão de estudos integrada por procuradores da República e procuradores do Estado de São Paulo, que analisou o tema em 1999, chegou a sugerir um rol de crimes contra os direitos humanos que seriam federalizados7”. O que, portanto, suprirá tal lacuna? A jurisprudência ou uma lei ordinária? Para alguns estudiosos há uma dificuldade científica e doutrinária de conceituar os direitos humanos. Assim, o Superior Tribunal de Justiça, no vanguardista 5 MALULY, Jorge Assaf. A federalização da competência para julgamento dos crimes praticados contra os direitos humanos. Boletim Ibccrim, São Paulo, v. 12, n. 148, p. 5, mar. 2005. 6 TÁRREGA, Maria Cristina Vidotte Blanco; FERREIRA, Luiz Alexandre Cruz. Reforma do Poder Judiciário e Direitos Humanos. In: WAMBIER, Teresa Arruda Alvim et al (Coord). Reforma do Judiciário: Primeiros ensaios críticos sobre a EC no 45/2004. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005. p. 462. 7 SCHREIBER, Simone; COSTA, Flávio Dino de Castro. Federalização da competência para julgamento de crimes contra os direitos humanos. Boletim dos Procuradores da República, v. 5, n. 53, p. 19-25, set. de 2002.

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julgamento do caso Dorothy Stang, considerou que toda a violação a um Direito Humano é grave, muito embora tenha negado, para aquele caso, o incidente de deslocamento de competência. Um ponto importante na federalização dos crimes contra os direitos humanos é a definição dos seus limites. Por isso, é necessário estabelecer um rol de crimes que se amolde aos objetivos do instituto processual. “Tem sido mais fácil indicar uma relação de direitos que sejam qualificados como humanos que conceituar direitos humanos.8” Pode-se imaginar algumas classificações: uma delas é a proposta dos procuradores da República e dos procuradores do Estado de São Paulo, em 1999, como já fora mencionado. Outra suposição seria a que os delitos contra os direitos humanos seriam todos os crimes contra a pessoa, englobando os crimes contra a vida, contra a integridade física e contra a liberdade individual ou a lista da Lei dos crimes hediondos. O Estatuto do Tribunal Penal Internacional poderia servir como parâmetro para a conceituação de crimes contra os direitos humanos no Brasil, uma vez que ele tipificou diversos delitos. Tais infrações penais foram integradas ao ordenamento jurídico brasileiro, com força de lei federal ordinária, uma vez que o Tratado de Roma recebeu a adesão do Brasil antes da promulgação da Emenda Constitucional no 45. Quanto à expressão “graves” violações a direitos humanos, o artigo 2, letra ‘b’, da Convenção das Nações Unidas contra Crime Organizado Transnacional (Convenção de Palermo) , considera crime grave todo ato que constitua infração punível com uma pena de privação de liberdade, cujo máximo não seja inferior a quatro anos ou com pena superior. Pode-se propor, outrossim, que sejam graves violações aos direitos humanos todas as ofensas aos bens jurídicos tutelados em tais convenções internacionais, quando, conforme a lei penal brasileira, a pena máxima cominada ao delito for superior a um ano, de privativa de liberdade, equiparando-se ao conceito de “crimes graves” ao conceito de infrações graves para fins de extradição9. Outra solução seria o conceito de infrações penais de menor potencial ofensivo, quando a pena máxima, em abstrato, não for superior a dois anos de detenção ou de reclusão, conforme o artigo 2o da Lei no 10.259/01. Poderia ser considerado como grave o delito punido, na ocasião da sentença, com pena máxima não inferior a quatro anos de prisão, tendo em vista que o art. 44, I, do Código Penal Brasileiro, permite a substituição da pena privativa de liberdade aplicada por pena restritiva de direitos. 8 REGIS, André, MAIA, Luciano Mariz. Direitos humanos, impeachment e outras questões constitucionais. Base: Recife; Universitária: João Pessoa, 2004. p. 115. 9 Artigo 77, inciso IV, da Lei no 6.815/80, o Estatuto do Estrangeiro.

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O que não se admite, e o nosso sistema jurídico não permite, é que a lei não preveja a relação destes crimes, uma vez que não há crime sem lei que o defina. 2.3. Federalização dos crimes contra os direitos humanos e a razoável duração do processo Muito se comenta do aprimoramento dos sistemas de combate às violações aos direitos humanos. Nessa ótica, insere-se a federalização do julgamento dos crimes que violam gravemente tais direitos. “A importância das normas internacionais de proteção dos direitos humanos reside na sua condição instrumental de efetivação do que chamamos de universalização dos direitos humanos.10” Ante a internacionalização dos direitos humanos11, e a humanização do Direito Internacional, surge a preocupação do Brasil, diante do reconhecimento da legitimidade da Corte Interamericana de Direitos Humanos, no cumprimento dos tratados internacionais. O caso emblemático é o de Maria da Penha, que jamais pode ser esquecido. Aproveita-se, assim, para convocação dos entes federados, perante os entes subnacionais fragilizados, com o objetivo de processar e julgar os crimes contra os direitos humanos em um procedimento análogo ao do instituto do desaforamento, previsto no Código de Processo Penal. Dessa forma, são os argumentos de defesa da federalização desses delitos: a questão da responsabilidade internacional da União quando do descumprimento dos tratados por ela ratificados, uma vez que não possuem responsabilidade nacional para assumir as investigações; e a persecução penal para acabar com a impunidade, e para proteger as vítimas, já que se atribui à Justiça Federal condições mais eficazes na solução dos casos mais graves, ante a fragilidade e o comprometimento político da Justiça Estadual, além da repercussão internacional. Dentre os defensores destaca-se FLÁVIA PIOVESAN, que acredita ser a mudança constitucional “uma nova era na proteção dos direitos humanos em nosso país”12. 10 COSTA, João Ricardo dos Santos. Federalização dos denominados crimes contra os direitos humanos: equívoco baseado em casuísmos e falsos paradigmas. Revista Ajuris: doutrina e jurisprudência, v. 30, n. 92, p. 33-49, dez. 2003. 11 “A federalização dos crimes contra os direitos humanos é medida imperativa diante da crescente internacionalização dos direitos humanos, que, por consequência, aumenta extraordinariamente a responsabilidade da União nesta matéria”. PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos internacionais e jurisdição supra-nacional: a exigência da federalização. DBNET. Disponível em: <www.dbnet.org.br/direitos/militantes/flaviapiovesan/piovesan_federalizacao.htm>. Acesso em: 3 jul. 2005. 12 PIOVESAN, Flávia; VIEIRA, Renato Stanziola. Federalização de crimes contra os direitos humanos: o que temer? Boletim Ibccrim, São Paulo, v. 13, n. 150, p. 9, maio 2005.

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De outra banda, os argumentos contrários ao incidente são: violação ao princípio do juiz e do promotor natural; ser uma espécie de tribunal de exceção; violação ao pacto federativo; o retorno do instituto da avocatória; violação ao art. 3o da Carta Magna de 1988; a existência da Lei no 10.446/2002, que já prevê a possibilidade de atuação da Polícia Federal para investigar os mesmos crimes; violação ao princípio da legalidade; subtração da competência do Tribunal do Júri; alguns dizem que tal federalização atrapalharia as demais investigações; outros preferem mencionar que seria melhor elaborar algumas providências preventivas; fala-se também na ausência da presença física do Juiz, da barreira no acesso à Justiça, do não caso de intervenção, da necessidade de uma reforma no Judiciário, de um investimento nele. Como já dito, um dos pontos consiste em que alguns autores, como MARCOS VINÍCIUS AMORIM DE OLIVEIRA, consideram o incidente uma espécie de avocatória, “outrora conhecida entre os tribunais, que por motivos vários detinham o poder de chamar para si a resolução de causas inicialmente entregues às instâncias inferiores13”. A federalização de crimes contra os direitos humanos encontra respaldo no direito comparado14. O julgamento justo e imparcial, e em prazo razoável, é garantia fundamental do ser humano, previsto, dentre outras, na Convenção Americana sobre Direitos Humanos, como garantia não só do acusado, mas igualmente das vítimas. O devido processo legal está inserto entre os direitos e garantias fundamentais e é o princípio fundamental do processo. Uma das “projeções” do due process of law é o princípio da celeridade ou o direito fundamental à duração razoável do processo, cujo primeiro reconhecimento se deu na “Convenção Europeia para Salvaguarda dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais”, em Roma, em 4 de novembro de 1950. Influenciada por esse pacto, a “Convenção Americana sobre Direitos Humanos”, mais conhecida popularmente como Pacto de San José da Costa Rica, em seu artigo 8o, também cuidou do devido processo e da celeridade: 13 OLIVEIRA, Marcus Vinícius Amorim de. A falácia da federalização dos crimes contra os direitos humanos. Boletim Ibccrim, São Paulo, v. 12, n. 142, p. 6, set. 2004. 14 Para FRANCISCO REZEK, “nas federações os crimes dessa natureza, os crimes previstos por qualquer motivo em textos internacionais são crimes federais e da competência do sistema federal de Justiça. Isso tem várias vantagens, como uma jurisprudência uniforme, uma jurisprudência unida, a não tomada de caminhos diversos segundo a unidade da federação em que se processe o crime. É vantajoso e é praticado em outras federações”. SCHREIBER, Simone; COSTA, Flávio Dino de Castro. Federalização da competência para julgamento de crimes contra os direitos humanos. Boletim dos Procuradores da República, v. 5, n. 53, p. 19-25, set. 2002.

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“Toda pessoa tem direito a ser ouvida, com as devidas garantias e dentro de um prazo razoável (...)”. Conforme Moacyr Amaral Santos, “o interesse público é o de que as demandas terminem o mais rapidamente possível, mas que também sejam suficientemente instruídas para que sejam decididas com acerto15”. Importante observar que duração razoável do processo é conceito ainda em construção. Essencial característica dos direitos fundamentais é a sua aplicabilidade imediata, eficácia plena, com o que se vincula a atuação dos órgãos do Estado. Assim, a concretização do direito fundamental à duração razoável do processo não depende da edição de novos diplomas legislativos e se impõe em face da legislação infraconstitucional adversa às garantias por ele protegidas. A proteção ao direito fundamental à duração razoável do processo depende, portanto, de medidas judiciais destinadas a garantir sua realização, especialmente aquelas baseadas no poder diretivo do magistrado, além das medidas ligadas à reparação de danos ocasionados por sua violação16. Quando a lentidão processual resultar em danos significativos à parte, restará ainda aos jurisdicionados recorrer ao sistema de proteção internacional dos direitos humanos, por meio da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, da Organização dos Estados Americanos, com base no Art. 8o do Pacto de San Jose da Costa Rica. Grandioso exemplo, novamente, foi o de Maria da Penha. Dessa forma, ante a demora na resolução de um processo que apura a responsabilidade penal em crime de grave violação aos direitos humanos, utiliza-se do Incidente de Deslocamento de Competência. Contudo, na federalização desses crimes economiza-se mais tempo, por não ser necessário o êxito no deslocamento, uma vez que as investigações já estarão sob a guarda da Polícia Federal. 2.4. Incidente processual de deslocamento de competência federal A Emenda Constitucional no 45, de 31/12/2004, traz ao mundo jurídico o incidente de deslocamento de competência federal. A nova competência para processar e julgar os crimes contra os direitos humanos seria da Justiça Federal. O incidente processual, outrossim, seria apreciado perante o Superior Tribunal de Justiça, uma vez que é de competência deste Tribunal Superior dirimir conflitos entre os Estados. 15 SANTOS, Moacyr Amaral. Primeiras linhas de Direito Processual Civil. São Paulo: Saraiva, 1990. p. 298. 16 GUERRA FILHO, Willis Santiago. Processo constitucional e Direitos Fundamentais. 3. ed. São Paulo: Celso Bastos, 2003. p. 82.

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Para VLADIMIR ARAS17, o incidente é um “instrumento político-jurídico, de natureza processual penal objetiva, destinado a assegurar a efetividade da prestação jurisdicional em casos de crimes contra os direitos humanos”, resguardando a posição jurídica de autores de delitos, no tocante à duração razoável do processo. “Veja-se que não se lhes transferiu competência para processar e julgar toda e qualquer causa em que estejam em jogo a tutela dos direitos humanos.18” Ou seja, a competência continua com a Justiça Estadual. O que pode acontecer é, eventualmente, atendendo a certos requisitos, deslocar essa competência em determinadas situações. A legitimidade ativa do incidente é do Procurador-Geral da República. Os requisitos de admissibilidade são: prática de grave crime contra os direitos humanos; possibilidade de responsabilização internacional do Brasil; omissão, leniência, excessiva demora, conluio ou conivência dos órgãos de persecução criminal do Estado-membro ou do Distrito Federal. Há, portanto, segundo o entendimento do STJ, que existir a cumulatividade dos requisitos. A Resolução no 06/05 da Presidência do STJ, determinou que o incidente deve ser apreciado pela 3a Seção do STJ, composta pelos ministros da 5a e 6a Turmas do Tribunal, entre os quais se escolherá o relator. Ouvida a autoridade judiciária estadual suscitada, o procedimento será submetido a julgamento colegiado. O Incidente de Deslocamento de Competência deve ser visto em consonância com o novo inciso LXXVIII do artigo 5o da CF, que a todos assegura, no âmbito judicial e administrativo, a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação. 3. Considerações finais Faz-se necessário formular sugestões para a melhoria do já lacunoso processo de federalização dos delitos contra os direitos humanos, ao mesmo tempo em que se deve estudar os hard cases, como o da missionária Dorothy Stang, único caso até o momento apreciado pelo Superior Tribunal de Justiça, bem como casos pretéritos, como os de Chico Mendes, do Índio Pataxó, de Margarida Maria Alves, entre outros. 17 ARAS, Vladimir. Federalização dos crimes contra os direitos humanos. Jus Navegandi. Disponível em: <www1.jus.com.br/doutrina/texto.asp?id=6762>. Acesso em: 3 jul. 2005. 18 BERMUDES, Sérgio. A reforma judiciária pela Emenda Constitucional no 45. Rio de Janeiro: Forense, 2005. p. 71-72.

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O tema ainda carece de maiores discussões cientificas. Explica-se tal vagueza em virtude de ser o tema recente19. Somente no ano de 2004, em seu último dia, foi publicada a Emenda Constitucional no 45, que trouxe à baila a questão da federalização dos crimes contra os direitos humanos, que impliquem em descumprimento a obrigações internacionais assumidas pelo Brasil 20, bem como a constitucionalização da razoável duração do processo, como princípio norteador das lides forenses. Tanto é verdade que apenas um caso no Brasil, até os dias atuais, foi julgado no Superior Tribunal de Justiça (tribunal competente para a apreciação do incidente processual, que é impulsionado por petitório do Procurador Geral da República), que foi o da missionária americana Dorothy Stang. Vale salientar que tal incidente fora negado por aquela Corte de Justiça. Em respeito ao princípio da legalidade, onde, para o Direito Penal, não há crime sem lei que o defina, a situação atual é insustentável, pertinente à não definição legal dos crimes que violam gravemente os direitos humanos. No mesmo diapasão, não há que se falar em analogia in mallan parten, ou seja, não se pode utilizar-se, no Brasil, da analogia para prejudicar o réu, de maneira que é impossível socorrer às definições de institutos internacionais. Tal lacuna deve ser, de imediato, reparada. Sim, pois não se pode simplesmente dar êxito a um incidente processual de transferência de competência judicial sem ao menos a existência de uma legislação definidora destes crimes em discussão. É incomum a existência de normas explicativas no nosso ordenamento jurídico, notadamente as normas penais. Mas havendo essa possibilidade (como de fato há exemplos práticos, como o conceito de funcionário público trazido pelo art. 327 do Código Penal Brasileiro), deve ser materializada. Enfim, não se pode fechar os olhos para a problemática do desrespeito e violação grave aos direitos humanos. O Estado não apenas pode como tem obrigação de criar mecanismos suficientes ao combate dessa realidade abominável, e a criação de tal incidente de deslocamento, se não resolve o problema da impunidade, ao menos melhora a situação, dando à razoável duração do processo ares esperançosos quanto ao futuro sempre incerto desta terra tupiniquim. 19 É o que já lecionava Marilena Chaui, ao assertar que “o espanto e a admiração, assim como antes a dúvida e a perplexidade, nos fazem querer saber o que não sabemos, nos fazem querer sair do estado de insegurança ou de encantamento, nos fazem perceber nossa ignorância e criam o desejo de superar a incerteza”. CHAUI, Marilena. Convite à Filosofia. Disponível em: <www.ateus.net/artigos/filosofia/convite_a_filosofia_3. php>. Acesso em: 13 mar. 2006. 20 TOSI, Giuseppe (Org.). Direitos humanos: história, teoria e prática. João Pessoa: Universitária; UFPB, 2005. p. 9.

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4. Referências ARAS, Vladimir. Federalização dos crimes contra os direitos humanos. Jus Navegandi. Disponível em: <www1.jus.com.br/doutrina/texto. asp?id=6762>. Acesso em: 3 jul. 2005. BERMUDES, Sérgio. A reforma judiciária pela Emenda Constitucional no 45. Rio de Janeiro: Forense, 2005. CHAUI, Marilena. Convite à Filosofia. Disponível em: www.ateus.net/artigos/ filosofia/convite_a_filosofia_3.php. Acesso em: 13 mar. 2006. COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2001. COSTA, João Ricardo dos Santos. Federalização dos denominados crimes contra os direitos humanos: equívoco baseado em casuísmos e falsos paradigmas. Revista Ajuris: doutrina e jurisprudência, v. 30, n. 92, p. 33-49, dez. 2003. FRISCHEISEIN, Luiza Cristina Fonseca; BONSAGLIA, Mário Luiz. A proposta de federalização dos crimes contra direitos humanos. Boletim Ibccrim, São Paulo, v. 7, n. 81, p. 6-7, ago. 1999. GUERRA FILHO, Willis Santiago.Processo Constitucional e Direitos Fundamentais. 3. ed. São Paulo: Celso Bastos, 2003. MALULY, Jorge Assaf. A federalização da competência para julgamento dos crimes praticados contra os direitos humanos. Boletim Ibccrim, São Paulo, v. 12, n. 148, p. 4-6, mar. 2005. OLIVEIRA, Marcus Vinícius Amorim de. A falácia da federalização dos crimes contra os direitos humanos. Boletim Ibccrim, São Paulo, v. 12, n. 142, p. 6, set. 2004. PASSOS, Jorge Luiz Iesky Calmon de. Direitos Humanos na Reforma do Judiciário. In: Reforma

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A INFLUÊNCIA DO RACIONALISMO NO SISTEMA JURÍDICO Emanuel Dhayan Bezerra de Almeida1

RESUMO O presente artigo procura demonstrar como foram elaboradas e consolidadas as bases do paradigma científico-racional da chamada ciência moderna. Tal paradigma desenvolvido no domínio das ciências exatas se estendeu às ciências sociais, contaminando o direito. Para que o paradigma fosse consolidado no direito, foi necessário que alguns dogmas fossem estabelecidos para transformar essas crenças em um discurso sem suspeitas. Esse ideal de cientificidade presente no direito, por influência do paradigma, pretendeu torná-lo uma disciplina exata e objetiva que pudesse garantir a segurança de um raciocínio matemático. PALAVRAS-CHAVE: Paradigma Científico Racional. Ciência Moderna. Sistema jurídico. 1. O nascimento do pensamento racional: a evolução da ciência moderna. A busca por “certeza” sempre esteve presente desde os primórdios do pensamento humano2 e encontrou na matemática (geometria) e na lógica um dos métodos preferidos de raciocínio. Na Grécia Antiga3 já temos um esboço de uma protorracionalidade ocidental. O pré-socrático Pitágoras (572-510 a.C.), pensador extremamente religioso, foi um dos precursores deste pensamento, ao estabelecer um vínculo entre os deuses e o homem, elevando à condição divina uma das realizações mais racionais do homem: a matemática. Esta deixou de ser uma técnica 1 Mestre em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos – RS). Professor do Curso de Direito da Faculdade Câmara Cascudo/Estácio de Sá. E-mail: edadvocacia@ig.com.br 2 Pouco se sabe a respeito dos pioneiros do pensamento ocidental. De seus textos restaram apenas fragmentos. Suas ideias chegaram a nós por intermédio das versões apresentadas pelos pensadores que vieram depois. ABRÃO, Bernadette Siqueira (Org.). História da filosofia. São Paulo: Nova Cultural, 2004. p. 24. Coleção Os pensadores. 3 Esta breve introdução não tem a pretensão de exaurir todos os pensadores e correntes filosóficas que contribuíram para a formação do pensamento moderno, mas, apenas, trazer alguns pensadores que na opinião do autor tiveram importância.

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utilizada para atender as necessidades práticas (dimensão de terras), para tornar-se uma ciência pura. Assim, ele procurou reduzir todas as explicações à matemática – “o mundo é número” – passando a transformar tudo o que existe em figuras geométricas simples4. Platão (428-348 a.C.), o mais importante continuador da obra de Sócrates5 (469–399 a.C.), através da influência de Pitágoras6, passou a ver na matemática a promessa de um caminho que ultrapassaria as aporias socráticas – ou seja, as perguntas que Sócrates fazia, mas deixava sem resposta – e conduziria à certeza7. Na entrada de sua Academia8, um lema ressalta esta inspiração pitagórica: Não entre quem não saiba geometria. Os métodos de investigação e ensino em Platão seguiam essencialmente os pitagóricos, sobretudo no aspecto matemático de ensino. Contudo, o motivo da predominância das matemáticas na Academia deve-se ao caráter da própria filosofia platônica e a seu conceito do saber, que excluía da cultura os seus ramos puramente empíricos9. Não obstante, ressalta Hilton Japiassu, essa inicial aproximação da matemática ao pensamento grego não produziu, naquele momento, uma aplicação desse conhecimento no cotidiano das pessoas, como posteriormente ocorreu com o pensamento moderno – racional – ocidental: Apesar das ideias fecundas e das imortais contribuições da ciência grega, somos obrigados a reconhecer que ela permaneceu estritamente confinada no domínio da theoria, sem nenhuma preocupação com qualquer tipo de validação experimental ou de utilidade prática. De tanto venerar os números e as idealidades matemáticas, esqueceu-se ou não tinha condições de aplicá-los ao mundo material10.

Após esse período grego, a linha de tempo é interrompida e só mostra outra inflexão vários séculos depois, quando em um período posterior à Idade Média, voltamos a distinguir fatos importantes com relação ao desenvolvimento do pensamento científico ocidental. 4 ABRÃO, p. 28. 5 Sócrates é um marco na história da filosofia, sendo considerado o responsável pelo começo da filosofia ou pelo menos por seu amadurecimento. 6 Diversas pesquisas concordam com o fato de que o platonismo se inscreve na linha pitagórica dos pensadores que divinizaram os números como princípios explicativos do real. Ver: CHÂTELET, François. Uma história da razão: entrevistas com Émile Noel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994. p. 48. 7 PLATÃO. Coleção Os pensadores. São Paulo: Nova Cultural, 2004. p. 13. 8 Instituição fundada por Platão em 384 a.C., voltada para a pesquisa original e concebida como conjugação de esforços de um grupo que vê no conhecimento algo vivo e dinâmico e não um corpo de doutrinas a serem simplesmente resguardadas e transmitidas. 9 JAEGER, Werner Wilhelm. Paideia: a formação do homem grego. São Paulo: Martins Fontes, 1979. p. 850. 10 JAPIASSU, Hilton. A revolução científica moderna. São Paulo: Letras & Letras, 2001. p. 59.

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Com o Renascimento (séc. XVI)11, período posterior à Idade Média e que marca o início da Idade Moderna, ocorre a rejeição das ideias até então vigentes e que estiveram garantidas pelo peso das autoridades agora contestadas. Tudo é sacudido ou destruído: as afirmações da ciência e da filosofia medieval; a autoridade da Bíblia, posta em confronto com os dados das novas descobertas científicas; e o prestígio da Igreja, abalado pelo movimento da Reforma Protestante. Esse movimento de curiosidade, essa necessidade de compreender e esse desejo de ir sempre mais longe constituíram uma poderosa motivação à pesquisa científica que se inicia e preparou os fundamentos para a arrancada científica do século XVII, onde a marcha triunfal da razão e do espírito científico aconteceu plenamente.12 Copérnico, Galileu, Descartes e Newton elaboram e consolidam a base da chamada ciência moderna. Esses pensadores marcam o início de um verdadeiro império do saber racional que hoje se encontra consolidado naquilo que chamamos de “ciência”. 1.1. Copérnico e a utilização da matemática para contestar o movimento dos planetas A concepção defendida por Aristóteles (384–322 a.C) e aperfeiçoada por Ptolomeu (84–151) que afirmava ser a Terra o centro do Universo, já perdurava por mais de dezenove séculos e era a base para a análise dos mais diversos fenômenos (astronômicos, cosmológicos, religiosos etc.). Tal modo de observar o Universo já tinha sido atacado por diversos pensadores, entre os quais, Nicolau de Cusa (1401–1464), mas nenhum deles tinha utilizado a técnica empregada por Nicolau Copérnico. O uso da matemática o fez se distinguir de seus predecessores e produziu pureza, coerência e harmonia em sua teoria. Jonh Henry afirma que 11 Na verdade, o que se chama “Renascimento” não passa da brutal radicalização de uma série de progressos feitos nos séculos precedentes. De uma só vez, todos esses progressos – que, por motivos e causas múltiplas, se acumularam de maneira um tanto secreta, sem entrar em contato uns com os outros – interagem subitamente entre si. Isso cria o evento maior que se chama habitualmente “Renascimento”. Antes disso, não é que o sono reinasse; havia uma vida intensa, da qual nasceu, por cristalização brusca, essa forma particularmente original e esclarecedora. Ver: CHÂTELET, p. 52. 12 Se desejamos obter uma compreensão tão plena quanto possível da revolução científica, precisamos considerar não somente o papel da religião, da teologia, da política, da economia, da metafísica, da metodologia e questões técnicas como também a complexa interação desses fatores. Somente por meio de uma síntese tão rica podemos ter a esperança de compreender o fenômeno cultural que foi considerado “a verdadeira origem tanto do mundo moderno quanto da mentalidade moderna”, infelizmente, este não é o objeto de nosso trabalho. Ver HENRY, John. A revolução científica e as origens da ciência moderna. Trad. Henrique Lins de Barros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. p. 102.

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Copérnico não só pôs a Terra em movimento contra todos os ensinamentos da física aristotélica, as Sagradas Escrituras e o senso comum, como o fez com base em fundamentos que a maioria de seus contemporâneos teria julgado ilegítimo. Por mais contrário que o movimento da Terra possa parecer à filosofia natural, Copérnico insistiu, ele deve ser verdadeiro porque a matemática o exige. Isso foi revolucionário13.

Desse modo, quando Copérnico14 publica seu De Revolutionibus Orbium Caelestium dando à sua teoria fundamentos inteiramente matemáticos, estava contribuindo de maneira significativa para o início da ciência moderna. O significado de sua obra De Revolutionibus reside menos naquilo que ele próprio diz do que no que faz os outros dizer. O livro deu origem a uma revolução que apenas enunciara. Tais textos são um fenômeno relativamente frequente e extremamente significativo no desenvolvimento do pensamento científico. Podem ser descritos como textos que mudam a direção na qual o pensamento cientifico se desenvolve15. 1.2. Galileu Galilei e a percepção matemática do mundo Galileu é o continuador da revolução iniciada por Copérnico, e, por que não dizer, o mártir e consolidador desta revolução que inaugura a chamada “racionalidade científica ocidental”. Para tanto, o modelo proposto por Galileu reprimiu as qualidades sensíveis do mundo, pois para que fosse possível conhecer o verdadeiro ser do Universo, era preciso abandonar as sensações e impressões, os desejos e afetos, numa palavra, a subjetividade16. A eliminação da subjetividade implicava eliminar dos objetos todas as suas qualidades observáveis e empíricas, reduzindo-os a relações quantitativas. O mundo se transforma em números. Como Galileu costumava afirmar, a natureza é um grande livro escrito em linguagem matemática. A matemática passa a se constituir como um corpo global, com suas regras, sua linguagem, oferecendo a imagem de uma racionalidade integral, transparente17. Como preleciona Paolo Rossi: 13 HENRY, p. 23. 14 A assimilação de uma nova teoria requer a reconstrução da teoria precedente e a reavaliação dos fatos anteriores. Esse processo intrinsecamente revolucionário raramente é completado por um único homem e nunca de um dia para outro. Ver: KUHN, Thomas. A estrutura das revoluções científicas. 7. ed. São Paulo: Perspectiva, 2003. p. 26. 15 KUHN, Thomas. A revolução copernicana: a astronomia planetária no desenvolvimento do pensamento ocidental. Lisboa: 70, 1957. p. 161. 16 JAPIASSU, p. 187 17 CHÂTELET, p. 59

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Galileu é o primeiro responsável por aquela ingenuidade filosófica para a qual a ciência julga que o mundo objetivo coincide com o universo de tudo aquilo que é. Através da matematização e quantificação da natureza, a ciência galileana substituiu a Lebenswelt cotidiana pelo universo científico18.

É ele quem destrói definitivamente a imagem mítica do Cosmos (tributário dos decretos divinos, gravitando em torno da vontade de Deus) para substituíla pelo esquema do Universo físico unitário, submetido à disciplina rigorosa da física matemática que passa a sujeitar todos os setores do conhecimento que ficam submetidos às normas do conhecimento matemático-racional.19 Daí por diante, não é mais a religião, a filosofia e os mitos que determinam nossa visão do mundo. Nossa visão de mundo passa a ser determinada pela ciência. Ocorre a substituição da verdade dos dogmas religiosos pela verdade dos dogmas da ciência20. 1.3. René Descartes e a elaboração de um método René Descartes, seguindo a tradição desses pensadores procura elaborar um “caminho” que fornecesse elementos para que se pudesse obter com segurança a apreciação deste mundo matemático. Em sua famosa obra Discurso do método afirma que o poder de bem julgar e distinguir o verdadeiro do falso, isto é, o que se denomina o bom senso ou a razão, é naturalmente igual em todos os homens. A diversidade das nossas opiniões não provém do fato de uns serem mais racionais do que outros, mas tão somente em razão de conduzirmos o nosso pensamento por diferentes caminhos e não considerarmos as mesmas coisas21. Então para tentar resolver essas divergências de pensamentos e opiniões sobre um mesmo tema22, Descartes propõem um método que seria uma maneira segura de estabelecer, a partir do modelo matemático23, um saber filosófico “correto” acerca de todos os assuntos que interessam ao progresso humano. 18 ROSSI, Paolo. A ciência e a filosofia dos modernos: aspectos da Revolução Científica. Trad. Álvaro Lorencini. São Paulo: Unesp, 1992. p. 16 19 JAPIASSU, p. 57. 20 JAPIASSU, Hilton. A crise da razão e do saber objetivo: as ondas do irracional. São Paulo: Letras & Letras, 1996. p. 10. 21 DESCARTES, René. Discurso do método. São Paulo: Martin Claret, 2000. p. 21. 22 Rejeitamos todos os conhecimentos que apenas sejam prováveis, e declaramos que não se deve dar assentimento senão aos perfeitamente conhecidos, a respeito dos quais não se pode duvidar. Sempre que dois deles têm sobre a mesma coisa juízos contrários, é claro que pelo menos um deles se engana. DESCARTES, René. Regras para a direção do espírito. São Paulo: Martin Claret, 2000. p. 75. 23 Só havendo uma verdade em cada coisa, todo aquele que a encontrar saberá tanto quanto se pode saber a este respeito. Assim, por exemplo, uma criança que saiba aritmética, tendo feito uma soma de acordo com a regra, pode estar certa de ter encontrado, em relação à questão que examinava, tudo que o espírito humano poderia encontrar. É que o método que ensina a seguir a verdadeira ordem e a enumerar com exatidão todas as circunstâncias daquilo que se procura contém tudo quanto dá certeza às regras da aritmética. Mas o que mais me satisfazia nesse método era que, por meio dele, eu estava seguro de usar, em cada coisa, minha razão, se não perfeitamente, ao menos da melhor forma que me era possível. DESCARTES, René. Discurso do método. São Paulo: Martin Claret, 2000. p. 33.

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Tal como um triângulo possui sempre três ângulos que são iguais a dois ângulos retos e um círculo possui sempre todos os pontos de sua circunferência equidistantes do centro24, ele concluiu que a evidência matemática25 é aquilo que o espírito humano pode aprender de mais correto26. Então procurou elaborar um método que poderia captar a razão dessa certeza para que se pudesse estendê-la a outros campos do conhecimento27, servindo de fundamento comum e único para todas as ciências particulares28. A busca por certeza por meio do método tem início com a provisória colocação em dúvida de todas as certezas. O que resta após a dúvida cartesiana não é somente a desconfiança em relação às verdades adquiridas, é o vazio que se segue à destruição sistemática de todas as certezas por via da recusa dos procedimentos pelos quais essas certezas foram adquiridas (sem utilizar o método) para aceitar inteiramente o novo processo metódico de construção da ciência29. Por meio da dúvida metódica, surge uma primeira certeza: “se duvido, penso”. Logo, surge o cogito cartesiano: “se penso, logo existo”. A existência do “eu” é o novo mirante que possibilitará traçar o horizonte de inteligibilidade sobre todo o edifício do conhecimento humano. Assim, a razão passa a se apresentar como o único alicerce sólido que nada pode abalar30. Ressaltando a importância do cogito cartesiano, José Pessanha afirma: 24 Em Descartes há desconfiança em relação a tudo o que está ligado ao tempo. Todo o esforço cartesiano consiste em transformar o tempo real, ou o tempo vivido, em um parâmetro matemático, isto é, projetá-lo sobre algo de onitemporal, nem datado nem localizado. CHÂTELET, François. Uma história da razão: entrevistas com Émile Noel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994. p. 119. 25 A opção pela inspiração matemática tem em Descartes este sentido: o mundo físico só pode ser conhecido naquilo em que puder ser analisado por procedimentos matematizantes, isto é, apenas em termos de figura, extensão e movimento. Para que isso se realize é preciso que os aspectos qualitativos do sensível sejam desprezados em benefício do rigor matemático que garante a verdade do conhecimento físico. SILVA, Franklin Leopoldo. Descartes: a metafísica da modernidade. São Paulo: Moderna, 1993. p. 82. 26 Dessas considerações se infere claramente por que a aritmética e a geometria são muito mais certas que as outras disciplinas, a saber: só elas versam acerca de um objeto tão puro e simples que não faz falta admitir absolutamente nada que a experiência torne incerta, e consistem inteiramente num conjunto de consequências que são deduzidas pelo raciocínio. São, pois, as mais fáceis e claras de todas e têm um objetivo como o que buscamos, visto que nelas, se não é por inadvertência, parece difícil um homem se enganar. Os que buscam o reto caminho da verdade não se devem ocupar de nenhum objeto acerca do qual não possam ter uma certeza igual à das demonstrações da aritmética e da geometria. DESCARTES, René. Regras para a direção do espírito. São Paulo: Martin Claret, 2000. p. 77. 27 SILVA, Franklin Leopoldo. Descartes: a metafísica da modernidade. São Paulo: Moderna, 1993.p. 28 Entendo por método regras certas e fáceis, graças às quais o que as observa exatamente não tomará nunca o falso por verdadeiro e chegará, sem gastar esforço inutilmente, ao conhecimento verdadeiro de tudo aquilo que seja capaz.. Mas se o método nos dá uma explicação perfeita do uso da intuição intelectual para não cairmos no erro contrário à verdade, e do meio de encontrar deduções para chegar ao conhecimento de todas as coisas, nada mais se requer, parece-me que seja completo; pois não se pode obter ciência alguma, como já disse, se não é por intuição ou dedução. DESCARTES, p. 81. A intuição e a dedução que são as únicas que devem ser utilizadas para aprender as ciências. DESCARTES, p. 98. Por tudo isso, vê-se facilmente como estas duas operações bastam para encontrar todas as grandezas que devem ser deduzidas de outras grandezas por meio de alguma relação. DESCARTES, p. 138. 29 SILVA, p. 44. 30 FILHO, Raul Ferreira Landin. Evidência e verdade no sistema cartesiano. São Paulo: Loyola, 1992.p. 30.

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A importância do Cogito é de duplo sentido: por um lado, ele se apresenta como o paradigma para as instituições que deverão sucederse numa visão clara da realidade, ou seja, tudo que for afirmado deverá ser afirmado com a evidência plena do tipo “penso, existo”; por outro lado, o Cogito repercute no plano metafísico, pois significa o encontro, pelo pensamento, de algo que subsiste, de uma substância. O desdobramento “natural” do “penso, logo existo” é: existo “como coisa pensante”. Do pensamento ao ser que pensa – realiza-se, então, o salto sobre o abismo que separa a subjetividade da objetividade31.

A partir desse momento, ocorre a substituição da ordem “real” pela ordem das razões com a transformação das coisas em objetos do conhecimento. A ciência passa a ser possível, pois se baseia na certeza inabalável do cogito que, tendo como guia seguro o método produzido a partir de si mesmo, reduz o mundo à sua medida. O homem torna-se sujeito32, o “eu que pensa”, e o mundo, seu objeto. Ele já pode pensar a si próprio como aquele que efetivamente reordena e reorganiza o mundo à sua maneira33. Os homens se tornam, segundo o método, senhores e possuidores da natureza34. 1.4. Isaac Newton e a descoberta de uma lei matematicamente válida Newton completa a revolução conceitual que Copérnico inicia um século e meio antes, concluindo o programa científico-racionalista da matemática universal. A partir dele, o mundo pode ser explicado de modo sistemático-universal, pois obedece a uma teoria quantitativamente calculável35, válida em todos em lugares. 31 PESSANHA, José Américo. Descartes: vida e obra . São Paulo: Nova Cultural, 2004. p. 21-22. Coleção Os pensadores. 32 A verdade é universal e não apenas subjetiva. Será preciso mostrar, então, que a ideia possui um valor tal que a verdade obtida por intermédio dela vale para além da esfera da subjetividade. A isso Descartes chama de valor objetivo da representação: o conteúdo da ideia não tem validade apenas no sujeito e para o sujeito, mas é verdadeiramente objetivo, isto é, universal. Caso contrário, não teria sentido procurar a verdade na ciência que está “em mim mesmo”, pois não desejo atingir algo semelhante ao que já possuía antes do método, isto é, verdades dependentes de condições subjetivas entendidas como conjunturas psicológicas. A unidade e a objetividade da verdade – seu caráter absoluto – exigem que a subjetividade possua um alcance universal, devendo ser, portanto, um autêntico fundamento inquestionado. SILVA, p. 35. 33 ABRÃO, p. 202 34 O homem como senhor e possuidor da natureza será o princípio que servirá de fio condutor a vários pensadores, a todo um movimento intelectual. Estará na origem do pensamento das Luzes. Também estará presente na origem do desenvolvimento da ciência e da técnica nos séculos XIX e XX. CHÂTELET, p. 65. 35 A superioridade da física newtoniana assenta precisamente numa característica que o pensamento de Descartes no seu conjunto não possui – a estipulação de leis quantitativas rigorosas que fornecem previsões exatas sobre o funcionamento do universo. COTTINGHAM, John. A filosofia de Descartes. Lisboa: 70, 1989. p. 127.

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Esta teoria – gravitação universal – mostra que o universo físico está sujeito à mesma lei da gravitação e às mesmas leis de movimento. Segundo Newton, as leis do movimento reduzem-se a três: a) a primeira lei (da inércia) estabelece que qualquer corpo permanece indefinidamente em repouso ou em movimento retilíneo, a menos que sofra uma ação externa; b) a segunda lei (da proporcionalidade da força impressa à “mudança de movimento”, isto é, à aceleração em sua direção) prescreve que a acelerarão de um corpo é proporcional à força externa que provoca , com direção e sentidos iguais aos dessa força; c) a terceira lei (da igualdade da ação e da reação) afirma que toda ação corresponde uma reação igual e em sentido contrário. Dessas leis retira-se uma fórmula geral. Um corpo atrai outro na razão direta de suas massas e inversamente proporcional ao quadrado da distância que os separa. Essa é a síntese da teoria da gravitação universal. Hilton Japiassu enaltece a importância da teoria newtoniana: A metodologia newtoniana elabora uma síntese do “positivo” e do “racional”. O progresso das ciências, daí por diante, seria o resultado da marcha triunfante do novo método científico. Com Newton, a complexa multiplicidade dos fenômenos naturais fica reduzida a uma única lei universal. A lei geral da gravitação, fruto da rigorosa aplicação do método científico36.

Um dos muitos aspectos da influência desta teoria sobre a sociedade, e, particularmente, o direito é ressaltado por Thomas Kuhn: O sistema de pesos e contrapesos incorporado na Constituição dos Estados Unidos, por exemplo, tinha a intenção de dar à nova sociedade americana o mesmo tipo de estabilidade na presença de forças de ruptura que a compreensão exata das forças inerciais e atração gravitacional tinham dado ao sistema solar newtoniano37. 36 JAPIASSU, Hilton. A revolução científica moderna. São Paulo: Letras & Letras, 2001. p. 224. 37 KUHN, Thomas. A revolução copernicana: a astronomia planetária no desenvolvimento do pensamento ocidental. Lisboa: 70, 1957. p. 296.

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O modelo elaborado por Newton é completamente desvinculado de qualquer valor (político, social, econômico, religioso etc.), ficando atrelado a uma argumentação matemática absolutamente límpida e transparente. 2. O racionalismo e a matematização da representação do mundo Com a evolução das ideias desses pensadores que solidificaram o pensamento científico-racional-moderno38, o mundo passou a obedecer a leis simples, redutíveis às matemáticas e apreendidas pelo raciocínio lógico39. Tinha-se a certeza de que o método científico e o racionalismo venceriam a incerteza. Cornelius Castoriadis resume esse pensamento do seguinte modo: Um saber constituindo seu objeto como processo em si independente do sujeito, reconhecível num referencial espaço-temporal válido para todos e privado de mistério, determinável em categorias indiscutíveis e unívocas (identidade, substância, causalidade), exprimível, enfim, numa linguagem matemática de poder ilimitado, da qual nem a pré-adaptação miraculosa ao objeto nem a coerência interna pareciam causar problema. Acrescentadas à regularidade evidente dos fenômenos naturais em grande escala, essas condições pareciam assegurar a existência de um sistema único de leis da natureza, ao mesmo tempo independente do homem e legível por ele40. 38 A modernidade fornece à ciência moderna, não só o instrumento privilegiado de análise, como também a lógica da investigação, como ainda o modelo de representação da própria estrutura da matéria. Deste lugar central da matemática na ciência moderna derivam duas consequências principais. Em primeiro lugar, conhecer significa quantificar. O rigor científico afere-se pelo rigor das medições. As qualidades intrínsecas do objeto são, por assim dizer, desqualificadas e em seu lugar passam a imperar as quantidades em que eventualmente se podem traduzir. O que não é quantificável é cientificamente irrelevante. Em segundo lugar, o método científico assenta na redução da complexidade. O mundo é complicado e a mente humana não o pode compreender completamente. Conhecer significa dividir e classificar para depois poder determinar relações sistemáticas entre o que se separou. SANTOS, Boaventura de Sousa. Um discurso sobre as ciências. São Paulo: Cortez, 2003. p. 27. A ideia de modernidade está portanto estreitamente associada à da racionalização. A razão não comanda apenas a atividade científica e técnica, mas o governo dos homens tanto quanto a administração das coisas. Ela fez da racionalização o único princípio de organização da vida pessoal e coletiva. TOURAINE, Alain. Crítica da modernidade. Trad. Elia Ferreira Edel. Petropólis: Vozes, 1994. p. 18. 39 Por culpa da ciência desapareceu o mundo em que os homens tinham acreditado viver, rico de cores, de sons e de perfumes, pleno de alegria, de amor e de beleza, onde tudo falava dos fins últimos e de harmonia. Esse mundo a ciência substituiu por um mundo duro, frio incolor, silencioso, um mundo da quantidade e do movimento matematicamente calculável. ROSSI, p. 20. 40 CASTORIADIS, Cornelius. As encruzilhadas do labirinto. v. 1. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997. p. 202.

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Na verdade, a ideologia do cientificismo é tão poderosa que penetrou não apenas nas cidadelas do conhecimento, mas está presente em todos os espaços da vida cotidiana. Marilena Chaui explica: O homem passa a relacionar-se com seu trabalho pela mediação do discurso da tecnologia, a relacionar-se com o desejo pela mediação do discurso da sexologia, a relacionar-se com a alimentação pela mediação do discurso dietético, a relacionar-se com a criança por meio do discurso pedagógico e pediátrico, com a natureza, pela mediação do discurso ecológico, com os demais homens por meio do discurso da psicologia e da sociologia. Em um palavra: o homem passa a relacionar-se com a vida, com seu corpo, com a natureza e os demais seres humanos através de mil pequenos modelos científicos nos quais dimensão propriamente humana da experiência desapareceu41.

Passou a existir um culto ao cientificismo, dando origem a uma única abordagem admissível. Os seguidores do “método correto”, desqualificam automaticamente, em nome da própria metodologia, todas as abordagens que não se ajustam à sua estrutura discursiva. 2.1. A hegemonia das ciências naturais (física) O modelo de racionalidade baseado na matematização da representação do mundo encontrou, nas ciências naturais, e, particularmente, na física, o seu mais perfeito arcabouço. Ao trabalhar com sistemas mecânicos – mecanicismo – na compreensão e na manipulação do mundo físico, a física conseguiu estabelecer mais firmemente seus pressupostos como verdades e fundamentar critérios definitivos de abordagem científica do universo42. Desse modo, o paradigma da física se torna o paradigma da ciência, tendo este se tornando o modelo seguido pelas demais disciplinas científicas. Tal paradigma científico foi baseado em três pressupostos. a) Simplicidade

Em sua busca por conhecimento, o cientista depara com um universo que se apresenta – e sempre se apresentou – complexo. Porém, ele acredita que, por 41 CHAUI, Marilena. Cultura e democracia: o discurso competente e outras falas. 5. ed. São Paulo: Cortez, 1990. p. 12. 42 VASCONCELLOS, Maria José Esteves. Pensamento sistêmico: o novo paradigma da ciência. Campinas: Papirus, 2002. p. 85.

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trás dessas aparências complexas, está a simplicidade e que, para compreender esse universo, é preciso separar as partes para entender o todo43. Associada a essa atitude simplificadora do cientista tradicional, está a crença de que o mundo é cognoscível, que pode ser conhecido, desde que seja abordado de modo racional. A ciência deve proceder a uma abordagem racional do mundo – científica –, preocupando-se sempre com a coerência lógica de suas teorias, trabalhando para eliminar do discurso científico a imprecisão, a ambiguidade, a contradição44. b) Estabilidade

Ao sujeitar o mundo à observação de leis estáveis, este passa a ter eventos regulares, levando a crer na sua determinação – com a consequente previsibilidade dos fenômenos – e na reversibilidade – com a consequente controlabilidade dos fenômenos –, obtendo-se um protocolo matematizável, o que corresponde às maiores exigências de rigor e exatidão na representação das relações. Dizer que a trajetória é determinada significa que sua evolução é regida por leis (leis da natureza45 com validade universal) e determinada por condições iniciais. Assim, todo fenômeno segue naturalmente alguma condição antecedente, decorrendo, como corolário da determinação, a previsibilidade dos fenômenos. Se conhecermos os princípios que regem a evolução da trajetória e se conseguirmos caracterizar bem o estado inicial do sistema, poderemos prever com segurança sua evolução46. Assim, os cientistas empenham seus esforços no sentido de aumentar cada vez mais sua capacidade de prever os fenômenos47. 43 É dessa atitude simplificadora, analítica, fragmentadora, disjuntiva, reducionista, que resultam a compartimentalização do saber, a fragmentação do conhecimento científico do universo em áreas ou disciplinas científicas (multidisciplinares), a fragmentação das instituições científicas em departamentos estanques. VASCONCELLOS, p. 75. 44 VASCONCELLOS, p. 77 45 A descoberta das leis da natureza assenta, por um lado, e como já se referiu, no isolamento das condições iniciais relevantes (por exemplo, no caso da queda dos corpos, a posição inicial e a velocidade do corpo em queda) e, por outro lado, no pressuposto de que o resultado se produzirá independentemente do lugar e do tempo em que se realizarem as condições iniciais. SANTOS, Boaventura de Sousa. Um discurso sobre as ciências. São Paulo: Cortez, 2003. p. 29. 46 Se tivéssemos certeza do futuro, não poderíamos ser moralmente compelidos a nada. Seríamos livres para nos entregar a todas as paixões e perseguirmos todos os egoísmos, visto que todas as ações se enquadram no espectro da certeza decretada. Se tudo é incerto, o futuro está aberto à criatividade, não apenas à criatividade humana, mas de toda a natureza. Está aberto às possibilidades, e assim a um mundo melhor. WALLERSTEIN. Immanuel. O fim do mundo como o concebemos: ciência social para o século XXI. Trad. Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Revan, 2002. p. 36. 47 E, se não estão conseguindo prever com segurança, associam imprevisibilidade a conhecimento imperfeito e continuam a empenhar-se ainda mais para conhecer melhor o fenômeno. VASCONCELLOS, p. 86.

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Ao lado da determinação dos fenômenos, passa a existir a sua reversibilidade48. Quer dizer que, se o cientista interferir, ou inverter a manipulação, produzirá o retorno do sistema ao seu estado inicial. Por exemplo, juntando moléculas de oxigênio e hidrogênio, em proporções adequadas, obtém-se água, mas também se pode inverter a manipulação e decompor a água em oxigênio e hidrogênio. Da reversibilidade dos fenômenos decorre, como corolário, sua controlabilidade. As transformações reversíveis definem a possibilidade de agir sobre o sistema, de controlá-lo, de manipulá-lo49. c) Objetividade

Ao conhecer objetivamente o mundo, o cientista, para descobrir e descrever os mecanismos de funcionamento da natureza, deve ficar fora dela, numa posição privilegiada, de onde possa ter uma visão abrangente, sempre buscando discriminar o que é objetivo do que é ilusório, ligado à sua própria subjetividade, às suas simples opiniões. Acreditando-se que o mundo, a realidade, existe lá, independente do observador, cabe a este atingir uma representação da realidade que seja a melhor possível e trabalhar para descobrir essa realidade. Se existe uma realidade única deverá existir uma única descrição, uma melhor ou única versão, que corresponde à verdade sobre essa realidade. Essa preocupação com a objetividade perpassa toda a ciência tradicional50, em todas as suas disciplinas: os resultados não podem estar contaminados pela subjetividade do pesquisador51. 2.2. A ilusão das ciências naturais (física) As ciências naturais (em especial, a física52), que geraram este modelo baseado em regras objetivas que visavam a garantir segurança e certeza nas suas operações, estão revendo seus conceitos e dando-se conta de que as bases nas quais elas se estruturaram não passaram de uma ilusão. 48 Afirmar que todas as leis são matematicamente “reversíveis”, significa que o tempo é irrelevante para a compreensão dos fenômenos naturais. Consequentemente, se soubermos a lei e as chamadas condições iniciais, podemos predizer ou pós-dizer qual será ou qual foi a localização e a medida de qualquer processo no futuro ou no passado. WALLERSTEIN, p. 200. 49 VASCONCELLOS, p. 87. 50 O paradigma da ciência moderna procura suprimir do processo de conhecimento todo elemento não cognitivo (emoção, paixão, desejo, ambição etc.) por entender que se trata de um fator de perturbação da racionalidade da ciência. SANTOS, Boaventura de Sousa. Introdução a uma ciência pós-moderna. 4. ed. Rio de janeiro: Graal, 2003. p. 117. 51 VASCONCELLOS, p. 91 52 A matemática passa por problemas semelhantes à física. Apesar dos avanços monumentais da matemática, esta também continua incerta, seja pelos efeitos fortes provocados pelo teorema da incompletude de Godel, formulado na década de 30, seja pelo surgimento da lógica difusa que destruiu a linearidade preponderante da explicação matemática, seja pela dissonância cada vez mais visível entre a realidade caótica e a matemática apenas lógica. DEMO, Pedro. Certeza da incerteza: ambivalência do conhecimento e da vida. Brasília: Plano, 2000. p. 22.

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A ciência clássica privilegiava a ordem e a estabilidade, ao passo que, em todos os níveis de observação, reconhecemos agora o papel primordial das flutuações (desordem) e da instabilidade. Associadas a essas noções, aparecem também as escolhas múltiplas e os horizontes de previsibilidade limitada. Noções como as de caos tornaram-se populares e invadem todos os campos da ciência, da cosmologia à economia53. As leis da física, em sua formulação tradicional, descrevem um mundo idealizado, um mundo estável e não o mundo instável, evolutivo em que vivemos54, pois para a visão clássica, os sistema estáveis eram a regra55, e os sistemas instáveis, exceções, ao passo que hoje invertemos essa perspectiva. Ao raciocinar sobre um mundo estável, era possível, desde que fossem dadas as condições iniciais apropriadas, garantir a previsibilidade do futuro e a possibilidade de retroceder ao passado. Se pudesse predizer o resultado do jogo, com certeza, poderia concluir que ele era determinado; e, caso não seja alcançado o resultado previsto, o defeito estaria em não conseguir captar as condições iniciais56. Desde que a instabilidade é incorporada, o significado das leis da natureza passa a exprimir probabilidades57 e não mais certezas. Aquela deixou de ser uma forma menor da verdade, para ser a única verdade científica que há. Ilya Prigogine ressalta que Na concepção clássica, o determinismo era fundamental e a probabilidade era uma aproximação da descrição determinista, derivada da nossa informação imperfeita. Hoje é o contrário: as estruturas da natureza obrigam-nos a introduzir as probabilidades independentemente da informação que possuíamos. A descrição determinista não se aplica de fato a não ser a situações simples, idealizadas, que não são representativas da realidade física que nos rodeia58.

Como dizia o famoso cientista Albert Einstein59, “Na medida em que as leis da matemática se referem à realidade, não são certas, e na medida em que 53 PRIGOGINE, Ilya. O fim das certezas. São Paulo: Unesp, 1996. p. 12. 54 PRIGOGINE, p. 29. 55 Longe das condições de equilíbrio, as equações não são lineares, são possíveis muitas propriedades, muitos estados que são as diversas estruturas dissipadoras acessíveis. À medida que nos aproximamos do equilíbrio, a situação é oposta: tudo se torna linear e só há uma solução. PRIGOGINE, Ilya. O nascimento do tempo. Lisboa: 70, 1999. p. 26. 56 PRIGOGINE, p. 43. 57 A probabilidade deriva do fato de que sempre há novas soluções estatísticas de equações dinâmicas. As interações no interior dos sistemas são contínuas, e esta comunicação constitui a irreversibilidade do processo, criando correlações cada vez mais numerosas. WALLERSTEIN, p. 202. 58 PRIGOGINE, p. 49. 59 DEMO, p. 93.

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são certas, não se referem à realidade”. Assim, as certezas passam a ser da ciência, mas não da realidade. Apesar desse abalo nos alicerces em que foi construído nosso pensamento científico, ele continua a fornecer às outras ciências um paradigma de conhecimento rigoroso, estando profundamente enraizado na prática e na teorização das ciências sociais. 2.3. Influências das ciências naturais nas ciências sociais O modelo de racionalidade que preside a ciência moderna constitui-se a partir da revolução científica do século XVI e foi desenvolvido nos séculos seguintes, basicamente no domínio das ciências naturais. Ainda que com alguns prenúncios no século XVIII, é só no século XIX que esse modelo de racionalidade se estende às ciências sociais emergentes60. Hans GeorGadamer destaca: O que caracteriza o desenvolvimento das ciências do espírito (sociais) no século XIX é que não só reconhece exteriormente as ciências da natureza como seu modelo como também, partindo do mesmo fundamento de que vive a ciência da natureza, desenvolvem o mesmo pathos de experiência e pesquisa que aquela61.

As ciências sociais só podem ser chamadas de “científicas” se forem conduzida de acordo com os métodos das ciências naturais, especialmente da física. Somente esses métodos fazem inteiramente justiça às austeras exigências da pesquisa científica. Somente eles levam a leis precisas e relativamente simples que permitem predições fidedignas, cobrindo amplas gamas de tempo e de espaço62. Três ideias principais permitem aplicar as metodologias das ciências naturais às sociais63: 60 SANTOS, Boaventura de Sousa. Um discurso sobre as ciências. São Paulo: Cortez, 2003. p. 21 61 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 5. ed. Petrópolis: Vozes, 1997. p. 110. 62 KAUFMANN, Felix. Metodologia das ciências sociais. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1977. p. 12. 63 Felix Kaufmann enumera quatro objeções à transposição do pensamento da ciências naturais para as ciências sociais: a) a livre vontade humana introduz um fator de indeterminação nos prognósticos sociais de tal modo que não se pode esperar que nenhuma lei se aplique sem exceções. Pois as decisões dos homens são amplamente influenciadas por fatores irracionais que desafiam o cálculo; b) as leis físicas são válidas para todos os lugares e tempos. Todas as asserções em ciência social, pelo contrário, referem-se a circunstâncias históricas específicas; c) as chamadas leis sociais são destituídas de validade objetiva. Variam com a “perspectiva” do cientista social, especialmente com sua distância temporal dos acontecimentos a serem explicados, com seu meio social e sua equação pessoal. Sobretudo, a ciência social não é isenta de valores como as ciências naturais; d) a precisão das leis físicas é devida a sua forma matemática, mas a matemática não é aplicável à esfera social. Pois a comparabilidade numérica exige grandezas mensuráveis e tal condição não é satisfeita nas ciências sociais. KAUFMANN, p. 173.

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a) A ideia fundamental é de que a sociedade humana é regulada por “leis naturais”, ou seja, por leis que têm todas as características das leis naturais, invariáveis, independentes da vontade e da ação humana. Então, essas “leis da sociedade” que regulam o funcionamento da vida social, econômica e política são do mesmo tipo que as “leis naturais”64. b) Dessa primeira ideia decorre que os métodos e os procedimentos para conhecer a sociedade são exatamente os mesmos que os utilizados para conhecer a natureza. Portanto, a metodologia das ciências sociais tem que ser idêntica à metodologia das ciências naturais, posto que o funcionamento da sociedade é regido por leis do mesmo tipo da natureza. c) A terceira ideia é que da mesma maneira que as ciências da natureza são ciências objetivas, neutras, livres de juízo de valor, de ideologias políticas, sociais ou outras, as ciências sociais devem funcionar segundo esse modelo de objetividade científica. Assim, o cientista social deve estudar a sociedade com o mesmo espírito objetivo, neutro, livre de juízo de valor, livre de quaisquer ideologias ou visões de mundo65, exatamente da mesma maneira que a física66. As ciências sociais passam a proceder a uma abordagem racional do mundo, preocupando-se sempre com a coerência lógica de suas teorias. Esse modo de pensar fez com que todos os ramos das ciências sociais procurassem se adaptar a esse modelo, buscando saberes definitivos e verdadeiros, entre eles o direito. 64 As tendências históricas concretas não podem seguir obedientemente nenhum modelo, seja ele “clássico” ou não, por mais cuidadosamente que seja formulado, e mesmo que seja a partir do ponto de vista historicamente mais avançado. Nunca será demasiado insistir que em nenhum momento é possível prever em detalhes, quanto ao futuro distante ainda a ser construído, o inevitável impacto recíproco das várias forças interagindo, ou os “desvios” em relação a um curso de ação anteriormente concebido e implementado. MÉSZÁROS, István. O poder da ideologia. São Paulo: Boitempo Editorial, 2004. p. 316. 65 Deve fazer calar seus preconceitos e as suas paixões. Se ele simpatizar com o individualismo, com o socialismo, com o liberalismo, com os operários, com os proprietários, enfim, qualquer que seja sua simpatia, ou a sua paixão, ou preconceito, ele deve fazê-lo calar, e graças a este silêncio ele poderá iniciar o discurso objetivo da ciência. LOWY, Michel. Ideologias e ciência social: elementos para uma análise marxista. São Paulo: Cortez, 1985. p. 42. 66 O comportamento humano, ao contrário dos fenômenos naturais, não pode ser descrito e muito menos explicado com base nas suas características exteriores e objetiváveis, uma vez que o mesmo ato externo pode corresponder a sentidos de ação muito diferentes. A ciência social será sempre uma ciência subjetiva e não objetiva como as ciências sociais. SANTOS, Boaventura de Sousa. Um discurso sobre as ciências. São Paulo: Cortez, 2003. p. 38. É bastante claro, realmente, que os saberes sociológicos ou psicológicos, econômicos ou linguísticos não podem ter a solidez e a fecundidade dos saberes físico-químicos, ou até biológicos. O obstáculo fundamental está, evidentemente, na natureza dos fenômenos de comportamento humano, que carregam uma carga de significações que se opõem à sua transformação simples em objetos, ou seja, em esquemas abstratos lógica e matematicamente manipuláveis. GRANGER, Gilles Gaston. A ciência e as ciências. Tradução de Roberto Leal Ferreira. São Paulo: Unesp, 1994. p. 85.

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3. A elaboração de um pensamento jurídico-racional: o direito tratado como ciência exata Devido à forte influência desse fisicalismo67, ou seja, da transposição para as ciências humanas das técnicas/ideias das ciências exatas, a “ciência do direito” adere a esse paradigma científico-racional68, por meio do positivismo jurídico69 que surge juntamente com a formação e a consolidação do Estado Moderno. Antes do século XIX, o direito era, sobretudo, ditado por princípios que a tradição consagrava, o que produzia uma mutabilidade e flexibilidade do direito constituindo um risco permanente de incerteza e de arbítrio. Com a formação do Estado Moderno, ocorreu a eliminação ou absorção dos ordenamentos jurídicos superiores e inferiores pela sociedade nacional, por meio de um processo que se poderia chamar de monopolização da produção jurídica, gerando a eliminação de todo centro de produção jurídica que não fosse o próprio Estado70. Ao promover essa centralização, aparece a legalidade como um princípio capaz de dar aos sistemas jurídicos dos Estados modernos uma determinada base que, sem ferir as exigências materiais, fosse capaz de lhes dar certos parâmetros. A legalidade, num mundo em que a crença em princípios abstratos se desgastava, tornou-se a pedra angular que dava ao direito e ao Estado aquele mínimo de segurança71 e de certeza72. 67 Surgiram teorias que propagaram a necessidade de contar com modelos de ciências sociais, que copiaram as ciências naturais, tratando inclusive , de alcançar o ideal de ciências sociais matematizadas – fisicalismo. WARAT, Luis Alberto. Por quem cantam as sereias. Porto Alegre: Síntese, 2000. p. 125. 68 O positivismo jurídico nasce do esforço de transformar o estudo do direito numa verdadeira e adequada ciência que tivesse as mesmas características das ciências físico-matemáticas, naturais e sociais. BOBBIO, Noberto. O positivismo jurídico: lições de filosofia do direito. São Paulo: Ícone, 1995. p. 135. 69 O positivismo, como resposta teórica a uma necessidade prática, a busca de segurança, procura fornecer um conceito autônomo do direito, isto é, um conceito que represente o fenômeno jurídico como uma esfera independente da moral e da política. Para isso, assume como uma categoria central a nação de validade, que lhe permite explicar a justiça e a eficácia, como critérios identificadores do jurídico. Pelo recurso à noção de validade, o direito é reconduzido a si mesmo, dado que a validade é uma qualidade jurídica, determinada pelo próprio direito positivo. BARZOTTO, Luis Fernando. O positivismo jurídico contemporâneo: uma introdução a Kelsen, Ross e Hart. São Leopoldo: Unisinos, 2004. p. 24. 70 BOBBIO, Noberto. Teoria da norma jurídica. São Paulo: Edipro, 2001. p. 31. 71 O positivismo jurídico, na verdade, não foi apenas uma tendência científica, mas também esteve ligado, inegavelmente, à necessidade de segurança da sociedade burguesa. O período anterior à Revolução Francesa caracterizara-se pelo enfraquecimento da justiça, mediante o arbítrio inconstante do poder da força, provocando a insegurança das decisões judiciais. A primeira crítica a esta situação veio do círculo dos pensadores iluministas. A exigência de uma sistematização do Direito acabou por impor aos juristas a valorização do preceito legal no julgamento de fatos vitais decisivos. FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. A ciência do direito. 2. ed. São Paulo: Atlas, 1980. p. 32. 72 FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. Função social da dogmática jurídica. São Paulo: Max Limonad, 1998. p. 193.

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Aproveitando-se dessas características, surge no pensamento jurídico um modelo – Positivismo jurídico? Escola da Exegese – para caracterizar cientificamente73 o direito. Como somente o Estado poderia produzir o direito, esse pensamento adota a autodelimitação da ciência do direito (pensamento jurídico) ao estudo da lei positiva. Dessa maneira, a teoria positivista centra-se no desenvolvimento de uma ciência formal fundada na redução dos comportamentos sociais, que são apreendidos tão somente nos limites já estabelecidos por uma estrutura normativa previamente estabelecida74, eliminando sistematicamente tudo aquilo que, de um modo ou de outro, não se refira a sua positividade75, para formar o discurso de uma ciência jurídica pura, despolitizada, eticamente indiferente e isenta da qualquer risco de contaminação ideológica. Michel Miaille acrescenta: O campo de estudo dos juristas encontra-se definido de maneira precisa e, aparentemente, de maneira científica. De fato, a partir do momento em que o direito é analisado como um conjunto de imperativos articulados uns nos outros de maneira coerente, a ciência do direito torna-se o estudo sistemático desses imperativos, qualquer que seja o conteúdo de cada um deles ou mesmo do conjunto. A ciência do direito encontra-se, pois, purificada à maneira como foram purificadas as disciplinas com estatuto de ciência, quando aceitaram eliminar de seu objeto toda a contaminação de debates filosóficos ou teológicos76.

Não obstante, para que tal pensamento fosse consolidado, fez-se necessário estabelecer alguns dogmas, para que não houvesse um questionamento das premissas que formavam essa teoria77. Assim, o caráter científico-racional (positivista) do pensamento jurídico, transformou suas crenças sobre o mundo em um discurso sem suspeitas. Dentre esses dogmas que construíram 73 O método positivista é pura e simplesmente o método científico e, portanto, é necessário adotá-lo se se quer fazer ciência jurídica ou teoria do direito. Se não for adotado, não se fará ciência, mas filosofia ou ideologia do direito. BOBBIO, Noberto. O positivismo jurídico: lições de filosofia do direito. São Paulo: Ícone, 1995. p. 238. 74 WARAT, Luis Alberto & PEPE, Albano Marcos Bastos. Filosofia do direito: Uma introdução crítica. São Paulo: Moderna, 1996. p. 60. 75 O estatuto científico de estudo do direito admite, por hipótese, que se liberte finalmente a ciência do direito de todos os elementos que lhe são estranhos. É preciso, portanto, definir o direito no que ele tem de específico, no que faz dele uma ordem de fenômenos perfeitamente irredutível a qualquer ordem dos fatos. MIAILLE, Michel. Introdução Crítica ao Direito. Lisboa: Estampa, 1994. p. 295. 76 MIAILLE, p. 296. 77 Falsos conceitos, sem força explicativa mas com amplo poder retórico, que condicionam a prática jurídica, convencendo seus protagonistas do caráter inquestionável de certas justificações. WARAT, Luis Alberto. Introdução geral ao direito II. Porto Alegre: safE, 2002. p. 42.

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o alicerce que deu/dá sustentação ao pensamento positivista78 , destacam-se as cinco características seguintes79: a) Legislador racional

Indagando-se sobre quem possuía legitimidade para ler a natureza das coisas e dela extrair regras normativas, surge como resposta a figura do legislador racional. Tal legislador era uma ficção colocada no lugar do legislador real, capaz de utilizando-se da razão, ler a natureza das coisas, decifrá-la e reproduzi-la em normas que podem ser legitimamente pensadas como universais e eternas, como se fosse a tradução em regras sociais daquela harmonia geométrica que rege o mundo80. Entre as propriedades deste legislador, podem-se destacar as seguintes características: a) trata-se de uma figura singular, cuja identidade – a de legislador – deve ser pressuposta, apesar da multiplicidade concreta (colegiados, parlamentos); b) é uma figura permanente, pois não desaparece com a passagem do tempo e com a morte das vontades concretas; c) é único, pois é o mesmo para todas as normas do ordenamento, não obstante as diferenças no tempo e no espaço e as diversas competências normativas, como se todo o ordenamento obedecesse a uma única vontade; 78 Este lastro, a sua apreciação crítica e as subsequentes tentativas de superação condicionam todo o pensamento jurídico deste final de século. CORDEIRO, A. Menezes. Introdução à edição portuguesa. In: CANARIS, Claus - Wilhelm. Pensamento sistemático e conceito de sistema na ciência do direito. 3. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2002. p. XVI. 79 Ao escolher estas cinco características expostas, destacamos as que em nossa opinião eram as mais relevantes, embora existam outras. Warat enumera como maior precisão estes “dogmas” positivistas: a) A única fonte do direito é a lei; b) As normas positivas constituem um universo significativo autossuficiente, do qual se pode inferir por atos de derivação racional, solução para todos os tipos de conflitos normativos; c) O ato de interpretação é um ato de conhecimento e não de vontade, uma atividade mecânica através da qual o juiz, mediante a aplicação das regras de cálculo lógico, obtém certas conclusões logicamente deriváveis das premissas normativas. O raciocínio jurídico responde às regras do silogismo demonstrativo; d) Os códigos não deixam nenhum arbítrio ao intérprete. Esse não faz o direito porque já o encontra realizado; e) As determinações metajurídicas não têm valor, devendo-se encontrar todas as soluções dentro do próprio sistema jurídico; f) Os conflitos normativos são somente aparentes, devendo o juiz mediante procedimentos lógico-dedutivos adequados superá-los, mostrandonos em suas soluções a coerência profunda do ordenamento positivo; g) A linguagem jurídica é formal e, portanto, precisa; possui um unívoco sentido dispositivo; h) O juiz é neutro, imparcial; i) Do ordenamento jurídico extrai-se uma certeza total sobre as condutas proibidas e permitidas. O homem comum não pode ter dúvidas nem temores em relação a ser sancionados por uma conduta permitida pelo ordenamento jurídico ( Daí derivam os princípios de legalidade e os conceitos de tipicidade abuso de direito); j) As normas jurídicas são esquemas conceituais abstratos e inflexíveis, ficando descartado como irrelevante tudo aquilo que elas não prescrevem; k) As normas sempre determinam com precisão, porque elas não podem permitir e proibir simultaneamente uma mesma conduta, sob pena de violar o princípio normativo da não contradição; l) O direito é um modelo axiomático, um sistema completo, dotado de plenitude hermética, do qual se pode extrair conclusões para todas as hipóteses; m) A ciência jurídica deve estudar, sem formular juízos valorativos o direito vigente. A atitude científica dos juristas baseia-se na aceitação sem questionamento do direito positivo vigente; n) O conhecimento do direito é um saber desvinculado de toda preocupação sociológica, axiológica, econômica, política ou antropológica. As teorias jurídicas produzem um conhecimento ideologicamente neutro; o) Desqualifica-se a possibilidade de que nos atos decisórios vinculados à produção jurídica existam componentes irracionais ou compromissos ideológicos. WARAT, Luis Alberto. Introdução geral ao direito. Porto Alegre: SafE, 1994. p. 55. 80 GROSSI, Paolo. Mitologias jurídicas da modernidade. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2004. p. 112.

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d) é consciente, ou seja, conhece todas as normas que emana, passadas e presentes, tendo ciência global do ordenamento; e) é finalista, isto é, ao sancionar uma norma, sempre tem alguma intenção; f) é onisciente, pois conhece todos os fatos e condutas, nada lhe escapando, sejam eventos passados, sejam presentes ou futuros; g) é justo, pois jamais deseja uma injustiça, tudo se resumindo numa questão de compreendê-lo bem; h) é coerente, ainda quando, aparentemente, se contradiz, bastando para isso invocar a lei superior, posterior ou especial; i) é onicompreensivo, pois o ordenamento tudo regula, explícita ou implicitamente; j) é econômico, isto é, nunca é redundante, nunca usa palavras supérfluas, e cada norma, ainda que aparentemente esteja a regular a mesma situação, tem na verdade uma função própria e específica; l) é operativo, pois todas as suas normas têm aplicabilidade, não havendo normas nem palavras inúteis; m) é preciso, pois, apesar de se valer de palavras da língua natural, vagas e ambíguas, sempre lhes confere um sentido rigorosamente técnico81. b) Completude do ordenamento

A partir da figura do legislador racional, surgem outros mitos que completaram o projeto positivista-científico do direito. Um deles, que está estreitamente ligado ao primeiro, é o da completude do ordenamento. A função da completude está ligada ao princípio da certeza do direito82, que é a ideologia fundamental desse movimento jurídico, pois enquanto se afirmar ser o ordenamento jurídico completo, as leis elaborados pelo legislador racional irão fornecer ao juiz em cada caso, uma solução, assegurando que o ordenamento jurídico possui “uma única resposta” para os diversos casos que virão a ser decididos pelos juízes. Ao partir de tal premissa, tal mito consegue conciliar entre si dois outros temas juspositivistas fundamentais: aquele segundo o qual o juiz não pode criar o direito, pois já existe uma solução elaborada pelo legislador racional; e aquele segundo o qual o juiz não pode jamais se recusar a resolver uma 81 FERRAZ JUNIOR, Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2003. p. 281. 82 A completude não era um mito, mas uma exigência de justiça; não era uma função inútil, mas uma defesa útil de um dos valores supremos a que deve servir a ordem jurídica, a certeza. BOBBIO, Noberto. Teoria do ordenamento jurídico. 10. ed. Brasília: UnB, 1999. p. 128.

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controvérsia adequada, posto que a resposta para o caso apreciado, já se encontra no ordenamento jurídico. c) Inexistência de lacunas

Ao pregarem a proibição da criação e da recusa do direito, os positivistas, com o intuito de preservar a coerência teórica na qual se baseiam, reúnem estas afirmações sob um terceiro mito83, o de que a lei seja despojada de lacunas, sem contradições, clara e sem obscuridades. O direito constitui uma totalidade que se manifesta no sistema de conceitos e proposições jurídicas em íntima conexão (completude do ordenamento). Neste sentido, toda e qualquer lacuna é, efetivamente, uma aparência84. Então, essas lacunas “aparentes” devem sofrer uma correção num ato interpretativo, não pela criação de nova lei especial, mas pela redução de um caso dado à lei superior na hierarquia. Isso significa que as leis de maior amplitude genérica contêm, logicamente, as outras na totalidade do sistema. O sistema jurídico é necessariamente manifestação de uma unidade imanente, perfeita e acabada que a análise sistemática, realizada pelo positivismo, faz explicitar85. d) Neutralidade do juiz

A pretensão de neutralidade do cientista no tratamento de seu objeto de conhecimento era uma das características das ciências exatas que foi incorporada pelo juiz na ciência do Direito. Warat enuncia que: A exclusão dos juízos de valor e a explicação causal constituem-se portanto em regras fundamentais para o método científico, de forma que só pode ser denominado “científico” aquele saber que elimine possíveis interferências dos juízos de valor e que esteja apenas voltado para o dever científico de procurar atingir a verdade dos fatos86. 83 A ideia de sistema fechado, marcado pela ausência de lacunas, ganha com isso o caráter de ficção jurídica necessária, isto é, o sistema jurídico é considerado como totalidade sem lacunas . FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. A ciência do direito. 2. ed. São Paulo: Atlas, 1980. p. 34. 84 Não se pode, pura e simplesmente, identificar a existência de lacunas com o fato de um sistema formal ser incompleto, como desejariam certos formalistas. Um sistema formal é incompleto quando não se pode deduzir dos axiomas do sistema, mediante regras de dedução aceitas, uma proposição, que se pode formular nesse sistema, nem sua negação. PERELMAN, Chaim. Lógica jurídica. São Paulo: Martins Fontes, 1998. p. 66. 85 FERRAZ JUNIOR, Tércio Sampaio. Função social da dogmática jurídica. São Paulo: Max Limonad, 1998. p. 73. 86 WARAT, Luis Alberto & PEPE, Albano Marcos Bastos. Filosofia do direito: uma introdução crítica. São Paulo: Moderna, 1996. p. 14.

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Desse modo, o juiz passou a ser um elemento neutro no ato de aplicar a lei, não podendo ser contrário nem favorável à lei, apenas constatar que ela existe e que tem determinadas consequências para aquele que a desobedecer. Ele se tornou um mero instrumento a serviço da realização da vontade onisciente e onipotente daquele ser imaginário (legislador racional) a que o seu “aplicador”87 deveria servir. O poder judiciário transformou-se num mero “órgão de execução do poder Legislativo”, cujo ato de julgar ficaria reduzido a um silogismo, a uma operação lógico-formal, estando assegurada a plena neutralidade do juiz, que passa a ser um verdadeiro oráculo88, capaz de se guiar por legislador hipotético, captando com absoluta fidelidade sua vontade, perfeitamente expressa no texto da lei89. e) Aplicação de um método

O juiz neutro (sujeito) examina a lei (objeto) e dela “extrai” uma solução para o caso levado a sua apreciação. Essa operação pela qual o objeto se constitui deve ser, obviamente, governada por um método, que fixará as bases de sistematização. Então esse método será o caminho que possibilita ao juiz (sujeito) ideias firmes sobre a lei (objeto) de sua análise. É imprescindível que a pesquisa jurídico-científica adote um método apropriado, porque a segurança e a validade do resultado do pensamento científico dele advêm. Assim, o sucesso de toda a visão positivista depende desse método. Sem um método que dê coerência e sentido à operação científica, as tentativas de conhecimento se tornam um experimento sem consistência90. Escrevendo sobre o tema, Warat acrescenta que O postulado racionalista pressupõe um direito positivo coerente, preciso, completo, não redundante, “decidível” e logicamente derivável. Mediante o dito postulado, concebe-se uma ordem jurídica sem lacunas e contradição, como forma de reassegurar ideologicamente o valor segurança: um direito positivo, autosssuficiente, preciso, claro e neutro91. 87 Não sendo sujeitos de suas decisões, mas simples instrumentos daquele ente mítico – o legislador racional – podem praticar as maiores iniquidades, atropelando o Direito, sem perder o ar piedoso dos cardeais. COELHO, Rogério Viola. O mito do grande oráculo. In: Revista Crítica jurídica n. 16. México: Universidad Nacional Autónoma de México, 1995. p. 86. 88 Instaura-se, assim, o mito do juiz oráculo – outro ente imaginário, colocado no lugar do julgador real, que seria capaz de exercer uma atividade livre de toda subjetividade humana. COELHO, p. 74. 89 COELHO, p. 80. 90 DINIZ, Maria Helena. A ciência jurídica. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2001. p. 7. 91 WARAT, Luis Alberto. Introdução geral ao direito. Porto Alegre: safE, 1994. p. 52.

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Desse modo, o direito, emanado do legislador racional – e, portanto, intrinsecamente justo – aplicado pelo juiz racional – e, portanto, imparcial – e mediatizado pelo instrumental conceitual da ciência (método lógico-dedutivo), esgota logicamente o seu itinerário. Se o ordenamento jurídico é racional, racionalizada sua aplicação, esta preservaria sua qualidade originária92. Nesse modelo de cunho racional, ao juiz compete o limitado papel da fixação dos fatos. Registre-se, contudo, que apenas os fatos levados ao processo e devidamente comprovados serão conhecidos pelo magistrado. Daí o velho brocado jurídico segundo o qual a realidade jurídica é composta apenas pelos fatos levados aos autos, pouco importando se, em razão de tal premissa, o agressor acaba por se transformar em vítima e essa em agressor. Destarte, o que tem relevância para a decisão judicial não são os fatos em si, mas sim a descrição deles constante nos autos, descrição fática esta que irá subsumir-se à norma. Pelo dogma da subsunção, segundo o modelo da lógica clássica93, o raciocínio jurídico se caracterizaria pelo estabelecimento de: a) uma premissa maior, na qual a norma deve ser enunciada em sua forma lógica-deôntica (antecedente ligado ao consequente pelo verbo dever ser). b) uma premissa menor, na qual existe a referência ao caso concreto, de cujos elementos se pode estabelecer uma ligação de pertinência com a norma enunciada na outra premissa. c) uma conclusão que por sua vez contempla a subsunção do caso à norma, ou a aplicação do direito traduzida por uma decisão94. Assim, quando o direito se apresenta lógico, agrega-se ao pensamento jurídico a crença de segurança, rigor, certeza, que são as marcas típicas do pensamento lógico95, e o direito passa a ser assimilado de um sistema 92 ANDRADE, Vera Regina. Dogmática jurídica: esforço de sua configuração e identidade. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1996. p. 69. 93 A lógica clássica é estruturada em três princípios: o princípio da identidade afirma que se uma ideia é verdadeira, então ela é verdadeira. Os dois outros princípios são decorrentes: pelo da não contradição, afirmase que nenhuma ideia pode ser verdadeira e falsa; pelo terceiro excluído, que uma ideia ou é verdadeira ou falsa. COELHO, Fábio Ulhoa. Roteiro de lógica jurídica. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2004. p. 7. 94 Fábio Ulhoa traz o seguinte exemplo para ilustrar tal modelo: 1) O empregado que, pelas provas reunidas na reclamação, for considerado como despedido sem justa causa deve ser renumerado pelas férias gozadas 2) João deve ser, pelas provas reunidas na reclamação, considerado empregado despedido sem justa causa; 3) Logo, João deve ser renumerado pelas férias não gozadas. COELHO, p. 75. 95 COELHO, p. 105.

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dedutivo, nos moldes dos sistemas geométricos e aritméticos96. Como ressalta Perelman ao afirmar que “o poder de julgar será apenas o de aplicar o texto da lei às situações particulares, graças a uma dedução correta e sem recorrer a interpretações que poderiam deformar a vontade do legislador”97. Esses “dogmas” do positivismo jurídico paulatinamente se sedimentaram no intelecto do jurista moderno, tendo sido aceitos de modo submisso, sem discussão, por terem sido fundamentados em um projeto originário de mitificação que transformou um mecanismo de conhecimento em um mecanismo de crença98, que continua “hoje” no interior da consciência de muitos juristas. 4. Conclusão Este trabalho procurou demonstrar que: a) Copérnico, Galileu, Descartes e Newton elaboraram e consolidaram as bases do paradigma científico-racional da chamada ciência moderna, marcando o início de um verdadeiro império do saber racional; b) A evolução das ideias desses pensadores, por meio do paradigma que eles solidificaram, possibilitou a adequação da observação de todos os fenômenos a leis simples, redutíveis às matemáticas e apreendidas pelo raciocínio lógico; c) Esse paradigma desenvolvido no domínio das ciências exatas se estendeu às ciências sociais. Essa só poderia ser chamada de “científica” se fosse conduzida de acordo com os métodos das ciências exatas que se coadunariam com as austeras exigências da pesquisa científica; d) Essa forte influência das ciências exatas nas sociais contamina o direito que adere ao paradigma científico-racional, por meio do positivismo jurídico (escola da exegese); e) Para que o paradigma fosse consolidado no direito, foi necessário que alguns dogmas fossem estabelecidos para transformar estas crenças em um discurso sem suspeitas. Dentre esses dogmas destacam-se: (a) legislador racional; (b) a completude do ordenamento; (c) a inexistência de lacunas; (d) a neutralidade do juiz; e (e) a aplicação de um método; 96 Preocupados com o rigor científico do enunciado jurídico, os seguidores dessa linha de pensamento esquecem os efeitos sociais do fato jurídico, salvo no que se refere à eficácia de seus procedimentos. Nessa visão cientificista do Direito, extremamente redutora e herdeira do legado positivista, o que importa realmente é a consciência lógica e científica dos enunciados e sua eficácia de aplicação. WARAT, Luis Alberto & PEPE, Albano Marcos Bastos. Filosofia do direito: uma introdução crítica. São Paulo: Moderna, 1996. p. 11 97 PERELMAN, Chaim. Lógica jurídica. São Paulo: Martins Fontes, 1998. p. 23. 98 GROSSI, Paolo. Mitologias jurídicas da modernidade. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2004. p. 12.

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f) Esse ideal de cientificidade presente no direito, por influência do paradigma, pretendeu torná-lo uma disciplina exata e objetiva, concebida como instrumento de revelação de um sentido “correto-em-si” mediante um procedimento rigorosamente organizado que pudesse garantir a segurança de um raciocínio matemático. g) Ao “desvelar” tal pensamento – paradigma científico – presente no imaginário de muitos juristas, o trabalho quis denunciar essa estrutura que transforma o direito em um sistema matemático e lógico, pois, pior do que estar aprisionado é não saber que se encontra nesta situação. 5. Referências bibliográficas ABRÃO, Bernadette Siqueira (Org.). História da filosofia. São Paulo: Nova Cultural, 2004. Coleção Os pensadores. ALMEIDA, Emanuel Dhayan Bezerra de. A influência do paradigma científico racional no sistema recursal do direito processual coletivo. Dissertação (Mestrado). Universidade dos Vale do Rio dos Sinos. Unisinos. ANDRADE, Vera Regina. Dogmática jurídica: esforço de sua configuração e identidade. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1996. BARZOTTO, Luis Fernando. O positivismo jurídico contemporâneo: uma introdução a Kelsen, Ross e Hart. São Leopoldo: Ed. Unisinos, 2004. BOBBIO, Noberto. O positivismo jurídico: lições de filosofia do direito. São Paulo: Ícone, 1995. _______. Teoria da norma jurídica. São Paulo: Edipro, 2001. _______. Teoria do ordenamento jurídico. 10. ed. Brasília: UnB, 1999. CASTORIADIS, Cornelius. As encruzilhadas do labirinto. v. 1. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997. p. 202. CHÂTELET, François. Uma história da razão: entrevistas com Émile Noel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994. CHAUI, Marilena. Cultura e democracia: o discurso competente e outras falas. 5. ed. São Paulo: Cortez, 1990. COELHO, Fábio Ulhoa. Roteiro de lógica jurídica. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2004. COELHO, Rogério Viola. O mito do grande oráculo. In: Revista Crítica jurídica n. 16. México: Universidad Nacional Autónoma de México, 1995. CORDEIRO, A. Menezes. Introdução à edição portuguesa. In: CANARIS, Claus-Wilhelm. Pensamento sistemático e conceito de sistema na ciência do direito. 3. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2002. COTTINGHAM, John. A filosofia de Descartes. Lisboa: 70, 1989.

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A PROVA E A COISA JULGADA Ana Beatriz Rebello Presgrave

RESUMO No presente trabalho, pretende-se estabelecer a relação existente entre a produção de provas durante o curso do processo e a validade jurídica da sentença ali prolatada, de modo a determinar os valores jurídicos que deverão restar protegidos e sua natureza jurídica. PALAVRAS-CHAVE: Prova. Coisa julgada. Direito adquirido. 1. Introdução A ideia de que a produção defeituosa de provas possa ensejar a chamada “relativização da coisa julgada”, ao nosso ver redunda em ofensa ao Estado Democrático de Direito, bem como a todos os valores fundamentais de uma sociedade, à segurança jurídica e ao estabelecimento da ordem social. Desse modo, optamos por descartar por completo a possibilidade de considerar juridicamente possível a hipótese de relativização da coisa julgada em face de falha probatória. Nesses termos, vem à baila a questão da sentença e sua existência jurídica, uma temática tipicamente processual, que neste trabalho será tratada sob uma óptica externa, com abordagens no âmbito da teoria geral do direito. Para tanto, far-se-á uma análise em paradoxo da sentença como ato jurídico normativo. Como tal, a sentença poderá restar situada nos três planos possíveis aos atos jurídicos – existência, validade e eficácia –, de modo que os requisitos exigidos para a alocação dos atos jurídicos em geral dentro de algum destes planos deverão, da mesma forma, compor a sentença. A coisa julgada, como qualidade que torna imutável os efeitos da sentença, deverá seguir a sorte desta, de maneira que o acessório, instituto exclusivamente jurídico, mantenha todos os atributos juridicamente destacados ao principal. Os pilares do mundo jurídico, que residem nos ensinamentos da filosofia e sociologia jurídica, serão utilizados como sustentação de todo este estudo, sempre com o objetivo de se resguardar os valores primários do Direito e do Estado Democrático. 45


Um dos valores primeiros a merecer guarida em nosso sistema é o respeito à coisa julgada. A intangibilidade da coisa julgada resulta do fato de ser este um instituto pertencente ao passado jurídico, de modo que sua alteração implicaria na absurda situação de se voltar no tempo e alterar o que já está consolidado. Deve-se esclarecer que a coisa julgada é espécie pertencente ao gênero Direito Adquirido, sendo a garantia do direito adquirido um pressuposto do Estado Democrático de Direito. Dessa forma, a violação da coisa julgada (violando-se assim o passado jurídico), redundaria em ofensa ao próprio Estado Democrático de Direito. No entanto, a proteção ao passado jurídico somente tem aplicabilidade aos atos e fatos juridicamente existentes, sendo certo que a existência jurídica dos atos jurídicos somente tem lugar se tais atos obedecerem aos requisitos essenciais à existência jurídica. 2. Ato jurídico Antes de abordar efetivamente o tema deste trabalho, faz-se necessário discorrer previamente acerca do conceito de ato jurídico e de suas características principais. É importante esclarecer, a princípio, a diferença existente entre ato e fato jurídico, dada a relevância de tal distinção para o presente estudo. Fatos jurídicos são acontecimentos que interferem na esfera jurídica mas não necessariamente a compõem, ou seja, eles podem produzir alterações no mundo jurídico, mas podem não pertencer a esse universo. Os atos jurídicos, por sua vez, são aqueles produzidos dentro da esfera jurídica, e, por esta razão, devem respeitar os limites traçados ao universo jurídico para viabilizar sua existência como tal. Ou seja, podem ser definidos como atos jurídicos os fatos (ou “suporte fático” – tradução de Pontes de Miranda para a palavra alemã Tatbestand) que representem uma consciente exteriorização de vontade cujo objeto não seja vedado pelo ordenamento jurídico. Dessa maneira, serão tidos como atos jurídicos todos os fatos humanos (somente os homens agem com consciência) voltados à obtenção de um resultado albergado pelo universo jurídico. 2.1. Requisitos essenciais Para que possam ser considerados atos jurídicos, os fatos devem conter alguns elementos que se mostram essenciais, sendo certo que a ausência de qualquer um destes requisitos redundará na inexistência do fato na qualidade de ato jurídico. 46


De acordo com a definição acima colocada, podemos estabelecer como requisitos essenciais à existência de um ato jurídico: a) vontade: o ato jurídico representa uma exteriorização de vontade, pelo que a volitividade é requisito fundamental à sua existência, o que pode ocorrer por meio de declaração ou manifestação. A vontade que não se exterioriza, que permanece interna, não é suficiente para fundamentar o ato jurídico. A manifestação de vontade é representada pelo comportamento das pessoas, sendo que a declaração, por sua vez, consubstancia-se em informação. Para tornar mais clara a distinção, vem bem a calhar um exemplo bastante simples: o sujeito que simplesmente atira ao lixo um pedaço de papel manifesta sua vontade de jogar fora aquele objeto, enquanto o sujeito que diz que deseja jogar fora o pedaço de papel declara a vontade que tem de fazê-lo. Em ambos os casos houve exteriorização da vontade. b) consciência: não basta a vontade humana para a classificação do fato como ato jurídico, visto que há necessidade de que esta vontade seja conscientemente exteriorizada. Deste modo, os atos inconscientemente praticados não poderão receber a classificação de atos jurídicos por força de ausência de um de seus requisitos fundamentais. c) objeto possível: o resultado buscado com a prática do ato deve receber guarida do ordenamento jurídico. Esta proteção poderá ocorrer de forma expressa (quando o ordenamento expressamente permite a prática daquele ato) ou implícita (o que ocorre na hipótese do ordenamento não vedar a prática daquele ato). Nestas circunstâncias temos que, caso seja constatada a ausência de algum elemento essencial, de algum dos requisitos elementares do ato jurídico, o fato não poderá ser assim catalogado e deverá permanecer fora da esfera jurídica. 2.2. Universo jurídico – A Teoria da Esfera Ao se analisar o ato jurídico, muitas vezes se menciona o termo “universo jurídico” ou “esfera jurídica”, termos estes sinônimos que significam o mundo jurídico no que toca o seu conteúdo no plano da existência. Para se analisar a existência jurídica das normas, necessário se faz recorrer à Teoria Geral do Direito, em especial aos ensinamentos de Carlos Cóssio, Hans Kelsen – jusfilósofos e sociólogos do direito - e Alfredo Augusto Becker, notável tributarista que traduziu ao direito a noção de totalidade e reciprocidade. 47


O ordenamento jurídico é um todo que não comporta fracionamento. Deste modo, toda a vez que se aplica uma norma a um determinado fato, o que ocorre em verdade, é a incidência de todo o ordenamento sobre aquela situação através da norma aplicada. Bastante elucidativa é a simbologia utilizada por Geraldo Ataliba para destacar a unicidade do sistema e da norma, citando o estudo de uma esfera. A esfera é um sólido composto por diversos elementos (cor, tamanho, densidade) e que pode ser observada por diversas ópticas distintas sem que seja fracionada, pois se retirada qualquer uma de suas qualidades, deixa de ser uma esfera. O jurista gaúcho Alfredo Augusto Becker, por sua vez, desenvolveu o chamado Cânone Hermenêutico da Totalidade do Sistema Jurídico, determinando que a verdadeira regra jurídica é a resultante lógica da reação de uma lei sobre as demais normas do ordenamento. Para Becker: “toda norma é, com efeito, arte integrante do sistema jurídico a que pertence. Desde o momento de sua criação, entre todas as normas de um mesmo sistema se exerce um complexo de ações e reações, que decorrem da necessária amalgamação das normas no ordenamento vigente. Já foi exatamente observado que a norma jurídica isolada não existe como tal na realidade da vida jurídica1.” 1

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Teoria Geral do direito Tributário, p. 116.

Em vista destas colocações, e considerando as proposições de Hans Kelsen no que toca à Norma Hipotética Fundamental e à função da Norma Constitucional, optamos por compreender o sistema jurídico como uma esfera homogênea, cuja circunferência é formada pelas normas constitucionais e pelos princípios de dignidade constitucional. Nesta esteira, todos os fatos e atos que não estiverem dentro da esfera (ou seja, os atos e fatos que não estiverem em compasso com a Constituição e com os princípios constitucionais implícitos e explícitos) padecem de existência jurídica. Um desenho demonstra com bastante propriedade e simplicidade o que se pretende dizer com esta “Teoria da Esfera”, assim: C

D A B E

A = universo do “dever ser” – mundo das ideias; B = universo do “ser” – mundo dos fatos; C = circunferência em torno da esfera: limites objetivos ao universo jurídico, composto pelas normas e princípios constitucionais; D = esfera jurídica: universo de todas as normas e princípios componentes do universo jurídico infraconstitucional; E = tangência da esfera jurídica com o mundo dos fatos: momento em que o mundo jurídico atua sobre o mundo dos fatos - subsunção (a representação da esfera demonstra de maneira bastante significativa o fato de que todo o ordenamento deposita seu peso quando da aplicação de uma determinada norma a um determinado fato).


Percebe-se, portanto, que as normas constitucionais funcionam como a casca de um ovo, dando sustentação à própria existência do ovo como tal, de sorte que a infringência a uma norma de dignidade constitucional representa a quebra de uma lasca da casca do ovo, o que, em última instância, termina por esvaziar todo o conteúdo de seu interior. 2.3. A sentença como ato jurídico A norma, assim concebida como o “dever ser” do direito, pode ser apresentada de diversas maneiras. Para facilitar o presente estudo, optamos por utilizar apenas duas classificações: a) normas de dignidade constitucional X normas infraconstitucionais; e b) normas abstratas X normas concretas. As leis em geral são normas de dignidade infraconstitucional e abstratas, visto que são dirigidas a toda uma coletividade. As sentenças, por sua vez, também possuem dignidade infraconstitucional, mas são normas concretas, haja vista serem dirigidas a pessoas definidas (as partes do processo). Hans Kelsen define com bastante propriedade o termo “norma” em sua Teoria Pura do Direito, em que assevera: Ora, o conhecimento jurídico se dirige a estas normas que possuem o caráter de normas jurídica e conferem a determinados fatos o caráter ed atos jurídicos (ou antijurídicos). Na verdade, o Direito, que constitui o objeto deste conhecimento, é uma ordem normativa da conduta humana, ou seja, um sistema de normas que regulam o comportamento humano. Com o temo “norma” se quer significar que algo deve ser ou acontecer, especialmente que um homem se deve conduzir de determinada maneira. É este o sentido que possuem determinados atos humanos que intencionalmente se dirigem à conduta de outrem. Dizemos que se dirigem intencionalmente à conduta de outrem não só quando, em conformidade com o seu sentido, prescrevem (comandam) essa conduta, mas também quando a permitem e, especialmente, quando conferem o poder de realizar, isto é, quando a outrem é atribuído um determinado poder, especialmente o poder de ele próprio estabelecer normas. Tais atos são – entendidos neste sentido – atos de vontade.

Dessa maneira, podemos dizer que quando um juiz profere uma sentença, ordenando que uma das partes deva agir de determinada maneira, nada mais está fazendo do que emitindo um ato de vontade normatizador da relação existente entre autor e réu. 3. A prova Prova é meio pelo qual as partes trazem aos autos elementos para formar a convicção do julgador. São instrumentos utilizados pelo autor e réu para nortear o julgador, possibilitando, assim, um julgamento mais justo e próximo da realidade dos fatos. 49


A prova judicial possui basicamente dois elementos: o objetivo, consistente nos próprios fatos a serem provados por meio dela; e o elemento subjetivo, que é a convicção do juiz no momento da valoração da prova. A disciplina do Código de Processo Civil pátrio admite a utilização de todos os meios legais e moralmente legítimos para que se comprovem os fatos da causa. O ônus probatório é encargo que pesa sobre as partes que pretendem produzir alguma prova, de sorte que a parte que não se desincumbir do ônus de provar os fatos que alegou sofrerá as consequências de sua não produção. Uma vez realizada a prova, ela pertence ao processo (princípio da comunhão da prova), não havendo mais que se falar em ônus subjetivo da prova. Serão objeto de prova os fatos: controvertidos (aqueles sobre os quais as partes divergem); relevantes (fatos que tenham influência para o deslinde da causa); determinados (fatos indeterminados não podem ser objeto de prova). Fatos incontroversos, evidentes, impertinentes, impossíveis, indeterminados e notórios não necessitam de prova. Por via da consequência, a sentença judicial terá sempre que fazer referência às provas constantes nos autos, pois que a decisão do magistrado deverá se pautar no conteúdo das provas: eis a única relação existente entre as provas e a sentença. Ocorre que alguns autores têm defendido a tese de que a falha na produção das provas, ou mesmo a superveniência de meio de prova mais idôneo e eficaz poderiam ensejar a chamada “relativização da coisa julgada” (consoante destacado neste trabalho, coisa julgada é uma qualidade que se atribui aos efeitos da sentença, tornando-os imutáveis). Pois bem. Com todo o respeito aos doutrinadores que assim se posicionam, optamos por adotar posicionamento em sentido diametralmente oposto. Ora, em sendo a relação da sentença com as provas simples relação instrumental (a prova é o instrumento utilizado pelo magistrado para chegar à conclusão proferida na sentença), não se pode pretender a invalidação da sentença e consequente ofensa a preceito constitucional (consoante se verá abaixo, a proteção à coisa julgada tem dignidade constitucional) por força de problemas ocorridos durante a instrução do processo. A produção de provas ocorre durante o curso do processo, respeitando-se os princípios constitucionais da ampla defesa e do contraditório, de sorte que não se pode suscitar a anulação de processo regularmente conduzido e terminado por força de descoberta a posteriori de novos meios de prova. Admitir tal possibilidade seria implodir a segurança jurídica e desmoronar o Estado de Direito, pois a qualquer momento uma nova descoberta científica poderia modificar todos os julgados transitados em julgado e devidamente executados. 50


Conforme acima explicitado, somos da opinião de que a regular produção de provas num processo redunda em sentença válida, eficaz e que transita em julgado, de modo que seus efeitos se tornam imutáveis nos termos da lei processual, por força da garantia constitucional. No entanto, outra situação surge quando a sentença, independentemente da produção de provas realizada nos autos, contrariar normas de dignidade constitucional. Nesta hipótese, e em atenção à “Teoria da Esfera” acima delineada, estaremos diante de sentença juridicamente inexistente. 3.1. Conflito entre as regras do procedimento e a verdade real Os princípios norteadores da produção das provas dentro do processo são o da ampla defesa e do contraditório. As partes deverão zelar para que sejam produzidas todas as provas capazes de embasar a pretensão deduzida em juízo, de modo a providenciar que nos autos reste configurado inequivocamente o direito defendido. O destinatário da prova, num primeiro momento, é o Juiz de primeiro grau. Entretanto, poderia se dizer que o destinatário real da prova é o Poder Judiciário, o órgão responsável pela jurisdição, o processo num sentido amplo, de sorte que cabe ao juiz analisar o cabimento ou não de determinada prova, mas ao Judiciário cabe verificar em última instância a possibilidade de sua produção (caso assim não fosse, da decisão de indeferimento de determinada prova não caberia qualquer recurso) bem como a validade de seu conteúdo. Conforme dito anteriormente, como regra vige no Brasil o sistema do livre convencimento motivado, pelo que a parte teria direito a produzir todas as provas não vedadas pelo direito de modo a comprovar suas alegações, com o escopo de motivar a decisão judicial. Certo é que o art. 5o., XXXV da Constituição Federal conferiu ao processo a qualidade de instrumento para a operacionalização da justiça, garantindo a todos o direito a uma tutela jurisdicional. Nesse espeque, a possibilidade da produção de provas pelas partes se mostra como requisito essencial à efetiva realização da justiça, viabilizando as facetas do due process of law. Certo é que o pleno acesso à justiça apenas se concretiza com a garantia do direito à dilação probatória. Indubitavelmente, o direito à prova é corolário do devido processo legal, sendo certo que ambos decorrem diretamente do Estado Democrático de Direito. 51


O direito à prova é amplo e é mesmo uma condição essencial à ampla defesa e à busca da verdade real. No entanto, embora instrumento, o processo não pode admitir ilicitudes que são exatamente o que a ordem jurídica a que dá aplicação o processo quer evitar. As provas ilícitas despertam grande polêmica doutrinária, sendo certo que quatro teorias procuram tratar do tema: a) Teoria de Carnelutti, que admite a produção das provas ilícitas (colhidas com ofensa às normas materiais), desde que não seja ilegítima (quando, na sua produção, vulnerarem as normas procedimentais). b) Teoria que não admite as provas ilícitas, em virtude de não se poder tolerar a imoralidade e a ilicitude. c) Teoria dos frutos da arvore envenenada (americana). d) Teoria da proporcionalidade – admitindo a prova ilícita como exceção, quando o interesse público estiver em evidência (alemã). Nos termos do art. 5o., LVI da Constituição Federal e art. 332 do Código de Processo Civil, temos que o direito à prova necessariamente significa direito à prova legítima, visto que a prova ilícita (seja em seu aspecto material ou procedimental) não poderá ser admitida no processo. Prova ilícita é aquela que foi obtida por meio ilícito, contrário ao direito subjetivo de alguém, ou seja aquela que foi produzida por meio de violação a 52

dispositivo de lei de natureza material. É de se destacar que a norma constitucional, ao vedar a produção de provas por meios ilícitos e não aquelas produzidas por meios ilegais (art. 5o, LVI: “são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos”), a contrario sensu consignou que os meios de prova não são taxativamente dispostos em lei, e convalidou a produção probatória por todos os meios que não estiverem vedados de forma expressa pela legislação infraconstitucional. Com relação aos critérios que devem ser utilizados para caracterizar a prova como lícita ou ilícita, temos duas grandes correntes que caminham por vias opostas, a americana e a alemã. Na doutrina e jurisprudência americana difunde-se o princípio dos frutos da árvore envenenada (fruits of poisonous tree), que determina que havendo prova ilícita no processo, essa ilicitude contamina todas as demais provas. Do outro lado, a doutrina alemã proclama a necessidade de sopesar-se os valores que estão sendo contrapostos, de modo a encontrar uma posição mais justa para a lide. Trata-se da aplicação do chamado princípio da proporcionalidade (verhältnismäBigkeitsgrundsatz), que determina, literalmente, uma relação de grau, de medida entre as normas de direito (Verhältis = relação; MaB = medida/grau; Grund = direito; Satz = norma). A nosso sentir, para se caracterizar


a prova como ilícita, há necessidade de se analisar o meio empregado para a sua produção juntamente com o objetivo pretendido no plano do direito material, ou seja, devese constatar se o direito perseguido se mostra suficientemente relevante para justificar o meio empregado na produção da prova, de sorte que os direitos fundamentais não sejam utilizados como vias avessas ao Estado Democrático de Direito. Já as provas moralmente ilegítimas são aquelas que afrontam não apenas o ordenamento jurídico, mas também a moral social. São provas que, embora não vedadas por lei – quer no que tange ao seu conteúdo, quer no que toca ao meio utilizado para sua produção –, não poderão ser admitidas em juízo por contrariarem postulados de lealdade, boa-fé e normas de convivência social.A proibição das provas moralmente ilegítimas, em verdade, trata de regra que disciplina o comportamento das partes na relação jurídica processual, pois regulamenta a impossibilidade de produção de determinada prova em face do constrangimento pessoal ou social que tal ato poderia causar. Neste passo, e considerando a posição no sentido de que lícitas são as provas não vedadas expressamente por disposição legal, e que moralmente legítimas são as provas que não firam os conceitos de moral (conceito este que varia de acordo com o contexto em que está inserto), entendemos não ser

viável a produção de prova ilícita e, ao mesmo tempo, moralmente legítima, ao passo que este último caráter se mostra como um segundo filtro para se determinar a validade da prova, de acordo com sua relação com o contexto social (primeiro se analisa se a prova ou o meio de sua produção está vedado pelo ordenamento, e depois se verifica sua legitimidade moral). 4. Coisa julgada e direito adquirido O direito adquirido, consoante se poderá compreender a seguir, erige como gênero que abarca três espécies: direito adquirido strictu sensu, ato jurídico perfeito e coisa julgada. O direito adquirido não se mostra um instituto de fácil conceituação, mesmo porque existem várias correntes doutrinárias sobre o tema sob enfoques bastante diferentes. Optamos por identificar o direito adquirido por meio de seus elementos caracterizadores, quais sejam: (1) ter sido produzido por um fato idôneo para a sua produção; e (2) ter se incorporado definitivamente no patrimônio do titular.2 Note-se que a noção de direito adquirido tem relação muito estreita com o conceito de direito subjetivo, consoante se denota através de irreprochável raciocínio delineado pelo mestre Miguel Reale e citado pelo ilustre José Afonso da Silva em sua obra 2 “Curso de Direito Constitucional Positivo”, José Afonso da Silva, p. 434, citando Gabba.

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Curso de Direito Constitucional Positivo, e que ora se transcreve, in verbis: Se o direito subjetivo não foi exercido, vindo a lei nova, transforma-se em direito adquirido, porque era direito exercitável e exigível à vontade de seu titular. Incorporou-se em seu patrimônio, para ser exercido quando convier. A lei nova não pode prejudicá-lo, só pelo fato de o titular não ter exercido antes. Direito subjetivo “é a possibilidade de ser exercido, de maneira garantida, aquilo que as normas de direito atribuem a alguém como próprio.” Ora, essa possibilidade de exercício continua no domínio da vontade do titularem face da lei nova. Essa possibilidade de exercício do direito subjetivo foi adquirida no regime da lei velha e persiste garantida em face de lei superveniente.3

Certo é que o respeito ao direito adquirido não se cinge à disposição constitucional inserta no inciso XXXVI do artigo 5o., ou no artigo 6o da Lei de Introdução ao Código Civil, mas se afigura como verdadeiro princípio de direito, de modo que o desrespeito aos seus ditames implicam desrespeito ao próprio direito. Os dispositivos normativos suso referidos destacam a impossibilidade de norma nova reger atos devidamente aperfeiçoados sob a vigência de normas anteriores, ainda que seus efeitos não hajam sido produzidos por falta de conveniência ou oportunidade do titular do direito, regulando a matéria assim: Constituição Federal de 1988 Art. 5o - XXXVI. A lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada; Lei de Introdução ao Código Civil – Decreto-Lei no 4.657/42 – Redação de acordo com o art. 1o da Lei 3.238/57 Art. 6o. A lei em vigor terá efeito imediato e geral, respeitados o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada. § 1o. Reputa-se ato jurídico perfeito o já consumado segundo a lei vigente ao tempo em que se efetuou. § 2o. Consideram-se adquiridos assim os direitos que o seu titular, ou alguém por ele, possa exercer, como aqueles cujo começo do exercício tenha termo prefixo, ou condição preestabelecida inalterável, a arbítrio de outrem. § 3o. Chama-se coisa julgada ou caso julgado a decisão judicial de que já não caiba recurso. 3

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Curso de Direito Constitucional Positivo, José Afonso da Silva, p. 434-435.


Nestes termos, a Carta Magna assegura a todos a segurança e a estabilidade nas relações jurídicas, visto que garante a manutenção dos efeitos destas relações, ainda que não exauridos antes da alteração legislativa, para após a vigência da nova lei, caso o direito haja sido adquirido sob a égide da pretérita norma, constituindo-se direito adquirido, ato jurídico perfeito ou coisa julgada. Certo é que esses institutos visam a salvaguardar a eficácia dos direitos e relações jurídicas constituídos em face de determinadas normas, evitando assim a insegurança que futuras alterações legislativas pudessem acarretar. E mais, por se tratarem de normas de índole constitucional, insertas no capítulo dos direitos fundamentais, atuam como limitadoras da atuação estatal, impedindo que qualquer ato do poder público, até mesmo a edição de novas leis, atinjam os direitos subjetivos já incorporados ao patrimônio do sujeito. Das definições estabelecidas pela Lei de Introdução do Código Civil, as quais são tidas como parâmetro de interpretação de todo o ordenamento jurídico, pode-se concluir que na concepção de direito adquirido estão compreendidas as noções de ato jurídico perfeito e de coisa julgada, visto que a consequência natural destes será o nascimento daquele. Pode-se dizer, ainda, que a coisa julgada nada mais é do que um ato jurídico perfeito de natureza jurisdicional, de sorte que a referência legislativa aos três institutos (ato jurídico perfeito, coisa julgada e direito adquirido) se faz redundante, estando todas as situações abarcadas pelo conceito de direito adquirido. No entanto, é de se salientar que o direito adquirido pode ter por causa deflagradora de sua ocorrência também a previsão do direito em norma vigente à época do fato. Em outras palavras, a partir do momento que determinado fato ensejador da aplicação de determinada norma ocorre, nasce ao detentor o direito adquirido à regência daquele fato por aquela norma. Nesta esteira temos que, mesmo se for revogada posteriormente a lei que regulamenta o ato, caso ainda não tenham sido exercitados os direitos dela decorrentes – embora se fizessem exercíveis ou estivessem condicionados a termo inicial –, continuará a lei a surtir seus efeitos com relação aos direitos que dela se ergueram enquanto se fazia vigente, em atenção ao instituto do direito adquirido. Em verdade, o direito adquirido assegura a manutenção de uma situação que se consolidou no passado, mas que será consumada no futuro, constituindo hipótese em que a norma já revogada continuará a produzir seus efeitos, de modo a possibilitar seja o ato exaurido no futuro. Nesse sentido, destaca o professor Celso Antônio Bandeira de Mello ao tratar sobre o direito adquirido: 55


Portanto, quer se investigar as hipóteses em que a simples constituição do direito no passado – sem que nele se completem seus efeitos jurídicos – é suficiente para imunizar a situação contra os mandamentos da nova lei. Este problema não se resolve com a simples noção da irretroatividade da lei, pois não se coloca a questão de seu retorno sobre o pretérito. Trata-se, isso sim, da sobrevivência dos efeitos da lei antiga, vale dizer, da persistência de seus efeitos em casos concretos, durante o império da nova lei.4 Não se trata, pois, de hipótese de retroatividade da norma, mas sim de ultra-atividade, visto que a norma já revogada continuará a produzir seus efeitos mesmo após sua revogação, de modo a possibilitar o aperfeiçoamento de direito erigido sob sua vigência. Nesse contexto podemos concluir que o ordenamento brasileiro adotou a teoria subjetiva, embasada na doutrina italiana a respeito do direito adquirido, a qual é defendida principalmente por Gabba, que destaca ser “adquirido todo direito que: a) é consequência de um fato idôneo a produzi-lo, em virtude da lei do tempo em que esse fato foi realizado, embora a ocasião de o fazer valer não se tenha apresentado antes do surgimento de uma lei nova sobre o mesmo; e que, b) nos termos da lei, sob o império da qual se deu o 4 Ato Administrativo e Direitos dos Administrados, São Paulo: Revista dos Tribunais, 1981. p. 114.

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fato de que se originou, tenha entrado imediatamente para o patrimônio de quem o adquiriu”5. No mesmo sentido está a doutrina de Pacifici Mazzoni, que destaca que “o direito adquirido é a consequência de um fato idôneo a produzi-lo em virtude da lei existente ao tempo em que este se realizou, tendo começado, antes de entrar em vigor a lei nova, a fazer parte do patrimônio de uma pessoa, ainda que esta não o tenha feito prevalecer por falta de oportunidade.”6 Em consequência, nosso sistema não admite a aplicação da teoria objetiva de Paul Roubier, a qual determina a aplicabilidade imediata das normas jurídicas com relações às situações jurídicas ainda não perfeitamente concluídas sob a égide da lei anterior, ensinando que “as lei que governam a validamente estabelecida situação jurídica, segundo a lei então em vigor, não podem ser consideradas irregulares em virtude de uma lei posterior; ou, em outros termos, a validade desta situação, segundo a lei do dia da sua criação, não pode ser posta em xeque por uma lei posterior. Pouco importa que a lei nova venha a suprimir um modo de constituição anteriormente admitido, ou venha a aumentar o número das 5 Teoria della retroattivitá delle leggi, p. 191. 6 PACIFICI MAZZONI, E. Istituzioni di diritto civile. v. 1, p. 118.


condições necessárias para essa constituição, ou modificar uma ou algumas de suas condições. Em todos os casos, a lei será retroativa se pretender molestar a constituição regularmente processada dessa situação jurídica.”7 Roubier inova em sua teoria ao determinar uma distinção entre contrato e estatuto legal8. Este autor defende que o contrato constitui situação jurídica secundária, construída sobre a base da lei, que se mostra a situação jurídica primária, de modo que as alterações legislativas deverão refletir nos contratos. Na perspectiva de Roubier, os efeitos jurídicos de atos embasados na norma primária serão regidos pela lei vigente à época de sua realização, ao passo que os efeitos decorrentes de contratos, por se tratarem de atos subjetivos, serão regidos pela lei pretérita, fazendo viger o princípio da autonomia das partes nas disposições contratuais, afirmando que “Il est evident que la choix seraît inutile si une loi nouvelle modifiant les dispositions du regime em vigueur au jour ou le contrat fut passé, venait apporter um bouleversement dans leurs prévisions9”. No sistema brasileiro, a eficácia imediata da norma resguarda os direitos que se perfizeram antes da novel lei, de sorte que somente os atos posteriores serão por esta alcançados, evitando-se assim colisão com os dispositivos constitucionais que determinam proteção ao direito adquirido. No entanto, apesar de todas as diferenças já apontadas, pode-se dizer que o sistema objetivo, defendido por Roubier, e o subjetivo, liderado por Gabba, apresentam pontos de contato, consistentes principalmente no que diz respeito à regência dos atos subjetivos – em especial os contratos – em que a lei nova não irá retroagir. Pode-se dizer que o ponto diferencial entre as teorias objetiva e subjetiva reside na circunstância da norma que impõe o respeito ao direito adquirido se situar expressa no texto da Constituição ou em lei infraconstitucional, ou seja, se o mandamento é direcionado ao legislador ou tão-somente ao juiz no momento da aplicação da lei. Neste ponto deve-se destacar que o Brasil, durante a vigência da Constituição Federal de 1937, adotou a teoria objetiva, haja vista a inocorrência da previsão de norma explícita de irretroatividade da lei no Texto Magno, de modo que a única disposição que determinava a necessidade de respeito ao direito adquirido se encontrava no artigo 6o da Lei de Introdução ao Código 7 ROUBIER, Paul. Le Droit Transitoire: Conflites des Lois dans le Temps. 2. ed. Paris: Dalloz et Sirey, 1960. p. 184. 8 Idem, ibdem – pp. 423 e 424. 9 Paul Roubier. Les Conflicts des lois dans le temps, 1929, t. 1, p. 599, In: BANDEIRA DE MELLO, Celso Antonio. Ato Administrativo e Direitos dos Administrados, p. 117.

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Civil, portanto em lei ordinária, que teve sua redação alterada de 1942 a 1957 justamente por conta desta ausência de previsão constitucional sobre o tema. Em 1942 o artigo 6o da Lei de Introdução do Código Civil passou a determinar que a lei tem eficácia imediata, porém a lei nova não poderá prejudicar as situações definitivamente constituídas ou o ato jurídico perfeito, salvo disposição em contrário. Após a Constituição de 1946, esse dispositivo foi revogado, retornando-se ao antigo sistema, em vigor até hoje. Todas as Cartas posteriores previram expressamente o princípio do respeito ao direito adquirido (em 1957 foi dada nova redação a esse artigo 6o, para voltar à redação anterior). Com todo o respeito às teorias e teses suso apontadas, arriscamos definir direito adquirido como aquele que se faz plenamente exercível por seu titular sob a égide de uma determinada norma jurídica. Em outras palavras, a partir do momento que o direito se torna exercível, por esta concepção, será regido pela norma que o tornou exercível. Essa, ao nosso ver, é a regra: se o direito se mostra exercitável, ele está incorporado ao patrimônio de seu titular. E aí, de certa forma, retornamos ao clássico conceito de Gabba, de que direito adquirido é aquele direito produzido por fato idôneo e que passa a integrar o patrimônio do seu titular desde o momento em que se preencham todos os requisitos exigidos pela lei para que surja esse direito. Note-se que a questão trazida à baila coloca em combate o princípio da segurança jurídica, que tem sido considerado a pilastra mestra do Estado Democrático de Direito, consoante proclamado pelo Ministro Marco Aurélio Mello, presidente do Supremo Tribunal Federal, em artigo publicado no Jornal do Comércio do Estado do Rio de Janeiro em 1 de outubro de 2001, do qual se transcreve trecho a seguir. O regime democrático pressupõe segurança jurídica, e esta não se coaduna com o afastamento de ato jurídico perfeito e acabado mediante aplicação de lei nova. A paz social embasa-se na confiança mútua e, mais do que isso – em proveito de todos, em prol do bem comum – no respeito a direitos e obrigações estabelecidos, não se mostrando consentâneo com a vida gregária, com o convívio civilizado, ignorar-se o pacto social, a única possibilidade de entendimento. Tampouco condiz com a democracia a modificação das regras norteadoras das relações jurídicas pelo enviesado ardil de empolgar-se lei, conferindo-lhe eficácia capaz de suplantar garantias constitucionais, isso a partir de simples interpretação. Em assim não sendo, ter-se-ia o caos, a babel, a unilateralidade das definições, em 58


nada influindo os compromissos assumidos, como se a lei vigente fosse a da selva, e não a de um mundo desenvolvido. (...)10

Assim definido o direito adquirido, cabe agora uma breve definição dos outros dois institutos: ato jurídico perfeito e coisa julgada. O ato jurídico perfeito é aquele já consumado e acabado segundo a lei vigente ao tempo em que se efetuou, de sorte que a retroatividade da lei nova se afigura plenamente inviável para o fim de desfazer as relações exaustas e liquidadas. O nobre Clóvis Beviláqua assim definiu o ato jurídico perfeito: o direito quer que o ato jurídico perfeito seja respeitado pelo legislador e pelo intérprete na aplicação da lei, precisamente porque o ato jurídico é gerador, modificador ou extintivo de direitos. Se a lei pudesse dar como inexistente ou inadequado o ato jurídico já consumado segundo a lei vigente ao tempo em que se efetuou, o direito adquirido, dele oriundo, desapareceria por falta de título ou fundamento. Assim, a segurança do ato jurídico perfeito é um modo de garantir o direito adquirido, pela proteção concedida ao seu elemento gerador.11

Ora, o ato jurídico perfeito representa o direito que foi plenamente exercido ao tempo de vigência de determinada lei, pelo que não poderá ser alcançado por qualquer alteração normativa posterior, ainda que trate de formalidades necessárias à efetividade do ato. Neste sentido ensina o digno mestre acima citado: Imagine-se que é praticado um acto jurídico qualquer, na vigência de uma lei que exige certas e determinadas formalidades, mas que a execução desse acto seja suspensa por algum tempo. Nesse meio tempo intervem uma lei nova, alterando os dispositivos referentes à forma do acto. Supponhamos que a lei nova é mais rigorosa ou simplesmente que seja differente. O interessado, apoiado nas prescrições da lei nova, poderia talvez querer fugir ao cumprimentos dos seus deveres allegando que a lei nova considera aquelle acto illegal, nullo. O Título Preliminar (Introdução) vem declarar que assim não é que desse acto, como já acabado, hão de ser deduzidas as suas naturais consequências, e a obrigação que ele faz nascer há de ser forçosamente cumprida. Este e outros casos que se podem figurar mostram que é preciso que nós digamos que a lei nova não pode prejudicar o ato jurídico que está consumado.12

10 Jornal do Comércio do Estado do Rio de Janeiro, 1 out. 2001. Disponível em: <www. gemini.stf.gov.br/netahtml/entrevistas>. 11 Beviláqua, Clóvis. Código Civil comentado, v. 1, p. 101, In: “Direito adquirido, ato jurídico perfeito e coisa julgada”, verbete – Enciclopédia Saraiva. 12 Idem. Trabalhos da Câmara, v. 4, p. 9 e 10, In: DINIZ, Maria Helena. Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro Interpretada. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2001. p. 183, nota 283.

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Em suma, ato jurídico perfeito é aquele que se consumou plenamente, que se consolidou, exauriu sob a vigência de uma norma por força de haverem sido cumpridos todos os requisitos necessários para tal naquele momento, o que não poderá ser modificado por superveniência de norma em outro sentido. A coisa julgada, por sua vez, consiste na qualidade de imutabilidade do dispositivo da sentença de mérito proferida num determinado processo, de sorte que tal imutabilidade produz efeitos para além dos limites daquele feito. Todas as questões acobertadas pela coisa julgada material, consistentes no pronunciamento judicial acerca do pedido, não poderão ser discutidas em nenhum outro processo, perfazendo-se verdadeiro direito adquirido judicial. Liebman entende que a coisa julgada não se trata de efeito da sentença, mas sim uma “qualidade especial da sentença” que reforça sua eficácia (a torna imutável como ato processual – coisa julgada formal – e constitui a imutabilidade dos seus efeitos – coisa julgada material). Destaca ainda, que a coisa julgada formal e a coisa julgada material são degraus de um mesmo fenômeno: proferida a sentença e preclusos os prazos para recurso, a sentença se torna imutável (primeiro grau – coisa julgada formal) e, em consequência, tornam-se imutáveis os seus efeitos (segundo degrau – coisa julgada material). Chiovenda, ao revés, entende que a coisa julgada é um dos efeitos da sentença, tornando a decisão judicial “lei” entre as partes, sendo que a lei concreta (sentença) substitui a lei abstrata. Prescreve: la cosa giudicata non è altro che il bene giudicato, il bene riconosciuto o disconosciuto dal giudice; (...) salve le rare eccezioni in cui una norma espressa di legge dispone diversamente, il bene giudicato diventa incontestabile: la parte a cui il bene della vita fu negato non può più reclamarlo, la parte a cui fu riconosciuto, non solo ha diritto di conseguirlo praticamente di fronte all’altra, ma non può da questa subire ulteriori contestazioni in questo diritto e in questo godimento.13

O direito positivo brasileiro adotou a posição defendida por Liebman, consoante se pode denotar através do dispositivo encartado no artigo 467 do CPC14. O problema envolve sérias discussões doutrinárias, visto que traz à tona temas como segurança jurídica, previsibilidade, legalidade, retroatividade de normas e outros que remetem o debate ao âmbito do Estado Democrático de Direito. 13 CHIOVENDA, Giuseppe. L’attuazione della legge nel processo civile. Istituzioni di diritto processuale civile. parte II.. Napoli: Eugenio Jovene, 1920. p. 320. 14 Art. 467: denomina-se coisa julgada material a eficácia, que torna imutável e indiscutível a sentença (...).

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1. Requisitos para a formação da coisa julgada A coisa julgada consiste na qualidade de imutabilidade do dispositivo da sentença de mérito proferida num determinado processo, de sorte que tal imutabilidade produz efeitos para além dos limites daquele feito. Ocorre que, para os efeitos da sentença poderem gozar da qualidade de imutabilidade gerada pela coisa julgada, é necessário que a sentença seja existente no universo jurídico, máxime por constituir a coisa julgada um instituto eminentemente processual. Desse modo, temos como requisitos essenciais para a formação da coisa julgada: a) preenchimento dos pressupostos processuais de existência: a ausência de tais elementos gerariam a inexistência do procedimento; b) preenchimento das condições da ação: a falta de qualquer das condições da ação redunda na inexistência da ação (o direito de ação está intimamente ligado ao processo e não se confunde com o direito de petição, cuja garantia se encontra encartada na Carta Magna); e c) conteúdo da sentença de acordo com as normas e princípios constitucionais: a sentença, como ato jurídico normativo concreto deve estar localizada dentro da esfera jurídica para que se possa cogitar de sua existência no âmbito jurídico. Nesta perspectiva, temos que a sentença em que algum destes elementos não esteja presente inexistirá no universo jurídico, de sorte que não se poderá falar, neste caso, de formação da coisa julgada. 2. Definição e proteção da coisa julgada: A Constituição Federal e a Lei Ordinária Neste ponto é importante destacar que a proteção à coisa julgada tem dignidade constitucional15. No entanto, o conteúdo e definição de amplitude da coisa julgada são matérias de índole legal, ou seja, cabe à Lei Federal dispor sobre o que deverá ser abarcado pela coisa julgada. Desse modo, e considerando que a lei federal definiu o espectro de abrangência da coisa julgada, seus limites objetivos e subjetivos, bem como as hipóteses e prazo de sua rescisão (v. artigos 467, 485 e 495 do Código de 15

art. 5o, XXXVI. A lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada.

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Processo Civil), temos que afora os casos tratados no art. 485 do CPC, e desde que intentada a rescisória dentro do prazo do art. 495, CPC, a sentença transitada em julgado é absoluta e irretocável, haja vista a proteção constitucional já destacada. Nessa linha, deve-se notar que, nada obstante as hipóteses de inexistência jurídica tratadas anteriormente, não se poderá admitir que as sentenças inconstitucionais sejam válidas em face do decurso do prazo para interposição da ação rescisória. Nos casos de sentença com conteúdo contrário às disposições constitucionais, mostra-se evidente a inocorrência de coisa julgada, visto que a lei infra-constitucional (norma federal) não poderá conceder a proteção constitucional a algo que é inconstitucional, sob pena de inegável inversão de hierarquia de normas (o conteúdo de uma norma federal estaria “constitucionalizando” o que é inconstitucional). Conclusões Com base nessas considerações, defendemos ser juridicamente inexistente o processo em que estejam ausentes quaisquer das condições da ação, visto que tal ausência inviabiliza a existência de relação jurídica processual. Nesses termos, pode-se dizer que há três planos de análise da inexistência jurídica da sentença. 62

O primeiro deles leva em conta a inexistência do procedimento, o que se vislumbra com a ausência de algum dos pressupostos processuais de existência (processo aqui compreendido como procedimento); o segundo plano decorre da inexistência do processo, que é fruto da ausência de alguma das condições da ação; o último plano se consubstancia na inexistência da sentença em si mesma considerada. É neste plano que se analisa a inconstitucionalidade do fundamento da sentença. Por fim, podemos afirmar que a análise da existência jurídica dos atos jurídicos, traçando um paralelo com o plano processual, no sentido de estabelecer a inexistência jurídica de processos em que não estejam presentes os pressupostos processuais de existência e as condições da ação, bem como as sentenças contrárias ao texto constitucional, representa não apenas um estudo de leis e atos normativos, mas sim uma análise dos princípios informadores do Direito e das regras suprajurídicas que não se encontram positivadas nos ordenamentos, e que tem como meta o fortalecimento do Estado Democrático de Direito e o engrandecimento da Justiça. Referências bibliográficas ALVIM, Arruda. Manual de direito processual civil. 6. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997.


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A SOCIEDADE DOS POVOS COMO NORTEADORA DO DIREITO INTERNACIONAL SEGUNDO A DOUTRINA POLÍTICA DE JOHN RAWLS Marco Jordão

RESUMO Rawls defende em sua teoria do direito internacional uma concepção política ordenada por princípios e normas estendidos a todos os povos, cujos caminhos são guiados por direitos razoavelmente justos. Esses direitos serão seguidos por povos que têm ideais e princípios em comum e que, sobretudo, partilham a mesma concepção liberal de justiça semelhante à concepção rawlsiana de justiça. Neste artigo será desenvolvido o conceito do ideal liberal de justiça, a partir de alguns princípios que encontram semelhança com a ideia rawlsiana de justiça como equidade, defendida em sua obra máxima “Uma teoria da Justiça”. PALAVRAS-CHAVE: Rawls. Teoria da Justiça. Povos bem ordenados Rawls chama de Sociedade dos Povos ou Sociedade Bem Ordenada aqueles povos que seguem esse ideal de direito e justiça, e nesse seleto grupo (foedus pacificum) se incluem povos democráticos, liberais e constitucionais. Acrescenta, ainda, a esse grupo os povos “não liberais”, contanto que eles não quebrem algumas condições específicas – chamadas de condições de direito e justiça – que defendem não só a liberdade de expressão e associação, como a livre tomada de decisões políticas feitas pelos seus cidadãos e o respeito irrestrito aos direitos humanos. Esses Povos são tipificados decentes por Rawls. Partimos, enfim, das características dos povos bem ordenados, liberais e decentes, para discutirmos, na sequência, alguns princípios do direito internacional segundo John Rawls. Características básicas dos povos bem ordenados Assim como os cidadãos são atores nas sociedades democráticas liberais, os povos bem ordenados, cujas características se assemelham às desses cidadãos, também serão atores da sociedade dos povos. E, por intermédio do seu liberalismo político, numa concepção política de sociedade bem própria, Rawls vai descrever a natureza dos povos e o modo como eles atuam através de seus governos. 65


Existem três características definidoras que Rawls apresenta para povos liberais: a primeira característica é institucional e diz que um governo deve ser razoavelmente justo e necessariamente pautado em uma constituição – escrita ou não escrita – que abarque os interesses fundamentais desse povo; a segunda é cultural e afirma que os cidadãos devem ser unidos por afinidades comuns. Esse conceito é o mesmo defendido por J.S. Mill em seu Considerations on Representative Government. A partir desse conceito, ele defende uma ideia de nacionalidade para afirmar que um povo é unido por vários motivos: limites geográficos, identidade de raça etc, mas o motivo maior é a “identidade dos antecedentes políticos, a posse de história nacional e a consequente comunidade de recordações, orgulho e humilhação; o prazer e o pesar coletivos, ligados aos mesmos incidentes do passado”, e por fim, os povos devem ter uma natureza moral, “que exige uma ligação firme com uma concepção política (moral) de direito e justiça1”. Ao explicitar as características de um povo bem ordenado, Rawls quer apresentar a construção de um “povo ideal”, e para isso ele parte dos mesmos princípios estabelecidos em sua Teoria da Justiça. Ao construir esse “povo ideal”, Rawls segue todos os passos, desde o contrato originário, passando pelo véu da ignorância e pelas estruturas básicas da sociedade, até formá-la de maneira bem ordenada. E quando ele diz que institucionalmente o governo deve ser razoavelmente justo, na verdade está defendendo que todo governo, gerenciador da sociedade bem ordenada, deve estar sob controle, tanto político como eleitoral, dos cidadãos livres e racionais. Além do mais, aquele governo deve ser o responsável em cumprir e proteger todos os interesses fundamentais estabelecidos por esse povo através do consenso por justaposição2, garantido pela constituição, seja ela escrita ou não. E ele complementa: O regime não é uma agência autônoma perseguindo as suas próprias ambições burocráticas. Além disso, não é dirigido por interesses de grandes corporações de poder econômico e corporativo privado, ocultados ao conhecimento público e quase inteiramente livre de responsabilidade3.

Todavia, quais instituições deveriam ser criadas para que tal teoria funcionasse na prática? Rawls não responde essa pergunta de maneira direta, mas deixa entender que tudo depende das estruturas básicas da sociedade. Se elas forem bem alicerçadas e os cidadãos – tanto funcionários, como 1 RAWLS, 2001, p. 42. 2 “Um consenso por justaposição (overlaping consensus) existe numa sociedade quando a concepção política da justiça que governa as suas instituições básicas é aceita por cada uma das doutrinas abrangentes, sejam elas morais, filosóficas ou religiosas e que perduram nessa sociedade ao longo das gerações”. Cf. TJ, p. 430. 3 Id., p. 42.

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não funcionários, isto é, empregados do governo e seus fiscalizadores – forem suficientemente motivados e cumpridores das suas obrigações, consequentemente, as tentações da corrupção serão afastadas em definitivo e não haverá necessidade de um órgão de controle externo. Dois exemplos disso, segundo Rawls, são o financiamento público de campanha e os fóruns para discussão de políticas públicas, pois sem uma discussão pública, com a participação direta da população, não há possibilidade de uma política pública séria, de sorte que ao discutir diretamente com a população e ouvir os clamores dos cidadãos, os políticos profissionais não têm como deixar realizar tais desejos. E quanto ao financiamento público de campanha, Rawls faz uso de um argumento bastante óbvio, mas correto: quando uma campanha é financiada por grandes empresários e o país é desigual em sua distribuição de renda e riquezas, os políticos que foram financiados por esses detentores do poder econômico, principalmente os legisladores, ficam à mercê dos interesses dos que os financiaram, e a legislação, portanto, será escrita por “lobistas”; e o Congresso se tornará um local de compra e venda de leis que beneficiem, não mais o povo, mas determinadas classes favorecidas pela má distribuição. Quanto à segunda característica, Rawls acredita que os povos liberais – bem ordenados e razoavelmente justos – devem estar unidos por afinidades comuns e com um desejo de ter governos vinculados a uma democracia constitucional. Entretanto, seria bastante problemático efetivar essa característica se essas afinidades fossem inteiramente dependentes de uma linguagem, uma cultura política ou uma história em comum. No entanto, para Rawls, com as “conquistas históricas” e com a imigração, houve miscigenação, não só de raças, como também de culturas e memórias históricas. Dessa forma, na maioria, se não em todos os casos, onde se tem governo democrático não existe mais uma identidade cultural tão arraigada como outrora. Assim: O Direito dos Povos parte da necessidade de afinidades comuns, não importa a fonte. Minha esperança é que, se começarmos de maneira simplificada, podemos elaborar princípios políticos que, no devido tempo, nos capacitarão a lidar com casos mais difíceis, em que todos os cidadãos são unidos por uma linguagem comum e memórias históricas compartilhadas4.

Para Rawls isso será possível graças à uma política liberal razoavelmente justa, pois nessa política, por prezar pela tolerância e respeito a direitos, é bastante provável que as necessidades culturais dos diversos grupos étnicos e nacionais sejam satisfeitos. 4

RAWLS, 2001, p. 32.

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Para, enfim, justificar a terceira característica – povos liberais têm certo caráter moral – Rawls parte do raciocínio de que os cidadãos em uma sociedade nacional têm respeito aos preceitos do liberalismo político e com isso são razoáveis e racionais. Então, os povos cujos princípios seguem essa mesma ordem não poderiam ser diferentes. Desse modo, toda conduta, tanto dos povos como dos cidadãos, devem ser limitadas pela percepção do que seja razoável. Mas como isso se dará, ou seja, como poderão os povos e os cidadãos limitar as suas próprias condutas? Ora, isso será feito através das leis e políticas do seu governo, por meio do qual responderá aos anseios dessas populações racionais e razoáveis, que os colocaram nessa função através do escrutínio universal. Então, seguindo o mesmo raciocínio, o filósofo americano dirá que da mesma forma que há cooperação entre cidadãos, pois estes são razoáveis, os povos liberais (bem ordenados, que fazem parte da sociedade dos povos) também terão a mesma conduta de cooperação justa entre si. Rawls conclui: “Um povo honrará esses termos quando estiver seguro de que outros povos também o farão. Isso nos leva aos princípios da justiça política no primeiro caso [cidadãos] e de Direito dos Povos no segundo5”. Soberania, povos e Estado Após apresentar as características dos povos liberais devemos nos ater nesse momento inicial, antes de apresentar os princípios dos Direitos dos Povos, à ideia de soberania, pois é nesse conceito que poderemos perceber a distinção entre povos liberais e Estado. Segundo Rawls, para se elaborar o Direito dos Povos, deve-se antes destacar que a sua ideia de soberania é bastante diferente dos defensores, seguindo a linha clausewitziana, das “ideias tradicionais de Estado”, cujos poderes são soberanos também no direito internacional positivado. Esses poderes “incluem o direito de guerrear no desempenho de políticas estatais como os fins da política dados pelos interesses prudentes (grifo nosso) racionais de um Estado6”. Um Estado, então, tem o direito de declarar guerra, e atacar preventivamente qualquer outro Estado, se aquele se sentir ameaçado por este, possibilitando a qualquer um certa autonomia frente à soberania dos demais. Essa autonomia também é estendida à relação do Estado com o próprio povo, daí a possibilidade dos exércitos nacionais serem usados contra o próprio povo caso este esteja pondo em risco a ordem e a soberania. A ideia de soberania no direito dos povos é diferente da tradição positivista 5 6

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RAWLS, 2001, p. 33. Id., p. 33.


na formulação dos princípios de justiça que norteiam a sociedade nacional. Esses princípios de justiça serão consensualmente construídos a partir da segunda posição original e o alcance será direcionado às pessoas pertencentes à uma determinada sociedade nacional, pois não estamos falando, ainda, numa sociedade dos povos. Essa sociedade é vista pela posição original como uma sociedade fechada, na qual somente pode-se entrar pelo nascimento natural e a única possibilidade de desligamento é através da morte, já que Rawls está tratando especificamente de uma sociedade nacional e não da internacional. Sendo assim, a necessidade de uma força armada é irrelevante, pois instituições como a polícia e o judiciário já serão suficientes para manter a ordem caso haja necessidade de defender o Estado democrático de direito. O Estado nacional, portanto, não pode construir um exército e cuidar de suas fronteiras caso seja necessário defender-se? O que Rawls está discutindo são apenas os direitos de justiça interna dos Estados, demonstrando que esses Estados não têm o mesmo grau de autonomia daqueles defendidos por Clausewitz, de modo que não podem tratar o seu povo à revelia, isto é, não podem fazer com ele o que bem entenderem, mesmo que dentro de sua fronteira. Se houver um direito interno de justiça de se fazer guerra, este será concebido pela Sociedade dos Povos. Embora os princípios nacionais de justiça sejam compatíveis com um direito qualificado de guerrear, eles não estabelecem por si mesmos esse direito. A base desse direito depende do Direito dos Povos, ainda a ser formulado. Esse Direito, como veremos, restringirá a soberania ou autonomia (política) interna de um Estado, o seu alegado direito de fazer o que quiser com o povo dentro das suas fronteiras.7

Tomando por base que um Estado não é mais detentor de todos os poderes, dentre eles o poder de declarar guerra e a autonomia sobre o seu povo, então o domínio destes poderes ficará restrito ao Direito dos Povos. Para Rawls, se um governo for organizado internamente segundo regras de instituições democráticas constitucionais, não terá problemas em aceitar tais condições e limites. E seguindo esse pensamento, o direito internacional, desde a Segunda Guerra Mundial, vem limitando esse direito de guerrear dos Estados, além de não permitir, através de sanções, que um governante tenha autonomia completa sobre a sua população. O que percebemos logo no preâmbulo da Carta das Nações Unidas: 7

RAWLS, 2001, p. 34.

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Nós, os povos das Nações Unidas, resolvidos a preservar as gerações vindouras do flagelo da guerra, que por duas vezes, no espaço da nossa vida, trouxe sofrimentos indizíveis à humanidade, e a reafirmar a fé nos direitos fundamentais do homem, na dignidade e no valor do ser humano, na igualdade de direito dos homens e das mulheres, assim como das nações grandes e pequenas, e a estabelecer condições sob as quais a justiça e o respeito às obrigações decorrentes de tratados e de outras fontes do direito internacional possam ser mantidos, e a promover o progresso social e melhores condições de vida dentro de uma liberdade ampla. E para tais fins, praticar a tolerância e viver em paz, uns com os outros, como bons vizinhos, e unir as nossas forças para manter a paz e a segurança internacionais, e a garantir, pela aceitação de princípios e a instituição dos métodos, que a força armada não será usada a não ser no interesse comum, a empregar um mecanismo internacional para promover o progresso econômico e social de todos os povos8.

Em outras palavras: a distinção entre povos e Estados é que os primeiros têm características singulares e distintas dos Estados, além do fato de que são essencialmente morais e derivam de uma natureza razoavelmente justa, seguindo o seu regime liberal racional. Esses povos – que estão inseridos na Sociedade dos Povos e são norteados em seus direitos e deveres pelo Direito dos Povos – não são dirigidos pela chamada razão de Estado, como fica claro nessa sentença de Lord Palmerston: “A Inglaterra não tem nenhum amigo eterno e nenhum inimigo eterno, apenas interesses eternos9”. Os Estados são os responsáveis pelas guerras e pela paz, já que eles estão constantemente preocupados em manter o poder, para realizarem os seus interesses. Esse tipo de compreensão de Estado é denunciado por Rawls como “tradicionalmente concebido”, tendo em vista que esse tipo de abordagem é a mesma desde Tucídides, defendida até hoje. Para Rawls, os interesses do Estado não podem exceder o limite do razoável, ele não pode permitir que seus objetivos passem por cima do critério de reciprocidade que se exige no tratamento com outras sociedades. Rawls conclui: 8 CARTA DAS NAÇÕES UNIDAS, Preâmbulo: Disponível em: <www.onu-brasil.org.br/documentos_carta.php>. Acesso em: 28 jul. 2006. 9 KEEGAN, John. Uma história da guerra. Trad. Pedro Maria Soares. São Paulo: Companhia da Letras, 2006. p.144.

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Uma diferença entre povos liberais e Estado é que apenas os povos liberais limitam os seus interesses básicos exigidos pelo razoável. Por contraste, o conteúdo dos interesses do Estado não permitem que sejam estáveis pelas razões certas: isto é, por aceitarem e agirem com firmeza com base em um Direito dos Povos justo. Os povos liberais, contudo, têm realmente os seus interesses fundamentais, permitidos pelas suas concepções de direito e justiça10.

Os princípios do Direito dos Povos Existem dois interesses fundamentais que são seguidos por um povo bem que se veem livres e iguais. O primeiro é desenvolvido segundo suas concepções razoáveis de justiça política no que diz respeito à proteção da sua independência política e à garantia da liberdade cultural, pois, assim, esses povos poderão garantir a sua segurança e a de seus territórios através das liberdades civis, fazendo com que os cidadãos sintam-se livres e seguros, gerando, dessa maneira, bem-estar. Já o segundo interesse tem como base a seguinte ideia: se um povo respeita, honra e conhece a sua própria história e cultura, ele desenvolverá em sua consciência comum um respeito próprio (selfrespect), passando a exigir que os outros povos os reconheçam como igual. Algo simples de se alcançar quando um povo é reconhecidamente justo, pois, sendo justo, ele estará concordando e admitindo o respeito a outros povos. Todavia, esses povos devem perceber e aceitar desigualdades de certos tipos, para que a ajuda possa ser distribuída de maneira equitativa, pois “esse reconhecimento de desigualdades é, antes, paralelo à aceitação, pelos cidadãos, das desigualdades funcionais sociais e econômicas na sua sociedade liberal11”. Logo, um povo que é justo e razoável e cujas instituições estejam alicerçadas numa democracia constitucional firme (para Rawls essa é uma característica de quem faz parte da Sociedade dos Povos), ele oferecerá a outros povos alguns termos equitativos de cooperação não só política, como também social. E esses termos serão pensados a partir da ideia de que se um povo, com características idênticas a outros povos dessa mesma sociedade, vier a aceitar esses termos, então os outros povos, também os aceitarão. 10 11

RAWLS, 2001, p. 35. Id., p. 45.

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Sendo assim, mesmo numa condição em que algum povo possa levar vantagem em violar tais acordos, eles não o farão, já que o critério de reciprocidade não deixará que isso aconteça. Essa boa vontade é conferida a todos os povos que fazem parte dessa sociedade, é em razão das escolhas feitas no contrato originário, ou seja: [...] o critério de reciprocidade aplica-se ao direito dos povos na mesma maneira que se aplica aos princípios de justiça para um regime constitucional. Esse senso razoável de devido respeito conferido a uma boa vontade a outros povos razoáveis, é um elemento essencial da ideia de povos que estão satisfeitos com o status quo pelas razões certas12.

É necessário, então, elaborar uma série de princípios que vão dar base a esse acordo. Mas, é preciso antes esclarecer, e Rawls chama a atenção para isso, pois esses princípios não serão defendidos por um Estado mundial, e ele acredita que se assim fosse haveria ou uma tirania global, ou uma insegurança permanente e os povos viveriam num estado permanente de guerra, na busca de sua liberdade e autonomia. Eis os princípios dos Direitos dos Povos13, que serão basilares para a Sociedade dos Povos: 1. Os povos são livres e independentes, e sua liberdade e independência devem ser respeitadas por outros povos, ou seja, esse é o princípio da autodeterminação: um Povo é livre para resolver seus próprios assuntos sem a intervenção de forças exteriores; 2. Os povos devem observar tratados e compromissos; 3. Os povos são iguais e são partes em acordos que os obrigam; 4. Os povos sujeitam-se ao dever de não-intervenção; 5. Os povos têm o direito de autodefesa, mas nenhum direito de instigar a guerra por outras razões que não a autodefesa; 6. Os povos devem honrar os direitos humanos; 7. Os povos devem observar certas restrições especificadas na conduta da guerra; 8. Os povos têm o dever de assistir a outros povos que vivem sob condições desfavoráveis que os impeçam de ter um regime político e social justo e decente.

Tais princípios são apenas formulações gerais que podem sofrer acréscimos, pois eles são princípios mínimos que norteiam o Direito dos Povos e, assim sendo, não é permitida nenhuma supressão deles, vindo a se formularem de acordo com a realidade de cada povo. Além do mais existem alguns princípios 12 13

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RAWLS, 2001, p. 45. Id., p. 47.


que foram colocados por Rawls apenas para que haja uma descrição mais detalhada de outros princípios – o sexto e o sétimo –, de sorte que eles já seriam auto-evidentes numa Sociedade dos Povos. Por outro lado, é mister que os povos bem-ordenados estejam cientes desses princípios básicos de justiça política, para que assim possam formular quais serão os seus modos de vida e quais condutas deverão tomar em situações pontuais, como no caso de uma guerra, por exemplo. Por isso, nesse caso específico é válido ressaltar: [...] nenhum povo tem o direito de autodeterminação ou um direito a secessão à custa de subjugar outro povo. Tampouco pode um povo protestar contra a sua condenação pela sociedade mundial quando as suas instituições internas violam os Direitos Humanos ou limitam os direitos das minorias de viver entre eles14.

Nesse momento, Rawls coloca como base de uma sociedade bem-ordenada o ideal dos Direitos Humanos. É nele que se fundamentam todos os oitos princípios de justiça que devem ser obedecidos pelos povos e cujo objetivo maior é fazer parte de uma sociedade bem ordenada. Os povos bem ordenados e a extrema emergência A ideia de extrema emergência consiste no seguinte: assim como em nossas vidas, em algum momento, passamos por sérias dificuldades, seja ela na esfera amorosa, seja ela no âmbito financeiro ou em qualquer outro, nesses momentos normalmente nós dizemos que estamos em crise. E para sairmos de uma crise é necessário, muitas vezes, tomamos medidas de emergência. Por exemplo, implorar, se humilhar para a pessoa amada e cometer “loucuras de amor”, ou, no segundo caso, pedir empréstimos com juros exorbitantes ou falar com aquele amigo ou familiar que você não vê há muito, e lhes pedir um “dinheirinho para pagar no outro mês”. Como em nossas vidas, digamos, civil, os Estados também passam por momentos de crises que requerem determinadas atitudes de emergência. E um desses momentos, sem qualquer dúvida, é a guerra. Walzer concorda com isso e afirma acrescentando: Toda guerra é uma emergência, toda batalha um possível momento de virada. No combate, o medo e a histeria sempre estão latentes, com frequência são reais, e nos empurram na direção de medidas apavorantes e comportamento criminoso. As convenções de guerra são um obstáculo a essa medida, nem sempre eficazes, mas ainda assim existem15. 14 15

RAWLS, 2001, p. 49. WALZER, 2003, p, 425.

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Além da preocupação e do medo comum da guerra, há ainda o medo desses comportamentos criminosos, tanto por parte dos soldados em luta, quanto pelos próprios civis. Além do mais é importante destacar que tais comportamentos são, muitas vezes, oportunistas, pois é nessas situações que muitos estadistas justificam chacinas, estupros e assassinatos, sempre em nome da emergência suprema e assim de uma utilidade tamanha para governante que souber aproveitá-la. É fundamental deixar bem claro quais critérios são permitidos para essas situações. Existem dois critérios, quais sejam, 1) o da iminência do perigo; 2) a natureza que esse perigo representa. Logo, existem aí dois níveis que estão inseridos no conceito de necessidade, ou seja, a necessidade de declarar uma situação de extrema emergência passados por esses dois critérios. É importante ressaltar que esses dois critérios devem ser necessariamente usados. Isto é, em uma situação de emergência deve ser aplicada, se e somente se, ambos os critérios forem levados em conta, e nenhum critério sozinho vale a proclamação da situação de emergência. Nenhum dos dois, por si só, é suficiente como exposição de uma situação extrema nem como defesa das medidas extraordinárias que se considera que a situação extrema exija. Todavia, há argumentos que podem mitigar, ou até mesmo banalizar tais critérios. Por exemplo, qual é o soldado ou mesmo um comandante que não ache a sua situação em guerra um perigo iminente e de natureza gravíssima? Walzer vai responder a isso dizendo que não é sempre que os soldados profissionais e até mesmo os cidadãos civis prefiram o ataque, por isso não é argumento que possa se universalizar. Para ele, quando estão acuados, por exemplo, se referindo aos soldados, num forte ataque em um campo de batalha, e no caso de um cidadão comum, numa situação da vida cuja violência prepondere, em situações extremas como as descritas, esses sujeitos, por vezes, decidem não atacar homens e mulheres inocentes. Na maioria das vezes essas pessoas aceitam os riscos elas mesmas e até aceitam a morte. A guerra, seguindo esse raciocínio, reflete Walzer, não é uma oposição a determinados valores absolutos, o que nesse caso (vida e morte) pode parecer um paradoxo; e ao determinar a vitória de um lado, não implica uma derrota catastrófica do outro. Sendo assim, deve-se delimitar, de maneira bastante cautelosa, quais são os momentos de desespero e calamidade para que se possa determinar realmente onde está a necessidade extrema de se declarar a emergência suprema. Como Walzer explica: Podem soldados e estadistas desrespeitar os direitos de pessoas inocentes em benefício da sua própria comunidade política? Sinto-me inclinado a dar uma resposta afirmativa a essa pergunta, sem bem que não sem hesitação e preocupação. Que escolhas eles têm? Poderiam sacrificar 74


a si mesmo a fim de fazer vigorar a lei moral, mas não podem sacrificar os seus concidadãos. [...] Talvez fosse melhor viver num mundo em que às vezes os indivíduos são assassinados, mas um mundo em que povos inteiros são escravizados ou massacrados é literalmente insuportável.

Parafraseando Rawls16, para se determinar a isenção da emergência suprema deve-se ter bastante cautela, pois ela coloca de lado a posição “privilegiada” dos civis em tempo de guerra. Corroborando com Walzer, ele afirma que somente em ameaça as democracias constitucionais e, principalmente, a ordem das sociedades bem ordenadas é que se deve invocar a emergência suprema. Considerações finais O presente artigo teve como objetivo apresentar o pensamento do filósofo americano, John Rawls, no âmbito do direito internacional. Concluímos que, para ele, só é legitimo um direito nessa ordem se for guiado por princípios de justiça liberal que sejam racionais e razoavelmente justos e que irão formar, por sua vez, os Povos Bem Ordenados. Isso quer dizer que esses povos devem, necessariamente, seguir o modelo liberal de política, sejam eles efetivamente liberais em sua formação, ou os que respeitam princípios dos direitos dos povos e por isso seguem alguns preceitos do modelo liberal de política. Esses últimos são denominados por Rawls de “decentes”, somente eles, além dos povos liberais, é que podem fazer parte da sociedade dos povos. Rawls defende, por outro lado, que o princípio básico da Sociedade dos Povos, que é a defesa dos direitos humanos, não seria somente de bases liberais, tendo em vista que qualquer “povo decente”, ou seja, “povos nãoliberais”, aceitariam esse princípio de bom grado, por ser, segundo ele, autoevidente. Para isso, como atesta Habermas17, esses princípios da justiça devem perder a rigidez para que tenham um trânsito maior entre os Estados liberais e não liberais. Finalmente, é mister lembrar que essas ideias defendidas por Rawls geraram bastante discussão e debates entre os pensadores da filosofia do direito e da política, e que o presente artigo apresenta apenas, de maneira elementar, alguns pontos do pensamento do direito internacional de John Rawls. Por isso, o debate não se encerra aqui ficando para outras oportunidades apresentar e esclarecer pontos que não foram apresentados. 16 RAWLS, 1972, p. 129. 17 Cf. HABERMAS, J. Sobre a guerra, a paz e o papel da Europa. Impulso: revista de ciências sociais e humanas. Piracicaba: Unimep, v. 14, n.35, p. 129-130, maio-ago. 2003.

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CELEBRAÇÃO E INTEGRAÇÃO DOS TRATADOS INTERNACIONAIS NO DIREITO BRASILEIRO Diogo Pignataro de Oliveira1

1. Considerações iniciais O tema da celebração e da integração, ou recepção, dos tratados internacionais nos direitos internos é assunto classicamente debatido pelos internacionalistas, haja vista a relevância que assume perante a efetivação, aplicação e observância das normas convencionais por parte dos Estados soberanos. Com o crescimento dos níveis de interdependência vivido pela sociedade internacional hodiernamente, aliado a uma cada vez maior integração política, econômica e social emergida no contexto do plano internacional, o Direito Internacional vem adquirindo uma importância paulatinamente mais acentuada, já que o incremento das relações internacionais gera a profusão de novas relações jurídicas internacionais que, por conseguinte, sobreleva o grau de consideração merecido pela temática da celebração e integração dos tratados internacionais nos ordenamentos jurídicos internos. Trazendo o enfoque para o ordenamento pátrio, ganha força a discussão constitucional acerca, inicialmente, da capacidade e da competência para celebrar tratados, conferidas ao Chefe do Poder Executivo, Chefe de Estado e de Governo que, a duas mãos, juntamente com a interveniência do Poder Legislativo brasileiro, efetivam as normas convencionais, dando-lhes vigência no plano internacional. A processualística envolvida, especificamente com relação às normas e procedimentos indispensáveis, a fim de que se dê a vigência e obrigatoriedade da norma internacional também no âmbito interno, integrando-a ao ordenamento pátrio, do mesmo modo, faz parte dessa análise, assim como determinados institutos jurídicos internacionais com aplicação constitucional, tais como as emendas, as reservas e as denúncias aos tratados. Neste contexto, o Estado sempre foi ao longo da história o principal, e por vezes o único, sujeito de Direito Internacional Público. Por essa razão, o seu papel e a sua relevância para a confluência das normas internacionais com as normas internas sempre foi encarada como uma matéria exclusivamente constitucional de cada país. 1

Advogado. Mestre em Direito Constitucional pela UFRN. Professor da FCC/Estácio de Sá

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Contudo, com o intenso e incontornável processo contemporâneo de globalização, os Estados passaram a se constituir como agentes centrais de discussões centradas na redefinição do papel do Estado no mundo contemporâneo, deveras influenciadas pela explosão de normas convencionais internacionais proclamadas na metade última do século XX, além da profusão de instituições e organismos de Direito Internacional Público, que conjuntamente gerariam aparente e indiretamente a diminuição do poder do Estado. A soberania estatal não pode e nem se encontra diminuída em face do crescimento normativo e institucional do Direito Internacional Público. A emergência, no plano internacional, de um contexto de integração política, econômica e social mais acentuado, do qual decorre, necessariamente, o incremento do sistema de Direito Internacional Público, não implica, todavia, a rejeição do primado da soberania do Estado ou mesmo a perspectiva da perda de sua condição de ente basilar na estruturação política do planeta2. A problemática reside na estruturação de normas constitucionais internas dos países que alberguem um eficaz processo de integração internacional, isto porque os Estados aumentaram demasiadamente seus consentimentos a compromissos internacionais, no entanto não estão ainda preparados para todas as instrumentalidades necessárias a assegurar o completo e irrestrito respeito aos mesmos nos seus âmbitos internos3. As divagações teóricas concernentes ao relacionamento entre essas duas esferas normativas, a internacional e a interna dos Estados, consagraram juridicamente duas concepções teóricas distintas e conflitantes que almejavam responder aos questionamentos jurídicos oriundos da recepção e integração do Direito Internacional no Direito interno. Tratam-se das teorias monista4 e dualista5. 2 DALLARI, Pedro B. A. Constituição e tratados internacionais. São Paulo: Saraiva, 2003. p. 3. 3 CASSESSE, Antonio. Modern constitutions and international law. Recueil des Cours de l’Académie de Droit International de la Haye, 1985 III, y. 192. Dordrecht: Martinus Nijhoff Publishers, 1986. p. 445. 4 A concepção monista, desenvolvida por Hans Kelsen e defendida por outros tantos, tais como Verdross, Mirkine-Guerzévitch, Lauterpacht, Jimenez de Arechaga, Miaja de La Muela, enxerga uma perspectiva de unidade do conjunto das normas jurídicas, permitindo uma plena integração do direito interno com o DI, posto que o direito é um só, seja nas relações dos indivíduos em um Estado, seja nas relações entre indivíduos de Estados diferentes, seja nas relações entre Estados, seja nas relações entre Estados e indivíduos, seja nas relações internacionais em geral. O monismo surge, portanto, como um contraponto da teoria dualista. 5 A Teoria dualista, exposta sistematicamente por Heinrich Triepel, e que encontrou repercussão em diversos países e muitos autores a ela se filiaram, podendo-se citar, dentre outros, Anziloti, Strup, Walz, Oppenheim, Diena, Perassi, Balladore Palieri e Liszt, parte da noção de que o direito internacional e o direito interno são noções diferentes, ordens jurídicas tangentes e não secantes, independentes, sem área comum, de modo que existem duas ordens jurídicas distintas e independentes, uma interna e outra internacional. A primeira com a função de regular a conduta do Estado com os seus indivíduos, e a segunda com o mister de regular as relações entre os Estados.

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O foco central da relação existente entre o Direito Internacional e o Direito interno reside na observância das ordens jurídicas a partir de um prisma unitário, em que ambas integram o mesmo sistema, ou a partir de um prisma dual, paralelo, em que as ordens jurídicas não se comunicam a priori, necessitando de mecanismos e instrumentos que possibilitem esta comunicação. Neste contexto, cada vez mais, o DI vai se tornando, ao mesmo tempo, um elemento de coesão e de tensão nas relações entre os sujeitos internacionais. É um elemento de coesão, à medida que vai conseguindo estabelecer a cooperação entre os atores internacionais e o equilíbrio do sistema internacional. Essa coesão implica a harmonização das duas ordens, interna e externa. Por outro lado, pode ocorrer, inversamente ao cenário de estabilidade, uma contradição de interesses entre as duas ordens, a estatal e a internacional6. 2. Capacidade e competência para celebrar tratados no direito brasileiro A capacidade dos Estados para celebrar tratados, ou treaty-making capacity, e a competência para celebrar tratados, intitulada de treatymaking power, distinguem-se de maneira tênue. A capacidade dos Estados para celebrar tratados internacionais está relacionada diretamente com a sua condição de sujeito de Direito Internacional Público, com a sua personalidade jurídica internacional, enquanto que a competência para celebrar tratados dirige-se para a correta indicação daqueles indivíduos que expressam a vontade dos Estados no plano internacional, “chamados a agir na qualidade de órgãos do Estado, nos termos de sua Constituição e de suas leis”7. O Estado, sujeito de DIP, reúne três elementos indispensáveis para sua formação, quais sejam, a população (composta de nacionais e estrangeiros), território e governo (efetivo, estável e independente), que somados à soberania, configuram a plenitude da sua configuração como pessoa internacional8. 6 ARIOSI, Mariângela. Conflitos entre tratados internacionais e leis internas – O Judiciário brasileiro e a nova ordem internacional. Rio de Janeiro: Renovar, 2000. p. 60. 7 MEDEIROS, Antônio Paulo Cachapuz de. O poder de celebrar tratados – competência dos poderes constituídos para a celebração de tratados à luz de direito internacional, do direito comparado e do direito constitucional brasileiro. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 1995. p. 137. 8 MELLO, Celso D. de Albuquerque. Curso de direito internacional público. 15. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2004. p. 355.

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Desta feita, a personalidade jurídica internacional do Estado decorre da unidade e permanência do Estado, isto é, existe uma vontade que se manifesta em nome do Estado, bem como a sua continuidade, apesar das mudanças que possam ocorrer no território, população e governo. A ideia de continuidade existe para manter as obrigações internacionais e a dificuldade que haveria para os terceiros Estados constatarem a ruptura ou continuidade de ordenamentos jurídicos internos. A noção de personalidade do Estado é indispensável, porque simplifica e permite a elaboração do DIP9. Assim, uma das manifestações da personalidade jurídica internacional dos Estados é justamente a capacidade que possui para celebrar tratados, para assumir compromissos internacionais. Não à toa que, disciplinando a matéria, a Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, de 1969, em seu art. 6o, assevera que “Todo Estado tem capacidade para concluir tratados”. No entanto, o Estado, caracterizado por ser uma ordem administrativa e jurídica que congrega um aparato administrativo regulado por uma legislação, exercendo poder e autoridade sobre as pessoas e coisas presentes no seu território, nada mais é do que uma pessoa jurídica representada por indivíduos. São esses indivíduos que manifestam a vontade estatal no plano estatal, assumindo compromissos, contraindo obrigações, agindo na qualidade de órgãos do Estado. Nesse contexto, a competência dos poderes constituídos do Estado para formar e declarar a vontade estatal em assumir compromissos internacionais, bem como fazê-lo representar internacionalmente, merece disciplinamento por parte da Lei Maior dos países em sede interna, quando da organização do Estado. Portanto, o conjunto de regras atinentes à competência para agir pelo Estado forma o treaty-making power. Durante bastante tempo, a competência para celebrar tratados internacionais era privilégio exclusivo e pessoal dos príncipes soberanos, mesmo porque o Estado se confundia com a sua pessoa e, desse modo, tanto a capacidade do Estado para celebrar tratados, quanto à competência do soberano para formar e declarar a vontade estatal internacionalmente se subsumia ao Rei e, portanto, se subjugava tão somente à vontade do soberano. Christian Von Wolff, em obra intitulada Jus Gentium Methodo Scientifica Pertractatum, de 1749, elevou a ideia de treaty-making power para o patamar de princípio aplicável a todos os tratados, sendo um dos primeiros a sustentar que o Estado é que deve ser considerado o verdadeiro titular da soberania, e 9

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MELLO, Celso D. de Albuquerque. Op cit. p. 373.


não mais a pessoa do monarca. O poder civil, conforme Wolff, pertence, originariamente, ao povo. O poder de celebrar tratados é parte do poder civil. Logo, pertence também ao povo, de maneira que cada Estado determina livremente a quem e em que medida esse poder de celebrar tratados pode ser delegado10. Os dois conceitos, de capacidade e competência para celebrar tratados, passam, então, a serem melhores trabalhados e discernidos, colocando aquele no espectro do poder de negociar e ajustar os tratados que pertence a todos os Estados, como exercício de sua personalidade jurídica e de sua soberania, e esse na individualização pessoal de quem, por determinação da Constituição do Estado, de sua Lei Maior, é considerado competente para manejar o poder de celebrar, concluir e ratificar compromissos internacionais, exteriorizando na prática o treaty-making capacity estatal. Desta feita, ultrapassada a fase monárquica em que os soberanos eram os únicos competentes para celebrar os tratados internacionais e obrigar o Estado por sua própria e pessoal vontade, tem-se que os Chefes de Estado é que conservam o poder de representação e de declaração da vontade estatal na esfera internacional. A determinação, para tanto, deve advir de mandamento constitucional, a exemplo do que se constata na Constituição brasileira de 198811. Conforme dispositivo constitucional já referido acima, o art. 84, VII, o Chefe do Executivo brasileiro pode conferir poderes específicos de representação a outras pessoas, acreditando os representantes diplomáticos brasileiros, para que eles negociem e concluam tratados em nome do Estado12. 10 MEDEIROS, Antônio Paulo Cachapuz de. Op cit. p. 142-143. 11 Art. 84. Compete privativamente ao Presidente da República: VII - manter relações com Estados estrangeiros e acreditar seus representantes diplomáticos; VIII - celebrar tratados, convenções e atos internacionais, sujeitos a referendo do Congresso Nacional; 12 A Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, de 1969, assim tratou a respeito da matéria: Artigo 7 Plenos Poderes 1. Uma pessoa é considerada representante de um Estado para a adoção ou autenticação do texto de um tratado ou para expressar o consentimento do Estado em obrigar-se por um tratado se: a) apresentar plenos poderes apropriados; ou b) a prática dos Estados interessados ou outras circunstâncias indicarem que a intenção do Estado era considerar essa pessoa seu representante para esses fins e dispensar os plenos poderes. 2. Em virtude de suas funções e independentemente da apresentação de plenos poderes, são considerados representantes do seu Estado: a) os Chefes de Estado, os Chefes de Governo e os Ministros das Relações Exteriores, para a realização de todos os atos relativos à conclusão de um tratado; b) os Chefes de missão diplomática, para a adoção do texto de um tratado entre o Estado acreditante e o Estado junto ao qual estão acreditados; c) os representantes acreditados pelos Estados perante uma conferência ou organização internacional ou um de

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Os plenipotenciários, assim chamados, adquirem plenos poderes do Presidente da República, para tal função, devido basicamente à “intensificação das relações internacionais e do uso dos tratados internacionais como elemento de aproximação e integração entre os Estados”13. 3. O Legislativo e os tratados À época dos Estados monárquicos, constatou-se que a competência para formar e declarar a vontade estatal, celebrando e ratificando tratados, centra-se na figura do rei, do soberano. Desse modo, em virtude da soberania estatal residir na sua pessoa exclusivamente, justificativa não existia para que houvesse qualquer outro procedimento a fim de tornar exigível internamente as disposições acordadas pelo soberano. No entanto, o advento do constitucionalismo, movimento jurídico, político e social, sobretudo a partir do século XVIII, fez emergir consigo as constituições nacionais, assim como desencadeou o processo constitucional de discussão doutrinária e política acerca da soberania, da legitimidade e da legitimação. Canotilho assim descreve a situação: Trata-se de saber, por um lado, quem detém e exerce o poder soberano; trata-se, por outro lado, de obter a justificação da titularidade e exercício desse poder. A soberania deve ter um título de legitimação e ser exercida em termos materialmente legítimos (legitimidade); a legitimidade e a legitimação fundamentam a soberania. Podemos dizer, de certo modo, que a questão da legitimidade legitimação é o lado interno da questão da soberania14.

Assim, o advento da era do constitucionalismo e da democratização dos sistemas políticos ocasionou o término dos poderes discricionários dos Chefes de Estado na conclusão de acordos internacionais. A vontade do Estado deixou de ser a do soberano e passou a ser a vontade do povo. Daí a imposição de submeterem-se os tratados ao exame e aprovação dos representantes do povo, isto é, do Parlamento ou Corpo Legislativo15. A soberania, portanto, transmudada a concepção absolutista, residia essencialmente no povo, na nação, não podendo ser exercitada senão pelos seus órgãos, para a adoção do texto de um tratado em tal conferência, organização ou órgão. 13 ARIOSI, Mariângela. Conflitos entre Tratados internacionais e leis internas – O Judiciário brasileiro e a nova ordem internacional. Rio de Janeiro: Renovar, 2000, p. 131. 14 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional. 6. ed. Coimbra: Almedina, 1993. p. 257. 15 MEDEIROS, Antônio Paulo Cachapuz de. O poder legislativo e os tratados internacionais. Porto Alegre: L&PM/Instituto dos Advogados do Rio Grande do Sul, 1983. p. 31-32.

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seus representantes, ou seja, pelo Poder Legislativo. Decorre daí o fato de que a instituição de medidas que venham a obrigar e a comprometer os cidadãos de uma determinada sociedade precisará ter origem em um órgão dotado de representatividade desta própria sociedade. Dito órgão cristaliza-se no Poder Legislativo que atua por meio da edição de leis, normas jurídicas que vinculam e obrigam aqueles que integram determinada sociedade. Nesse contexto, a assunção de compromissos internacionais, que, por conseguinte se transformam em normas jurídicas internas no afã de atingir sua finalidade de observância e aplicação, trazem inerente a criação de direitos e deveres para os cidadãos. Neste diapasão, o comprometimento estatal com tratados que vinculem interesses de toda sociedade estatal (ou pelo menos de parte dela) no âmbito internacional necessita que a vontade popular se faça presente e aprove o relacionado, de maneira a exercitar a soberania estatal, o que se perfaz mediante a deliberação daqueles que representam o povo nos poderes legislativos. O consentimento do Poder Legislativo, requisito do âmbito interno dos Estados e, por conseguinte, executado depois da negociação e assinatura dos acordos internacionais pelo Chefe do Poder Executivo e antes de sua ratificação definitiva, passou, assim, a condicionar a confirmação da vontade do Estado em cumprir qualquer tratado internacional16. Os poderes relativos à representação do Estado, bem como à competência para negociar, celebrar, assinar e ratificar tratados internacionais, permanecia com o Chefe do Poder Executivo, que, porém, encontrava-se, apenas os poderes de ratificação de atos internacionais, na dependência do consentimento dos representantes da soberania estatal: o Legislativo. Conforme as lições passadas por Cachapuz de Medeiros: Há fortes razões que advogam pela importância e necessidade da participação do Legislativo nos assuntos atinentes à política externa. Na qualidade de representação nacional, o Parlamento tem o direito de velar que os interesses do país não sejam afetados por erros ou má-fé do Executivo na direção das relações exteriores. Qualquer falta cometida pode gerar graves consequências para a nação. Portanto, é muito perigoso conceder ao Executivo absoluta liberdade para agir no domínio das relações internacionais. Os atos de política externa engajam a nação toda. O regime da soberania nacional, nascido da democratização dos sistemas políticos, inaugurado pelas revoluções francesa e norte-americana, impõe que a nação não seja comprometida por vontade outra que a sua própria. Por isso, em oposição ao método secular que reduzia a política externa à condição de problema pessoal dos monarcas, 16

MEDEIROS, Antônio Paulo Cachapuz de. Op cit. p. 15.

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surgiu a noção moderna de que a nação não pode se vincular a outra senão em virtude de sua vontade, expressa quer diretamente (hipótese teórica, de aplicação muito difícil), quer através de representação nacional, isto é, por intermédio do Parlamento, eleito pelo povo.

Permitir que o Executivo possa assumir compromissos externos sem a intervenção do Legislativo é renunciar à soberania nacional e ao direito da nação de controlar o seu próprio destino.17 Por certo que em cada sistema constitucional interno existente são especificadas as normas concernentes à concretização do aludido. A forma e o modo de submissão ao Legislativo dos tratados internacionais, os requisitos, assim como a própria desnecessidade da sujeição de acordos de importância reduzida e/ou que necessitem de urgência para vigorar18, deve explicitamente integrar o espectro normativo constitucional dos Estados, a fim de nortear a integração e a aplicação das normas internacionais nos planos internos. Desse modo, o Chefe do Poder Executivo realiza todos os entendimentos negociais condizentes com a posterior submissão à normativa convencional, no uso exclusivo de seu poder de dirigir as relações internacionais. Dito poder pode ser levado a cabo, conforme descrito alhures, por meio de agentes diplomáticos portadores de plenos poderes para tanto, de maneira que até a fase da assinatura dos atos internacionais o Chefe do Executivo é soberano e ilimitado. A partir, todavia, da aposição da assinatura no texto convencional, antes, destarte, da entrada em vigor e obrigatoriedade da norma internacional, imprescindível, na maioria dos Estados, a depender das regras constitucionalmente estabelecidas, que venha ele a ser aprovado pelos poderes legislativos estatais, os quais autorizarão ou não o Chefe do Executivo a praticar outro ato de sua inteira competência, que é a sua ratificação. O regime constitucional norte-americano de 1787 e a Revolução Francesa, ponto de partida da era democrático-constitucional, concretizaram a ideia da necessidade da ratificação, porque firmaram entendimento de que só o Poder Legislativo, como representante do povo – novo titular da soberania, tem a faculdade de aprovar os tratados e dar a estes força de lei19. A despeito das fases tradicionais para a elaboração de uma norma jurídica internacional e sua consequente entrada em vigor no plano interno consagrarem a ratificação por parte do Chefe do Executivo apenas após a deliberação 17 MEDEIROS, Antônio Paulo Cachapuz de. O poder de celebrar tratados – competência dos poderes constituídos para a celebração de tratados à luz de direito internacional, do direito comparado e do direito constitucional brasileiro. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 1995. p. 172. 18 A Constituição de Bélgica de 1831 formou duas tendências quanto à participação do Legislativo na celebração de tratados: aqueles que podem ser concluídos pelo Executivo sozinho e aqueles que necessitam do consentimento do Legislativo. 19 MEDEIROS, Antônio Paulo Cachapuz de. Op cit. p. 46.

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parlamentar favorável, alguns Estados passaram a adotar, seja na prática tão somente, seja fazendo constar em seus textos constitucionais, a eliminação da adoção do consentimento do Legislativo dos países quando a matéria não trouxer ônus demasiado ao Estado, quando for simples a questão, ou ainda em função da rapidez com que os atos internacionais devem fazer acompanhar as relações internacionais atuais. “O grande problema relacionado com esses acordos surge do fato de que a maioria das Constituições contemporâneas, à exceção daquelas que seguiram o exemplo da Carta belga de 1831, nada dispõe acerca dos mesmos”20. Assim, está a se falar dos acordos em forma simplificada, admitidos pela Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, quando em seu art. 11 asseverou que “o consentimento de um Estado em obrigar-se por um tratado pode manifestar-se pela assinatura, troca dos instrumentos constitutivos do tratado, ratificação, aceitação, aprovação ou adesão, ou por quaisquer outros meios, se assim acordado”. Os preceitos constitucionais brasileiros ao longo da história, desde 1824 até a atual Constituição de 1988, conferem expressamente a prerrogativa ao Legislativo de referendar os tratados internacionais, de modo que esteja o Presidente da República autorizado ou não a ratificá-los internacionalmente21. 20 MEDEIROS, Antônio Paulo Cachapuz de. Op cit. p. 48. 21 1824. Art. 102. O Imperador é o Chefe do Poder Executivo, e o exercita pelos seus Ministros de Estado. São suas principaes attribuições VIII. Fazer Tratados de Alliança offensiva, e defensiva, de Subsidio, e Commercio, levando-os depois de concluidos ao conhecimento da Assembléa Geral, quando o interesse, e segurança do Estado permittirem. Se os Tratados concluidos em tempo de paz envolverem cessão, ou troca de Territorio do Imperio, ou de Possessões, a que o Imperio tenha direito, não serão ratificados, sem terem sido approvados pela Assembléa Geral. 1891. Art 34. Compete privativamente ao Congresso Nacional: 12o)resolver definitivamente sobre os tratados e convenções com as nações estrangeiras; Art 48. Compete privativamente ao Presidente da República: 16o) entabular negociações internacionais, celebrar ajustes, convenções e tratados, sempre ad referendum do Congresso, e aprovar os que os Estados, celebrarem na conformidade do art. 65, submetendo-os, quando cumprir, à autoridade do Congresso. 1934. Art 40. É da competência exclusiva do Poder Legislativo: a) resolver definitivamente sobre tratados e convenções com as nações estrangeiras, celebrados pelo presidente da República, inclusive os relativos à paz; Art 56. Compete privativamente ao Presidente da República: §6o) celebrar convenções e tratados internacionais, ad referendum do Poder Legislativo; 1937. Art 54. Terá inicio no Conselho Federal a discussão e votação dos projetos de lei sobre: a) tratados e convenções internacionais; Art 74 . Compete privativamente ao presidente da República: d) celebrar convenções e tratados internacionais ad referendum do Poder Legislativo; 1946. Art 66. É da competência exclusiva do Congresso Nacional: I – resolver definitivamente sobre os tratados e convenções celebradas com os Estados estrangeiros pelo Presidente da República; Art 87. Compete privativamente ao presidente da República: VII – celebrar tratados e convenções internacionais ad referendum do Congresso Nacional; 1967. Art 47. É da competência exclusiva do Congresso Nacional: I - resolver definitivamente sobre os tratados celebrados pelo presidente da República; Art 83. Compete privativamente ao Presidente: VIII – celebrar tratados, convenções e atos internacionais, ad referendum do Congresso Nacional; 1967 com Emenda Constitucional 1/69. Art. 44. É da competência exclusiva do Congresso Nacional: I – resolver definitivamente sobre os tratados, convenções e atos internacionais celebrados pelo Presidente da República;

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A adaptação a uma nova realidade constitucional contemporânea, centrada no dinamismo da produção de normas jurídicas internacionais, com a diversificação das suas formas de surgimento, não foi consolidada pelas Constituições brasileiras22. Contudo, doutrinariamente, a partir da entrada em vigor da Constituição de 1946, começaram a surgir no Brasil, segundo Cachapuz de Medeiros23, as primeiras manifestações favoráveis à tese de que nem todos os acordos internacionais do Brasil necessitam de aprovação legislativa. Hildebrando Accioly, em artigo publicado 24, discute a matéria e opina favoravelmente à possibilidade de não submeter todos os acordos ao crivo do Legislativo, concluindo que alguns atos não precisariam passar por etapa formal para vincular o Estado e tornarem-se obrigatórios25, ainda que não haja previsão constitucional para tanto desde as Cartas de 1946 até a de 1988. Mesmo encontrando-se em plena vigência a Convenção de Havana sobre o Direito dos Tratados, de 1928, que afirma que os tratados não são obrigatórios senão depois de ratificados (artigo 5), bem como que os tratados somente vigorarão após a troca ou depósito dos instrumentos de ratificação (artigo 8), começava a ganhar substrato jurídico a tese de que deveria prevalecer no caso da verificação da necessidade ou não da ratificação de acordos internacionais o princípio da competência privativa dos órgãos constitucionais, de tal modo que, apenas quando o acordo tratasse de matéria de competência constitucional exclusiva do Legislativo é que precisaria se submeter ao crivo do mesmo. Todavia, no sistema constitucional brasileiro, acordo internacional envolvendo a criação de normas voltadas para a exploração e produção de Art. 81. Compete privativamente ao presidente da República: X – celebrar tratados, convenções e atos internacionais, ad referendum do Congresso Nacional; 1988. Art. 49. É da competência exclusiva do Congresso Nacional: I – resolver definitivamente sobre tratados, acordos ou atos internacionais que acarretem encargos ou compromissos gravosos ao patrimônio nacional; Art. 84. Compete privativamente ao Presidente da República: VIII – celebrar tratados, convenções e atos internacionais, sujeitos a referendo do Congresso Nacional; 22 Em outras Cartas Constitucionais, que não as brasileiras, que não previram especificamente qualquer disposição acerca dos acordos internacionais em forma simplificada, podem ser encontradas soluções para essa nova realidade, surgindo, assim, Cartas que preveem expressamente a celebração de tais acordos, outras que fixam uma lista de tratados que, em função de sua matéria, precisam ou não de aprovação parlamentar, e outras que proíbem claramente a celebração de acordos em forma simplificada. 23 MEDEIROS, Antônio Paulo Cachapuz de. Op cit. p. 80. 24 ACCIOLY, Hildebrando. A ratificação e a promulgação dos tratados em face da Constituição Federal Brasileira. Boletim da Sociedade Brasileira de Direito Internacional. Rio de Janeiro, jan./jul. 1948. 25 Esses atos internacionais, segundo Cachapuz, seriam: “a) os acordos sobre assuntos que sejam da competência privativa do Poder Executivo; b) os concluídos por agentes ou funcionários que tenham competência para isso, sobre questões de interesse local ou de importância restrita; c) os que consignam simplesmente a interpretação de cláusulas de um tratado já vigente; d) os que decorrem, lógica e necessariamente, de algum tratado vigente e são como que o seu complemento; e) os de modus vivendi, quando têm em vista apenas deixar as coisas no estado em que se encontram ou estabelecer simples bases para negociações futuras”. (MEDEIROS, Antônio Paulo Cachapuz de. Op cit. p. 80).

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recursos naturais compartilhadas, tais como os citados acordos de unitização internacional, fora de qualquer discussão doutrinária relacionada com a imprescindibilidade ou não da aprovação parlamentar dos tratados, necessita, inelutavelmente, ser aprovado pelo Congresso Nacional para poder ser ratificado pelo Presidente da República, haja vista a alta relevância da matéria objeto do acordo, que tratará, certamente, da forma de exercitar os poderes conferidos pela Carta Magna de 1988 à União concernente ao monopólio da pesquisa e lavra de petróleo e gás natural26. 4. A processualística normativa: decretos, promulgação e publicações O ritual procedimental descrito para a integração dos tratados internacionais no ordenamento jurídico brasileiro não se detalha em dispositivos constitucionais, nem tampouco em leis ordinárias ou complementares que pudessem regulamentar os preceitos dos artigos 49, I, e 84, VIII, da CF/88. A práxis interna consolidou a processualística envolvida, discriminando ainda as normas necessárias, a fim de que se completasse todo o processo de vigência nos planos interno e internacional de tratado assinado pelo Chefe do Poder Executivo. Não se pode olvidar a relevância do papel assumido pelos Regimentos Internos do Senado Federal e da Câmara dos Deputados quando do trâmite dos atos internacionais por aquelas casas, almejando a aprovação parlamentar que possibilite a ratificação presidencial. Algumas propostas legislativas intentaram justamente preencher esse vácuo normativo existente no Brasil, seja através da edição de leis ou resoluções regulamentadoras27. Porém, a necessidade de prever internamente, mediante normas, que se assegura a observância e a aplicação dos tratados internacionais que foram concebidos no uso das atribuições soberanas do Estado brasileiro, parece merecer uma roupagem constitucional. Nesse diapasão, apresenta Dallari algumas indicações de alteração do texto constitucional, as quais devem prever as seguintes características: 26 Art. 177. Constituem monopólio da União: I – a pesquisa e a lavra das jazidas de petróleo e gás natural e outros hidrocarbonetos fluidos; (...) § 1o A União poderá contratar com empresas estatais ou privadas a realização das atividades previstas nos incisos I a IV deste artigo observadas as condições estabelecidas em lei. 27 Cachapuz bem esclarece e detalha algumas dessas propostas (Cf MEDEIROS, Antônio Paulo Cachapuz de. O poder de celebrar tratados – competência dos poderes constituídos para a celebração de tratados à luz de direito internacional, do direito comparado e do direito constitucional brasileiro. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 1995. p. 450-457).

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a) previsão explícita da incorporação do tratado internacional ao ordenamento jurídico nacional; b) reconhecimento do status diferenciado para o tratado no quadro das normas jurídicas vigentes no Estado, atribuindo-se-lhe posição hierárquica superior à das leis complementares e ordinárias; c) possibilidade de apreciação da constitucionalidade de tratado pelo Supremo Tribunal Federal previamente à deliberação do Congresso Nacional; d) previsão da exigência de promulgação de emenda constitucional aprovada pelo Congresso Nacional previamente à aprovação legislativa de tratado nos casos em que tal condição for assinalada pelo STF; e) previsão de quorum qualificado de três quintos para aprovação de tratado pelo Congresso Nacional; f) previsão da exigência de aprovação prévia do Congresso Nacional relativamente ao ato de denúncia de tratado; g) reconhecimento da vigência das normas emanadas de organizações internacionais de que o país faça parte, desde que expressamente previsto nos respectivos tratados constitutivos28.

Enquanto não há uma definição e uma regulamentação mais clara e evidente, seja constitucional ou infraconstitucional, a despeito das discussões doutrinárias acerca de tal ponto, de acordo com Cachapuz29, dois processos básicos são utilizados para a celebração de tratados internacionais: um processo solene e completo; e outro mais simples e abreviado. O processo solene e completo tanto pode se originar a partir da negociação e adoção do texto, via assinatura; no processo abreviado é necessária a existência de um tratado internacional já em vigor, o qual o Executivo pretender aderir, solicitando ao Congresso sua autorização. A ordem seguida pelo primeiro processo – o solene – é a seguinte: negociação, assinatura, mensagem ao Congresso, aprovação parlamentar via publicação de decreto legislativo, ratificação pelo Presidente no plano internacional (entrada em vigor neste plano, caso o número mínimo de ratificações tenha sido atingido) e promulgação presidencial (entrada em vigor no plano interno); já no processo abreviado, como a assinatura possui o condão de pôr o tratado em vigor, dispensando a fase da aprovação parlamentar, tem-se apenas a negociação, a assinatura (ou troca de notas diplomáticas) e a publicação. Sendo assim, após a assinatura do acordo internacional, fato que conclui as negociações e tratativas relacionadas com as disposições convencionais, 28 127. 29

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DALLARI, Pedro B. A. Constituição e tratados internacionais. São Paulo: Saraiva, 2003. p. 126MEDEIROS, Antônio Paulo Cachapuz de. Op cit. p. 457-458.


não obrigatoriamente e sem tempo fixado para tanto, o Presidente envia ao Congresso Nacional mensagem do Executivo, submetendo ao seu crivo o texto de determinado tratado internacional, juntamente com a exposição de motivos do Ministro de Estado das Relações Exteriores. A partir de então se tem o encaminhamento e o processamento da matéria pelo Congresso, primeiro na Câmara dos Deputados e posteriormente no Senado Federal, quando ter-se-á sua aprovação ou rejeição cristalizada em Decreto Legislativo promulgado pelo Presidente do Senado, encerrando, assim, a participação do Poder Legislativo. A aprovação pelo Congresso de tratado, mediante Decreto Legislativo, não obriga o Presidente da República a ratificá-lo internacionalmente, posto ser uma prerrogativa privativa sua, fazendo-o quando e se desejar e achar conveniente. Havendo a ratificação por parte do Chefe do Executivo, o ato internacional precisará ser promulgado pelo Presidente, através de Decreto, para poder adquirir vigência interna e se incorporar à legislação pátria. Por tudo exposto, é de se inferir que a vigência do tratado no plano internacional resulta do atendimento de requisitos imprescindíveis, fixados no seu próprio corpo (número mínimo de ratificações e/ou decurso de prazo), de maneira que a vigência do tratado para o Brasil dependerá do depósito de ato de ratificação ou adesão, formalizando sua aceitação soberana aos dispositivos convencionais, desde que atingidas os requisitos postos pelo próprio tratado para viger no plano internacional. Só posteriormente é que se poderá perceber a vigência interna do tratado, que precisa verem concluídas as etapas anteriores, além de que seja dada a devida publicidade do conteúdo normativo, fato que se consolidará através da promulgação do tratado por meio da edição de decreto presidencial. 5. Emendas, reservas e denúncia de tratados Os textos dos tratados internacionais podem sofrer modificações antes e depois de entrarem em vigência, valendo para um ou alguns membros separadamente, ou genericamente, para todos, a depender da situação. Por outra via, os tratados possuem como uma das formas de sua extinção a declaração por uma ou várias partes integrantes da norma convencional de que não mais deseja se subsumir às suas normas, a depender de prévio e expressa previsão autorizadora no texto original. Está-se a tratar das emendas e reservas aos tratados no primeiro plano, e da denúncia em seguida, respectivamente. 89


A reserva pode ser definida como uma declaração unilateral feita por um Estado ao assinar, ratificar, aceitar ou aprovar um tratado, ou a ele aderir, com o objetivo de excluir ou modificar o efeito jurídico de certas disposições do tratado em sua aplicação a esse Estado. Portanto, seu momento de consolidação é prévio à entrada em vigor da norma jurídica, de maneira a condicionar a sua observância e aplicação por parte do país à exclusão e modificação de determinada(s) parte(s) do texto. Entretanto, existem limitações ao poder estatal de estabelecer reservas a um tratado internacional. Essas limitações encontram-se apostas no artigo 19 da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados e se referem: i) à não proibição de formulação de reservas pelo próprio tratado; ii) à não proibição do dispositivo em específico de formulação de reservas, apesar da existência de outras proibições ditadas pelo texto convencional; e iii) quando as reservas não sejam incompatíveis com o objeto e a finalidade do tratado. As reservas aos tratados internacionais têm o condão de modificar suas relações com as outras partes da norma no que concerne à sua aplicação e observância quanto àquela parte tão somente detalhada e especificada. As emendas aos tratados internacionais, por sua vez, são acordos produzidos pelas partes, na medida da possibilidade que os mesmos autorizarem expressamente, a fim de alterar, suprimir, acrescentar, o texto originariamente vigente. Essa forma de modificação dos tratados deve obedecer ao que define o próprio tratado com relação à sua ocorrência, devendo, no caso dos acordos bilaterais, exigir a anuência das duas partes para se efetivar, e no caso dos multilaterais, exigir a concordância de todas as partes ou de apenas algumas, caso o tratado preveja essa possibilidade, bem como não prejudique direitos dos outros envolvidos e nem traduza uma incompatibilidade com a finalidade e o objeto do tratado. Aos Poderes Legislativos, portanto, não cabe formular reservas e emendas aos tratados internacionais, posto que tal competência é de exclusividade absoluta do Chefe do Poder Executivo. O Legislativo pode, tão somente, condicionar sua aprovação à aposição de determinadas reservas no acordo, caso haja essa possibilidade. Porém emendar tratados, impossível, pois a celebração de atos internacionais (será um novo tratado aquele que emenda um anterior a ele) é prerrogativa do Executivo. Ao Congresso Nacional cabe a aprovação ou rejeição do conteúdo do ato internacional, não lhe cabendo modificar o conteúdo do mesmo. Outrossim, o direito de reserva se apresenta como uma faculdade a ser exercida pelo 90


plenipotenciário ou negociador e apenas em atos internacionais coletivos. O Congresso Nacional aprova ou rejeita, in totum, tratados, convenções ou quaisquer outros atos internacionais que lhes são submetidos. A rejeição de um ou mais artigos, ou a proposta de qualquer modificação, importa na rejeição global do acordo30. Por fim, tem-se a denúncia dos tratados, que se configura em uma das formas de se extinguir os efeitos de uma norma convencional com relação a um determinado Estado, desde que o próprio tratado preveja a possibilidade da retirada de uma das partes, ou ainda mediante o consentimento de todas elas. É bastante cediço que o Executivo precisa de aprovação parlamentar para poder ratificar um tratado internacional e fazê-lo ter vigência interna e internacionalmente. No entanto, interessante questionamento se perfaz quando se analisa se prescindiria o Executivo de autorização expressa do Legislativo, que aprovou esse mesmo ato internacional, para poder denunciá-lo. As respostas se bandeiam para dois lados: um que não enxerga a necessidade de aprovação da denúncia pelo Legislativo, pois a sua participação apenas autoriza, e não obriga, o Estado a ratificar o tratado, de modo que o juízo de oportunidade permanece com o Executivo tanto na ratificação quanto em uma eventual denúncia; o outro que prefere vislumbrar a questão sob o enfoque da competência para resolver definitivamente sobre tratados ao Legislativo, cabendo ao Executivo tomar as medidas no plano internacional, desde que devidamente autorizado pelo Congresso. Este é um ponto para o qual há procedimento já consagrado na prática brasileira de tratados internacionais, mas que sofre relativo questionamento doutrinário, conforme posto. A praxe reconhece para o Presidente da República a titularidade do poder de denunciar tratado celebrado pelo Brasil, compreendendo-se no âmbito de tal prerrogativa tanto a efetivação dos atos formais com essa finalidade como a decisão solitária a respeito da conveniência e oportunidade de fazê-lo31. 6. Considerações finais O presente artigo buscou fazer uma análise acerca da celebração e integração dos tratados internacionais no sistema constitucional 30 HERMES JÚNIOR, João da Fonseca. O poder legislativo e os atos internacionais. e ARAÚJO, João Hermes Pereira de. A processualística dos atos internacionais. apud MEDEIROS, Antônio Paulo Cachapuz de. O poder de celebrar tratados – competência dos poderes constituídos para a celebração de tratados à luz de direito internacional, do direito comparado e do direito constitucional brasileiro. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 1995. p. 439. 31 DALLARI, Pedro B. A. Constituição e tratados internacionais. São Paulo: Saraiva, 2003. p. 115.

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brasileiro, passando pelas relações existentes entre o Poder Legislativo, no cumprimento de suas funções de ratificadora dos direitos e obrigações que submetem à comunidade, posto serem seus representantes democraticamente eleitos, pela processualística empregada no Brasil para a internalização das normas internacionais, como também pelas modificações que os tratados podem sofrer antes e depois de entrarem em vigência (emendas, reservas e denúncias). O que de fato ocorre com os Estados na contemporaneidade não é o enfraquecimento de seu poder normativo, mas sim um efetivo exercício da soberania estatal que lhes são inerentes, de forma a assumir compromissos na esfera internacional e, por conseguinte, adquirindo responsabilidades. Desse modo, a soberania não se limita à definição materializada na concepção de seu próprio ordenamento jurídico, mas também, e de modo crescente, na participação livre e independente na edificação de um ordenamento jurídico supranacional. Daí o porquê da relevância da reflexão acerca dos mecanismos atuais de integração do Direito Internacional Público ao direito interno. A preocupação condizente à temática do relacionamento do Direito Internacional com o Direito Interno se reveste de extrema importância na presente análise, haja vista a intensificação das relações interestatais ser um dos grandes motivos pelos quais se verifica o crescimento da necessidade acerca da clareza jurídica quanto ao relacionamento das normas convencionais internacionais e o direito interno, visando sua aplicação, observância e execução. Referências bibliográficas ACCIOLY, Hildebrando. A Ratificação e a Promulgação dos Tratados em face da Constituição Federal Brasileira. Boletim da Sociedade Brasileira de Direito Internacional. Rio de Janeiro, jan./jul. 1948. ARECHAGA, Eduardo Jiménez de. El Derecho Internacional Contemporaneo. Madrid: editorial Tecnos, 1980. ARIOSI, Mariângela. Conflitos entre tratados internacionais e leis internas. São Paulo: Renovar, 2002. BARBOSA, Salomão Almeida. O poder de celebrar tratados no direito positivo brasileiro: a experiência prática do Brasil. Revista do Programa de Mestrado em Direito do UniCEUB, Brasília, v. 1, n. 1, p. 15-30, jul./dez. 2004. ______. O Poder de Celebrar Tratados no Direito Positivo Brasileiro. Revista de Informação Legislativa. Brasília, n. 162, ano 41, p. 353-361, abril/junho 2004. BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. São Paulo: Malheiros, 2003. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Constituição dirigente e vinculação do legislador. Coimbra: Coimbra, 2000. ______. Direito constitucional. 6. ed. Coimbra: Livraria Almedina, 1993. ______. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Coimbra: Almedina, 1997.

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ESPAÇO URBANO E GOVERNABILIDADE NOTAS SOBRE CIDADE, METRÓPOLE E GOVERNABILIDADE Ângelo Magalhães Silva1

RESUMO Este artigo aponta alguns dos fatores que garantem ou dificultam o exercício da governabilidade metropolitana. As observações são de caráter conceitual e destacam alguns elementos que possibilitam refletir sobre a cidade, a metrópole e a governabilidade. São apontados fatores de ordem política e econômica em que o exercício da governabilidade metropolitana é por vezes facilitado; outras, dificultado. Eles são inseridos num contexto conceitual de metrópole enquanto espaço urbano formador do território. Os empecilhos políticos ao exercício da governabilidade metropolitana se remetem ao enfraquecimento do poder institucional enquanto gerenciador de interesses conflitantes entre grupos sociais que habitam o espaço metropolitano e a cidade. Essa dificuldade está associada ao novo sentido aplicado às políticas públicas urbanas, especialmente as que projetam cidades e as metrópoles como mercadorias diante do cenário nacional e internacional capitalista. Tais fatores assinalam que esses espaços urbanos atravessam uma crise de gerenciamento político. Outros fatores que dificultam a governabilidade metropolitana referemse à limitada habilidade tributária; a existência de uma política econômica municipal “conservadora” e a dependência que algumas cidades possuem das transferências governamentais. Esses fatores insurgem-se como inibidores do desenvolvimento urbano, sendo apropriado refletir sobre uma possível reforma econômica. PALAVRAS-CHAVE: Espaço urbano. Cidade. Governabilidade. A cidade produtiva e competitiva: características contemporâneas A produtividade e a competitividade representam algumas das características da cidade contemporânea, sobretudo dos grandes centros urbanos. Um novo modelo de cidade surge, inserida em um circuito global e competitivo de 1 Sociólogo e Bacharel em Ciência Política pela UFRN. Mestre em Ciências Sociais e Doutorando em Ciências Sociais pela UFRN. angelomagalhaes@bol.com.br

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troca de mercadorias e de informações. Como afirma Manuel Castells (2006), existe contemporaneamente a constituição de uma rede de informações de amplitude mundial e, simultaneamente, a emergência de cidades em rede e em competição. É difícil, no entanto, estabelecer o marco preciso onde essas mudanças tenham tido início e acometido algumas cidades. Um dos pontos comuns descritos por muitos sociólogos, geógrafos e historiadores aponta a globalização como o marco inicial mais provável, causa das principais mudanças nas cidades e regiões metropolitanas, tornando-as, assim, espaços urbanos competitivos em um cenário econômico e político globalizado. As interpretações são várias e contrapostas a esse respeito, pelo fato de a globalização não conseguir globalizar tudo nem atingir a todos e, especialmente, por toda cidade não ser globalizada ou estar diretamente condicionada pelas mudanças do mundo global. Num contexto geral de muitas mudanças na economia e na política, “a tudo a expressão se refere, e tudo se refere à expressão”, assim como afirma Valença, (Valença e Gomes, 2002). É certo que encontramos tipologias urbanas integradas, em rede, mas encontramos espaços urbanos excluídos de alguns processos econômicos e políticos ditos globais. São muitos no Brasil e nos demais países do mundo os pequenos municípios e cidades alheias à globalização. Existem eventos locais e globais distintos, em que são atribuídos graus de importância econômica e política diferenciada no cenário competitivo. A globalização trouxe a transnacionalização da econômica, o alargamento dos acordos e práticas econômicas para além dos seus locais de origens, especialmente dos países economicamente hegemônicos. Em meio à transnacionalização econômica, exigiu-se o enxugamento da máquina do estado, e as cidades contemporâneas, assim como outras instituições políticas, surgem como cumpridoras de um novo papel histórico, alguns não resolvidos pelo poder institucional. Essa é a compreensão que alguns teóricos e gestores urbanos vêm atribuindo à cidade e a algumas regiões metropolitanas na atualidade. Com o deslocamento das economias nacionais para os cenários das trocas capitalistas globais e, em alguns aspectos, a ineficiência dos Estados em suprir as demandas sociais, vêm possibilitando a construção de um outro sentido político e econômico para os centros urbanos. Nessa perspectiva, a política e o econômico reduzem-se a atribuições que cada cidade pode vir a possuir como um diferencial comparativo e competitivo perante um cenário de exigências nacionais e internacionais. Assim, mesmo não sendo possível identificar um marco comum para as cidades no que tange aos efeitos econômicos e políticos causados a elas pela globalização, por outro lado é possível encontrar uma afirmativa: as cidades, concebidas como o lócus dos 96


encontros cotidianos, dos achados enigmáticos e, sobretudo, do espaço do diálogo participativo, a nova lógica econômica e política contemporânea internacional parece inverter seu sentido. Se “a política mudou de lugar”, com afirma Iane (Iane apud Andrade, 2002), é possível afirmar que as relações espaciais de poder tenham também mudado os seus referenciais, tendo em vista uma “economia que também mudou de lugar”. Mudou o rumo e os sentidos construídos e atribuídos às cidades historicamente. Elas perdem cada vez mais o seu caráter histórico nacional de serem o ambiente da política para emergirem como espaços urbanos do consumo mundializado, da violência hedionda e descontrolada, de empreendimentos milionários ou inacabados, de um sistema de transporte e de saúde ineficientes. De um espaço público centralizado no privado e no secreto. A lógica desse modelo de cidade resulta de muitas imposições expressas por uma nova forma de gestão urbana emergente. Essas novas formas de gestão resultam de novos comportamentos dos gestores urbanos, de acordos econômicos entre cidades, bancos, empresas; parcerias financeiras com empreendedores nacionais e internacionais. Resulta, também, de novos interesses fundamentados no gerenciamento empresarial que inspiram gestores públicos a administrar cidades semelhantemente ao gerenciamento empresarial privado. É necessário, portanto, desenvolver as potencialidades urbanas e econômicas e que estes estejam “qualificados” diante do mercado (inter)nacional. À medida que, como afirma Santos (2000), numa escala conceitual mais ampla, o território também se transnacionaliza, as cidades, consideradas partes compreendidas em uma territorialidade, também se içam como algo supranacional, como afirma Ana Fani (2000). Para ambos os autores, os efeitos da globalização são perceptíveis tanto no plano espacial, quanto no plano das ações individuais, especialmente redefinindo ações de gestão pública tradicional e, em muitos casos, substituídas pela lógica do modelo de gestão empresarial. É nessa perspectiva que investir e administrar cidades passou a ser um grande negócio. Dessa forma, a competitividade e a produtividade insurgem, no âmbito das mudanças globais da economia capitalista, como uma das características das cidades e de algumas regiões metropolitanas. Essas características possibilitam entender a metáfora da cidade mercadoria descrita por Vainer (2000). Em paralelo ao avanço dos reflexos globais da economia mundial, o estereótipo da cidade produtiva e competitiva se deve, sobretudo, à lógica e à aceitação de um modelo de planejar e gerenciar as cidades, o planejamento estratégico urbano. 97


O planejamento estratégico é visto mundialmente como muito bem-sucedido por ter sido desenvolvido com muita eficácia em algumas cidades europeias no início dos anos 70. Barcelona é um dos exemplos de centros urbanos europeus que atuaram como “vitrine” para a venda desse novo modelo de administrar o espaço público. Ideologicamente, o planejamento estratégico é sustentado pela démarche da estratégica empresarial, vista como positiva e facilmente aplicável aos demais centros urbanos mundiais, integrados ou não à economia global2. A sua receita, segundo os teóricos, deve seguir pela capacidade que a cidade produtiva e competitiva possa deter para atrair os investimentos do capital internacional, conquistar novas indústrias nacionais e internacionais e, sobretudo, ter à sua disposição um contingente favorável de força de trabalho disponível, qualificada e barata. São necessários, ainda, ricos consumidores, localizados num ambiente político institucional seguro, garantidor de novos e vultosos investimentos e inibidor de possíveis 2 É possível perceber, como afirma Santos, que as pequenas e médias cidades estão tendencialmente fadadas a atuarem como atores também competitivos, a exemplos dos já atuantes grandes centros urbanos. Existe uma espécie de poder central comandada pelas grandes instituições financeiras internacionais, que imprimem condição para o envio de recursos ou execução de determinados empreendimento urbanos. Nesse sentido, cidades pequenas e médias necessitam adequar suas agendas econômicas a essas novas exigências internacionais, especialmente por serem cooptadas para ingressar no cenário internacional competitivo entre cidades.

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crises econômicas. Esses elementos qualificam as cidades e proporcionam sua adesão à démarche empresarial colocando-as aptas a disputar parcelas do capital internacional perante as demais cidades em competição. Assim, as cidades para poderem competir e atrair “novos parceiros” necessitam produzir. Os gestores urbanos necessitam produzir um novo modelo de cidade, qualificando seus atributos. Essa produção se reflete na capacidade que o gestor urbano possui de implementar meios de consumo coletivos ou individuais, criar ou atrair grandes empreendimentos urbanos, gerir uma rede de produção de bens e serviços e lazer, equiparáveis internacionalmente a outros grandes centros urbanos, particularmente se associada a uma atmosfera de “cidade pacífica”. O que está em pauta é a possibilidade de traduzir as benfeitorias urbanas e as características naturais das cidades em mercadorias com elevado valor de uso. A cidade é produtiva na medida em que dispõe a favor dos consumidores externos desses atributos, possibilitando, a longo ou a curto prazo, compor um pacote de insumos valorizados e atrativos para a reprodução dos capitais. Ou seja, para ser produtivo, o centro urbano ou a metrópole necessitam oferecer os seus melhores atrativos naturais e artificiais, vender e conquistar compradores para seus produtos e serviços. Parte desses insumos são representados por construção de grandes parques


industriais e tecnológicos, espaços para eventos, negociações com o solo urbano, comércio e produção de imóveis de elevada rentabilidade. Tudo num contexto de cidade segura. Para os teóricos neoplanejadores, “a cidade é uma mercadoria a ser vendida, num mercado extremamente competitivo, em que outras cidades também estão à venda” (Vainer, 2000; 78). Contudo, os atributos da cidade, vendidos e reconhecidos como valores de uso pelos investidores internacionais e locais, não estão disponíveis a todos os que desejam. Por essa lógica, encontramos aqui um dos aspectos negativos do modelo produtivo e competitivo de cidade, especialmente aqueles em que o planejamento estratégico atua. Para os gestores públicos da cidade produtiva e competitiva, o que lhes interessa é uma demanda de consumidores rentáveis, usuários e habitantes que possam dispor de suas rendas facilmente. Um público bem específico, atraído pelo simbolismo da cidade consumo. Assim, os novos gestores urbanos primam midiaticamente por um novo desejo de cidade, assim como expõe Sanches (1999): (...) neste contexto, a produção de imagens tem um papel cada vez mais relevante na formulação de novas estratégias econômicas e urbanas, orientadas, sobretudo para a internacionalização da cidade, mas também voltada para

a obtenção de notáveis efeitos internos, particularmente no que se refere à construção de uma ampla adesão a determinado modelo de gestão e administração da cidade. (p. 116).

A lógica midiática a serviço da reprodução capitalista atua na cidade como fabricante de novos desejos e imagens, prazeres e anseios. Aos olhos dos expectadores, os melhores espaços urbanos são aqueles em que se podem constatar os melhores atrativos, as estruturas físicas e as condições ambientais para o exercício de um consumo ostentatório tranquilo, seguro e facilmente renovado. Esses consumidores necessitam representar um contingente em potencial para o usufruto dos atributos internos da cidade ou metrópole. Ou seja, esses novos espaços urbanos em redefinição representam além de uma mercadoria, um produto de luxo e usados por poucos. É em perceber esse novo modelo de respaldo neoliberal, deduz-se que o que está agora em jogo não é o benefício dos citadinos, nem muito menos o sentimento de apregoar o sentido histórico da cidade. Aquilo percebido historicamente por cidade passa por uma redefinição conceitual expresso nas atitudes de seus gestores. É nesse contexto que cabe apregoar que o eficaz desenvolvimento econômico das cidades se realiza mediante uma reforma econômica, como 99


implicitamente sugere Clementino (2002), especialmente mudanças econômicas estruturantes que pautem, especificamente, a forma como os gestores urbanos aplicam e captam os recursos públicos e estabelecem as parcerias com grupos privados. Faz-se necessário um pensar sobre os desafios enfrentados pelos novos gestores urbanos num contexto internacional e local de competição, onde os interesses diversificados ganham maior complexidade de consenso, assim como deixa transparecer Andrade (2002). E em meio à necessidade de uma reforma econômica, há também a exigência de uma reforma política aplicada às cidades e às metrópoles como caminho inibidor desse novo sentido de espaço urbano invertido. Por sua redefinição, seguem mudanças conceituais no concernente à gestão pública, poder local e governabilidade. O conjunto de regras do novo liberalismo prega a redefinição do conceito de público e acomete a cidade de novos significados, passando a representá-la como um grande sujeito econômico, de natureza empresarial e mercantil apropriadora dos instrumentos públicos em benefício de grandes grupos empresariais nacionais e internacionais. Tendo em vista o revelado, surge um novo cenário emerso com o desenvolvimento urbano contemporâneo. Princípios e instituições historicamente necessárias 100

à trajetória humana, especialmente as democráticas. Incorremos, portanto, em alguns riscos. O modelo de gerenciamento urbano, calcado no planejamento estratégico, possui um efeito também nas grandes metrópoles. Mesmo em não descrevendo sobre os efeitos desse processo nas regiões metropolitanas, é possível fazer algumas considerações tendo como referência as observações de Ana Fani (2000). Segundo a autora, o espaço urbano está fragmentado. As causas dessa fragmentação se remetem às exigências da globalização e da primazia da mercadoria sobre as relações sociais. Nesse sentido, a fragmentação do espaço é consequência dos efeitos negativos da globalização. Esta acaba por condicionar uma divisão do espaço em parcelas negociadas no mercado global e local de terras. Criam-se assim, espaços separados, parcelas fixas e reservas urbanas ocasionando, por sua vez, dois efeitos intraurbanos: a atração e a expulsão das pessoas do centro à periferia e vice-versa. Cria-se uma multiplicidade de centros. Nesse contexto, essa fragmentação atinge as metrópoles tornando-as polinucleada e, também mercadorias. À medida que os espaços de fragmentam, eles se fragmentam em partes negociáveis, assim como é proposto pelos planejadores estratégicos descritos por Vainer (2000), implicando relações humanas e tornando os indivíduos aglomerados de pessoas sem


identidade e com comportamentos aparentemente homogêneos. Nas regiões metropolitanas, consideradas como espaços urbanos mais qualificados do ponto de vista da démarche empresarial, há a constituição de uma sociedade urbana, de uma forte divisão espacial do trabalho, de um sistema econômico em que a mercadoria rompeu os limites nacionais. Do ponto de vista sociológico, esses fatores criam novas identidades que escapa ao nacional e passam a atuar nas metrópoles com maior rigor. Segundo Ana Fani (2000), a fragmentação do espaço urbano acaba por criar realidades supranacionais apoiadas nas inovações tecnológicas e nas transmissões de informações. O que nós entendemos por urbano passa por uma mudança, assim com também passa a noção de cidade. O urbano torna-se uma realidade supraurbana, que transcende os limites conceituais do que seja cidade e desta enquanto espaço urbano. Não há mais metrópoles funcionalmente homogêneas, mas a constituição de centro de negócios e de intercâmbio de mercadorias e informações cada vez mais atomizadas e diversas. Nesse sentido, a metrópole consiste na materialização da hierarquização do espaço, mas de um espaço fragmentado ou em via de fragmentação e submetido a um determinado centro de comando político e econômico. Mesmo em a metrópole guardar uma certa centralidade com relação ao resto do

território, no cenário global ela atua como se fosse algo supraterritorial, produzido sobre aos ditames do capital global. Na medida em que o espaço urbano se fragmenta e tem na metrópole uma de suas expressões contemporâneas, as relações interpessoais também se fragmentam. Cada indivíduo no contexto da metrópole polinucleada e fragmentada é desprovido de sua identidade. Enquanto o espaço é o produto das atividades de trabalhos divididos, há um estranhamento por parte destes diante do espaço produzido. A vida dos indivíduos parece atomizada cada vez mais em meio à apropriação privada da terra. Nesse cenário de redefinição da cidade, do urbano e da metrópole, cabe resgatar a ideia de território como forma de entender o problema da governabilidade nesse novo contexto. Governabilidade e cidade Considerações finais: o retorno do território A ideia de um retorno à noção de território se deve a Milton Santos. Seguindo as suas observações, é possível compreender os problemas mais gerais causados pela globalização, especialmente ante o novo modelo de cidade competitiva e produtiva. Assim são necessárias algumas observações iniciais. Primeira. A centralidade do território é, do ponto de vista 101


conceitual, mais amplo do que a noção de cidade, urbano e metrópole. Tanto a cidade quanto o urbano e a metrópole se constituem em virtude de uma determinada territorialidade. Santos (2000) afirma, nesse sentido, que o território é o centro das contradições e avanços engendrados pelo processo de globalização no fim do século XX. Dessa forma, é possível pensar as novas características que envolvem o território numa perspectiva geográfica atenta à interdependência universal entre os lugares e espaços, causadora da nova realidade do território. Assim como o novo modelo de cidade e metrópole descrita por Vainer (2002) e Fani (2000) respectivamente, o território também se transnacionaliza. Entretanto, mesmo com a transnacionalização do território, é possível desenvolver nos indivíduos e lugares mecanismo de impedimento aos efeitos negativos da globalização. É possível desenvolver nas cidades, lugares e metrópoles novas sinergias entre os grupos sociais. Isso é possibilitado em virtude de o território ser algo habitado e constantemente produzido. Sinergias entre os bairros vizinhos, famílias e seus vizinhos, as cidades e outras cidades, o centro e a periferia possibilitam, de acordo com Milton Santos, um sistema de ações contrários ao novo sentido de cidade, de urbano e de metrópole. Segundo ainda o autor, essas sinergias podem ser desenvolvidas em virtude de o território transnacionalizado 102

comportar uma natureza complexa, dupla: comportar formas materiais produzidas no tempo e no espaço e que, por sua vez, possibilitam o surgimento de uma rede de ações solidárias ou hierarquizadas. As formas consistem nos objetos (objetos imobiliários descritos em Técnica, Espaço e Tempo, 1993) e nas ações humanas. Essas ações e objetos conduzem a criações de mecanismos solidários (regras sociais, grupos organizados, redefinição espacial) dentro do território propício ou não para o desenvolvimento da globalização. Nesse sentido, o território, por ser habitado, adquire uma espécie de autonomia. Segunda. Paralelamente à noção de território, é possível perceber a noção desenvolvida por Santos (2000) de Verticalidade e Horizontalidade. Essas características do território transnacionalizado são diretamente divergentes. A horizontalidade consiste nos lugares vizinhos ligados por uma certa continuidade e ajuda mútua. Essa noção faz lembrar a ideia de solidariedade mecânica funcionalista durkheimiana, mesmo sendo construída num contexto histórico e conceitual além do funcionalismo do século XIX. As verticalidades se referem aos pontos distantes ligados por todos os processos sociais distintos e, aparentemente desconexos. As relações sociais estabelecidas no espaço com características verticais agem por um forte poder hierárquico em que forças “de fora” atuam, condicionando


as relações sociais dentro da cidade, lugares ou metrópoles. É por meio do desenvolvimento dessas características duplas do território que é possível resgatar a noção de espaço banal, o espaço de todos. O espaço banal consiste num espaço gerador de identidades comunais. A recuperação dessa noção, defendida por Santos (2000) do ponto de vista teórico, incorre na possibilidade de verificar como novas formas de sociabilidade, fundamentadas no espaço habitado. Ela possibilita o surgimento de novos mecanismos sociais ou de novos espaços habitados, desligados dos efeitos negativos mais gerais da globalização. Numa perspectiva teórica, o retorno ao conceito de território parece levar à compreensão sobre os impasses do exercício da governabilidade da cidade. Tendo em vista a cidade como categoria social sujeita conceitualmente à noção de território, é possível compreender o exercício da governabilidade como conceito transcendente à cidade e ao urbano. Como afirma Andrade (2002), a noção de governabilidade passa, necessariamente, por relações de poder. Num contexto de mudanças econômicas globais, em que a econômica se desprende das territorialidades nacionais, a governabilidade pode ser compreendida como: a qualidade do desempenho governamental, esta dependente de fatores como: a capacidade do

governo de identificar problemas e de tomar decisões de forma a atender às demandas feitas pelos interesses organizados, a efetividade das decisões adotadas no sentido de sua implementação, a aceitação social das decisões, e a eficácia das decisões em termo de produção e efeitos que modifiquem situações” (ANDRADE, 2002; 202).

Nessa perspectiva, o exercício da governabilidade não recai apenas sobre a cidade ou sobre o gerenciamento das ações dos gestores públicos ao da satisfação de interesses conflitantes. O problema que envolve a governabilidade está intimamente ligado à capacidade individual dos novos gestores públicos, especialmente no tocante a saber lidar, em curto prazo, e de forma satisfatória, com a diversidade dos problemas inerentes à prática política existente no território, especialmente em um contexto de formação de cidades competitivas e produtivas e de metrópoles polinucleadas. O retorno ao território parece levar à compreensão de que o exercício da governabilidade passa, contemporaneamente, por um processo de redefinição. Exigem novas competências, novas formas de fazer política e gerir as economias dos grandes centros urbanos. Além da cidade, do urbano, a governabilidade requer ações inovadoras e rápidas por parte dos gestores públicos. Nesse sentido, Andrade (2002) aponta que 103


os determinantes da governabilidade se referem à: capacidade de tomar decisões que respondam aos problemas colocados na realidade; capacidade de implementar ações; capacidade de liderança por parte do governante e, por fim, estabilidade política. Esses fatores atuam como facilitadores ou dificultadores do exercício da governabilidade, especialmente num contexto em que a história da cidade, do urbano ou do território for composta de elementos específicos que garantam o exercício da gestão pública. De certa forma, o retorno do território, apregoado por Santos, deixa transparecer que o exercício eficaz da governabilidade necessita levar em consideração sinergias sociais historicamente construídas. Em sociedades com históricos de repressão militar e de constantes crises econômicas, como em alguns países latinos-americanos, o exercício da governabilidade liga a herança política deixada por esses eventos. A tempo, estas sinergias irão garantir ou impedir o desenvolvimento de políticas públicas voltadas para a requalificação do território, da cidade e da metrópole. O eficaz exercício da governabilidade necessita aterse ao fato de que as questões sócias contemporâneas transcendem a própria noção de cidade e de urbano. À revelia dos determinantes globais que coagem a cidade, é possível perceber a importância do território no contexto internacional e relacionar 104

os problemas de governabilidade a ele. Dessa forma, é possível a elaboração de mecanismos de compensação geridos comunalmente, que permitam inibir a fragmentação de espaços urbanos globalizados. Os impasses em algumas negociações políticas, a dificuldade de gerir os recursos públicos, a dependência de algumas cidades das transferências governamentais dentre outros, faz do exercício da governabilidade uma questão territorial e não apenas local ou política. Os problemas que afligem atualmente as regiões metropolitanas podem representar alguns dos exemplos mais atuais da dificuldade de administrar alguns problemas urbanos e, particularmente, de compartilhálos por meio de acordos políticos. A dificuldade em solucionar os problemas de saúde pública, violência, habitação e, especialmente, tributação, demonstra que a gestão do espaço urbano requer ações coordenadas que levem em conta os anseios populacionais e, sobretudo, respeitem as atribuições de cada ente municipal num contexto territorial. Eles expressam que o exercício da governabilidade é, antes de mais nada, uma prática política compartilhada entre os vários grupos sociais atuantes no território. Talvez um dos maiores questionamentos sobre como tornar o exercício da governabilidade uma relação compartilhada esteja no fato de que a velocidade das mudanças


econômicas globais que atingem os centros urbanos requer ações políticas práticas ao ritmo do andar das economias urbanas. Uma tarefa que, muitas vezes, foge à alçada da gestão pública tradicional. Em meio a um cenário em que as decisões locais são cada vez mais dirigidas por centros urbanos e estes, por sua vez, atrelados a decisões internacionais, resgatar o sentido histórico de cidade e de seus problemas atuais é perceber que o ideal de cidade ainda não foi alcançado. Esse ideal é cada vez mais atrelado às exigências internacionais de grupos economicamente hegemônicos. É necessário criar mecanismos sociais novos que possam controlar ações verticais vinda de “fora para dentro” das cidades e do território. É necessário pensar em que medida as ações do poder institucional impedem ou possibilitam o surgimento desses mecanismos e até em que instância novos grupos sociais surgidos em defesa da cidade possuem real representatividade institucional. Por esse caminho talvez se possa, se não mudar os “rumos” da sociedade, ao menos pensar qual o lugar dos indivíduos, da política e da economia no lugar, na cidade, na metrópole e no território. Referências bibliográficas ANDRADE, Ilza Araújo Leão. Poder Municipal e governabilidade. In: VALENÇA. Márcio Moraes, GOMES, Rita de Cássia da Conceição (Org.). Globalização e desigualdade. Natal: A.S, 2002.

CARLOS, Ana Fani Alessandri. A natureza do espaço fragmentado. In: SANTOS. Milton, SOUSA, Maria Adélia Aparecida. Geografia da desigualdade: Território e Fragmentação. CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede. Trad. Roneide Venancio Majer, colab. Klauss Brandini Gerhardt. São Paulo: Paz e Terra, 2006. CLEMENTINO, Maria do Livramento Miranda. Políticas Públicas de promoção econômica das cidades. In: VALENÇA. Márcio Moraes, GOMES, Rita de Cássia da Conceição (Org.). Globalização e desigualdade. Natal: A.S, 2002. SÁNCHEZ, Fernanda. Políticas urbanas em renovação: uma leitura crítica dos modelos emergentes. In: Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais, n. 1, p. 115-132, maio de 1999. SANTOS, Milton3. Metamorfoses do espaço habitado: fundamentos teóricos e metodológicos da geografia. São Paulo: Hucitec, 1988. SILVA, Ângelo Magalhães. Os objetos imobiliários e a produção do espaço na zona sul de Natal/RN. Dissertação. (Mestrado em Ciências Sociais) – Departamento de Ciências Sociais, Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2003. VAINER, Carlos B. Pátria, empresa e mercadoria. Notas sobre a estratégia discursiva do planejamento urbano. In: ARANTES, Otília; VAINER, Carlos; MARICATO, Ermínia (Orgs.). A cidade do pensamento único. Desmanchando consensos. Petrópolis: Vozes, 2000. p. 75-103. VALENÇA. Márcio Moraes, GOMES, Rita de Cássia da Conceição (Org)., Globalização e desigualdade. Natal: A.S, 2002.

3 Milton Santos com a colaboração de Denise Elias.

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O conteúdo jurídico do princípio do acesso à justiça: possíveis posturas definidoras e proposta Antonio Gleydson Gadelha de Moura

RESUMO Este artigo constitui uma introdução ao estudo do princípio do acesso à justiça, numa perspectiva crítica, dando conta da necessidade de construção de premissas elementares à conceituação do conteúdo jurídico dessa norma. Num primeiro momento, dar-se-á a apresentação das possíveis posturas definidoras do princípio; em seguida, far-se-á uma proposta de conceituação. PALAVRAS-CHAVE: Direito Constitucional. Direitos Humanos. Princípios Jurídicos. Acesso à Justiça. Posturas definidoras. Proposta. Introdução Nos últimos anos, houve uma verdadeira vulgarização da expressão “acesso à justiça”. Nessa linha, tanto serviu ao discurso de combate ao excesso de formalismo, quanto àqueles que sustentam uma quase infindável panaceia de recursos. Daí a necessidade de tomar uma postura definidora do presente princípio, ao mesmo tempo, garantidora do direito ao acesso suficiente, eficiente e justo aos propósitos do Estado Democrático de Direito. Nesse esforço, de forma sucinta, propor-se-á uma exclusão de termos dúbios e, ao longo do texto, será construída uma proposta de definição do princípio do acesso à justiça. A incursão a outros ordenamentos jurídicos foi necessária, mas, em todos os casos, estritamente vinculada ao objeto e ao proveito do objeto principal desse artigo. O tema está em constante construção e as discussão está aberta para todos os que queiram contribuir com a construção do conteúdo jurídico do princípio do acesso à justiça. 1. Das posturas definidoras do princípio do acesso à justiça: vantagens, desvantagens e a proposta adotada pelo trabalho O acesso à justiça é um princípio metajurídico que se destina a resguardar e fomentar a coerência entre pautas de comportamentos plamados pela Constituição de 1988 e a prática dos sujeitos sob o jugo da soberania nacional. 106


Seu estudo deve se iniciar pela apresentação de certas características essenciais, permitindo uma visualização de seus contornos jurídicos. O tema é de enorme relevância para a edificação de um estudo do Direito sobre bases consistentes e coerentes, sem despencar nos riscos de (des) entender o processo numa perspectiva meramente repetidora de dogmas e prestá-lo ao papel reducionista de amontoado de atos processuais, perdidos em filigranas. Ressalte-se que o princípio do acesso à justiça pode ser examinado sob vários prismas. Os dois núcleos significativos da expressão acesso à justiça (acesso + Justiça) dão ensejo a especulações riquíssimas. Se, por um lado, pode-se discutir a justiça, de outro, tem-se a questão de saber o que vem a ser acessibilidade. Na primeira discussão – sobre justiça – a parte que se principia poderia tratar de várias indagações, dentre elas: o que é justiça e quais os critérios para estabelecer o que é justo. Mas, de longe, o alargamento da amplitude dos questionamentos não daria lugar a maiores certezas, pelo contrário. No segundo viés, a acessibilidade requer um complemento. Contudo, a acessibilidade é conceito presente em vários dispositivos constitucionais e infraconstitucionais. Aliás, é o tema mais recorrente no estudo do Direito, na perspectiva de cidadania. Acesso aos direitos fundamentais, como saúde, educação –, previdência, cultura, meio ambiente, trabalho, cultura, desenvolvimento social e espiritual etc. Daí indagações prévias são necessárias para a compreensão mínima da questão. A construção do princípio do acesso à justiça enseja o estudo sobre suas relações com o Estado democrático de direito e a soberania, levando a investigações em torno da fundamentação e exercício do poder estatal, bem como ao nível de amadurecimento das instituições, dentre elas, principalmente, a Corte Constitucional. O valor jurídico e publicístico do acesso à justiça envolve várias discussões decorrentes do que ele é juridicamente, ou seja, qual sua natureza jurídica. Cai-se aqui na própria alocação no mundo das normas jurídicas. A relevância é apontada no texto constitucional, seja na forma de cláusulas gerais, como ocorre na Constituição da Republica Federativa do Brasil, artigo 5o, inciso XXXV (previsão geral), artigo 7o, inciso XXIX (específico do O direito de ação do trabalhador), mas, também, em todas as normas que tratam de processo, procedimento, competência, organização e divisão judiciária. Ele exerce função operativa que lhe é ínsita dentro da realização do poder estatal. Soma-se a esta descrição do conteúdo do princípio do acesso à justiça os dispositivos que lhe dão finalidade, como o princípio da dignidade da pessoa humana, do valor social do trabalho, da livre iniciativa etc. 107


No estudo histórico do acesso à justiça como direito do homem a Declaração dos Direitos do Homem de 1948, em seu artigo 6o é o documento mais repetido pelas Constituições posteriores ao evento da Segunda Guerra Mundial. Há, contudo, mesmo em sede da história do acesso aos tribunais, antecedentes importantes, como, na Inglaterra, o Bill of Rights, de 1689, fruto da Revolução Gloriosa, a Declaração da Virgínia, em 1776, a Declaração de Massachusetts, de 1780 e a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789. Da mesma forma, pode-se verificar o fenômeno na Lei Fundamental da República Federativa da Alemanha, no Tratado de Maastrich, no Pacto de São José da Costa Rica, todos com referências explícitas ou implícitas ao princípio do acesso à justiça. Para estudar o princípio do acesso à justiça deve-se, de logo, encará-lo como direito fundamental. A questão não tem escopo meramente acadêmico, já que o mais significativo avanço da doutrina constitucional hodierna é especificidade da hermenêutica jurídica aplicada à temática dos direitos fundamentais. A decorrência imediata dessa classificação é sobre a interpretação e aplicação do princípio, uma vez que se faz mister que o sistema democrático concretize os valores fundamentais elegidos por ele, pois, afinal, a Constituição tem apenas uma “pretensão de eficácia”. Isso tudo torna 108

necessário erigir algumas observações sobre as características do Direito na contemporaneidade e o papel da hermenêutica jurídica. Certamente, isso facilitará a compreensão da evolução do conteúdo do acesso à justiça. Se definir um fenômeno é descrever os seus elementos essenciais, ou seja, aqueles sem os quais não se reconhece o que se define, deve-se somar a isso a observação dos nexos que se estabelecem entre eles. Na verdade, existem várias posturas possíveis para definir algo. Pode-se dividi-las em três concepções básicas: subjetivas, objetivas e mistas. Numa concepção subjetivista, o foco da definição é sobre os sujeitos. Ou seja, o acesso à justiça seria centrado sobre o prestador do serviço e o cliente da atividade prestada. Comumente, é definido por esse ângulo como acessibilidade ao Poder Judiciário pelos jurisdicionados de uma determinada ordem soberana. As concepções objetivistas baseiam-se no conteúdo. Isso, normalmente, define-se como acessibilidade à prestação da atividade jurisdicional. Por fim, numa visão mista combinam-se os dois enfoques acima. A definição mais comum seria o acesso ao poder estatal, exercido pelo Poder Judiciário, prestado àqueles que dele necessitam, consistente na atividade de dirimir conflitos de interesses tutelados pela ordem jurídica de um determinado Estado.


Ou como aponta Bulos: “O principio da inafastabilidade do controle judicial se posta como uma liberdade pública subjetiva, genérica, cívica, abstrata e incondicionada, conferida às pessoas físicas e jurídicas, nacionais e estrangeiras, sem distinção ou retaliações de nenhuma espécie”. Das posturas concebidas as subjetivas são certamente as cientificamente mais frágeis. Não se pode basear o estudo de um princípio apenas nos sujeitos que o interpreta e aplica ou naqueles que são abrangidos por estas ações. Some-se ainda a insuficiência de cingir ao sujeito Poder Judiciário à prestação de justiça. Ele não é o único sujeito que interpreta e aplica a justiça. Na verdade, em situações normais, ele não exerce tal função. Simplifique-se em três argumentos: a) a interpretação e aplicação do Direito dão-se, normalmente, por todos os sujeitos de uma sociedade, de forma espontânea (independentemente de provocação) ou voluntária (mesmo se provocados, mas antes de medidas coercitivas); b) mesmo as situações de conflitos de interesses qualificados pela resistência de cumprimento não gera a intervenção necessária do Estado, havendo largo espaço para a atividade alternativa ao poder estatal; c) mesmo a atividade jurisdicional não é exclusiva do Poder Judiciário, como ocorre no julgamento do Presidente da República pelo Senado Federal, ou, como sustentam vários autores, na questão da natureza jurisdicional da arbitragem. Contudo, as definições subjetivistas trazem como vantagem à construção do conteúdo jurídico do acesso à justiça um maior reforço da função teleológica do princípio (e do próprio Direito), voltado a servir de meio adequado de prestar àqueles que têm interesses juridicamente tutelados pela ordem jurídica um resultado satisfatório. Esse caráter teleológico firma-se na imposição de uma prestação do serviço básico e fundamental em moldes capazes de atender a quem o busca e dar-lhe uma resposta constitucionalmente adequada e efetiva. Em consectário, há um reforço do direito fundamental do cidadão e, por outro lado, ocorre uma preocupação com as garantais às instituições e aos membros dos órgãos prestadores de atividade pacificadora de conflitos de interesses. As definições objetivistas apresentam-se mais satisfatórias que as subjetivistas. Ocorre nelas maior vinculação do conteúdo do acesso à justiça à sua função – como direito fundamental – de possibilitar a adequada pacificação dos conflitos de interesses. É enfatizada a instrumentalidade. Abre-se para a importância da estruturação institucional e elaboração de técnicas de resolução de conflitos. 109


São as concepções mistas as mais adequadas. Elas têm a vantagem de unir o caráter teleológico de tutela do direito fundamental ao sentido instrumental do acesso à justiça. Assim, o princípio do acesso à justiça é a norma jurídica de índole fundamental que serve aos sujeitos que têm interesses juridicamente tutelados pela ordem jurídica e, ao mesmo tempo, impõe o dever ao Estado de prestar tal serviço e fomentar as condições das pessoas, se assim quiserem, conseguirem por si sós, ou por terceiros, a resolução de seus conflitos. Essa definição ilustra a classificação do acesso à justiça como direito fundamental, a proteção ao seu titular, o dever estatal de prestar o serviço e também de criar condições para facilitar a implementação de alternativas à prestação estatal. Em suporte nesse quadro, o acesso à justiça pode, ainda que para efeitos meramente didáticos, ser apresentado em sentido estrito, amplo e integral. Em sentido estrito corresponde ao acesso ao Poder Judiciário. É bem comum reduzi-lo ainda mais e igualá-lo ao próprio direito de ação. Contudo, o problema do sentido estrito é duplo, seja pela limitação ao Poder Judiciário, como exposto quando se tratou das definições subjetivistas, seja ainda pelo reducionismo a apenas uma das facetas do direito fundamental de acesso à justiça, ou seja, pelo simploriedade de igualá-lo ao exercício do direito subjetivo, constitucionalmente assegurado, de ingressar com demanda em juízo. Nessa visão, seria um retrocesso do estudo do Direito Processual. Pelo sentido amplo (ou geral) passa a corresponder à própria concretização do ideal de justiça. É, de logo, critério mais satisfatório do que o outro já exposto. Entretanto, cai-se indubitavelmente no problema do que é justiça. O vocábulo “justiça” é plurívoco. Sua origem e significados são tocados desde Platão, passando pelo cristianismo com destaque à ideia de justiça social. Aliás, como nos ensina Hans Kelsen: De todo o grande contingente daqueles que – desde que o ser humano adquiriu a capacidade de pensar – se ocuparam da questão da justiça, duas cabeças alçam-se muito acima das demais. A primeira, cingida do glorioso esplendor da especulação filosófica; outra, da coroa de espinhos da crença religiosa. Tanto quanto o divino Salvador, Jesus de Nazaré, apenas o filósofo de Atenas, o ‘divino’ Platão, lutou pela justiça. Aquele, mais ainda com sua vida do que com sua doutrina; este, mais com sua doutrina do que com sua vida. Somente os diálogos de Platão revelam-se tão completamente impregnados do pensamento na justiça quanto o está a pregação de Jesus. Se a questão da justiça constitui o problema central de toda teoria e prática social, então o pensamento europeu atual, em uma de suas esferas mais importantes, apresenta-se fundamentalmente marcado pela maneira como o filósofo grego e o profeta judeu colocaram essa questão e a responderam. 110


Se é que nos cabe esperar encontrar uma resposta para ela, para a questão da justiça absoluta, haver-se-á de encontrá-la em um ou no outro – ou, do contrário, tal questão será inteiramente irrespondível. E isso porque inexiste, e decerto nem pode existir, pensamento mais profundo e querer mais sagrado voltados para a solução do enigma da justiça.

Dessa forma, não parece ser o melhor caminho ater-se à discussão do que é justiça. A realidade é que não há consenso sobre um conceito de justiça, nem poderia tê-lo. Sequer se pode propor uma aproximação entre Direito e justiça. Isso ofenderia à própria realidade. Tanto o sentido estrito, por ser a menor do que o complexo do acesso à justiça, quanto o sentido geral, por sua imprecisão idealizante, carecem de ser superados por uma visão mais completa do fenômeno acesso á justiça. Aliás, ajuda tal tarefa a busca no direito comparado pela definição do princípio do acesso à justiça. Como, por certo, parece ter feito Francisco Barros Dias, ao conceituar o acesso à justiça como: Um processo justo, o acesso ao devido processo legal, a uma Justiça imparcial; a uma Justiça igual, contraditória, dialética, cooperatória, que ponha à disposição das partes todos os instrumentos e os meios necessários que lhes possibilitem, concretamente, sustentarem suas razões, produzirem suas provas, influírem sobre a formação do convencimento do Juiz.

Não é à toa a semelhança com o artigo 24 da Constituição espanhola, sob o designativo de tutela judicial efetiva: 1. Todas as pessoas têm direito a obter tutela efetiva dos juízes e tribunais no exercício de seus direitos e interesses legítimos, sem que, em nenhum caso, possam produzir-se situações em que alguém fique sem defesa. 2. Também, que todos têm direito a Juiz ordinário predeterminado pela lei, à defesa e à assistência de advogado, a serem informados da acusação formulada contra eles, a um processo público sem dilações indevidas e com todas as garantias, de utilizarem os meios de prova pertinentes para sua defesa, de não declarar contra si mesmos, de não se confessarem culpados e à presunção de inocência. A lei regulará os casos em que, por razão de parentesco ou segredo profissional, não se estará obrigado a declarar sobre fatos presumidos delituosos.

Ainda nesse esforço de buscar no direito comparado a definição mais útil do princípio do acesso à justiça, o art. 19, no IV, da Constituição Federal da Alemanha preocupa-se em defini-lo. 111


Para a compreensão total do princípio do acesso à justiça tem-se que considerá-lo da forma mais abrangente possível. Nasce então o sentido integral do princípio do acesso à justiça. Como fez Antônio Herman Benjamin: Seria, então, o próprio ‘acesso ao Direito’, vale dizer, a uma ordem jurídica justa (= inimiga dos desequilíbrios e destituída de presunção de igualdade), conhecida (= social e individualmente reconhecida) e implementável (= efetiva), contemplando e combinando, a um só tempo, um rol apropriado de direitos, acesso aos tribunais, acesso aos mecanismos alternativos (principalmente os preventivos), estando os sujeitos titulares plenamente conscientes de seus direitos e habilitados, material e psicologicamente, a exercê-los, mediante superação das barreiras objetivas e subjetivas (...) e, nessa última acepção dilatada, que acesso à justiça significa acesso ao poder.

Ou, como complementa Carlos Henrique Bezerra Leite, é nesse sentido que o “acesso à justiça assume caráter mais consentâneo, não apenas com a teoria dos direitos fundamentais, mas, também, com os escopos jurídicos, políticos e sociais do processo”. Observe-se somente o cuidado quanto à distinção de Direito e ordem jurídica justa, conforme fez Kazuo Watanabe: A ordem jurídico-positiva (Constituição e leis ordinárias) e o lavor dos processualistas modernos têm posto em destaque uma série de princípios e garantias que, somados e interpretados harmoniosamente, constituem o traçado do caminho que conduz as partes à ordem jurídica justa. O acesso à justiça é, pois, a ideia central a que converge toda a oferta constitucional e legal desses princípios e garantias. Assim, (a) oferece-se a mais ampla admissão de pessoas e causas ao processo (universalidade da jurisdição), depois (b) garante-se a todas elas (no cível e no criminal) a observância das regras que consubstanciam o devido processo legal, para que (c) possam participar intensamente da formação do convencimento do juiz que irá julgar a causa (princípio do contraditório), podendo exigir dele a (d) efetividade de uma participação em diálogo -, tudo com vistas a preparar uma solução que seja justa, seja capaz de eliminar todo resíduo de insatisfação. Eis a dinâmica dos princípios e garantias do processo, na sua interação teleológica apontada para a pacificação com justiça. 112


Ante o exposto, a mais útil e adequada definição para o princípio do acesso à justiça é aquela que o considere sobre a concepção mista e, buscando atender toda a sua amplitude no Estado democrático de Direito, expresse-se no sentido integral, observada lição anteriormente exposta exarada sobre o que vem a ser uma ordem jurídica justa. 2. Problemas terminológicos: os vários designativos e a justificativa da escolha do trabalho A utilização da expressão “acesso à justiça” no título da dissertação já antecipa a opção na seara terminológica. Contudo, isso não torna prescindível certos esclarecimentos, mesmo ligeiros e circunstanciais sobre tal escolha. A denominação acesso à justiça tornou-se dominante no plano atual dos estudos jurídicos. Numa primeira vista, parece estar consagrada na doutrina, jurisprudência e também nos inúmeros diplomas normativos sobre a matéria. Contudo, tanto na doutrina, quanto no direito positivo (nacional ou internacional), utilizam-se diversas outras expressões, tais como “acesso ao Judiciário”, “acesso à jurisdição”, “inafastabilidade do controle jurisdicional”, “direito de ação”, “direito à prestação da tutela jurisdicional”, “prestação da tutela dos direitos”, “acesso à ordem jurídica justa”, apenas para referir-se a algumas mais conhecidas. A primeira menção direta a um epíteto dessa natureza ocorreu com a Constituição Federal de 1946. O princípio da inafastabilidade surgiu no Brasil na Constituição de 1946 para suprir lacunas incontornáveis no cenário nacional no aspecto legislativo. Tentou-se atacar a famigerada questão política, tão cotidiana na prática daqueles dias, mas imune pelo texto constitucional ao controle constitucional, embora, no plano doutrinário, Rui Barbosa discutisse o assunto fazia décadas. Nesse quadro, a heterogeneidade funda-se em três pontos: o primeiro, por descaso na aplicação da expressão; outro, na ausência de consenso na esfera conceitual e terminológica; e, por fim, nos diferentes momentos históricos. Exsurge, portanto, a necessidade de construir o significado e conteúdo do termo utilizado. Ilustrativamente, somente após a Emenda Constitucional no 45, de 2004 é que a Constituição utilizou-se da expressão “acesso à justiça”, mais especificamente nos § 3o, do art. 107, § 3o, do art. 115, § 2o, do art. 125, § 6o, no tratamento dos Tribunais Regionais Federais e do Trabalho, além dos Tribunais de Justiça, com sua utilização de cunho genérico para expressar a complexidade desse conceito. 113


Assim cumpre desvelar ser tal designação um gênero que engloba igualmente as diferentes funções exercidas com a finalidade de pacificar conflitos de interesses, de acordo com parâmetros desenvolvidos pela doutrina iniciada na segunda metade do século XIX, incrementada e burilada, principalmente e em maior intensidade, depois da Segunda Guerra Mundial, pelo novo direito constitucional e processual, recepcionados pela Constituição de 1988, mormente o direito de defesa, os direitos de cunho prestacionais, bem como todos os direitos-garantia e as garantias institucionais. O uso do epíteto “acesso à justiça” pelo constituinte reformador brasileiro é fato de sua inspiração no sentido que esta expressão ganhou nos últimos anos nos documentos internacionais, assimilando o discurso de cunho garantista da concretude constitucional. Além desse forte argumento ligado ao direito positivo [a adoção pela Constituição], o qual por si só já bastaria para justificar a opção terminológica do presente trabalho, a moderna doutrina constitucional, ressalvadas algumas exceções, vem rechaçando progressivamente a utilização de vários outros termos, por se apresentarem anacrônicos com a natureza de direito fundamental deste fenômeno dentro de um Estado democrático de Direito, 114

até mesmo em nível internacional. Além de revelarem, com maior ou menor intensidade, uma flagrante insuficiência no que concerne às suas abrangências, visto que atrelados apenas a prismas específicos do gênero “acesso à justiça”. Sobre o designativo acesso ao Poder Judiciário reafirme-se o dito sobre as definições subjetivistas mais no início desse trabalho. O mesmo se diga sobre acesso à jurisdição, inafastabilidade da jurisdição, inafastabilidade do controle jurisdicional e direito de ação. Todas carecem das limitações das definições objetivistas. Neste particular, não há dúvidas de que o acesso ao Judiciário, de certa forma, é também sempre acesso à justiça, no sentido de que a noção de justiça é mais larga e não se circunscreve ao exercício da função jurisdicional, nem ao titular de uma estrutura organizacional denominada “Poder Judiciário” ou, como insistem certos dispositivos da Constituição, “Justiças”. Em face dessas constatações, as expressões “acesso à justiça” e “acesso ao Judiciário” (ou similares), em que pese sua habitual utilização como sinônimas, reportam-se a significados distintos. No mínimo, para os que preferem o termo “acesso ao Poder Judiciário”, há que referir – sob pena de correr-se risco de gerar uma série de equívocos – se ele está sendo analisado pelo prisma do direito fundamental de receber a tutela jurisdicional adequada


e, jamais, somente na acepção do acesso àquela instituição estatal. Reconhecer a diferença, contudo, não significa desconsiderar a íntima relação entre o “acesso à justiça” e o “acesso às Justiças”, uma vez que, ao final das contas, estabelecido o conflito e relutantes as partes em solvê-lo em sede extraprocessual, em regra, haverá a possibilidade de resolução pela via jurisdicional. Outra é a conclusão quanto à utilização da designação acesso à ordem jurídica justa. Ela detém muitas vantagens, dentre elas, objetivar o conteúdo a qual se dá acesso e evitar especulações sobre o termo justiça. No mesmo sentido, deve-se privilegiar o acesso à tutela dos direitos, como acesso ao resultado jurídico sobre o direito material buscado. Entretanto, ainda assim, mesmo do ponto de vista teórico, deve-se preservar o epíteto acesso à justiça. É que ele tem carga histórica amplíssima, principalmente dentro do movimento de acesso à justiça, além de estar consagrado na experiência normativa, doutrinária e jurisprudencial desde os meados do século XX. Em qualquer caso, outra observação é que a utilização do termo acesso será de grande densidade ideológica dentro do Estado democrático de Direito. Acessibilidade é o tema mais recorrente no estudo do Direito, como já foi dito. O termo dá ideia de transitividade,

participação, pluralidade devendo ser privilegiado numa ordem tendente a ser democrática. Fixadas e justificadas tais premissas, por todo o exposto, o epíteto acesso à justiça é o escolhido no transcorrer do trabalho. Conclusão Diante do exposto, fica clara a necessidade de uma definição aglutinadora das diversas vantagens das propostas subjetiva e objetiva. Ao lado disso, deve-se também buscar contemplar a preocupação com a profundidade e extensão do princípio. Ou seja, a perspectiva integral de acesso, contemplando o plano formal e material, os sujeitos estatais e não estatais. A “justiça” não se vincula ao Poder Judiciário. Nem a única tutela jurídica é a tutela jurisdicional. O próprio ordenamento jurídico faz questão de proporcionar uma série de instrumentos alheios ao Poder Judiciário, denominados métodos alternativos de resolução de conflitos, devendo implementá-los em sua inteireza e, com isso, complementar o conteúdo do princípio do acesso à justiça. Referências bibliográficas BENJAMIN, Antônio Herman. A insurreição da aldeia global contra o processo civil clássico – apontamentos sobre a opressão e a libertação judiciais do meio ambiente e do consumidor.

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In: MILARÉ, Édis (Coord.). A ação civil pública – lei no 7.347/85 – reminiscências e reflexões após dez anos de aplicação. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995. p. 74-75. BULOS, Uadi Lâmmego. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2007. DIAS, Francisco Barros. Processo de conhecimento e acesso à justiça (tutela antecipatória). Revista dos Juízes do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Ajuris, n. 66, p. 212, mar. 1996. GUERRA FILHO. Willis Santiago. Processo constitucional e direitos fundamentais. São Paulo: Celso Bastos, 1999. HÄBERLE, Peter. Hermenêutica constitucional: a sociedade aberta dos intérpretes da Constituição: contribuição para a interpretação pluralista e “procedimental” da Constituição. Trad. Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris, 1997. KELSEN, Hans. O dualismo platônico. In: A ilusão da justiça. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000. LEITE, Carlos Henrique Bezerra. Curso de direito processual do trabalho. 4. ed. São Paulo: LTr, 2006. MENDES, Gilmar Ferreira, COELHO, Inocêncio Mártires, BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Hermenêutica constitucional e direitos fundamentais. Brasília: Brasília Jurídica, 2002. MENDES, Gilmar Ferreira. Direitos fundamentais e controle de constitucionalidade: estudos de direito constitucional. 2. ed. São Paulo: Instituto Brasileiro de Direito Constitucional, 1999. NERY JÚNIOR, Nelson. Princípios do processo civil na Constituição Federal. 8. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 138. (Coleção estudos de direito de processo Enrico Tullio Liebman, v. 21). SACRISTÁN, Isidoro Álvarez. La justicia y su eficácia: de la constitución al proceso. Madri: Colex, 1999. SAMPAIO, José Adércio Leite (Coord.). Jurisdição constitucional e direitos fundamentais. Belo Horizonte: Del Rey, 2003. SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 8. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007. WATANABE, Kazuo. Da cognição no processo civil. 3. ed. São Paulo: DPJ, 2005.

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O crime enquanto fenômeno reificado Thadeu de Sousa Brandão1

Introdução O crime e, por conseguinte, a violência podem ser concebidos inicialmente enquanto condições básicas da sobrevivência do homem (isso, é claro, num ambiente natural hostil). Os primeiros ajuntamentos humanos devem ter sido formas de reação ao medo. Certamente surgiram da ideia central de que, os homens vivendo bem próximos, poderiam apoiar-se mutuamente e solidarizarse ante os perigos que vinham de fora dos grupos. Noutro momento, a violência torna-se uma decorrência da maneira pela qual o homem passa a organizar sua vida social (seus medos, anseios, etc.). Por exemplo, durante a Idade Média e sua extrema violência e brutalização social (incertezas, medos, violências várias – a escravidão, entre outras) (ODALIA, 2004). Nem sempre a violência se apresenta enquanto um ato, como uma relação, como um fato que possua uma estrutura facilmente identificável. No geral a violência se apresenta como algo “natural”, pois razões, costumes, tradições, leis explícitas ou implícitas, que encobrem certas práticas de violência, dificultam compreender de imediato seu caráter. A violência apresenta-se enquanto uma coisa ou situação que nos torna necessariamente ameaçados em nossa integridade pessoal ou que nos expropria de nós mesmos. Por isso, violentar o homem é arrancá-lo de sua dignidade física e mental (ODALIA, 2004). A agressão pode ser vista como forma elementar da violência. Mudanças no espaço público podem contribuir para sua causa: arquitetura adaptando-se à violência (espaços fechados, interiorizados etc.), numa concepção de moradia medieval. O espaço agora é concebido como algo contido e prisioneiro, onde o mundo é algo menor e isolado: espaço de refúgio (CECCHETTO, 2004). Nas periferias e favelas a violência, impedida de ser isolada, torna-se cotidiana e familiar, onde a única arma contra a mesma é permitir que a promiscuidade e o hábito teçam redes de conformismo. Hoje se convive com uma “naturalidade” fatalista acerca da convivência entre a riqueza e a pobreza, como se essas fossem uma condição necessária do modo de ser da sociedade humana (ODALIA, 2004). 1 Sociólogo, Mestre em Ciências Sociais e Doutorando em Ciências Sociais pela UFRN. Professor de Sociologia Geral e Jurídica Curso de Direito da Faculdade Câmara Cascudo, Professor de História do CEI – Centro de Educação Integrada, Professor de Sociologia e Ciência Política do Curso de Direito da FARN (Faculdade Natalense para o Desenvolvimento do RN) e Professor de Sociologia e História da UVA – Universidade Estadual Vale do Acaraú.

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Embora crime e violência se confundam, é importante frisar que a violência é eminentemente social. Mas aqui, por violência social, referimonos a atos que atingem determinados grupos sociais ou segmentos específicos. Daí que, cada sociedade pratica determinadas modalidades específicas de violência, de acordo com sua cultura e modelo societário. Pobreza, mortalidade infantil, baixíssimos índices educacionais, analfabetismo, falta de saneamento básico, favelização, precarização da saúde, desemprego etc., são exemplos dessa modalidade de violência (ODALIA, 2004). Uma modalidade específica e problemática de violência nos dias atuais é a violência urbana. Principalmente quando temos nos dias atuais uma formação de uma cultura do medo. Numa sociedade consumista e objetalizável, o consumo torna-se o ponto central. Há os que não podem seguir o ritmo do consumo e desenvolvem alguma possibilidade de assumir suas impossibilidades. Outros transformam a fragilidade que suas frustrações impõem num feroz potencial de agressividade. Uns protegem-se usando a violência; outros a usarão para tentar se inserir. O medo geral no qual estamos submersos nas cidades implica necessariamente numa queda da qualidade de vida e na própria deterioração do humano em si (MORAIS, 1981). 118

Levando em conta seus números de habitantes, as cidades modernas podem ser vistas como pequenos espaços para tanta gente, concentrando tanto as relações humanas que acabam levando-as ao seu ponto de atrito e hostilidade. A ansiedade e o medo resultam do sentimento de impotência, de fragilidade. O ser humano cheio de aspirações e sem nenhum poder de realizá-las, torna-se, de uma ou outra forma, violento. Torna-se hostil. E, quanto mais impotente, maior será a brutalidade da sua violência. Daí porque, em áreas periféricas, onde reina a pobreza, o grau de impotência imposto a essas populações acua-os tal forma que, em certos momentos, só os atos de violência se apresentam para eles como alternativa de liberação e sobrevivência. Ex: apedrejamento de meios de transporte público e linchamentos (MORAIS, 1981). Nos dias atuais, a violência está ligada a profundas transformações nas formas de criminalidade que se organizaram em torno do tráfico de drogas e do contrabando de armas. Também o progressivo desmantelamento dos bairros pobres em sua vida associativa, tão importante no direcionamento de suas demandas coletivas e da sua sociabilidade. Ao mesmo tempo, um novo ethos guerreiro está se disseminando entre os jovens, pautado na violência e na ideia de combate (CECCHETTO, 2004).


Neste sentido é importante construir uma reflexão acerca de como o crime é pensado e como essa categoria é construída em nossa sociedade. Na medida em que crime e violência se confundem – embora sejam duas coisas bem distintas – a sociedade capitalista cria formas de controle social sobre determinadas formas de violência, categorizando-as como crime. Daí que, numa visão superficial do fenômeno, aparecem como crime apenas algumas formas específicas de violência, principalmente aqueles que atentam contra a propriedade privada e contra alguns princípios legais e jurídicos que exprimem a sociedade moderna e capitalista. Neste artigo, propomos realizar uma análise introdutória acerca do modo como a sociedade e a própria ciência social trabalham e vivenciam o conceito de crime. Para tanto, apoiamo-nos na tradição marxista (sem nela apenas nos atermo-nos) para discutirmos o crime enquanto um fenômeno reificado. Longe de demonizar ou heroicizar tal categoria social, pretende-se aqui mostrar a forma ideologizada e mistificada sobre a qual este aparece tanto no âmbito do cotidiano e do senso comum, como mesmo em algumas teorias do Direito e mesmo das ciências sociais. Este artigo, composto basicamente de três partes, vai buscar realizar uma rápida discussão teórica do fenômeno da reificação, à luz principalmente de Marx e Lukács. Poder-se-ia aqui, aumentar o recorte e fazer também

uma discussão mais ampla, pensando-o enquanto objeto de simulacro numa sociedade midiatizada. Mas, neste trabalho, ficamos apenas com a discussão geral do crime enquanto fenômeno reificado. Num segundo momento, busca-se uma também rápida contextualização histórica, detendo-se ao século XX, do crime a da violência como um todo. Na terceira parte, buscou-se discutir o crime e o desvio, mostrando suas imbricações no Direito e nas Ciências Sociais. O fenômeno da reificação A realidade social não deve ser tomada, em sua análise, enquanto algo já dado ou natural. Isto porque, como bem lembraram Marx e Engels na sua A Ideologia Alemã, em 1848, a consciência dos homens, ou seja, sua cultura e representações sociais são intermediadas dialeticamente pelas condições materiais de vida. Daí que, para os teóricos acima, não é a consciência que determina a vida, mas sim a vida real que determina a consciência. Da mesma maneira, não é o Estado que cria a sociedade civil, mas sim a sociedade civil “que cria o Estado; Estado que, aliás, não é uma entidade representativa dos interesses gerais e comuns da sociedade, uma vez que está vinculado intimamente aos interesses de determinada classe social” (2007, p. 10). Isto posto, as noções que os indivíduos em sociedade formam para si mesmos 119


“são uma expressão consciente – efetiva e ilusória – de suas verdadeiras relações e atividades, de sua produção, de seus contatos, de sua organização social e política. (...) Se a expressão consciente das verdadeiras relações destes indivíduos é ilusória, se estes últimos põem sua realidade de ponta-cabeça em suas noções, isto também é consequência da limitação do modo de sua atividade material e de suas relações sociais, que se desprendem dele (MARX, ENGELS, 2007, p. 48).” A este fenômeno capaz de transformar a realidade em ponta cabeça, Marx e Engels denominariam de ideologia. Rapidamente definida, esta seria tomada como: “as ideias da classe dominante são as ideias dominantes em cada época, que dizer, a classe que exerce o poder objetal dominante na sociedade é, ao mesmo tempo, seu poder espiritual dominante” (2007, p.71). Daí que essas ideias dominantes não seriam outra coisa que não a “expressão ideal das relações materiais dominantes, as mesmas relações materiais dominantes concebidas como ideias; portanto, as relações que fazem de uma determinada classe a classe dominante, ou seja, as ideias de sua dominação” (idem). Mais adiante, no Capital, Marx definiria outro conceito fundamental para o entendimento do fenômeno 120

ideológico: o conceito de fetichismo da mercadoria. Para ele, a mercadoria apareceria aos indivíduos enquanto um mistério por encobrir as características sociais do próprio trabalho e por ocultar as relações sociais intrínsecas a este. Daí que as relações sociais e a própria mercadoria enquanto concretudes assumiriam “a forma fantasmagórica de uma relação entre coisas” (1994, p. 81). Ampliando a discussão inicial de Marx, Georg Lukács discutirá e ampliará o conceito de fetichismo ao discutir o fenômeno do que ele chamou de reificação. Para ele, este é um dos problemas centrais da própria existência da sociedade capitalista, e como tal deve ser pensado. Assim, a essência da estrutura da mercadoria para ele se baseia no fato de “uma relação entre pessoas tomar o caráter de uma coisa e, dessa maneira, o de uma ‘objetividade fantasmagórica’ que, em sua legalidade própria, rigorosa, aparentemente racional e inteiramente fechada, oculta todo traço de sua essência fundamental: a relação entre os homens. [Chamando a atenção para] (...) aqueles problemas fundamentais que resultam do caráter fetichista da mercadoria como forma de objetividade, de um lado, e do comportamento do sujeito submetido a ela, de outro (2003, p. 194).”


Dado que o capitalismo e sua lógica produtiva e mercantil são dominantes, é preciso se dar conta de até que ponto o fenômeno das mercadorias e de suas trocas seriam capazes de influenciar a vida social como um todo (e, em todos os seus aspectos). O que ocorre é uma universalização do processo de mercantilização, levando ao processo de produção da mercadoria a tornar-se algo absoluto e universal. Ou seja, nenhuma relação social ou cultural, per se, escaparia dela. O que seria então, resumindo, o fenômeno da reificação? Ora, para Lukács este seria um meio pelo qual o sistema naturaliza as relações sociais, apresentando aquilo que são relações sociais como relações entre objetos, ou seja, coisas. Isto vem conjuntamente com um amplo processo de racionalização da vida social que, em termos quantitativos, permite a mercantilização das relações e de toda a produção humana. O que ocorreria seria uma divisão cada vez maior do processo produtivo como um todo, levando os indivíduos a se tornarem atores sociais cada vez mais passivos neste processo. Ocorre uma “naturalização” das relações sociais, onde aquilo que são relações eminentemente sociais, aparecem como relações entre objetos (coisas). Assim, “como o processo de trabalho é progressivamente racionalizado e mecanizado, a falta de vontade é reforçada pelo fato de a atividade do trabalhador perder cada vez mais seu caráter ativo para tornar-se uma atitude contemplativa”. Esta mesma atitude “reduz o espaço e o tempo a um mesmo denominador e o tempo a nível do espaço” onde a hora de trabalho é equivalida apenas ao critério tempo e não àquilo que ela produziu ou à sua qualidade. “O tempo perde, assim, seu caráter qualitativo, mutável e fluido: ele se fixa num continuum delimitado com precisão, qualitativamente mensuráveis (...); torna-se um espaço” (LUKÁCS, 2003, p. 204-205). Assim como o tempo, os sujeitos do trabalho são fragmentados de maneira racional, tornando-se mero expectador impotente e onde a produção se desvincula da comunidade que produziu a mercadoria. Daí que com a universalidade da categoria mercantil, essa relação muda radical e qualitativamente. O destino do operário torna-se o destino geral de toda a sociedade, visto que a generalização desse destino é a condição necessária para que o processo de trabalho nas empresas se modele segundo essa norma. (...) todas as condições econômicas e sociais do nascimento do capitalismo moderno agem nesse sentido: substituir por relações racionalmente reificadas as relações originais em que eram mais transparentes as relações humanas. (...) 121


Mas isso significa que o princípio da mecanização racional e da calculabilidade deve abarcar todos os aspectos da vida [onde tudo pode ser racionalizado e mercantilizado, ou seja, transformado em mercadoria] (LUKÁCS, 2003, p. 206-207).

Isso penetra todos os espaços da vida social, a ponto dessa lógica de pensar as coisas tornar-se, como já dissemos anteriormente “natural”. A nível do Estado surge uma sistematização racional de todas as regulamentações jurídicas da vida, sistematização que representa, pelo menos em sua tendência, um sistema fechado e que pode se relacionar com todos os casos possíveis e imagináveis tornando-se previsível e calculado, daí a tal da “segurança jurídica”. Desse modo, a racionalização formal do direito, do Estado, da administração etc. implica, objetiva e realmente, uma decomposição semelhante à da indústria e de todas as funções sociais em seus elementos, numa tendência à especialização do trabalho e um aumento continuo de racionalização. Assim, Lukács mostra que “a metamorfose da relação mercantil num objeto dotado de uma ‘objetivação fantasmática’ não pode, portanto, limitar-se à transformação em mercadoria de todos os objetos destinados à satisfação das necessidades”. Ela imprimiria sua estrutura em toda a consciência do homem: as propriedades e as faculdades dessa consciência não se ligam mais somente à unidade orgânica da pessoa, mas aparecem como ‘coisas’ que o homem pode ‘possuir’ ou ‘vender’, assim como os diversos objetos do mundo exterior. E não há nenhuma forma natural de relação humana, tampouco alguma possibilidade para o homem fazer valer suas ‘propriedades’ físicas e psicológicas que não se submetam, numa proporção crescente, a essa forma de objetivação (LUKÁCS, 2003, p. 222-223).

Isto posto, a visão ou ideia de totalidade é perdida. O que se tem é, aparentemente, uma fragmentação da realidade, onde o mundo reificado apresenta-se como único mundo possível, púnica forma social possível de existir. No mesmo sentido, Karel Kosik discute que a realidade, dado os fenômenos acima descritos, encontra-se em um nível que ele denominou de pseudoconcreticidade, onde as relações sociais e reais encontram-se ocultadas, mascaradas, naturalizadas, mistificadas e, por fim ideologizadas (1976, p. 11). Para os teóricos da corrente pós-moderna nas ciências sociais, a realidade social em si não é capaz de ser analisada, dada a sua fragmentação. Sendo a realidade fragmentada, ela seria incognoscível e impossível de ser totalizada, 122


isto é, apreendida em sua totalidade. A questão fundamental aqui, como mostrou João Evangelista (1992) é que essas teorias sociais se deixam levar, por si mesmas, pelo fenômeno da reificação. Tomam a superficialidade do real pela sua concreticidade. Esquecese que a própria complexificação da sociedade capitalista é que leva a essa dificuldade em poder analisar seus elementos e seus fenômenos. “Quando o fragmentário, o microcosmo e o fatual, que abundam na cotidianidade, não são vistos como produzidos pela reificação das relações sociais no capitalismo, instala-se a irrazão”. Assim, “o imediato foge à percepção da consciência, restando, exclusiva ou principalmente, o imediato” (Idem, p. 35-36). Para o autor, estes seriam, resumidamente, a origem do que ele denominou de irracionalismo contemporâneo. A objetividade e a processualidade são, segundo Evangelista, traços estruturais da razão moderna. O real é possuidor de uma racionalidade objetiva que lhe é imanente. “Apesar do fluxo caótico de coisas e acontecimentos, na natureza e na sociedade, há uma racionalidade subjacente que pode ser apreendida”. Mesmo assim, “a realidade não pode ser apreendida imediatamente em sua totalidade, mas requer um esforço continuado de aproximações sucessivas” (2007, p. 65-66). Com a autonomização do capital

e de suas formas mercadológicas e mercantis, o que ocorreu como já colocado por Lukács, foi que as faculdades humanas terminaram por se subordinar ao “movimento autônomo das coisas e dos homens, que assim, quedam-se dominados à sua lógica” (EVANGELISTA, 2007, p. 68). Este processo, de tão intenso, termina por tomar conta de todas as esferas do social. Mesmo áreas que se tomam por “científicas”, terminam por cair nos efeitos da reificação. Para Jean Baudrillard o que predomina na atualidade é a linguagem da propaganda, da sedução, do poder do convencimento da Televisão, etc. Com o poder das imagens em movimento, a identidade se desfaz, se desintegra com o excesso de imagens na sociedade. Daí se tem um universo onde existe cada vez mais informação e cada vez menos sentido. Daí que o sistema social em que vivemos possui a capacidade de integrar em si mesmo a sua própria negação, através dos produtos do espetáculo. Tudo é absorvido pelo sistema. Tudo é incorporado aos objetos industriais e mostrado de forma fascinante pelo mundo do espetáculo. É a era do simulacro. Ampliando o conceito de reificação em Lukács, Baudrillard mostra que a grande característica da atualidade é exatamente construir uma realidade mistificada, mascarada, simulada (BAUDRILLARD, 1999). 123


Crime e violência: uma breve contextualização A Modernidade se apresenta enquanto um projeto civilizatório que se caracteriza pela ruptura com a tradição e com os seus elementos de permanência. A ruptura torna-se um elemento constante na Modernidade, a ponto de a mudança (rápida) tornar-se um elemento central. Daí que a Modernidade é o resultado de uma longa trajetória histórica onde as formas tradicionais de sociabilidade vão dar lugar às formas modernas: a passagem da solidariedade mecânica para a solidariedade orgânica segundo Durkheim; do précapitalismo para o capitalismo para Marx; e da sociedade tradicional para a sociedade moderna para Weber. Isto posto, a Modernidade amplia-se gradativamente, atingindo seu ápice civilizatório no século XX. Assim, para compreendermos o fenômeno do crime e da violência associados, vamos aqui, realizar um recorte temporal para esta discussão. Portanto estabelecemos como parâmetro a transição do modelo fordista de produção, no início do século XX, até os dias atuais. Neste período, veremos algumas mudanças fundamentais na Modernidade e, portanto, no sistema capitalista no século XX – fio condutor das discussões acerca do tema. O chamado Fordismo liga-se a uma concepção de processo de trabalho emergente nas indústrias automobilísticas de Henry Ford, introduzidas por este nas duas primeiras décadas do século XX, em suas fábricas de Detroit e Chicago, pautado sobre amplos espaços produtivos (as “plantas fabris”), com enormes galpões que alojavam linhas de produção, onde homem e máquina, simultaneamente, trabalhavam. Este processo exigia, portanto, uma enorme quantidade de trabalhadores, para a execução de uma produção em massa, em série, sem preocupação efetiva com a qualidade. Ligava-se também, o Fordismo, a um sistema sindical atuante, combativo e marcante, representante dos diferentes segmentos de trabalhadores. Caracterizou-se também pelo advento dos direitos trabalhistas e da intervenção estatal no âmbito do trabalho e das questões sociais (ANTUNES, 1995). Mudanças iniciam-se, no final dos anos 1960 e início dos anos 1970, com o advento de novas tecnologias e com o uso da ciência no processo produtivo. Assim, no descenso do processo fordista, emerge o chamado Toyotismo, pautado na ciência e no uso intensivo de tecnologia. O assim chamado de sistema de acumulação flexível, que emergiu na fábrica da Toyota, no Japão, ligando-se à alta tecnologia (eletrônica, robótica, etc.) de última geração, que passaram a encaminhar o modo de produzir de forma diferenciada do fordismo. Primeiramente se caracterizou como poupadora de mão de obra. 124


No mesmo sentido, as fábricas restringiram sensivelmente suas plantas, principalmente porque, com a microeletrônica, as máquinas ocupavam cada vez menos espaço (ANTUNES, 1995). Assim, houve um aumento da qualidade dos produtos e uma heterogeneização destes, com uma grande diversificação na mesma planta fabril. Fábricas enxutas, pequenas e com poucos funcionários que davam conta de todo processo produtivo. A preocupação central era dotar as empresas de capital para a substituição das peças das máquinas e robôs, não mais com o capital humano como no padrão fordista. A produção, cada vez mais sofisticada e luxuosa, aumenta cada vez mais os lucros, reinvestindo em outros setores da economia os lucros, já que os custos maiores, de mão de obra, diminuem drasticamente. Daí o conceito de “desemprego estrutural”, resultante do uso maciço desta tecnologia (ANTUNES, 1995). Com a consolidação dessa nova lógica de produção e de mercado, o desemprego estrutural passa a atingir, assim, todos os setores do capitalismo na atualidade no mundo “desenvolvido” e no mundo “em desenvolvimento”. Nesse sentido, tal processo, ajuda a formar contingentes de milhões de indivíduos desempregados sem perspectiva alguma de trabalho. Além disso, a concorrência a nível global aumenta o desemprego, já que muitas empresas não conseguem competir nesse nível, diminuindo sua produção, liberando mão-de- obra, ou mesmo “quebrando”, ou seja, falindo. Outra tendência é a denominada “terceirização”: contrata-se outra empresa especialista em mão de obra, para sub-contratar empregados, de forma a diminuir os custos (ANTUNES, 1995). Isto sem contar que toda essa lógica é presidida por um projeto neoliberal e toda a sua lógica própria privatizante. Sai-se de um Estado Keynesiano intervencionista para um Estado Neoliberal voltado para a não intervenção em certos setores antes considerados importantes, mas agora considerados como causadores de déficits. As privatizações de setores estratégicos em todo o mundo foram um exemplo da ação neoliberal. O próprio processo de trabalho em si, com suas mudanças estruturais, mudou o perfil do trabalhador. Não exigindo mais necessariamente horário ou local de trabalho, mas sim prazos e demandas a serem atendidas. Assim como uma grande reformulação do sistema previdenciário que precisa trabalhar mais tempo e entrar em previdência privada para atender suas necessidades. Muda-se também a visão do trabalho em si, focando-se muito mais sobre os resultados do que sobre o trabalho em si. A iniciativa privada, buscam agora não mais empregados, mas “sócios”, pequenos, médios e grandes acionistas trabalhando no sistema produtivo (ANTUNES, 1995). 125


O sistema vem, desta forma, afunilando, tornando-se mais exigente, excluindo amplos setores da população, privilegiando poucos e descartando muitos. Com a inviabilidade de uma massa de seres humanos de poderem retornar ao mercado de trabalho (devidos às questões anteriores já levantadas), devido à desqualificação da maioria e da inexistência de trabalho efetivo para todos, tem-se uma exclusão como nunca vista. A estrutura do mercado do trabalho é, per si, excludente. Assim, constroem-se verdadeiros espaços sociais da exclusão, onde miríades de indivíduos – sem perspectivas de ingressar no mercado de trabalho formal ou nos padrões de consumo mínimo exigidos pelo sistema capitalista – são jogados em guetos sociais (desde bairros até prisões). A exclusão, que de primeiro momento, liga-se ao consumo e ao trabalho, reaparece em novas modalidades e formas, como a do caso da grande quantidade de homens negros solteiros nos bairros centrais negros de Nova York, que não conseguem arrumar esposas, a não ser parceiras ocasionais. A desigualdade social oriunda do sistema, nos EUA é gritante, pois o nível de riqueza contrastante com a exclusão social é bastante visível (CASTELS, 2000). Esse contingente busca na mendicância, na informalidade, na contravenção, na criminalidade, etc., formas e meios possíveis para garantir a sua sobrevivência. Isso 126

leva, consideravelmente, ao aumento gradativo de mais violência, além da própria violência da exclusão em si. A cidade torna-se, desta maneira, palco deste processo de construção da violência. A chamada globalização “mundializou” a exclusão, tornou-a a nível planetário, global. “As atividades criminosas e organizações ao estilo da máfia de todo o mundo também se tomaram globais e informacionais, propiciando os meios para o encorajamento de hiperatividade mental e desejo proibido, juntamente com toda e qualquer forma de negócio ilícito procurado por nossas sociedades, de armas sofisticadas à carne humana. Além disso, um novo sistema de comunicação que fala cada vez mais uma língua universal digital tanto está promovendo a integração global da produção e distribuição de palavras, sons e imagens de nossa cultura como personalizando-os ao gosto das identidades humores dos indivíduos (CASTELS, 2000, p. 22).” Em face dessa questão, percebese a formação de uma multidão de deserdados sociais, frutos do próprio processo histórico que se desenrola. Esta gama de pessoas partem para alternativas de violência, já que não possuem outra alternativa, como forma de sobrevivência. Em mundo


de fluxos globais de riqueza, poder e imagens, a busca da identidade, coletiva ou individual, atribuída ou construída, torna-se a fonte básica de significado social. A identidade está se tornando a principal e às vezes única fonte de significado. Cada vez mais, as pessoas organizam seu significado não em torno do que fazem, mas com base no que elas são ou acreditam que são. A conexão e desconexão de indivíduos, grupos, regiões e até países pelas redes globais de intercâmbios é seguido de uma divisão entre o instrumentalismo universal abstrato e as identidades particulares historicamente enraizadas. Nossas sociedades estão cada vez mais estruturadas em uma oposição bipolar entre a Rede e o ser. Surge uma alienação entre os grupos sociais e indivíduos que passam a considerar o outro um estanho, finalmente uma ameaça. Nesse processo, a fragmentação social se propaga, à medida que as identidades se tornam mais especificas e cada vez mais difíceis de compartilhar (CASTELLS, 2000). Em geral quando se discute a questão da violência e da urbanização, geralmente se põe a discussão sob as áreas periféricas e suburbanas. Mas a violência na urbe varia de local para local. A marginalização não pode ser apenas vista na ótica econômica. Existem também marginalizações de cunho cultural, político ou étnico (como nos casos de minorias na Europa e nos EUA). Essas marginalizações também são grandes geradoras de violência.

Nas grandes cidades atuais, como por exemplo, Cidade do México e São Paulo, os contingentes de desempregados estruturais se veem ampliando as periferias e as moradias precárias nessas regiões. Assim como o descenso de classes sociais que perderam seu padrão de vida e são obrigadas a migrar para essas periferias. O próprio sistema habitacional, em si, é excludente, oriundo de um processo de habitação que privilegia os mais ricos etc. A ótica é a da especulação imobiliária, movida pela lógica do lucro e não das necessidades sociais imediatas. Numa estrutura espacial heterogênea subsistem nas periferias elementos dos mais variados tipos. A questão da violência também ocorre no que tange aos processos migratórios do chamado terceiro para o chamado primeiro mundo. O fechamento de fronteiras é uma questão fundamental. Um grande exemplo significativo é a questão do fechamento do direito de ir e vir do povo palestino ou mesmo a dificuldade de entrada na Europa e nos Estados Unidos da América. Alguns espaços, como espaços exclusivos da violência, representam fragmentos da sociedade como um todo (territorialmente), são territórios da contravenção, fechados, concentrados, embora não possuam muros. Isso perpassa também pela ocupação de certos espaços pela contravenção. É o caso do tráfico de drogas (crime organizado) que ocupa 127


as favelas do Rio de Janeiro. Outro caso similar são as milícias que hoje disputam com o narcotráfico o espaço de algumas favelas no Rio. Surgiram com o intuito de fornecer “proteção” aos habitantes das favelas ocupadas. Isso não é feito de graça, já que é exigido um “retorno” em forma de pagamento em espécie. Ao se proteger as pessoas contra a violência, cria-se um círculo vicioso, já que se usa a violência para tal intento. Na modernidade o controle social dos indivíduos é cada vez maior. O Estado cada vez mais controla todos os espaços sociais, usando para isso determinado tipo de violência. Por outro lado, o indivíduo que se encontra em um espaço violento encontra-se sobre um duplo controle – do Estado e da contravenção. Onde o primeiro é visto como ilegítimo – não pelo indivíduo – mas pelos que dele não participam. Daí que teríamos um espaço de controle legal (sutil e com base em um macro e um micropoder) e outro controlado pela contravenção (não aceito pelo outro, por isso combatido) (CASTEL, 2005). O crime e o desvio social Para pensarmos o crime, cujo conceito está intimamente ligado ao Direito e a toda uma série de representações sociais e de ideologias que terminam por fornecer ao conceito uma verdadeira multiplicidade de 128

interpretações e visões, é preciso, antes de mais nada, pensarmos conjuntamente a ideia de desvio. Até porque, a nível da própria realidade social, crime, em si, não existe. O que existe em sua concretude é, na verdade, formas variadas de desvio, que mudam de sociedade para sociedade. Para o Direito, principalmente o Direito Penal, em sua conceituação jurídica do crime este: “é, antes de tudo, um fato, entendendo-se por tal não só a expressão da vontade mediante ação (voluntário movimento corpóreo) ou omissão (voluntária abstenção de movimento corpóreo)” como também “o resultado (effectus sceleris), isto é, a consequente lesão ou periclitação de um bem ou interesse jurídico penalmente tutelado.” (MIRABETTE, 2006, p. 36). Para o Direito Penal, assumidamente “dogmático”, o crime é um conceito essencialmente jurídico. Qualquer ação humana contrária à lei é crime. Algo que contrarie uma norma jurídica é crime. Para o ordenamento jurídico brasileiro, por exemplo, crime é toda ação ou omissão ilícita, culpável, tipificada em lei, que ofenda valores sociais básicos de um dado momento histórico, em determinada sociedade. Desse modo, o crime é visto através da descrição obtida através de um imperativo legal vigente (MACHADO, 1987).


Assim, o crime não estaria ligado a contingências externas ao sujeito, mas à persecução ou não de sua vontade e ao seu desejo ou não de cumprir ou fazer valer uma dada ordem normativa. Essencialmente, o crime é tomado como uma ação antijurídica, ou seja, uma ação ou omissão que atenta para com o Ordenamento Jurídico. Se o ordenamento toma tal conduta específica como crime, este passa a sêlo (MACHADO, 1987). A norma jurídica geral se destina a reger situações de todas as pessoas físicas e jurídicas sob a égide de um Estado; são também consideradas gerais aquelas normas que se dirigem a todos os componentes de um setor de atividade social, enquanto às particulares são dirigidas a indivíduos isolados ou grupos de indivíduos. O problema a se ferir é o saber por que todos, tais ou quais destinatários foram escolhidos e quem são eles. A norma jurídica tem como primordial objetivo o controle das condutas e comportamentos, objetivando retoricamente a paz social, a harmonia, o bem-estar dos cidadãos, em sua, o que se convencionou chamar de bem comum. A separação ideológica – dependendo da escolha dominante do que é certo e errado, etc. – leva à separação dos destinatários da norma legal, pois, mister se faz valorizar uns em detrimento de outros e obrigar os destinatários a certos tipos de

comportamento, proibi-los de outros e deixar uma margem de liberdade por via da permissão (AGUIAR, 1990, p. 135). Assim, exerce a lei um papel de duplo controle, um inferno para manter os grupos coesos em sua lealdade, privilégios e um externo para evitar a emergência de grupos adversos que venham a adquirir mais força e com isso a possibilidade de empalmar o poder. Daí que, o crime é visto como um ato antijurídico e por isso, antisocial. Aquilo que é arbitrariamente pautado como antijurídico, por força de convenções, acordos e normas sociais, é também caracterizado como algo antissocial, como se fruto de um consenso coletivo. Perde-se a perspectiva da construção normativa da sociedade a partir do Estado e de seu controle e dos próprios grupos sociais que o constituem e o controlam. Para Anthony Giddens, a fronteira e as relações entre crime e desvio não são tão simples de serem discutidas. Para ele, os desviantes “são aqueles que se recusam a viver de acordo com as regras seguidas pela maioria de nós – são criminosos violentos, viciados em drogas, ou ‘marginais’, que não se encaixam naquele conceito que a maioria das pessoas teria de padrões normais de aceitabilidade (2005, p. 172).” 129


Para Giddens, portanto, o desvio é visto como uma “não-conformidade com determinado conjunto de normas que são aceitas por um número significativo de pessoas em uma comunidade ou sociedade” (2005, p. 173). Assim, toda sociedade possui indivíduos que aceitam e obedecem às normas e outros que não aceitam essas mesmas normas e, por isso, não as acatam. Num momento ou outro de nossas vidas, todos terminamos por transgredir uma norma qualquer. Assim, todos nos já praticamos comportamentos desviantes. Mas, nem todas as formas de comportamento desviantes são sancionadas pela lei. Aqueles que são podem ser chamados de crime. Nesta perspectiva a sociologia segue dois caminhos que sempre terminam se encontrando: o da sociologia criminal (criminologia) e o da sociologia do desvio. A primeira preocupa-se com o crime e os comportamentos que estão ligados a ele. Já a segunda preocupa-se o porque certos comportamentos são considerados desviantes e como as noções de desvio são aplicadas aos indivíduos e grupos da sociedade. Daí que, para Giddens, o estudo do desvio, mais amplo, leva-nos a pensar a questão do poder social, ou seja, como as divisões de classe social interferem nos padrões normativos e na formação de grupos desviantes. Para Molina e Gómez (2006, p. 61), 130

“desviado será um comportamento concreto na medida em que se afastem as expectativas sociais em um dado momento, enquanto contrarie os padrões e os modelos da maioria social”. Daí que não importaria as qualidades objetivas da conduta, senão apenas o juízo social dominante e a conduta socialmente esperada. Diferentemente é o conceito jurídico e penal, que pensa o desvio (o delito, no caso) de maneira formal e normativa. Segundo o historiador Boris Fausto, ao lidarmos com o crime estamos lidando a um tempo com uma “relação individual e uma relação social indicativa de padrões de comportamento, de representações e valores sociais” (2001, p. 27) onde esses comportamentos são a expressão de desejos ou de um potencial de agressividade reprimidos que se explicitam no drama do dia-a-dia. Daí porque, por trás da transgressão da norma penal, é possível perceber valores, representações e comportamentos sociais especificamente desviantes. Para as correntes criminológicas, principalmente aquelas que veem a criminologia como ciência autônoma, o conceito de desvio apresenta algumas limitações. Para essa corrente, esse conceito teria uma boa dose de carga valorativa e relativismo, portanto de incerteza. Assim, condutas desviadas in se, objetivamente, não existem, pois são apontadas pelas expectativas externas de outros. Daí que, para os


criminólogos, é fundamental ter um marco objetivo de referência do que é e do que não é crime (MOLINA, GOMEZ, 2006, p. 61-63). A criminologia privilegia o conceito de delito, que ocorrem sob as seguintes circunstâncias que tenha uma incidência massiva na população; que referida incidência seja dolorosa, aflitiva; persistência espaço-temporal; falta de um inequívoco consenso a respeito de sua etiologia e eficazes técnicas de intervenção no mesmo; consciência social generalizada a respeito de sua negatividade (MOLINA, GOMEZ, 2006, p. 63-64).

Aqui se aponta um conceito que vê o delito como problema social a ser resolvido, solucionado através de técnicas específicas que a criminologia traz à tona. O funcionalismo durkheiminiano foi a primeira teoria efetiva e verdadeiramente sociológica a se preocupar com a questão do crime. Ele vai perceber o crime e o desvio enquanto fatos sociais, onde, na modernidade, as pessoas eram menos constrangidas e o modelo de Direito é o restitutivo ao invés do repressivo das sociedades tradicionais. Assim, como na modernidade impera o individualismo e as pessoas tendem a ter mais espaço para escolhas o que gera mais não-conformidade às

normas. Até porque, para Durkheim, nenhuma sociedade é capaz de atingir o consenso absoluto (GIDDENS, 2005, p. 176). Para Durkheim, o desvio cumpre uma função importante na sociedade: ele permite a adaptação constante, ou seja, a mudança social. Ele também promove a fronteira entre aquilo que é “bom” e “mau” em uma sociedade, aumentando a solidariedade ao fazer com que os indivíduos se voltem contra este ou aquele comportamento criminoso. Um dos aspectos mais salientes da sociologia de Durkheim passa pela consideração obrigatória de uma estreita relação entre as deter minações individuais e as construções sociais, donde resulta, antes que tudo, uma clara ascendência da consciência coletiva sobre a consciência individual. Ao contrário do que defendiam os contratualistas, que imaginavam uma sociedade de indivíduos, a sociedade não é o mero somatório das partes, pois ainda assim não passaria de um conjunto heterogêneo de afirmações diferenciais. A sociedade, muito pelo contrário, é, para Durkheim, um depositório de valores que de uma forma mais ou menos regular se consensualiza (CARLOS, 2006). 131


Esta visão da sociedade não deixou de ter a sua projeção no modelo sociocriminal que Durkheim defendeu. Antes de tudo porque o crime, embora de modo algo ambíguo, passou a ser considerado não apenas como o resultado de condutas antissociais, mas como condutas contextualizadas socialmente. O crime mais que um fenômeno do criminoso passou a ser encarado como uma realidade social cuja importância era inquestionável para o estudo sociológico, nomeadamente para a compreensão das grandes estruturas de sedimentação e desenvolvimento social. A um crime tão atomizado na sua explicação como o foi o homem desde a escola clássica até à escola positiva opôs-se, através desta nova dimensão da criminologia, uma explicação das causas do crime que procura a solução do problema criminal não apenas na responsabilização exclusiva do delinquente mas na responsabilização do comportamento criminal por elementos típicos da própria sociedade que funciona como um ambiente verdadeiramente condicionador da ação individual. Mas, mais que isso, a concepção de Durkheim explica já que as causas do crime poderão estar em relação direta com as disfuncionalidades fáticas e normativas do conjunto interrelacional, como poderão resultar das opções consensuais dos ordenamentos sociais de cada época (CARLOS, 2006). 132

Mas se isto será assim para Durkheim, para alguns autores contemporâneos, inspirados no modelo de conflito marxista, o importante não será, no entanto, penetrar nos problemas, o importante e imperioso é criar uma sociedade em que a realidade da diversidade humana, seja pessoal, orgânica ou social, não esteja submetida ao poder de criminalizar (CARLOS, 2006). Para Robert Merton, sociólogo americano, a anomia – que em Durkheim servia para explicar o enfraquecimento das normas – deveria referir-se à “pressão imposta ao comportamento dos indivíduos quando as normas aceitas entram em conflito com a realidade social”. Para ele, o desvio é visto como um “subproduto das desigualdades econômicas e da falta de oportunidades iguais” (GIDDENS, 2005, p. 177). Para ele, certa dose de privação relativa levaria inevitavelmente certos indivíduos e grupos ao desvio e ao crime. Outra corrente funcionalista importante foi a de Richard Cloward e Lloyd Ohlin, sociólogos norteamericanos que passaram a pensar o desvio e o crime em “termos de grupos subculturais que adotam normas que encorajam ou recompensam o comportamento criminoso” (GIDDENS, 2005, p. 177). Assim, para esses pensadores, a questão não era pensar comportamentos individualmente desviantes ou criminosos, mas pensá-los enquanto


subgrupos ou subculturas, como no caso das gangues (a ideia de subculturas delinquentes), a onde indivíduos se associariam. O estímulo a esse comportamento estaria naqueles que internalizam valores da classe média ou das classes mais abastadas e, ao não conseguirem concretizarem, ficariam predispostos à delinquência. Isto principalmente em comunidades onde as chances de progressão social são mais difíceis. Segundo Giddens, “a falta de oportunidade para o sucesso em termos de uma sociedade mais ampla é o principal fator que diferencia aqueles que se lançam em um comportamento criminoso daqueles que tomam direção oposta”. Mas, nem todos os indivíduos seguem esse padrão. As pessoas, em sua maioria, “tendem a ajustar suas aspirações ao que percebem ser a realidade de sua situação”. E, nessa mesma perspectiva, não apenas os menos remediados rumam para o desvio e o crime. Concluindo: existem pressões em direção à atividade criminosa entre outros grupos também, conforme indicam os assim chamados crimes do colarinho-branco de peculato, fraude e evasão fiscal (GIDDENS, 2005, p. 177). As teorias interacionistas, diferentemente da funcionalista, preocupam-se em ver o desvio e o crime enquanto fenômenos sociais, questionando como os comportamentos se tornam vistos

como desviantes e porque determinados grupos e não outros são definidos assim. Para Edwin Sutherland, com seu conceito de associação diferencial, numa sociedade que possui uma variedade de subculturas, alguns ambientes estimulam ações ilegais, enquanto outros não. É a associação a pessoas desviantes que geraria mais criminosos (GIDDENS, 2005, p. 177). Outra teoria importante é a chamada teoria da rotulação. Para esta, o desvio e o crime são vistos como processos de interação entre desviantes e não-desviantes. Daí que, “para entendermos a natureza do desvio propriamente dito, devemos descobrir por que alguns indivíduos acabam recebendo o rótulo de ‘desviantes’” Assim, aqueles que pertencem ao aparato do poder são os “rotuladores”, e esses rótulos ao criarem categorias de desvio terminam por expressar a estrutura de poder da sociedade. Daí que essas regras sejam, em geral formuladas para os “pobres” ou para os grupos que se encontram longe da esfera de poder (daí o exemplo: uma criança rica que rouba uma fruta numa árvore está brincando; uma criança pobre está roubando, etc.). Assim, para Howard Becker – sociólogo americano – existem “processos que não estão relacionados ao comportamento propriamente dito, mas que exercem grande influência ao se rotular ou não uma pessoa de desviante”. Isso termina por influenciar, inclusive, 133


a forma como a pessoa mesma se vê, criando uma espécie de estigma social. A importância da teoria da rotulação consiste em sua ideia central de que nenhum ato é intrinsecamente criminoso. O problema dessa teoria é que ela ignora os processos que levam à rotulação em si, ou seja, existem realmente condutas desviantes. (GIDDENS, 2005, p. 178-179). As mais atuais teorias sociológicas, de influência marxista, são as denominadas teorias do conflito (também chamadas de New Criminology, a Nova Criminologia). Para os adeptos desta, o desvio “é uma escolha deliberada e, frequentemente, de natureza política, rejeitando a ideia de que o desvio seja ‘determinado’ por fatores como a biologia, a personalidade, a anomia, a desorganização social ou rótulos. Em lugar disso, defenderam a noção de que o comportamento desviante é uma escolha ativa dos indivíduos em resposta às desigualdades do sistema capitalista (GIDDENS, 2005, p. 179).” Assim, questões de classe determinariam o grau de resposta do Estado e das classes dominantes diante de certas ações e comportamentos desviantes. A lei é vista como instrumentos de dominação e de imposição da ordem das classes dominantes, assim como o próprio Estado. 134

Outra teoria, o chamado Novo Realismo de Esquerda, sustenta que a criminologia necessitava se envolver mais com as questões do controle da criminalidade e da política social, ao invés de apenas debatê-las. Voltamse mais para a questão das vítimas (ênfase na vitimização), mostrando que essas tendem a estar nos bairros mais pobres e violentos (portanto, marginalizados). O cumprimento da lei precisaria corresponder mais às comunidades, ao invés de se apoiar na pura e simples repressão. Volta-se para a ideia de policiamento mínimo e de polícia comunitária, numa visão mais realista e pragmática do problema. Por último, temos as chamadas teorias de controle, que defendem que a criminalidade ocorreria como efeito de um desequilíbrio entre “os impulsos em direção à atividade criminosa e os controles sociais e físicos que a detêm”. Para esta escola, o crime é movido por escolhas racionais e situacionais, ou seja, de acordo com a situação ou oportunidade. Existiriam elementos sociais e culturais que mantêm o controle social (conforme Travis Hirschi são: apego, compromisso, envolvimento e crença). Quando esses não são fortes o bastante, as pessoas ficam livres para desobedecer às regras. Assim, “os delinquentes são, em geral, indivíduos cujos baixos níveis de autocontrole são uma consequência de uma socialização inadequada”. Nesse mesmo ângulo, “o crescimento do crime é um efeito do aumento do


número de oportunidades e alvos para o crime na sociedade moderna”. Daí a razão de os adeptos dessa linha teórica defenderem uma intervenção no crime em termos de endurecimento em relação ao alvo (ou seja, intervenção direta em situações potenciais de crime – tolerância zero). Uma das maiores críticas a esse sistema é que os padrões criminais podem simplesmente migrar de um local para outro (GIDDENS, 2005, p. 180-182). Considerações finais O grupo social situado nos níveis mais altos das relações verticais detém o poder dominando e controlando os outros grupos e se apropriando do que é mais válido e útil daquilo que a sociedade produz. Desse modo, ele passa a deter nas mãos o privilégio de ditar normas para si e para os outros que terão de aceitar essas normas. Ou porque elas guardam compatibilidade com seus interesses, ou porque tais grupos, ignorando sua própria condição, acreditam serem essas normas as melhores para a sociedade, ou ainda porque neles foi inculcada a crença de que são incapazes de governar, ou por último, simplesmente, pela força, pela sanção. Daí que o discurso do poder, o discurso disciplinador se instila em vários níveis da sociedade, estabelecendo um “jogo” de confirmações de teor normativo e de transgressões

permitidas, enquanto não ferem todos os parâmetros estabelecidos. O poder tem como base o Estado e seu monopólio institucionalizado da violência difunde-se em toda a sociedade encerrando os sujeitos numa estrutura rigorosa de deveres formais e agressões informais. Para a sociedade, o crime aparece como algo a ser combatido, sem que se perceba seu caráter de transgressão da ordem social. O que se deixa descortinar é sua associação à violência, que também é vista negativamente e enquanto algo a ser combatido. Mistifica-se a realidade, mostrandose que o crime em, si, é fruto não de um conjunto de fatores econômicos, sociais e culturais, ligados à própria reprodução da sociedade capitalista, mas ele termina por aparecer como fruto da vontade doentia dos criminosos. Daí que temos uma reificação da forma como o crime é pensado na sociedade capitalista e, em certa medida, no Direito. Longe de poder ser visto em sua integralidade, ligado ao processo de constituição da própria sociedade capitalista, o crime aparece enquanto algo que quase possui vida própria, assumindo imagens, formas e contornos únicos. Um verdadeiro simulacro daquilo que ele é na realidade: um fenômeno social construído por um modelo civilizacional que ainda não se esgotou. 135


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POLÍCIA COMUNITÁRIA: INSTRUMENTO DEMOCRÁTICO DE PROMOÇÃO DA SEGURANÇA PÚBLICA Evandro Minchoni1

RESUMO Os crescentes índices de violência e criminalidade têm levado a população a reclamar das autoridades estatais o aperfeiçoamento das políticas públicas destinadas à preservação da ordem e segurança públicas. No Brasil, em especial a partir de 1986, com a redemocratização do País e, por conseguinte, o fortalecimento dos movimentos sociais, vislumbrase a necessidade de mudança no paradigma das instituições responsáveis pela promoção da segurança pública, até então concebidas como parte do aparato autoritário e repressor do Estado. A Constituição da República Federativa do Brasil, promulgada em 5 de outubro de 1988, veio a consolidar o direito à segurança como um dos direitos fundamentais do ser humano. Em razão disso, a polícia inicia um processo de reformulação doutrinária e organizacional, com o intuito de amoldar a prestação de seus serviços ao novo contexto constitucional, cujo beneficiário principal é o cidadão. PALAVRAS-CHAVE: Direitos Policiamento Comunitário.

Humanos.

Segurança

Pública.

Segurança pública: para quem? A segurança pública – considerada dever do Estado, direito e responsabilidade de todos – destina-se à preservação da ordem pública e da incolumidade de pessoas e patrimônio, segundo disposto no art. 144, caput, da Constituição da República Federativa do Brasil, a seguir transcrito: Art. 144. A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, (...) (BRASIL, 1988). 1 Graduado em Direito pela Universidade Potiguar e especialista em Políticas Públicas pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte.

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Por conseguinte, a segurança pública – ao ser classificada como um dos direitos fundamentais do cidadão – deve abranger a garantia de outros desses direitos essenciais, tais como a inviolabilidade do direito à vida, liberdade, igualdade e propriedade, conforme os mandamentos constantes dos arts. 5o, caput, e 6o, ambos da Constituição da República Federativa do Brasil. Eis os preceitos: Art. 5o Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (...) Art. 6o São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição. (Destaques acrescentados). (BRASIL, 1988).

A segurança pública, então, pode ser compreendida como meio assecuratório dos direitos individuais de que o cidadão pode usar, dispor, fruir e gozar dentro da ordem e da paz (PIMENTEL, 1983:283). Discorrendo sobre o tema, Manoel Pedro Pimentel assevera: (...) a segurança pública é essencial para o adequado convívio social, uma vez que ela é pressuposto das condições para o correto e normal exercício de todas as atividades humanas, desde o trabalho até o lazer, desde a preservação da saúde e da vida até a prática dos cultos e das religiões. Para prover a segurança pública assim conceituada, o Estado conta com órgãos oficiais especializados (PIMENTEL, 1983:288-289).

Por sua vez, Álvaro Lazzarini afirma que a segurança, ao lado da salubridade e da tranquilidade públicas, constitui um dos aspectos da ordem pública, conforme se depreende do seguinte ensinamento: (...) falar sobre segurança pública exige do doutrinador cauteloso a atitude de sempre reportar-se à ordem pública, face à inter-relação existente entre esses conceitos. Igualmente a festejados administrativistas pátrios e europeus, entendo que a segurança pública é um aspecto da ordem pública, concordo até que seja um dos seus elementos, formando a tríade ao lado da tranquilidade pública e salubridade pública. (...) A ordem, assim como a segurança, são valores etéreos, de difícil aferição e não é por acaso que publicistas de renome mundial, sucessivamente, atravessaram séculos a estudá-las, tal a complexidade que oferecem. Pode-se afirmar com certeza 138


que a ordem pública é sempre efeito de uma realidade nacional que brota da convivência harmônica resultante do consenso entre a maioria dos homens comuns, variando no tempo e no espaço em função da própria história. O arcabouço jurídico que o Estado proporciona à sociedade é simples e tradutor dessa ordem (LAZZARINI, 1987).

No mesmo sentido, Dalmo de Abreu Dallari compreende que a segurança pública abrange essencialmente a preservação da ordem, mediante a prestação de um serviço estatal que deve ser exercido pela polícia nos moldes constitucionalmente previstos. Eis a lição do referido autor: A segurança pública é a ação exercida para a preservação da ordem pública e também preservação da incolumidade das pessoas e do patrimônio. Ademais, na verdade, quando se diz ‘preservação da incolumidade da pessoa e do patrimônio’, isto faz parte da ordem. É por isso que eu insisto neste ponto: que ordem não é um conjunto de leis; é muito mais do que isso. Ordem tem um conteúdo. São as pessoas numa determinada forma de convivência; isto é que é a ordem. Então, a segurança é uma atividade absolutamente necessária, e a Polícia, como responsável pela segurança, presta um serviço público essencial (...) Porque, entre outras coisas, ela tem, segundo a própria Constituição, o objetivo de preservar a ordem. Deve ter permanentemente uma atividade preventiva, para que a ordem não seja quebrada, para que ela seja respeitada; para que as pessoas se comportem segundo a ordem. E se isto acontecer, então, não há a necessidade da repressão (que é aquela atividade mais aparente). Esse já é um parâmetro fundamental, que está na própria Constituição: a lei estabelece como a polícia se organiza, estabelece como ela deve agir, como ela deve funcionar, mas sempre tendo por objetivo constitucional a preservação da ordem (...) E proteção da ordem, preservação da ordem, é sempre se pressupondo que esta ordem deverá ser legítima, deverá ser autêntica, deverá ser democrática (DALLARI, 1996).

José Afonso da Silva buscando distinguir segurança e ordem pública ensina que: A doutrina italiana observa que a segurança pública é o ordenado e pacífico desenvolvimento da vida de uma comunidade nacional ou local e que seu conceito vem geralmente associado à noção de ordem pública, com dificuldade de distinguir conceitualmente os dois termos que não raro se empregam essencialmente como sinônimos. Assim, a ordem pública será uma situação de pacífica convivência social, 139


isenta de ameaça de violência ou de sublevação que tenha produzido ou que supostamente possa produzir, a curto prazo, a prática de crimes. A segurança pública consiste numa situação de preservação ou restabelecimento dessa convivência social que permite que todos gozem de seus direitos e exerçam suas atividades sem perturbação de outrem, salvo nos limites de gozo e reivindicação de seus próprios direitos de defesa de seus legítimos interesses. Na sua dinâmica, é uma atividade de vigilância, prevenção e repressão a condutas delituosas (SILVA, 2005).

No dizer dos vários doutrinadores mencionados, a segurança pública, portanto, deve estar intimamente ligada à ordem pública, ou seja, precisa relacionar-se diretamente à possibilidade de convivência pacífica e harmônica entre os indivíduos que integram determinado corpo social. A par dessa constatação, não é possível dissociar-se a concepção de ordem pública da existência do Estado Democrático de Direito, conforme assinala Jaqueline de Oliveira Muniz: (...) Só se pode falar de polícia em Estado de direito, pois no momento em que ele é suprimido, que se tem cidadania restritiva, o lugar de polícia fica comprometido. Porque o que difere polícia de exército e dos meios combatentes, é que ela é uma ferramenta civil que presta serviços civis à sua comunidade. É como se a sociedade fosse composta por elementos suspeitos, que variam de acordo com o que é tido como suspeito em cada época, sejam eles capoeiras, negros alforriados, comunistas, desempregados ou bandidos. Ao invés dos conflitos serem um motor positivo de construção dos vínculos sociais e da sociabilidade, ele se torna algo a ser extirpado (MUNIZ, 2001).

Nesse contexto, não se pode ignorar principalmente as duas décadas de regime militar autoritário (1964–1985) vivenciado por nosso país. Abusos de toda ordem e generalizados eram infligidos à população, predominando sempre o uso da força coercitiva do aparelho estatal. Era o Estado reprimindo a sociedade sob o pretexto de proteger a chamada “segurança nacional”. A mudança de paradigma, ou seja, a instauração de um Estado Democrático de Direito2 em substituição ao Estado autoritário, constitui um processo 2 Segundo Marco Antonio Alves Miguel: “Num Estado Democrático de Direito, o Estado edita e pronuncia a lei, e por aí instaura-se um primeiro campo de injunções e de censura, criando o terreno para a aplicação e o objeto da violência. Portanto, a lei, como um dos recursos de dominação utilizados pelo Estado, exerce um papel fundamental na constituição e uso do poder e da violência física, pois toda forma estatal edificou-se sempre como organização jurídica”. (MIGUEL, 2007).

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complexo e demorado, por envolver, entre outros aspectos, a efetivação de práticas democráticas no âmbito dos Órgãos e Entes do Poder Público – notadamente das instituições responsáveis pela ordem e paz social – uma vez que “não se pode desprezar o peso do autoritarismo social e das heranças deixadas pelos regimes autoritários nas agências encarregadas do controle repressivo da ordem pública” (Adorno, 2000:132). Desse modo, apesar do processo de democratização iniciado no País em 1986, verifica-se que as práticas ilegais e o uso indiscriminado da violência por parte dos aparelhos coercitivos estatais permaneceram sendo fortemente utilizados pela instituição pública mais identificada com a utilização legitimada da força pelo Estado: a polícia. Isso porque a ausência de novas referências faz com que a polícia mantenha o seu caráter repressor e combativo. Não por outro motivo, ainda hoje, subsiste a imagem negativa que a polícia possui no meio social ou, ao menos, a incompreensão social a respeito do papel da instituição na sociedade. Jacqueline de Oliveira Muniz afirma que esse sentimento de desconfiança entre polícia e sociedade pode ser explicado a partir de uma conjuntura histórica, porquanto: (...) ao longo de quase 160 anos da história das organizações policiais no Brasil essas organizações sempre estiveram voltadas para a proteção do Estado contra a sociedade. Em outras palavras, desde que foram criadas (...) elas foram, por força de lei, forçadas a abandonar o seu lugar de polícia em favor de um outro lugar, que é o de instrumento de imposição da ordem vinda do Estado. O fazer polícia significando defender o Estado contra o cidadão é algo que está bastante claro na farta documentação histórica, legal e formal existente. Assim, o processo de afastamento da polícia com relação à sociedade se dá desde a fundação das organizações policiais. A ideia que se tinha, e que vigorou por um bom tempo, é que as organizações policiais deveriam se proteger de uma sociedade insurreta, rebelde e isso poderia contaminá-la ou poluíla. (...) Ao longo da tradição brasileira se confundiu segurança pública com segurança interna e defesa nacional. Numa sociedade em que estas noções e conceitos estão confundidos, a segurança é assunto exclusivo e reservado do Estado, e não cabe e nem compete perceber o cidadão como um cliente desta polícia. O cliente dos mecanismos de regulação social se torna o próprio Estado. É evidente que isto criou este hiato histórico entre a polícia e a comunidade. (...) Esta é uma história de conflito, animosidade e preconceito, seja das organizações policiais em relação 141


às suas comunidades, ou das comunidades em relação as suas polícias. Se, de um lado, os polícias em suas organizações foram condicionados a se afastarem de suas comunidades de origem e a experimentar uma espécie de isolamento social, de outro lado, a sociedade foi socializada entendendo que a polícia ‘está do outro lado’, era contra nós, era algo do Estado ou do governo, contra a sociedade (MUNIZ, 2001).

Naturalmente, essa concepção equivocada de polícia repercute no relacionamento entre a própria instituição e os destinatários de seus serviços, criando dificuldade na comunicação e confiança entre os profissionais de segurança e a população. Entretanto, especialmente a partir de 1990 – portanto, já em uma nova ordem constitucional, fundada no Estado Democrático de Direito – as corporações policiais iniciaram um “processo de rompimento do modelo histórico do sistema policial, em decorrência das transformações em andamento na sociedade brasileira, em especial o crescimento das práticas democráticas e o fortalecimento da cidadania” (BENGOCHEA e outros, 2004). Ao mesmo tempo, e com maior intensidade, os movimentos sociais buscavam ampliar os espaços de participação cidadã na tomada de decisões estatais, tendo por fundamento as conquistas sociais incorporadas à Constituição Federal, promulgada em 1988. É a partir desse momento, em que a agenda pública passa a ser construída em conjunto com seus beneficiários, que o aparato repressivo do Estado deixa de estar focado na preservação da segurança nacional, calcada na luta contra o inimigo interno, passando a vislumbrar como sua principal finalidade promover a segurança individual dos cidadãos. O objetivo, então, é implantar um modelo estratégico de segurança pública em que haja interatividade social e proatividade no combate ao crime, a fim de serem criadas as condições necessárias à efetivação do direito fundamental de segurança, insculpido nos arts. 5o e 6o da Constituição Federal. Em outros termos, a filosofia policial volta-se para a proteção dos indivíduos, em substituição à mera repressão. Polícia: para quê? Como se sabe, a violência e a criminalidade não distinguem classe social. Ao suprimir o luxo do rico e perenizar a miséria do pobre, prejudicam o desenvolvimento de toda a sociedade. Em razão disso, a (in)segurança pública 142


é um dos temas mais recorrentes na agenda política de diversos países. No Brasil, não é diferente. A partir da década de 90, a violência deixou de ser um problema existente apenas nas capitais e regiões metropolitanas brasileiras, passando a atingir os pequenos municípios. Por conseguinte, cresce a sensação de insegurança na população. A principal discussão sobre segurança pública diz respeito à (re)definição do papel das instituições envolvidas, dentre as quais, destaca-se a polícia. Imaginar que apenas a polícia será responsável pela redução dos alarmantes índices de violência e criminalidade é ingenuidade. Todavia, o papel da polícia é fundamental nesse processo. A polícia, sendo uma das instituições que integra o aparelho repressivo do Estado, tem por objetivo regular os comportamentos sociais pelo uso da violência física legítima (WEBER, 1970). Essa ideia de monopólio sobre o uso legitimado da violência por parte do aparato policial é defendida por Bittner (em MONET, 2001), ao ensinar que: (...) o papel da policia é tratar de todos os tipos de problemas humanos quando, e na medida em que, sua solução necessita, ou pode necessitar, do uso da força, no lugar e no momento em que eles surgem. É isto que dá uma homogeneidade a atividades tão variadas quanto conduzir o prefeito ao aeroporto, deter um malfeitor, expulsar um bêbado de um bar, regular a circulação, conter uma multidão, cuidar de crianças perdidas, administrar os primeiros cuidados e separar casais que brigam.

Assim, tem-se por certo que o Estado visa a expropriar dos indivíduos isoladamente o uso da força, a fim de revestir-se de legitimidade para exercêla em nome do corpo coletivo que representa, notadamente mediante a instituição policial. O uso da força é legalmente justificado pela necessidade de imposição de normas públicas, explícitas e obrigatórias (PAIXÃO, 1993). Em outras palavras, a polícia tem por principal atribuição assegurar a obediência às normas estabelecidas pela sociedade, que envolvam a definição dos modos civilizados de existência e pacificação de conflitos sociais. Enfim, a polícia deve preservar a ordem e a segurança públicas. Segundo Ricard Brotat (2002), tradicionalmente, são identificados no mundo dois grandes modelos policiais: (i) o modelo latino ou continental; e (ii) o modelo anglo-saxão ou comunitário. O primeiro, surgido a partir da polícia francesa do fim do século XVIII, 143


possui como características: estrutura militar centralizada, ampla cobertura territorial, inclinação para servir ao Estado e atuação dentro de uma lógica repressiva em relação ao delito (reação). Já o segundo modelo, criado a partir da experiência londrina de policiamento do início do século XIX, apresenta as seguintes particularidades: estrutura civil, de âmbito local, destinada a prestar seus serviços à comunidade visando à prevenção e à investigação de delitos (pró-ação). A realidade brasileira tem demonstrado que a capacidade de o Estado mobilizar recursos e meios necessários ao enfrentamento dos problemas que permeiam a segurança pública nos moldes tradicionais tem encontrado limites. Ações repressivas, ampliação de contingente policial, armamentos e viaturas, ou até mesmo de tecnologia de informação, já não conseguem reduzir, ou ao menos conter, os índices de violência e criminalidade. Jorge da Silva corrobora esse entendimento, acrescentando que o distanciamento da população quanto ao planejamento, à elaboração e à execução de ações de resgate da segurança pública, apenas contribui para o agravamento do problema, uma vez que: a cultura brasileira ressente do espírito comunitário. Somos individualistas e paternalistas, o que dificulta qualquer esforço de participação da comunidade na solução de problemas. No caso da segurança pública, bem essencial a todos os cidadãos, esperar do Poder Público todas as providências para obtê-la é atitude que só tem contribuído para agravar o problema, pois é preciso situar os limites da atuação governamental. (...) Se admitirmos como verdadeira a premissa de que a participação do cidadão na sua própria segurança aumenta a segurança do mesmo e contribui para diminuir o medo do crime. (...) Compete ao Poder Público (Federal, Estadual e Municipal) incentivar e promover os modos desta articulação fazer-se de forma produtiva, posto que, agindo autonomamente essas comunidades poderão sucumbir à tentação de querer substituir o Estado no uso da força, acarretando o surgimento de grupos de justiçamentos clandestinos e a proliferação de calúnia, da difamação e da delação (SILVA, 1990).

Por conseguinte, diante do novo cenário constitucional com a ampliação dos espaços de participação cidadã, o poder público e a sociedade civil passaram a interagir mais frequentemente na discussão sobre novas formas de contenção da violência e criminalidade. 144


Nesse contexto, acontece o natural fortalecimento da proposta de implantação da polícia comunitária no Brasil, por meio da qual se pressupõe o comprometimento social do próprio público-destinatário como “coprodutor da segurança e da ordem, juntamente com a polícia” (SKOLNICK; BAYLEY, 2002:18). Essa nova proposta decorre das práticas de segurança pública desenvolvidas em outros países em que a participação coletiva é fundamental para a construção de um programa eficiente de prevenção e redução da violência, conforme informa Luís de Souza: (...) a experiência internacional em matéria de polícia tem se baseado no aprimoramento dos serviços prestados à comunidade, na proteção das vítimas, na parceria com entidades da sociedade civil, na coleta, tratamento e divulgação de dados, no planejamento de ação, na compreensão trivial de que a segurança pública é uma construção social complexa (SOUZA, 2002:11). A polícia comunitária, portanto, pretende superar o sistema policial convencional, instituindo a atuação preventiva e repressiva qualificadas, com ênfase na solução pacífica dos conflitos, no aperfeiçoamento e na humanização dos policiais, motivando a interação das instituições policiais com a comunidade em que está inserida.

Muito mais consentâneo com a nova ordem constitucional, esse novo modelo implica uma profunda mudança na cultura organizacional policial, exigindo da instituição a efetivação de uma nova realidade social, ou seja, o desenvolvimento de ações incondicionalmente voltadas para a elevação do nível de participação da comunidade na manutenção da ordem pública, o que criaria condições, segundo Soares (2006), “para a negociação democrática de contratos locais de cogestão do programa segurança, entendido em seu sentido mais abrangente”. Sendo assim, novas habilidades devem ser valorizadas no profissional de segurança, tais como o diálogo, a argumentação e a interação social, além de novas maneiras de pensar a violência e a criminalidade, bem como as respectivas causas. Em resumo, no dizer de Marco Antônio de Azevedo (2003), “o uso da violência e da força seria substituído pela ação inteligente e habilidosa”. O policiamento comunitário possui como filosofia de trabalho a ideia de que a polícia é prestadora de um serviço público, cujas atividades estão voltadas para a busca do bem comum, ou seja, a formação de uma sociedade 145


não violenta e organizada. Outro não é o entendimento de Carlos Adelmar Ferreira (1995), expresso nas palavras do Chefe do Departamento de Polícia Metropolitana de Londres, Mathew Boggot: “Polícia comunitária é uma atitude, na qual o policial, como cidadão, aparece a serviço da comunidade e não como uma força. É um serviço público, antes de ser uma força pública”. Na verdade, não existe uma fórmula hermética de implantação dessa filosofia organizacional, o que seria um próprio contra-senso à ideia de construção participativa do modelo. Contudo, quatro inovações são consideradas essenciais por Jerome H. Skolnick e David H. Bayley (2001:224232; 2002:15-39): (i) organização da prevenção do crime tendo como base a comunidade; (ii) reorientação das atividades de policiamento para enfatizar os serviços não emergenciais e para organizar e mobilizar a comunidade para participar da prevenção do crime; (iii) descentralização do comando da polícia por áreas; e (iv) participação de pessoas civis, não policiais, no planejamento, execução, monitoramento e avaliação das atividades de policiamento. A formação de uma polícia mais descentralizada e voltada para a interação com a comunidade confere maior legitimidade à sua atuação, além de implicar a redução da sensação de insegurança da população, mediante o restabelecimento da confiança na atuação policial. Ademais, em virtude do resgate da confiança no aparato policial, o trabalho dos profissionais de segurança será desenvolvido a partir de dados e informações qualificados coletados diretamente no seio social, possibilitando melhores resultados no enfrentamento dos focos de problemas em determinado espaço territorial. Portanto, a produção e a organização das informações têm papel decisivo na preservação da ordem e na promoção da segurança pública. No mesmo sentido, a participação de atores sociais não integrantes da estrutura policial no planejamento, execução e avaliação das correspondentes ações, tanto de caráter preventivo como repressivo, confere maior transparência à instituição, representando a consolidação dos princípios democráticos inscritos na Constituição Federal. 146


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TRANSFORMAÇÕES SOCIAIS E SEUS REFLEXOS NA RESPONSABILIDADE CIVIL: A PROVA DO ERRO MÉDICO Lidianne Araújo Aleixo1

RESUMO O presente artigo analisa os principais aspectos relativos à prova do erro médico, haja vista a grande dificuldade enfrentada pelos operadores do direito na verificação da sua ocorrência. A prova da culpa médica é uma das questões mais sensíveis em matéria da responsabilidade civil médica. Eventuais vedações limitação ou restrição excessiva quanto às fontes e meio de prova aos litigantes, podem caracterizar uma aplicação inconstitucional de normas processuais civis, por redundarem na chamada inutilidade da ação judiciária, ou seja, seria uma espécie de vedação oculta de acesso ao Poder Judiciário, estabelecida pela impossibilidade de produzir a prova, vedando o acesso efetivo à justiça. A determinação da responsabilidade civil médica decorrente do erro médico revela-se muito difícil de ser provada por tratar-se de um campo estritamente técnico, além do fato da relação entre médico e paciente ser de natureza confidencial, estabelecendo-se na grande maioria das vezes em recintos fechados. A jurisprudência, a doutrina e o legislador precedem a contínuos aperfeiçoamentos quanto à prova do erro médico visando a conferir soluções mais justas aos casos de erro profissional. PALAVRAS-CHAVE: Responsabilidade civil médica. Erro médico. Prova do erro. Introdução A responsabilidade civil do profissional médico sem dúvida é um dos temas mais problemáticos da atualidade jurídica, ante sua surpreendente expansão no direito moderno e seus reflexos nas atividades humanas, contratuais e extracontratuais, e no prodigioso avanço tecnológico, que impulsiona o progresso material, gerador de utilidades e de enormes perigos à integridade da vida humana. Atrelado ao maior esclarecimento da população quanto aos seus direitos, bem como a evolução das relações de consumo. 1 Advogada. Professora das disciplinas de direito processual civil e direito empresarial da Faculdade Câmara Cascudo. Especialista em Direito e Jurisdição (ESMARN)

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Até porque algumas profissões, pelos riscos que representam para a sociedade, estão sujeitas a disciplina especial. O erro profissional, em certos casos, pode ser fatal, razão pela qual é preciso preencher requisitos legais para o exercício de determinadas atividades laborativas que vão desde a diplomação em curso universitário destinado a dar ao profissional habilitação técnica específica, até a inscrição em órgão especial. A análise da prova nas lides judiciais em que se discute o erro médico, tem se tornado tão melindrosa quanto a apuração do quantum destinado à satisfação do dano moral sofrido. No Brasil, atualmente, vêm aumentando as demandas jurídicas impetradas por paciente contra os seus médicos. O erro médico é um inadimplemento, bem caracterizado, de um contrato. Estamos frente a uma conduta bem definida de falha na prestação de serviços, no caso médicos, emergindo daí a necessidade de ser responsabilizado o profissional, em termos de responsabilidade civil, quando acompanhado de culpa o seu agir. Isso redunda ‑ quando em juízo assim decidem os tribunais brasileiros ‑ em uma sanção, imposta ao médico, de indenizar o paciente lesado pela sua conduta culposa. Utilizam-se, para juridicamente responsabilizar o médico pelo erro, todos os meios de prova aceitos em direito. Os prontuários, fichas clínicas dos pacientes, onde se encontram os seus dados clínicos e detalhes do atendimento, são de crucial importância, como elemento probatório. Acentuese a importância da prova pericial, pela complexidade e controvérsias sobre as condutas em um tratamento médico, motivo pelo qual pode esta perícia, até, tornar-se indispensável. Diante disso, alguns aspectos ligados a prova do erro médico merece esclarecimentos, já que em uma demanda indenizatória decorrente de erro médico, seja de natureza patrimonial ou extrapatrimonial, a identificação da culpa médica, com a prova do erro médico é de suma importância para a procedência ou improcedência do pleito. 1. Responsabilidade civil do profissional médico Permeando a variada frente de evolução científica, encontra-se a responsabilidade civil. O homem moderno mostra-se a cada dia menos tolerante aos danos de qualquer espécie, inclusive aos causados por profissionais da medicina, o que gera no judiciário um crescente número de demandas indenizatórias imputadas a procedimentos realizados pelos profissionais da área de saúde. 149


A ética médica e, mais recentemente a bioética, que estuda as implicações relevantes da ética aos problemas gerados pelo progresso da ciência, não se ausentam deste debate. Mesmo porque a dignidade humana e o respeito à vida são valores transcendentais, cuja preservação é cometida pelos discípulos de Hipócrates.2 Exercer uma profissão implica duplamente obediência às normas, pois o profissional, além do dever de obediência às regras gerais aplicadas a todos os cidadãos, deve atuar conforme as orientações normativas específicas inerentes ao exercício da atividade profissional. Assim como no cotidiano das relações sociais, é necessário observar determinadas normas de conduta individual. A responsabilidade civil do médico consiste na obrigação de indenização dos danos morais e patrimoniais causados pelo inadimplemento, com culpa ou dolo, de uma obrigação legal ou contratual. Aquele que submetido a tratamento médico, venha, por causa deste tratamento, a sofrer um prejuízo, seja de ordem material ou imaterial ‑ patrimonial ou não patrimonial, deve ser indenizado. A responsabilidade civil médica, em nosso sistema, vem exigindo tradicionalmente a presença de culpa para sua configuração, ou seja, a demonstração de uma falta do profissional em relação aos deveres decorrentes da obrigação de prestação de serviços médicos que denote o dolo, a negligência, a imprudência ou a imperícia no cumprimento desta obrigação. Trata-se pois, a responsabilidade do profissional médico, de uma responsabilidade subjetiva, definida pelo art. 951 do Código Civil3, que expressamente se refere ao dano decorrente de imprudência, imperícia ou negligência, mantida pelo Código de Defesa do Consumidor (Lei no 8.078/1990), em seu art. 14, § 4o4 que estabeleceu como regra a responsabilidade subjetiva para os profissionais liberais prestadores de serviços, abrindo, dessa forma, uma exceção ao sistema de responsabilidade objetiva nele estabelecido. 2. Nexo de causalidade e ônus da prova A prova da culpa médica e do nexo de causalidade desta e o dano é uma das questões mais sensíveis em matéria da responsabilidade civil médica. A regra do Código de Processo Civil a respeito, indica o ônus do autor de provar 2 KFOURI NETO, Miguel. Responsabilidade civil do médico. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003. p. 31. 3 “Art. 951. O disposto nos arts. 948, 949, e 950 aplica-se ainda no caso de indenização devida por aquele que, no exercício de atividade profissional, por negligência, imprudência ou imperícia, causar a morte do paciente, agravar-lhe o mal, causar-lhe lesão, ou inabilitá-lo para o trabalho.” 4 “Art. 14, § 4o: A responsabilidade pessoal dos profissionais liberais será apurada mediante a verificação de culpa.”

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o fato constitutivo do seu direito, enquanto ao réu cabe a prova da existência de fato impeditivo, modificativo ou extintivo do seu direito. Trata-se do que a doutrina critica acerca da regra processual sobre o ônus da prova e denomina de visão estática, em vista da aparente rigidez do critério adotado. Em consonância com o que dispõe o Código de Defesa do Consumidor, a distribuição do ônus da prova, em razão da proteção do interesse do consumidor nas hipóteses de responsabilidade por falta do serviço, como é o caso da responsabilidade civil médica, dá-se em duas situações. Primeiro, uma espécie de inversão ex vi lege, prevista no § 3o do art. 14 do Código de Defesa do Consumidor5, que estabelece que o fornecedor de serviços só não será responsabilizado quando provar que, tendo prestado o serviço, o defeito inexistia, ou que a culpa é exclusiva do consumidor ou de terceiro.6 A outra situação resulta do direito básico do consumidor à facilitação da defesa dos seus direitos que faculta ao juiz, quando a seu critério observar a verossimilhança das alegações ou a hipossuficiência do consumidor, determinar a inversão do ônus da prova em favor desse consumidor. Trata-se esta hipótese de um dos mais importantes instrumentos previstos no Código de Defesa do Consumidor para assegurar a efetividade dos direitos do consumidor. Contudo, a correta interpretação da disposição deve ser observada, sobretudo no que diz respeito ao que se considere como hipossuficiência do consumidor para efeito de atendimento à finalidade para a qual a norma foi criada. Nesse sentido, é comum encontrarem-se posicionamentos identificando a hipossuficiência do consumidor como sendo uma eventual desigualdade econômica ou de conhecimento ou formação cultural, técnica ou intelectual, que determina a impossibilidade de defender-se adequadamente em juízo ou mesmo de custear a produção da prova, o que explicaria a inversão do ônus facultada pela lei. Contudo, a hipossuficiência é mais do que a mera ausência de recursos 5

“Art.14, § 3o: O fornecedor de serviços só não será responsabilizado quando provar: I – que, tendo prestado o serviço, o defeito inexiste; II – a culpa exclusiva do consumidor ou de terceiro.”

6 “EMENTA: RESPONSABILIDADE CIVIL. ERRO MÉDICO. CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR. PRO-

FISSIONAL LIBERAL. INVERSÃO DO ÔNUS DA PROVA. POSSIBILIDADE. EXEGESE DO ARTIGO 14, § 4o, DAQUELE DIPLOMA LEGAL. HONORÁRIOS PERICIAIS. ADIANTAMENTO DA DESPESA. RATEAMENTO ENTRE AS PARTES. POSSIBILIDADE. 1. A exegese do artigo 14, § 4o, do CDC não impossibilita a inversão

do ônus da prova quando se trata de profissional liberal. A norma apenas afasta a responsabilização objetiva mas, como persiste a hipossuficiência do consumidor, ao profissional incumbe o ônus de provar que não laborou com culpa no desenvolvimento de suas atividades. Lição doutrinária. 2. O adiantamento das despesas com o perito, no caso concreto, deve ser suportado por todas as partes litigantes, pois houve a inversão do ônus probatório, sendo também de interesse do réu a produção da prova técnica; depois, porque a autora goza da gratuidade judiciária e o DMJ não dispõe de profissional médico especializado na área técnica e, conforme entendimento do Superior Tribunal de Justiça, não é conveniente se aguarde disponha o Estado de numerário para arcar com a despesa que, ao final, será suportada pelo vencido, o que afasta a lesão grave ou de difícil reparação. Precedente jurisprudencial. 3. Agravo desprovido.” (TJRS, Agin 70005785118, 2ª Câm. Especial Cível, rel. Nereu José Giacomolli, j. 27.05.2003).

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financeiros ou intelectuais. Trata-se, antes de tudo, de uma hipossuficiência processual, caracterizada pela impossibilidade de produção da prova, o que pode se dar em razão da carência de recursos financeiros ou de conhecimento técnico, mas igualmente pode resultar das circunstâncias da contratação de consumo, do tipo de prova a ser produzida, do fato de que sua produção dependa do comportamento do fornecedor em fornecê-las e quaisquer outras razões pelas quais não será alcançada sua realização pelo consumidor. Esta compreensão da hipossuficiência é de extrema importância na responsabilidade civil médica, em que muito propriamente, a impossibilidade de produção da prova não se vincula a quaisquer outros fatores senão da dificuldade de demonstrar a existência de uma situação de fato da qual o paciente-vítima de um dano não tem como apresentar, e, muitas vezes, nem ele próprio tem conhecimento de como ocorreram determinados eventos. Assim, por exemplo, a hipótese de danos sofridos por um paciente em um procedimento cirúrgico durante o qual ele se encontrava sedado e cuja documentação médica é toda ela produzida pelos réus (médico, hospital) ou pessoas associadas com estes. O paciente-vítima, em tal circunstância, não tem como produzir prova relativas aos fatos, cujo conhecimento é de domínio exclusivo dos réus, razão pela qual deverá ser reconhecido como hipossuficiente, e invertido o ônus da prova, na forma do art 6o, VIII, do Código de Defesa do Consumidor. E note-se que sequer a verificação da culpa do profissional liberal escapa à possibilidade de inversão do ônus da prova. Ou seja, a responsabilidade subjetiva dos profissionais médicos não resulta necessariamente na exigência de uma prova cabal da culpa, em razão das mesmas dificuldades já apontadas quanto à impossibilidade de produção da prova.7 Nesse caso, a verificação da culpa de que trata o art. 14, § 4o do Código de Defesa do Consumidor admite igualmente a inversão do ônus da prova, a critério do juiz, em vista do direito básico do consumidor de facilitação de sua defesa, estabelecendo uma presunção relativa de culpa do profissional médico, da qual este terá de se desonerar produzindo prova que demonstre a correção de sua conduta e o atendimento aos deveres que lhe são exigíveis. 7 “EMENTA: RESPONSABILIDADE CIVIL DO MÉDICO. INJEÇÃO ERRONEAMENTE APLICADA. AMPUTAÇÃO DO ANTEBRAÇO. ÔNUS DA PROVA. DANOS MATERIAIS E MORAIS. QUANTUM. Há que reconhecer a responsabilidade do médico quando se pode constatar pelos elementos dos autos – com observância à teoria da carga probatória dinâmica –, que contribuiu de forma determinante para o evento que culminou com a amputação do braço da autora, já que deixou de recomendar, de qualquer forma, que a aplicação da injeção deveria se dar na região glútea, e não no braço. Ademais, posteriormente à aplicação da injeção demorou a alcançar diagnóstico e providenciar tratamento adequado. Tendo em vista que a indenização a título de reparação de dano moral deve ter em conta a mitigação da ofensa, mas não representar um prêmio para o fendido, é de ser mantida a fixação da sentença – 400 salários mínimos –, tendo em conta que a autora é pessoa pobre, conforme ela própria refere ao postular o benefício da AJG. Apelação e recurso adesivo desprovidos.” (TJRS, ApCív 70016300659, 9ª Câm. Cív., rel. Marilene Bonzanini Bernardi, j. 28.12.2006).

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Esta possibilidade de inversão do ônus da prova, contudo, não está confinada às relações de consumo. A dificuldade de produção da prova, em vista de uma impossibilidade fática decorrente das circunstâncias de fato que envolve o autor da ação, como é o caso do paciente vítima de uma má prestação de serviços médicos, observou no processo civil a construção da teoria da distribuição dinâmica dos ônus probatórios, ou simplesmente teoria das cargas processuais dinâmicas. Essa teoria parte do princípio de que o encargo da prova deverá ser estabelecido pelo juiz em vista das circunstâncias do caso, independentemente da regra geral do art. 333, I, do Código de Processo Civil, o qual estabelece que incumbe ao autor a prova do fato constitutivo do seu direito.8 Essa teoria das cargas processuais dinâmicas vai ter de responder a muitas dificuldades, em especial no tocante à demonstração da culpa, nas ações de responsabilidade civil dirigidas contra profissionais liberais, dentre os quais os médicos. Não se pode afastar a regra do art. 333, I, do Código de Processo Civil, sendo que em relação ao ato profissional médico, este possui certo grau de discricionariedade, devendo o autor da ação oferecer prova clara e convincente sobre um erro manifesto do profissional. Refere, entretanto, que muitas vezes, a produção desta prova é impossível de ser produzida pelo paciente que demanda judicialmente por danos. Portanto, eventuais vedações limitação ou restrição excessiva quanto às fontes e meio de prova aos litigantes, podem caracterizar-se como aplicação inconstitucional de normas processuais civis por redundarem na chamada inutilidade da ação judiciária. Ou seja, seria uma espécie de vedação oculta de acesso ao Poder Judiciário, estabelecida pela impossibilidade de produzir a prova, vedando o acesso efetivo à justiça, razão pela qual a teoria da carga dinâmica da prova tem lugar justamente para afastar as hipóteses em que a aplicação estática do art. 333 do Código de Processo Civil leve a uma impossibilidade de sua realização. 8 “EMENTA: Apelação cível. Responsabilidade civil. Ação ordinária de indenização por dano material e moral. Erro médico. Ginecologista. Comprovação de administração de sangue incompatível. Obrigação de meio. Responsabilidade subjetiva. Nos casos de indenização por ato ilícito advindo de erro médico, a responsabilidade civil do médico é subjetiva. Para sua caracterização, é imprescindível a comprovação do nexo de causalidade entre o ato lesivo e a culpa em qualquer de suas modalidades. Era da autora, a teor do disposto no artigo 333, inciso I, do Código de Processo Civil, o ônus de provar o fato constitutivo de seu direito. Não tendo logrado demonstrar que do procedimento cirúrgico levado a efeito pelo réu decorreu a incapacidade de reprodução, impunha-se o decreto de improcedência da demanda em relação aos médicos demandados. Administração de sangue de tipo diverso do da autora decorrente de responsabilidade da laboratorista e não dos médicos. Cerceamento de provas inocorrente. Preliminar Rejeitada. Apelação desprovida. Recurso adesivo desprovido.” (Apelação Cível No 70001814219, Sexta Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Ney Wiedemann Neto, Julgado em 15/12/2005).

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3. A prova do erro médico Os operadores jurídicos enfrentam agudas dificuldades na verificação da ocorrência de erro médico, como bem dispõe o professor Sérgio Cavalieri Filho, há erro médico quando a conduta médica é correta, mas a técnica empregada é incorreta; há imperícia quando a técnica é correta, mas a conduta médica é incorreta.9 Morre-se de erro médico em escala planetária. No entanto, em países como o Brasil, o problema se agrava em face não apenas do corporativismo prepotente e do silêncio cúmplice da classe médica, especialmente dos donos de hospitais e dos representantes de planos de saúde, como de resto pela reserva ultraexclusiva de uma linguagem dissociada da essência da informação e dos direitos da cidadania.10 Na ação indenizatória por erro médico é o autor, a princípio, que tem o ônus de provar a incúria médica. Isso porque, sendo a obrigação do médico, em regra, de meio, cumpre ao prejudicado efetuar a prova do descumprimento contratual ou comprovar a culpa aquiliana. Somente quando a atividade médica seja de resultado, é que incumbe ao médico a comprovação de que o resultado desejado pelo paciente foi alcançado. Todavia, essa divisão da prova entre os litigantes não é tão extremada, posto que é prudente cada um juntar aos autos os elementos que possui, a fim de extrair a verdade dos pontos em que se fundamenta a controvérsia, e reconstituir os fatos tais como ocorreram. A dificuldade de se provar a culpa médica, quando o ônus recai sobre o paciente, reside em alguns fatores como a natureza confidencial das relações médico-paciente, o silêncio por parte daqueles que presenciaram ou que participaram do ato médico, bem como o aspecto técnico da culpa médica. Na maioria das vezes, o relacionamento entre médico e o paciente ocorre no recinto fechado de um consultório, sendo de natureza estritamente confidencial, sem testemunhas ou documentos. Dessa forma quando o paciente pretende apresentar alguma prova material da sua insatisfação, de nada dispõe, ou quando no máximo dispõe apenas de uma receita, na qual foram prescritos alguns medicamentos. 9 CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de Responsabilidade Civil. 7. ed. São Paulo: Atlas, 2007. p. 362. 10 FERRAZ, Edmundo Machado. Erro médico, complicação e prática não-médica: por uma classificação da responsabilidade do profissional de saúde. Revista dos Tribunais. v. 835, n. 94, mai. 2005, p. 36.

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Além do mais, é fato notório que, num trabalho em equipe, é bastante comum a existência de uma discrição solidária frente a um erro eventualmente cometido por um dos integrantes daquela, não só por existir entre eles laços de hierarquia, como de amizade também. Desse modo, mais difícil ao paciente provar a existência de um erro médico ocorrido numa sala de cirurgia um espaço fechado, restrito aos integrantes da equipe médica. No que se refere ao aspecto técnico da culpa médica, vale lembrar que os juízes, muitas vezes, ao julgar uma ação indenizatória têm de recorrer aos préstimos de um perito médico, o que pode trazer à baila o problema do corporativismo, por conta do qual se imagina que o laudo pericial possa vir a ser dado com certo favorecimento, tendo em vista tratar-se de colega de profissão. Não se pode asseverar que essa seja a regra, mas, de igual forma, seria inverídico, até mesmo ingênuo, dizer que tal não ocorre, ainda que a tendência de semelhante postura seja entrar em declínio. Dúvidas não há de que um laudo favorecido unilateralmente vai dificultar em excesso a caracterização do erro e, por conseguinte, a aferição da culpa a ser responsabilizada, ainda que a ele o julgador não esteja adstrito. Mas, também, não há como negar que, muitas vezes, encontram-se laudos periciais bastantes severos, evidenciando de forma clara o erro do colega. Supondo que nasça um litígio em juízo, em que o paciente que sofreu uma lesão, ou seus sucessores, aleguem a existência de erro por parte do médico pedindo a reparação civil dos danos sofridos, a quem cabe o ônus da prova? Ao paciente, que sofreu o dano, caberá provar que o médico agiu com negligência, imprudência ou imperícia? Ou tocará ao médico provar que não incidiu em nenhuma dessas hipóteses, tendo agido com absoluta correção? Tradicionalmente, o ônus da prova incumbe a quem alega, cabendo, portanto, ao paciente a prova do erro médico, conforme já comentamos. Todavia, com o advento do Código de Defesa do Consumidor, que, como vimos, incide sobre as relações médico-paciente, esse quadro mudou, mercê de regra específica do Código, que assegura, como direito básico do consumidor (no caso, o paciente), a facilitação da defesa dos seus direitos, inclusive com a inversão do ônus da prova11, a seu favor, no processo civil, quando, a critério 11 “EMENTA: APELAÇÃO CÍVEL. RESPONSABILIDADE CIVIL MÉDICA. ERRO MÉDICO. CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR. PRESCRIÇÃO. INVERSÃO DO ÔNUS DE PROVA FACULTATIVA. AGRAVO RETIDO. NÃO-CONHECIMENTO. Não se conhece do agravo retido se não reiterado nas contra-razões de apelo. A inversão do ônus de prova prevista no artigo 6o, VIII, do Código de Defesa do Consumidor não necessariamente deve ser deferida pelo magistrado, devendo ser aplicada conforme o caso concreto. Situação em que não se reconheceu a prescrição de ação movida por fato ocorrido em 1983, tendo-se rejeitado a aplicação do Código de Defesa do Consumidor, em que o lapso prescricional é o de cinco anos, de acordo com o artigo 27. Nessas condições, não se mostra adequado deixar de aplicar a Lei 8078 de 1990 para o fim de não reconhecer a prescrição e, posteriormente, aplicá-la para inverter o ônus de prova e condenar os réus. Não se valendo da inversão do ônus de prova, deve-se observar a regra, que se encontra estatuída no artigo 333 do Código de Processo Civil. Agravo retido não conhecido. Apelo desprovido.” (Apelação Cível No 70014074967, Quinta Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator:

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do juiz, for verossímil a alegação ou quando for ele hipossuficiente, segundo as regras ordinárias de experiência (art. 6º VIII do Código de Defesa do Consumidor12). Tanto na responsabilidade subjetiva do médico, quanto na responsabilidade subjetiva das clínicas ou hospitais públicos e privados, caberá ao réu, uma vez invertido o ônus probandi, demonstrar a inexistência do fato culposo (na hipótese da responsabilidade subjetiva), ou, nos demais casos, a inocorrência de defeito do produto ou do serviço, do dano ou do nexo de causalidade entre um e outro. Por isso, é extremamente importante que os médicos de qualquer especialidade procurem municiar-se de elementos que demonstrem a correção do seu proceder, documentando as entrevistas com o paciente para fins de anamnese ou outras finalidades; zelando diligentemente pela veracidade e boa ordem dos prontuários médicos; registrando em vídeo cirurgias mais complexas ou de maior risco; reportando aos colegas complicações possíveis nos tratamentos, decorrentes de fatos que escapem à esfera de poder do médico (os colegas e auxiliares, em processos de reparação, podem frequentemente prestar depoimentos de grande valia como testemunhas). Um conjunto de elementos de prova consistente que permita ao perito médico aferir a correção do procedimento do colega, será frequentemente a chave para a defesa eficaz do médico em juízo. 4. Considerações finais A evolução da responsabilidade civil deu-se em crescentes passos, em decorrência de um mundo moderno, com avanços tecnológicos e, principalmente, com o aumento da sociedade de consumo, trazendo-nos com isso uma massificação das atividades, o queem consequencia, desencadeou mudanças sociais, com uma apreciação diferenciada da responsabilidade civil pelos seres humanos. Diante da massificação do atendimento médico, a relação médico-paciente torna-se assaz impessoal, ao mesmo tempo em que, cada vez mais conscientes de seus direitos, os cidadãos buscam a tutela jurisdicional para a reparação dos danos que, no setor da saúde, assumem proporções alarmantes. Umberto Guaspari Sudbrack, Julgado em 25/04/2007). 12 “Art. 6o. São direitos básicos do consumidor: VIII – a facilitação da defesa de seus direitos, inclusive com a inversão do ônus da prova, a seu favor, no processo civil, quando, a critério do Juiz, for verossímil a alegação ou quando for ele hipossuficiente, segundo as regras ordinárias de experiências”.

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Tais circunstâncias traduzem, em certa medida, o grande relevo da responsabilidade civil na realidade brasileira, sobretudo em face dos novos mecanismos introduzidos no sistema pelo Código de Defesa do Consumidor, no sentido de assegurar a efetiva prevenção e reparação integral, permitindo a inversão do ônus da prova nas hipóteses de verossimilhança da alegação ou de hipossuficiência. Na visão do Código de Defesa do Consumidor, o profissional liberal, na condição de pessoa física continua respondendo civilmente pelos atos que praticar, pelo critério subjetivo ou da verificação da culpa. A sociedade, empresa ou instituição, à qual esteja vinculado, será responsabilizada objetivamente. No entanto, quanto ao dever probatório, poderá haver a inversão, deixando o autor da ação de ter sempre o ônus de provar que o profissional agiu de forma imprudente, negligente ou imperita, no desempenho de sua atividade. Diante das dificuldades na verificação da ocorrência de erro médico, torna-se necessário uma apreciação mais acurada pelos operadores do Direito, quanto ao aspecto da prova da culpa médica, aplicando para isto os recursos da inversão do ônus da prova, visando uma solução mais adequada, para os casos concretos de pretensões indenizatórias. Não busca, portanto, o Direito inibir a ação do médico. Ao contrário,

impõe o respeito àquele profissional que lida com o bem mais valioso do ser humano: a vida. O que almeja e cogentemente assegura o Direito é que a relação médico-paciente seja pautada no respeito mútuo que deve existir, no cumprimento dos deveres médicos pelo profissional, respeitando o consentimento do paciente, bem como na diligência que o profissional deve empregar, independente do pouco ou grande aporte monetário que receberá. A responsabilidade civil é uma responsabilidade cidadã, para que as regras de condutas sociais e garantes da vida comunitária possam ser respeitadas. Referências bibliográficas BRITTO, Marcelo Silva. Alguns aspectos polêmicos da responsabilidade civil objetiva no novo Código Civil. Disponível em: <www.jus.uol.com.br>. Acesso em 26 nov. 2007. CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de responsabilidade civil. 7. ed. São Paulo : Atlas, 2007. DIAS, José de Aguiar. Da responsabilidade civil. 11. ed. revista e atual. de acordo com o Código Civil de 2002 e aumentada por Rui Berford Dias. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. DINIZ, Maria Helena. Direito Civil brasileiro: responsabilidade civil. 20. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2006. v. 7. FERRAZ, Edmundo Machado; NOGUEIRA, Roberto Wanderley. Erro Médico, complicação e prática não médica: por uma classificação da responsabilidade do profissional de saúde. Revista dos Tribunais. v. 835, n. 94, p. 33-58, mai. 2005.

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A filosofia política e crítica da sociedade burguesa: o legado de Karl Marx1 Ângelo Magalhães Silva2

Em períodos de globalização, as amplitudes das contradições advindas desse imperativo econômico ecoaram na necessidade profícua de discutir os escritos filosóficos do jovem Karl Marx. Um outro foco, nessa mesma ordem, requer uma urgente reflexão; o de evitar que o pensamento crítico filosófico de Marx ganhe um estandarte restrito; o de “ser apenas uma teoria científica” encastelado no universo academicista. Nesse sentido, em A filosofia política e critica da sociedade burguesa: o legado de Karl Marx de Atílio A. Boron, esta perspectiva percorre o seu pensamento. Oportuna e contundente, a critica de Boron resgata estas duas necessidades. Seu interesse em “rever’ a existência de uma análise marxista sobre a política pode despontar, desapercebidamente, como redundante; especialmente dada à importância que o materialismo histórico teve nos movimentos Cartistas e Ludistas na Inglaterra e França, no século XIX, e da impositiva interpretação no meio científico do “velho” Marx” econômico, a despeito do jovem; do filósofo Marx desapontado com a filosofia da “Negação” Atílio A. Boron, no entanto – e esta é uma leitura bastante particular – parece fugir desta onda dos debates sobre a teoria marxista, quando afirma, particularmente, que o conteúdo crítico e filosófico presente no Marx dos vinte anos transcorre toda a sua produção teórica, e acerta quando afirma que o materialismo histórico desenvolvido na critica marxiana não reduz-se apenas a critica ao idealismo hegeliano, especialmente aos representantes da “esquerda conservadora”, mas remete-se ao ataque ao pensamento utilitarista predominante no séc. XIX. Há, reconhecidamente por Boron, a tentativa do jovem Marx não apenas acertar as contas com sua “antiga consciência”; o hegelianismo, mas fazer ruir o utilitarismo enquanto doutrina econômica liberal e dominante. Para o autor, as produções filosóficas, especialmente as contidas nos Manuscritos Econômicos e Filosóficos de juventude nunca estiveram secundarizadas das análises dos períodos de maturidade. No campo da filosofia política Marx não possuía um “trauma de juventude”. A sua análise sobre o Trabalho corrobora com esta menção. 1 Resenha de: BORON, Atilio A.. Filosofia política e crítica da sociedade burguesa: O legado teórico de Karl Marx. En publicacion: Filosofia política moderna. De Hobbes a Marx. CLACSO, Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales; DCP-FFLCH, Departamento de Ciencias Politicas, Faculdade de Filosofia Letras e Ciencias Humanas, USP, Universidade de Sao Paulo. 2006. ISBN: 978-987-1183-47-0 2 Professor da Faculdade Câmara Cascudo/Estácio de Sá. Licenciado em Ciências Sociais e Bacharel em Ciência Política. Mestre em Sociologia (Desenvolvimento Econômico e Regional) e doutorando em Ciências Sociais da UFRN. angelomagalhaes@bol.com.br

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No entanto, as inúmeras tentativas de diagnosticar a existência deste suposto trauma surgiram e ganharam eco no meio acadêmico, fazendo da obra teórica de Marx uma teoria dual. Para alguns, esta forma de conhecer Marx tornou-se, em muitos casos, didática. Alguns textos de Bobbio e outros autores italianos são apontados no texto de Boron como os causadores desta “necessidade teórica”. Para Boron, Bobbio não perceber que a análise marxista sobre a política e economia constitui-se em um todo orgânico indissociável, presente nos escritos de juventude de Marx, mas não retomados na maturidade em consequência de sua morte. Não é possível, deste modo, considerar que o pensamento marxiano desdenhasse a si mesmo; em virtude, sobretudo da crítica a dialética hegeliana, onde Marx “fez descer a terra as coisa do céu”. A transição do pensamento político de Marx para a análise da economia política considerou a necessidade de responder a um estado de coisas de seu tempo; algo que o hegelianismo não pretendeu ao eternizar eticamente o Estado na Razão, e o utilitarismo conseguiu justificar. O Estado, as classes e a sociedade civil não correspondem a “momentos do pensamento” que se realizam na Razão de Estado, mas um dado real e impositivo. O Estado está presente em toda a obra de Marx; um modelo de poder político imbricado nas relações de classe e, consequentemente, nas relações de poder. O caráter microfísico e a forma como se realizam o “poder de estado” na sociedade não requer a sua negação; ou simples inexistência. É preciso, contudo, associar a construção da filosofia política de Marx, especialmente a noção de estado, aos condicionantes mais gerais, sobretudo econômicos, a qual Marx mais se preocupava e a sociedade civil; alvo de embate sobre a burguesia. Boron salienta que a política em Marx é marcada pelo transitório e o efêmero. Este modo de ver a política resulta da originalidade presente no pensamento marxiano de transitar de um estado de coisas já dado para um outro, em que o homem, como totalidade real, se realizasse enquanto classe. Aqui Boron faz perceber a originalidade de Marx frente a uma diversidade de pensamentos de sua época. É original frente ao individualismo cristão de Kierkegaard; ao utilitarismo de Jeremy Bentham e, sobretudo na crítica a Hegel, quando Marx desenvolve o conceito de Alienação. Neste contexto de relação entre críticos de Marx e a filosofia política, Boron conclui que dentre os vários legados de Marx, o do pensamento político representa uma necessidade a ser resgatada; o jovem Marx que abandona a dialética hegeliana precocemente, caminha para os estudos da economia política como meio de negar a ordem econômica estabelecida. Assim, o retorno aos escritos do jovem Marx é oportuno e requer um pensar sobre qual o lugar de sua teoria política na contemporaneidade, e em que medida os imperativos econômicos e os conflitos de classe atuais podem ser compreendida a luz da relação Estado e Sociedade desenvolvido no marxismo. 160


O neoliberalismo e seus efeitos sobre o Estado e sobre o Direito. Mercado e Estado. Djamiro Acipreste Universidad del País Vasco – San Sebastián – España

El neoliberalismo y sus efectos sobre el Estado y sobre el Derecho. Mercado y Estado. Profesor: Dr. Javier Bilbao – javi.bilbao@ehu.es

Analisar qual a relação entre investimento da educação e a melhor do Índice de Desenvolvimento Humano – IDH destes países. O trabalho proposto deverá conter sete folhas tendo como fonte o PNUD/ONU e os órgãos de estatísticas da cada estado pertencente ao campo de estudo. Alumno: Djamiro Acipreste – djamiro.acipreste@hotmail.com

Introdução histórica O presente trabalho visa à apresentação dos países membros do Mercosul, suas condições de desenvolvimento humano e suas potencialidades para buscar uma transformação do Mercosul e da América Latina dentre os estados que oferecem ao seu povo as melhores condições de vida, seja em educação, alunos matriculados ou em expectativa de vida. Outrossim, merece destaque o fato de que os países alinhados no Mercosul em um passado recente eram dominados por regimes antidemocráticos dos mais perversos e vorazes, conhecidos internacionalmente como operação Condor(operação responsável pela dizimação dos opositores ao regime – ao exemplo da doutrina Truman no leste europeu), com líderes repressores como Médici, Stroesnner, Pinochet, Alfonsín e Banzer a mando dos Estados Unidos, e México vivendo quase oitenta anos sobre a ingerência de um mesmo partido político o PRI, por muito a fundação deste partidos nos fins dos anos vinte é a data do fim da revolução mexicana e em 1953 o fim da ditadura de Medina Angarita na Venezuela. Ao propor a análise das nações latino-americanas, seu investimento em educação, seu índice de desenvolvimento e, por conseguinte, suas evoluções, propõem-se igualmente estabelecer, quais as raízes de nossa condição política, econômica e cultural, enquanto vítimas da exploração contínua, arraigada a uma cultura entreguista, por parte de nossos líderes, de nossas fontes de riquezas. 161


Paul Samuelson, vencedor do Prêmio de Economia em homenagem a Alfred Nobel, instituído pelo Banco Central Sueco, chamado equivocadamente de Prêmio Nobel de Economia, em 1970, falava da existência de quatro tipos de países; os ricos, por motivos óbvios, os pobres, por motivos igualmente óbvios, o Japão e a Argentina. O Japão porque tinha tudo para dar errado e deu certo, Já a Argentina, tinha tudo para dar certo e deu errado. Em uma analogia simplista poderíamos defender que a célebre frase do economista norte-americano pode sofrer uma mudança, no lugar de Argentina, poder-seia colocar qualquer nação latino-americana ou toda a América Latina. Uma vez que Brasil, Argentina, Uruguai, Paraguai, Venezuela, México, são iguais as famílias tristes na introdução de Anna Karenina de Leon Tolstoi, entretanto, com características marcantes de exploração. Na colonização latino-americana, onde são oferecidas grandes áreas de terra, tanta quanto pudessem explorar, acabou por nos apresentar o primeiro grande símbolo de desequilíbrio social, a não divisão de terra, conseqüentemente, a não divisão do trabalho não escravo, não divisão da produção, não decisão das riquezas, movimento contínuo, o que chamamos de efeito dominó. Somos vítimas de uma exploração que dificulta nosso estado em “restaurar” de fato o pacto social, para a construção de uma identidade nacional genuína, amparada em valores culturais de ante-opressão, entretanto, longe de um discurso revolucionário, apresenta-se com um via diferente da colonizadora e mais densa que a revolucionária. Desde o século XVI somos vítimas históricas do capital alienígena, o que Eduardo Galeano, em As Veias Abertas da América Latina, chamou, nos últimos dois séculos de “nações importadoras do livre-câmbio, o comércio livre e a livre concorrência, mas para consumo alheio. Sobretudo da Inglaterra no final do século XIX e, ainda, com o Estados Unidos no pós-guerra em meados do século XX”. Nas palavras de Celso Furtado, “A experiência da América Latina serviu para demonstrar de forma cabal que o desenvolvimento é menos um problema de investimentos que de criação de um sistema econômico articulado e capacitado para auto-gestão”. Na visão do ilustre brasileiro, a capacidade de transformar a economia em um instrumento de gestão e um evento de construção de crescimento interno é a grande questão a ser apreendida e aplicada na América Latina, ou seja, fazer este continente ter o crescimento proporcional à sua riqueza e potencial. 162


Cenário ‑ IDH Desde 1998 a América Latina vem atravessando uma guinada à esquerda, desde a eleição de Hugo Chavez na Venezuela, em seguida vimos Lula da Silva no Brasil, Nestor Kirchner na Argentina, Tabaré Vázquez no Uruguai, Nicanor Duarte no Paraguai, Michelle Bachelet no Chile, esta dando continuidade ao governo Lagos, Evo Morales na Bolívia e a única exceção a este movimento à esquerda, a vitória de Felipe Calderón sobre Obrador no México na eleição mais contestada nos últimos anos depois da polêmica vitória de W. Bush sobre Al Gore na sucessão de Clinton a Casa Branca. O Relatório de Desenvolvimento Humano de 2000 tinha uma fórmula de divisão de nível que colocava os países de Alto IDH em um grupo com 46 países dentre eles Argentina, Chile e Uruguai, nas posições 35, 38 e 39 respectivamente. Ficando México, Brasil, Venezuela, Paraguai e Bolívia no grupo intermediário, chamado de Médio IDH que contam com 92 posições da posição 47 a 139, ficando México, Venezuela, Brasil, Paraguai e Bolívia nas posições 55, 65, 74, 81 e 114 respectivamente. Em 2001, o referido relatório trás alternância entre nossos países no grupo de elite Argentina ganha uma posição indo 34o, e Uruguai ultrapassa Chile ficando em 37o e o país da costa do pacífico em 39o, separado pela Polônia. No grupo intermediário existe um avanço sensível de todos nossos representantes, sendo que Bolívia e Brasil superaram mais posições, 10 e 5 posições respectivamente. Desta forma, tivemos México, Venezuela, Brasil, Paraguai e Bolívia nas posições 51, 61, 69, 80 e 104 respectivamente. No ano de 2002, 54 nações aferem o índice superior a 0,800, ou seja, no grupo de elite, temos 53 nações dentre elas Argentina, Chile que superou o Uruguai, nas posições 34, 38 e 40 respectivamente. Já no grupo intermediário têm-se como liderança mundial o México, seguido de Venezuela, Brasil, Paraguai e Bolívia, nas posições 54, 69, 73, 90 e 114, observa-se um retrocesso nas posições, o que não se nota no referido índice, ocasionado pela ascensão de outros países em termos de índices. No Relatório do ano subsequente, temos dois fatos de extrema importância, a entrado do México no grupo de elite e o Brasil passa a deter o recorde histórico de ascensão, tendo nos últimos anos suplantado 16 posições. No grupo de elite temos a Argentina firme em sua posição 34, e Uruguai e Chile com leve quedas nas posições 40 e 43, sendo que Chile nas quedas perde o segundo lugar dos nossos estados em estudo para o Uruguai e México na 55 posição, já ultrapassando o IDH 0,800. 163


No grupo intermediário o Brasil ultrapassa a Venezuela, mantendo-se as posições de Paraguai e Bolívia, 65, 69, 84 e 114 respectivamente. No relatório seguinte, em 2004 observamos a concretização do México no grupo de elite, mas Chile e Uruguai disputam ano a ano a condição de Segunda nação do mercosul dentre as de melhor IDH, uma vez que a supremacia Argentina sequer é questionada. Neste ano temos as posições 34, 43, 46 e 53 para Argentina, Chile, Uruguai e México respectivamente. No grupo intermediário o Brasil sofre um revés e perde a condição de líder dentre os países do Mercosul no bloco intermediário para a Venezuela, ficando o país petroleiro do conesul, Brasil, Paraguai e Bolívia nas posições 68, 72, 89 e 114, respectivamente. No Relatório de Desenvolvimento Humano de 2005, a Argentina passa a ser acompanhada de perto pelo Chile e o Brasil passa a ser um dos líderes do grupo intermediário, ficando muito próxima a entrada no bloco de elite do IDH. No bloco de IDH elevado Argentina, Chile e México mantêm-se nas posições 34, 37 e 53 respectivamente. No bloco Intermediário temos Brasil, Venezuela, Paraguai e Bolívia nas posições 63, 75, 88 e 113 respectivamente, observando-se que o Brasil ultrapassa e coloca dose posições na Venezuela na disputa particular entre os estados membros do mercosul. Segundo o Relatório de Desenvolvimento Humano 2007/2008. Publicado pelo PNUD, dentre os estados do presente estudo Argentina, Brasil, Chile, México e Uruguai, faz parte do seleto grupo de IDH Elevado, sendo pré-requisito o IDH superior a 0,800. Já Bolívia, Paraguai e Venezuela fazem parte do grupo intermediário, IDH Médio, para aqueles estados com IDH entre 0,500 e 0,799. Merecem atenção o grupo de países com IDH Elevado, onde temos um total de setenta nações, ficando os estados em epígrafe em colocações na Segunda metade do grupo, senão vejamos: 38o Argentina; 40o Chile; 46o Uruguai; 52o México e 70o Brasil. Observa-se, que o Brasil embora tenha concretizado sua referência continental/regional, foi um dos últimos a adentrar a elite do Índice de Desenvolvimento Humano, só superando Dominica nos últimos anos. Educação enquanto variante de elevação de Desenvolvimento Humano No último quarto de século observamos que a educação alcança uma condição de destaque como um dos principais instrumentos de transformação do nível de vida de uma sociedade. Em se tratando de matéria filosófica, política e social, temos que de fato a educação é fato determinante nas sociedades contemporâneas, ademais, sobre o prisma da economia, da mesma forma, a relação entre as duas variáveis é provável. Quanto ao prisma filosófico, político 164


e social, pode-se argumentar que um povo culturalmente mais avançado tem maiores condições de construir uma sociedade com um padrão de vida mais elevado, com padrões éticos e de relacionamento humano bem solidificados, sobretudo em razão da experiência da convivência pós pacto social e pensamentos moderno de sociedade, cumplicidade social, responsabilidade social. No que se refere à economia, escrava cada vez mais do alto grau de especificidade da mão de obra, passa a se dar de uma forma que amplie sua qualidade e sua capacidade, e quando o avanço da educação propicia a formação de uma classe empresarial bem preparada, então não há como negar que o padrão de vida desta sociedade deve crescer. A relação empírica entre educação e desenvolvimento, contudo, sempre foi mais difícil de mostrar, por isso este trabalho se faz ousado para a interpretação de gráficos e índices de desenvolvimentos dos estados alvos de nosso estudo. Esta dificuldade se concentra na questão do prazo necessário entre as ações e seus efeitos. Investir em educação em um determinado ano não traz, naturalmente, benefícios imediatos, por exemplo, já para o ano seguinte. Dificilmente se encontrará relação entre a evolução do padrão de vida de uma sociedade de um ano para o outro e a magnitude de seu investimento em educação. O extenso prazo de tempo necessário para a maturidade do investimento educacional se mostrou um desafio para os defensores da tese de que é esta a verdadeira mola do desenvolvimento social. Os teóricos que se baseiam em dados de curto prazo podem encontrar motivos para duvidar desta tese. Contudo, o que não falta são indícios, dados históricos que permitem chegar a esta conclusão. Um dos casos mais claros é o do Japão, que nos últimos 50 anos saiu de uma sociedade arrasada pela II Guerra Mundial e uma economia essencialmente agrícola para se tornar uma das nações industriais mais potentes do mundo e, ainda mais importante do que isso, atingir um elevadíssimo padrão de vida para seus cidadãos. O que distingue o caso do Japão dos casos, por exemplo, dos países mais ricos do Mercosul, Brasil, Argentina e Uruguai, que há 50 anos não estavam com os problemas econômicos e sociais dos japoneses, mas que foram por eles ultrapassados com uma velocidade impressionante? Esta explicação pode ser dada de várias maneiras, que incluem a política econômica adotada por todos estes países no período. As razões estruturais, de longo prazo, que distinguiu os países e que tanta diferença fez entre eles encontramse na educação. Enquanto no Japão a formação educacional sólida do cidadão é fundamental e sobre ela o Estado investe pesadamente, no Mercosul a realidade é distinta, com os governos, nas últimas décadas, dando preferência a outras 165


áreas de desenvolvimento, em detrimento da educação. Quando dos jogos olímpicos de 1988 de Seul, a Coreia do Sul não tinha dentre seus índices nada que destoasse, por exemplo, de Brasil, Argentina e México. Hoje, vinte anos depois a Coreia do Sul supera o Japão em índices extremamente importantes como, por exemplo, dos números de jovens entre 18 e 30 anos na universidade, onde a Coreia apresenta a marca incrível de números superior a 80 por cento. Na década de 1970 o Brasil tinha o índice de analfabetismo beirando a casa dos 42%, sendo inferior apenas a Bolívia, El Salvador, Guatemala, Honduras, Nicarágua e República Dominicana. A Argentina e Uruguai lideravam desde então com os menores índices à época com 7%, sendo acompanhados por Costa Rica e Chile com 11,8% e 12,2% respectivamente. Muito abaixo da média latinoamericana de 27,8%. Nesta mesma época, ou seja, na década de oitenta o Brasil era o país que menos investia em educação na América do Sul, investindo a metade (0,7% do Orçamento), em números absolutos do seu pior investidor do continente, o Paraguai que a época investia (1,3 do Orçamento). Nos anos de 1985 e 1990 o Brasil passa a investir 2,7% e 3,7% em educação que fez o país em um pouco mais de dez anos trazer sua taxa de analfabetismo para 24,5 e 19,1 respectivamente. Gráfico I – Taxas de acesso aos diferentes níveis de ensino na A.L. e taxas de investimento em educação (1998–2001/CEPAL/UNESCO)

Ens. Fund.

Ens. Med.

Ens. Superior

Gastos Educ. (PNB)

Gastos Pub. Educ.

120 100 80 60 40 20 0

1980

1981

1982

1983

1984

1985 1986

1987

1988

1989

1990

1991

1992

1993

1994

1995

1996

1997

1998

1999

2000

2001

Em nosso continente existem políticas públicas das mais diversas matrizes ideológicas e organizacionais, desde o Brasil com a EC 16 e a LDB que buscam a consolidação da democracia e a criação de um sistema satisfatório nas três esferas de poder, como na Argentina que a lei de educação de 1993 que aumenta de sete para dez anos o tempo obrigatório mínimo de permanência na educação. No Uruguai a lei de educação também exige a permanência mínima de dez anos. 166


Quando falamos de fins não-essenciais ou fins sociais do estado, lembramo-nos com facilidade que a educação é dos fins sociais do estado, onde de forma gradativa em nossa história foi abrindo para a iniciativa privada de avanços mercadológicos sobre a educação, uma vez que o estado demonstra sua fragilidade e impossibilidade de arcar com toda a necessidade educacional. Observamos que ao longo dos últimos vinte anos, conforme o gráfico, os gastos públicos em educação se mantém estável, notando um leve aumento nos níveis secundários e superior, entretanto, sequer existe espasmo de uma mudança no cenário do investimento em educação no continente de fala latina. Gráfico II – Variação de acesso ao Ensino Superior (1999-2003) segundo dados da UNESCO.

Em nosso continente apresenta-se um acréscimo vertiginoso no acesso à educação em nível superior, sobretudo em razão de políticas publicas de acesso ao nível universitário além de um enorme crescimento do segmento privado no ensino médio. As vagas em universidade públicas experimentam pequenos aumentos, não sendo, obviamente, responsáveis pelo número fantástico do crescimento de acesso ao último nível de educação. Através deste trabalho tentamos, de forma não conclusiva apresentar que o investimento em educação traz ao estado uma nova perspectiva de crescimento e de tendência de mercados, levando em consideração, sobretudo as matrizes de produção e grau de investimentos sociais, confirmando assim que os espaço galgados com esforços não sejam meras “bolhas” de crescimentos não sustentável. “A educação sozinha não transforma a sociedade, Sem ela tampouco a sociedade muda.” Paulo Freire 167


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Poder político e classes sociais1 Ângelo Magalhães Silva2

Diferentemente das abordagens que veiculam a origem do estado absolutista na Europa ocidental a predominância de normas jurídicoadministrativos feudais, sobretudo a relevância dos estamentos e estrutura social no seio do estado, a análise desenvolvida por Poulantazas em Poder político e Classes Sociais ressalta o conteúdo marcadamente capitalista na composição do Estado absolutista na Europa ocidental. O período de transição econômica que marca a passagem do período medieval para o moderno é fortemente definido por uma ordem institucional de caráter capitalista, definida pelo distanciamento político entre nobreza feudal e burguesia dominante. Este traço do poder institucional não implica, no entanto, que o modelo de Estado absolutista – ou de esfera pública legal – represente específicos momentos históricos o interesse de classe. Poulantzas assinala a composição econômica da sociedade europeia em transição como fundamentada em formas de capital já existentes, porém diferente das relações orgânicas conhecidas contemporaneamente. Com a existência de formas de capital, reproduzidas sob a sombra do Estado absolutista, em especial as expressas na manufatura urbana e na renda fundiária auferida pela nobreza feudal, ainda se encontravam distintas da forma assumida hoje pelo capital com a indústria e o sistema financeiro. Nesse sentido, ressalta a forma jurídica da propriedade privada como sendo a forma capitalista já em desenvoltura e o estado absolutista a forma institucional legal anterior a esta; garantidora da reprodução socioespacial do capital e de relações ainda não determinadas de produção. Para Poulantzas o estado absolutista é um poder institucional capitalista em uma conjuntura predominantemente feudal. O ritmo do desenvolvimento desse tipo de estado encontrar-se-ia em meio à necessidade de romper com relações feudais de produção frente a uma defasagem cronológica marcada pela propriedade e a apropriação real da riqueza. Há, como assinala o autor, “uma não correspondência entre a superestrutura política e a instância econômica” (p. 153). A descrição realizada por Poulantazas é marcada por esta não correspondência entre superestrutura política e modelo econômico. O Estado absolutista é um estado de transição frente a uma economia fundamentada 1 Poulantzas, Nicos. Poder político e classes sociais. São Paulo. Martins Fontes, 1986. 2 Professor da Faculdade Câmara Cascudo/Estácio de Sá. Licenciado em Ciências Sociais e Bacharel em Ciência Política. Mestre em Sociologia (Desenvolvimento Econômico e Regional) e doutorando em Ciências Sociais da UFRN.

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no estamento e, consequentemente, no fortalecimento da nobreza feudal. Por outro lado, é apenas possível compreender tal modelo de estado de transição atentando para suas especificidades, como: a) torna-se no seu desenvolvimento uma esfera pública em que os interesse de grupos privados se realizam no seio da sua jurisprudência, concedendo títulos, redefinido regras tributárias, apoiando a produção manufatureira; b) é uma esfera pública que incorpora elementos como soberania, território e direito nacional como elementos distintos da moral teológica; c) o titular do poderio estatal é um monarca que oculta mas personifica a lei; d) é um poder institucional fortemente centralizado territorialmente; e) é avesso ao compartilhamento do poder e fortalece a hierarquia na estrutura social. É nesse sentido que o estado absolutista surge como a superestrutura política autônoma frente ao sistema econômico feudal; f) o estado surge como a arena eminentemente pública, de propagação de uma ordem pública geral e coercitiva contratual, reguladora da equação sociedade–estado. O tipo de Estado absolutista, para Poulantzas, possui funções específicas: expropria os pequenos proprietários, fiscaliza, fomenta o processo de industrialização, fragmenta o poder da nobreza senhorial, alavanca o desenvolvimento econômico para além da fronteiras nacionais. Nesse sentido, para maximizar sua centralidade, o Estado absolutista surge como um mecanismo de equilíbrio de interesse entre classes, porém de um equilíbrio relativo decorrente da composição da estrutura social existente em países como França, Inglaterra, Espanha e Alemanha. O Estado absolutista não é um modelo ideal, necessita ser compreendido frente às especificidades históricas em que se desenvolve. Nesse sentido, Poulantzas passa à analise do papel desempenhado pelas classes sociais e sua relação com o Estado absolutista, à medida que estes modelos de poder político, em virtude das revoluções burguesas, ganham um perfil de classe hegemônica. O caso inglês é emblemático para Poulantzas. Esse modelo de Estado absolutista frente à revolução de 1640 passa a tomar forma de um Estado liberal, em meio ao modo de produção capitalista que emerge com a renda fundiária. As relações de classe são perfiladas pela transição da nobreza feudal em classe capitalista urbana, transição fundada pela revolução burguesa de 1640. Para Poulantzas, a marca dessa revolução é a sua precocidade, sobretudo em função da classe dirigente não se expressar nos grupos burgueses urbanos, mas na nobreza feudal já em transição. Essa revolução acentua o modo de produção capitalista sobre outros modos de produção remanescente consolidando uma economia autorregulável e uma superestrutura política tipo capitalista. 170


Quanto ao exercício do poder, a caso inglês é emblemático pois o surgimento da burguesia na estrutura política do estado absolutista se realiza em função da hegemonia da nobreza que representa grupos feudais e a burguesia comercial. Essa estrutura social articula-se no seio do estado em virtude na permanência de uma ordem jurídica de pano de fundo feudal; em um sistema jurídico não escrito, mas de forte caráter consuetudinário. Os elementos diferenciadores da revolução burguesa inglesa para a ocorrida na França correspondem ao fato desta ter consolidado um Estado absolutista liberal bastante definido, mas diferente do inglês. A ascensão da burguesia ao poder se realiza em virtude de um controle e depreciação da atividade econômicas na pequena propriedade; do fortalecimento da manufatura nos centros urbanos e, paradoxalmente, da manutenção de uma ordem jurídica assentada na tradição. As combinações destes fatores fizeram do estado absolutista inglês refém a posteriori da classe burguesa, neste caso, já hegemônica. O caso francês, por outro lado, é marcado pela presença de alianças entre membros da estrutura social, particularmente de grupos urbanos franceses com grupos camponeses, ambos imbuídos da vontade de expropriar a nobreza de seus benefícios. Para Poulantzas, a França compunha os condicionantes para o desenvolvimento do modo de produção capitalista sob o predomínio de uma ordem política de caráter capitalista, mas fracassa. A consolidação da burguesia no poder se realiza em função da aliança com o campesinato, mas o abandono desta pela classe dirigente causará problemas de ordem política na França que culminarão com formas de estado capitalistas distintas do absolutismo de Luiz XVI, mas semelhantemente coercitivos. É possível apontar que as crises políticas que insurgiram na França após a revolução foram heranças das alianças contraditórias entre a burguesia, especialmente a jacobina que pregava a ideologia da propriedade privada como veiculo de participação política, e grupos de trabalhadores urbanos. Poulantzas chama atenção para o fato de a Revolução Francesa ter avançado em termos políticos, dado um passo a mais que a Inglesa, no entanto a configuração do Estado que se formará após o término da monarquia francesa não será o estado hegemonicamente burguês, mas uma ordem institucional efêmera assentada na pequena burguesia e no campesinato. Nesse contexto é que se engendra o modo de produção capitalista na França e a necessidade de um Estado capitalista. O insucesso da revolução burguesa francesa remete-se às contradições geradas pelo conteúdo programático partidário, sobretudo jacobino. 171


Diferentemente do caso francês, a estrutura de classe predominantemente agrária representará o conteúdo de um estado com fortes resquícios feudais. Para Poulantzas, a revolução burguesa na Prússia e em toda a Alemanha não consegue ser suficientemente forte no contexto da modernidade para romper com o modo de produção fundamentado da produção agrícola e migra para o modo de produção capitalista. A Alemanha conserva seu caráter fortemente agrário o que a levará à iminência de uma “revolução por cima”, sobretudo deflagrada, segundo Poulantzas, no período Bismarquiano, fortemente militarizada. A tardia organização da burguesia para efetivar sua revolução é a marca desse contexto, o que dá margem a militarismo de Estado. O forte conteúdo da nobreza feudal no seio do Estado é apontado como uma característica existente até o século XIX, porém, seu papel de fomentador da industrialização terá um desempenho fundamental com a era de Bismarck. A organização jurídica da propriedade não é, no caso alemão, semelhante à da França, mas muito próxima à inglesa, pois baseavam-se em uma efêmera predominância do direito romano e regras tradicionais, uma ressalva para o processo de cercamento dos campos e das leis dos pobres, no caso inglês. Os laços de servidão irão marcar a Prússia; a mobilidade ocupacional de camponeses em trabalhadores agrícolas num processo diferente é menos acentuada que na Inglaterra e França. Para Poulantzas, no contexto da transição do modo feudal para o modo capitalista existe a ineficiência da burguesia enquanto classe de estabelecer por si só a sua própria revolução. Estes traços vão existir, segundo Poulantzas, em todas revoluções que se convencionaram denominar burguesas. Nesse sentido, é possível falar de uma não tipicidade, levando em conta as ações distintas e frágeis da burguesia nos seus específicos momentos históricos e territoriais. Assim, portanto, a análise desenvolvida por Poulantzas sobre o Estado absolutista e seu caráter capitalista deve ser compreendido frente às relações históricas travadas entre as classes sociais em seus determinados contextos históricos. As análises devem compor elementos de ordem jurídica, produtiva e institucional. Os casos, particularmente o da Inglaterra e França, são exemplos de que as alianças entre classes moldam o Estado e fazem deste um suposto agente de equilíbrio, revelando-o, por outro lado, em algumas circunstâncias, portador de uma autonomia relativa. A importância da análise de Poulantzas remete-se ao fato de a superestrutura política comportar-se, frente à luta de classe, como uma instância de poder reprodutora das condições capitalistas e quase incólume; não implica afirmar a inexistência desta ordem jurídica e de seu conteúdo em um estágio anterior ao modo de produção capitalista. 172






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