Revista E - maio/2023

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Revista E | maio de 2023 nº 11 | ano 29

Ruth de Souza

O pioneirismo da artista nos palcos e nas telas

Tempo ao tempo

Por que desacelerar uma rotina cada vez mais apressada?

Marcélia Cartaxo

Atriz celebra a presença das mulheres no audiovisual

Takeo Sawada

O importante legado do artista japonês na arte-educação

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31 DE MAIO DE 2023

MUITO MAIS QUE UM DIA!

Participe da campanha que promove a prática de esportes e atividades físicas para uma vida mais saudável.

CRIE SUA META E PARTICIPE DESSE MOVIMENTO

Acompanhe a programação no portal ou em nossas redes sescsp.org.br/diadodesafio #DiadoDesafio

COORDENAÇÃO NO CONTINENTE AMERICANO: INICIATIVA: REALIZAÇÃO: PREFEITURA MUNICIPAL APOIO:

CAPA: Registro de performance do artista amazonense Odacy Oliveira, que integra o elenco do espetáculo amazonias - ver a mata que te vê [um manifesto poético], na instalação imersiva Terra de gigantes, em cartaz no Sesc Guarulhos. Ao fundo, projeção da obra Kahpi Hori, da artista indígena Daiara Tukano, animada em formato tridimensional.

Foto: Evelson de Freitas

Leia também a revista em versão digital na sua plataforma favorita:

Em prol dos trabalhadores

Portal do Sesc (QR Code ao lado)

O mês de maio marca as celebrações pelo Dia do Trabalhador, ocasião para também rememorar a importância da categoria para o crescimento e desenvolvimento do país – de modo especial, o setor de comércio e serviços, hoje responsável por fazer girar 70% do PIB – Produto Interno Bruto. O Sesc –Serviço Social do Comércio foi criado em 1946 para promover o bem-estar desses trabalhadores e de seus familiares. A iniciativa extrapola, assim, o alcance de seu público prioritário, contemplando, de forma ampla e irrestrita, toda a comunidade.

Legendas Acessibilidade

Em estabelecimentos de uso coletivo é assegurado o acompanhamento de cão-guia. As unidades do Sesc estão preparadas para receber todos os públicos.

Trata-se de uma ação educativa permanente, inserida no contexto da educação não formal, e realizada por meio de programações nos campos da cultura, do lazer, dos esportes, do turismo, da saúde e da alimentação. São atividades diversas disponíveis nos centros culturais e esportivos espalhados por todo o estado, que valorizam a pluralidade de linguagens, ideias e saberes, e contribuem para a ampliação do repertório sociocultural e para a sociabilização. Ao dedicar esforços e recursos na manutenção desse longevo projeto emancipador, o empresariado do setor reafirma seu compromisso com a qualidade de vida para todos.

APP Sesc São Paulo para tablets e celulares

É tempo de quê?

Viver o contemporâneo implica em sentir, compreender e interpretar os acontecimentos cotidianos tendo o tempo como referência. Assim, construímos memórias e elaboramos narrativas dos fatos, marcando-os no tempo cronológico, cravado no calendário, numa lógica que matematicamente dita os ritmos e pontua os compromissos na precisão das datas, horas e minutos. Somos guiados, portanto, por esse tempo-Cronos, medido pelo relógio, e poeticamente descrito por Caetano Veloso como o “compositor de destinos, tambor de todos os ritmos”, ou musicado pelas palavras de outro poeta, Gilberto Gil, como “tempo rei”.

Há, no entanto, outra concepção de tempo, aquele nascido de nossas subjetividades, o que desconstrói e redesenha a duração de cada momento vivido. Esse tempo particular, que congela ou acelera a duração de algo a partir de referenciais tão próprios de cada um. O tempo oportuno, tempo-Kairós, tempo de plenitude.

Numa sociedade cada vez mais acelerada, na qual o ritmo das grandes cidades dita escolhas e define caminhos, cabe a reflexão: como estamos desfrutando do nosso tempo presente na brevidade que constitui a nossa existência? E como esse modo de viver impacta a nossa saúde, criando obstáculos para uma vida na plenitude do bem-estar? São essas algumas das provocações presentes em reportagem deste mês da Revista E Que tal uma pausa para a leitura?

SERVIÇO SOCIAL DO COMÉRCIO – SESC

Administração Regional no Estado de São Paulo

Av. Álvaro Ramos, 991 – Belenzinho

CONSELHO REGIONAL DO SESC EM SÃO PAULO

Presidente: Abram Abe Szajman

Diretor Regional: Danilo Santos de Miranda

Efetivos: Arnaldo Odlevati Junior, Benedito Toso de Arruda, Dan Guinsburg, Jair Francisco Mafra, José de Sousa Lima, José Maria de Faria, José Roberto Pena, Manuel Henrique Farias Ramos, Marco Antonio Melchior, Milton Zamora, Paulo Cesar Garcia Lopes, Paulo João de Oliveira Alonso, Paulo Roberto Gullo, Rafik Hussein Saab, Reinaldo Pedro Correa, Rosana Aparecida da Silva, Valterli Martinez, Vanderlei Barbosa dos Santos

Suplentes: Aguinaldo Rodrigues da Silva, Aldo Minchillo, Antonio Cozzi Junior, Antonio Di Girolamo, Antonio Fojo Costa, Antonio Geraldo Giannini, Célio Simões Cerri, Cláudio Barnabé Cajado, Costabile Matarazzo Junior, Edison Severo Maltoni, Omar Abdul Assaf, Sérgio Vanderlei da Silva, Vilter Croqui Marcondes, Vitor Fernandes, William Pedro Luz

REPRESENTANTES JUNTO

AO CONSELHO NACIONAL

Efetivos: Abram Abe Szajman, Ivo Dall’Acqua Júnior, Rubens Torres Medrano

Suplentes: Álvaro Luiz Bruzadin Furtado, Marcelo Braga, Vicente Amato Sobrinho

CONSELHO EDITORIAL | Revista E

Adauto Fernando Perin, Adenor Serrano Domiense, Ana Paula Feitosa, Ana Paula Fraay Moyses Henriques, Andrea Carla Namura Rennar Salmazzi, Andrea De Oliveira Rodrigues, Andresa Caravage de Andrade, Bruna Zarnoviec Daniel, Camila Freitas Curaçá, Camila Santos Medeiros, Camile Lopes Magalhães, Carolina Balza, Caroline Souza de Freitas, Cesar Melo Ribeiro, Christi Lafalce, Cristina Fongaro Peres, Dalmir Ribeiro Lima, Daniel Marcos Silva, Daniel Tonus, Daniela Cristina Ramos Del Nero, Danielle Simas, Danny Abensur, Diego Polezel Zebele, Diego Vinicius Teixeira Ferreira, Eduardo Garcia de Almeida, Eduardo Saad Franklin de Almeida, Eduardo Santana Freitas, Estevão Denis Silveira, Fabiano Maranhão, Fernanda Porta Nova F. Silva, Fernando Marineli, Flávia Teixeira de Souza Coelho, Flavio Costa Freitas, Giovanna Benjamin Togashi, Gislene Lopes Oliveira, Giulia Modupe Ebohon, Grace Kelly Lobo Teixeira, Irene Vitoria Caldeira de Souza, Ivan Lucas Araujo Rolfsen, Ivanildo Rodrigues Da Hora, Janaina Lopes de Arruda, José Gonçalves da Silva Junior, Juci Fernandes de Oliveira, Julia Parpulov Augusto dos Santos, Lourdes Aparecida Teixeira Benedan, Luiz Eduardo Benini, Marcel Antonio Verrumo, Marcio Moreira de Salles, Mariana Barbosa Meirelles Ruocco, Mariana Lins Prado, Marina Claudia Alves Pereira, Mario Augusto Silveira, Monique Mendonça dos Santos, Odirlei Ronaldo Vieira, Paco Sampaio, Patricia Maciel da Silva, Patrícia Piquera Vianna, Paulo Alexandre Goncalves Aires, Priscila dos Santos Dias, Rafael Nicolas da Silva, Rafaela Ometto Berto, Regiane Gomes da Conceição, Renan Cantuario Pereira, Renata Barros da Silva, Rodrigo Rodrigues Griggio, Romeu Marinho C. Ubeda, Ronaldo Domingues de Araújo, Silvia Cristina Garcia, Stephany Tiveron Guerra, Suellen de Sousa Barbosa, Tamara Demuner, Thais Cristina Kruse, Thaís Ferreira Rodrigues, Thais Helena Franco da Silva Leite, Thalita Carvalho de Moura, Thanya Fernandes Carboni Ré, Vagner Martins dos Santos Junior, Valeria Mantovani de Andrade Alves, Viviane Machado Lemos.

Coordenação-Geral: Aurea Leszczynski Vieira Gonçalves

Editora-Executiva: Adriana Reis Paulics • Projeto Gráfico e Diagramação: Bruno Thofer e Larissa Ohori • Ilustrações: Amanda Lobos • Edição de Textos: Adriana Reis Paulics, Guilherme Barreto e Maria Júlia Lledó • Revisão de Textos: Cláudio Leite • Edição de Fotografia: Adriana Vichi • Repórteres: Luna D’Alama, Manuela Ferreira e Maria Júlia Lledó • Coordenação-Executiva: Marcos Ribeiro de Carvalho e Fernando Fialho • Coordenação Editorial Revista E: Adriana Reis Paulics, Guilherme Barreto e Marina Pereira • Propaganda: Daniel Tonus e José Gonçalves

Júnior • Arte de Anúncios: Elisa Carareto, Ariane Ramos de Azevedo, Luana Lima e Walter Cruz • Supervisão Gráfica: Rogerio Ianelli • Finalização: Bruno Thofer e Larissa Ohori • Criação Digital Revista E: Ana Paula Fraay • Circulação e Distribuição: Nelson Soares da Fonseca

Jornalista Responsável: Adriana Reis Paulics (MTB 37.488)

A Revista E é uma publicação do Sesc São Paulo, sob coordenação da Superintendência de Comunicação Social

Distribuição gratuita. Nenhuma pessoa está autorizada a vender anúncios

Esta publicação está disponível para retirada gratuita nas unidades do Sesc São Paulo e também em versão digital, em sescsp.org.br/revistae e no aplicativo Sesc SP para tablets e celulares (Android e IOS).

Fale conosco: revistae@sescsp.org.br

Confira os destaques da programação do mês, entre eles a ação Legítima Diferença

O que o Coelho Branco da obra Alice no País das Maravilhas nos ensina sobre uma vida acelerada?

Um passeio pelas obras do artista japonês Takeo Sawada, que no Brasil se dedicou ao ensino do desenho e da pintura

Os impactos da pandemia na primeira infância e a importância do brincar no processo de sociabilização

Gestor cultural e pesquisador português, Manuel Gama fala sobre o papel da cultura para o desenvolvimento sustentável do planeta

Pioneirismo e versatilidade foram marcas da longeva carreira de Ruth de Souza no teatro, no cinema e na televisão

dossiê entrevista saúde bio gráfica crianças

p.54 p.11 p.16 p.24 p.34 p.40

Adriana Vichi (Entrevista); Paranapanema (detalhe), 1972. Óleo sobre tela / Acervo da família. Foto: Paulo Miguel (Gráfica)
SUMÁRIO

Atriz e diretora premiada, Marcélia Cartaxo celebra o protagonismo feminino nas artes

Neide Santos

Artigos de Fernando Almeida e Daniel Cara abordam a relação entre democracia e educação

Elizandra Souza e Amanda Lobos

Conheça túneis, passagens, criptas e espaços culturais que habitam o subterrâneo da cidade de São Paulo

Thaís

em pauta encontros inéditos depoimento almanaque P.S.

p.60

Cristina Kruse

p.66 p.70 p.74 p.78 p.82

Adriana Vichi (Encontros); Rodrigo Barbosa (Depoimento)
A ação faz referência aos marcos de 13 de maio e 20 de novembro, propondo diálogos sobre a condição social da população negra. Oficinas, bate-papos e apresentações pelas unidades e plataformas digitais. DE MAIO A NOVEMBRO sescsp.org.br/do13ao20 #do13ao20 #NegritudeSesc

A artista indígena Lilly Baniwa durante a performance Antes do tempo existir, realizada em abril, no Sesc Vila Mariana, como parte do evento Efeito Kopenawa. A apresentação celebrou o título de doutor honoris causa concedido pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) ao xamã Yanomami Davi Kopenawa, por sua contribuição nos campos das artes, ciências, espiritualidade, política e defesa dos direitos humanos.

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Matheus José Maria
em cena

É legítimo ser diferente

e produções da população LGBTQIAP+, fomentando o respeito, a garantia de direitos e o acesso à saúde

Com o objetivo de desconstruir preconceitos e criar espaços de convivência e respeito às pessoas LGBTQIAP+, o Sesc São Paulo realiza, neste mês, a 5ª edição do Legítima Diferença. A programação busca conscientizar o público para a realidade social vivenciada por essa população, ainda marcada por sistemas de violências estruturais que perpassam todas as fases da vida, da infância à velhice. O projeto é realizado no mês em que é celebrado o Dia Internacional Contra a Homofobia, Transfobia e Bifobia – 17 de maio. Nessa data, a Organização Mundial da Saúde (OMS), em 1990, deixou de considerar a homossexualidade uma doença.

Segundo Emilia Carmineti, assistente técnica da Gerência de Estudos e Programas Sociais do Sesc São Paulo, a edição deste ano visa também refletir sobre a saúde integral das pessoas LGBTQIAP+. “Pretendemos ressaltar práticas, instituições e profissionais que estejam contribuindo para processos de acolhimento, garantindo direitos básicos e construindo outras conquistas sociais no âmbito da saúde, já que, historicamente, a população LGBTQIAP+ é responsável por avanços e políticas para toda a

população”. Apesar disso, pondera Emilia, essa comunidade "não tem garantidos o acesso integral à saúde, já que são constantes os relatos e pesquisas que revelam atendimentos carregados de preconceitos e tabus; a desinformação sobre demandas específicas de atendimento e acompanhamento; e a própria escassez de dados para a formulação de políticas permanentes para uma saúde ampliada, que englobe os vários aspectos da vida".

Entre os destaques da programação, estão os bate-papos Direito à saúde:

acesso e impactos da hormonização para pessoas trans, no Sesc Pompeia, e Diversa Mente – Saúde em Pauta, no Sesc Jundiaí; a vivência Atendimento Ginecológico Inclusivo a Mulheres Lésbicas, Homens Trans/ Não Binaries, em São Caetano; a intervenção Batalha Dominação: Saúde para todes, no Sesc Itaquera; e os espetáculos Brenda Lee e o Palácio das Princesas, no Sesc Bom Retiro, e Manifesto Antropofágico, nas unidades de Araraquara e São Carlos.

Conheça a programação completa: sescsp.org.br/legitimadiferenca.

Emilia Carmineti, assistente técnica da Gerência de Estudos e Programas Sociais do Sesc São Paulo

Encontros, bate-papos e apresentações investigam vivências
Elenco de Brenda Lee e o Palácio das Princesas, espetáculo do Núcleo Experimental que também faz parte do Legítima Diferença: no palco, a história da ativista trans conhecida como Brenda Lee, símbolo na luta por direitos à população LGBTQIAP+.
“Pretendemos ressaltar práticas, instituições e profissionais que estejam contribuindo para processos de acolhimento, garantindo direitos básicos e construindo outras conquistas sociais no âmbito da saúde”
Ale Catan 11 | e DOSSIÊ

SUL CIRCENSE

Organizado pela professora argentina Julieta Infantino, A arte do circo na América do Sul – trajetórias, tradições e inovações na arena contemporânea (Edições Sesc São Paulo, 2023) revisa criticamente a história do gênero e suas representações na contemporaneidade. O livro discute, sob vários ângulos, o que é o circo, desde suas conceituações mais amplas até os limites com outros gêneros artísticos, além

de examinar as possibilidades narrativas e os espaços conferidos à técnica e à criatividade circenses. A obra, que reúne autores-atores da Argentina, Brasil, Chile e Uruguai, também chama a atenção para as lutas travadas por sujeitos e coletivos que buscam viabilidade e legitimação dessa arte, contando, ainda, com depoimentos de artistas, gestores e referências do circo. Saiba mais: sescsp. org.br/edicoessescsp.

NO QUARTO COM SARTRE E BEAUVOIR

Recluso em seu quarto, em meio a uma pilha de livros, o jovem dramaturgo Juliano evoca suas maiores referências literárias, os pensadores Jean-Paul Sartre (1905-1980) e Simone de Beauvoir (1908-1986), para enfrentar os desafios do fim da adolescência. Em cartaz no Sesc Consolação até 21/5, o espetáculo A cerimônia do adeus, com direção de Ulysses

Conflitos culturais

A série documental 100 Anos de Cultura e Conflitos, com direção de João Batista de Andrade, é a nova estreia do SescTV. Disponível no canal a partir do dia 29/5, às 21h, a obra retrata dois acontecimentos que marcaram a história do Brasil: a Semana de Arte Moderna e o Tenentismo. Ambos de 1922, os movimentos são simbólicos na incerta trajetória da república e democracia brasileiras. Composta por 16 episódios protagonizados por historiadores e pensadores contemporâneos, a série coloca em perspectiva alguns eventos do último século que, cada um à sua maneira, fundaram parte da estrutura cultural do Brasil de hoje, entre eles a criação da Rádio Nacional e a influência do cinema sonoro, a Intentona Comunista e as discussões sobre as questões indígenas. Assista: sesctv.org.br/100anos.

Cruz, discute o existencialismo por meio dos dramas particulares do protagonista: a relação conturbada com a mãe, as experimentações da sexualidade, o conservadorismo da cidade onde vive, o sentimento do não pertencimento no mundo e o desabrochar artístico durante a ditadura militar. Garanta seu ingresso: sescsp.org.br/consolacao.

Se Funde (derrete-se), 2018 /
Foto:
Gabriel Rousserie (acima); Matheus José Maria (abaixo) A atriz Beth Goulart interpreta Simone de Beauvoir no espetáculo A cerimônia do adeus, em cartaz no Sesc Consolação. Lançamento das Edições Sesc São Paulo, o livro A arte do circo na América do Sul – trajetórias, tradições e inovações na arena contemporânea é costurado por imagens e reflexões sobre o tema.
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MINHA LÍNGUA PORTUGUESA

Em comemoração ao Dia Mundial da Língua Portuguesa, data instituída pela Unesco em 2019, o Sesc Vila Mariana realiza, no dia 6/5, às 21h, um show com a participação dos artistas Dino D'Santiago, de Cabo Verde, e a dupla portuguesa Lavoisier, além dos brasileiros

Vinicius Terra, idealizador do projeto, Brisa Flow + Ian Wapichana e Lia de Itamaracá. Em parceria com o Instituto Camões, a apresentação faz parte do projeto Meu bairro, minha língua, movimento nascido em 2021 com a canção homônima desenvolvida para o acervo do

Outras formas de habitar

O tripé ocupar, transformar e morar sustenta a premissa do XVII Seminário Internacional da Escola da Cidade | Tanto Mar, correalização do Sesc São Paulo e da Escola da Cidade, com apoio do Consulado de Portugal em São Paulo e do Instituto Camões. Realizado entre 6 e

11/5, no Sesc 24 de Maio, o evento discute temas como a ocupação de espaços ociosos nas regiões urbanas centrais e caminhos para a lógica especulativa de construção das cidades. Participam do seminário arquitetas e arquitetos da Universidade Autônoma de Lisboa, como Manuel Aires Mateus, Inês

Museu da Língua Portuguesa, e que tem como objetivo estudar, investigar, celebrar e formar públicos a partir do idioma e dos seus diversos usos. Conheça o projeto em meubairrominhalingua. com e acesse a programação em sescsp.org.br/vilamariana.

Lobo, João Belo Rodeia, Barbara Silva, Ricardo Bak Gordon, Sofia Pinto Basto e Ricardo Carvalho, além dos debatedores Marta Bogéa (arquiteta), José Guilherme Magnani (antropólogo) e Raul Juste Lores (jornalista). Confira a programação completa: sescsp.org.br/24demaio.

Audun Alvestad
Formada pela cantora Patrícia Relvas e o guitarrista Roberto Afonso, a dupla portuguesa Lavoisier se apresenta pelo projeto Meu bairro, minha língua, no Sesc Vila Mariana.
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FAÇA SUA CREDENCIAL PLENA

Pessoas que trabalham ou se aposentaram em empresas do comércio de bens, serviços ou turismo podem fazer gratuitamente a Credencial Plena do Sesc e ter acesso a muitos benefícios. São aceitos registro em carteira profissional (com contrato de trabalho ativo ou suspenso), contrato de trabalho temporário, termo de estágio e de jovem aprendiz, e pessoas desempregadas dessas empresas até 24 meses.

Para fazer ou renovar a Credencial Plena de maneira online e de onde estiver, baixe o app Credencial Sesc SP ou acesse centralrelacionamento.sescsp. org.br. Se preferir, nesses mesmos locais é possível agendar horário para ir presencialmente a uma das Unidades (compareça com a documentação necessária).

A Credencial Plena é o acesso para trabalhadores e dependentes ao uso dos serviços e programações nas Unidades do Sesc.

Sobre a Credencial Plena:

• É gratuita

• Tem validade de até dois anos

• Pode ser utilizada nas Unidades do Sesc em todo o Brasil

• Prioriza os acessos às atividades do Sesc

• Oferece descontos nas atividades e serviços pagos

Acesse a matéria Tudo o que você precisa saber sobre a Credencial Plena do Sesc

Faça a sua Credencial Plena online! Baixe o app Credencial Sesc SP ou acesse centralrelacionamento. sescsp.org.br

PARA FAZER OU RENOVAR A CREDENCIAL PLENA DO SESC SÃO PAULO
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Ricardo Ferreira

Cultura na agenda

Para Manuel Gama, pesquisador e gestor cultural português, produzir cultura é

Diante de um cenário em que ferramentas de inteligência artificial executam complexas tarefas humanas em segundos, e sem precedente na história, há de se questionar as consequência de delegar a robôs a criação de obras intelectuais e artísticas, como livros, músicas e produções de artes visuais. Em debate no mundo todo, a preocupação de ver a IA ocupar distopicamente o lugar da criatividade humana na produção cultural. No entanto, a sociedade aprendeu, ao longo dos séculos, a incorporar os avanços tecnológicos – fotografia, cinema, computador, internet – para a preservação e valorização da diversidade cultural e artística.

Compreendida como um conjunto de modos de vida, valores, tradições e manifestações artísticas, segundo definição da Unesco, a cultura fornece ferramentas para pensar e agir quanto ao uso de novas tecnologias em favor da humanidade. E, dessa forma, contribuir, direta ou indiretamente, para o cumprimento dos 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da Agenda 2030 – documento assinado pelos 193 países que integram a Organização das Nações Unidas (ONU), entre eles o Brasil. Trabalho decente e crescimento econômico; Redução das desigualdades; Cidades seguras e sustentáveis; Promoção da igualdade de gênero; Saúde e bem-estar. Estes são alguns dos ODS atravessados pelo fomento à cultura.

essencial para o desenvolvimento sustentável do planeta
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entrevista

Para o pesquisador Manuel Gama, coordenador do Observatório de Políticas de Ciência, Comunicação e Cultura na Universidade do Minho, em Portugal, a cultura é fundamental para o cumprimento da Agenda 2030 da ONU. Em entrevista à Revista E, durante a realização do curso Cultura e a Agenda 2030: contributos para a década da ação, realizado em março, no Centro de Pesquisa e Formação do Sesc São Paulo, Gama refletiu sobre democracia cultural, domínio de novas tecnologias e letramento digital frente às inovações que batem à porta.

De que forma a cultura pode se apropriar da Agenda 2030?

Temos que perceber do que estamos a falar quando falamos em cultura. Muitas vezes pensa-se numa dimensão estética, única e exclusivamente. E pensar em cultura é pensar muito mais do que isso. Se olharmos para a definição de cultura da Unesco, está lá muito claro que pensar em cultura é, por exemplo, pensar nos modos de vida de uma sociedade. Portanto, para a gente pensar no desenvolvimento sustentável de um território, tem que se pensar em cultura. A grande questão, quando olhamos para a Agenda 2030, é que há alguma dificuldade quando não se tem esta visão abrangente de identificar os fazedores de cultura e a presença da cultura, porque a cultura não aparece em nenhum dos três pilares da Agenda, que são: o econômico, o ambiental e o social. A cultura também não aparece explicitamente em nenhum dos 17 ODS e muito pouco nas 169 metas. Olhando para mais de duas centenas de indicadores da Agenda 2030,

isso é dramático. Mesmo o próprio indicador da meta 11.4, que fala do patrimônio cultural, a forma como é medido é econômica, e a cultura é muito mais que uma vertente econômica. A cultura é fundamental para o cumprimento da Agenda 2030. Então, o que temos que fazer? Temos que fazer com que os fazedores de cultura percebam que este documento também é deles, e que para o lema da agenda possa se cumprir – “Ninguém pode ser deixado para trás” –, que consigam pensar em projetos culturais nos 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável. O ODS 1, por exemplo, [Erradicação da pobreza] eu pergunto: como é possível cumprir se não fizermos um fortíssimo investimento na dimensão cultural? Na dimensão ética e ontológica da cultura? Se não fizermos esse investimento, não conseguiremos mudar hábitos alimentares e promover uma agricultura sustentável como prevê o ODS 2, por exemplo, ou não poderemos promover a saúde e o bemestar, como quer o ODS 3. Ou seja, a cultura é fundamental para o cumprimento dos ODS, com este pensamento que os fazedores de cultura devem olhar para ela.

Em suas falas, você defende a importância dos projetos culturais atravessarem outros ODS, para além do ODS 4, que se refere à educação de qualidade. Por quê?

Nos levantamentos que fizemos no Brasil e em Portugal, percebe-se que o setor da cultura muitas vezes se relaciona com o ODS 4, porque a relação cultura/educação é umbilical. Nós não podemos trabalhar a questão cultural sem ter o componente da educação, e na educação.

Tem que haver um letramento digital para as pessoas poderem, de forma consciente, fazer uma escolha deliberada e, assim, não consumir a primeira coisa que aparece à frente

Há aqui uma relação que não deve ser menosprezada. Contudo, é evidente que o ODS 4 tem metas que são importantes e explícitas da cultura, até mais do que o ODS 11 [Cidades e comunidades sustentáveis]. A meta 4.7, por exemplo, fala da importância da cultura e de valorizar a diversidade cultural, mas há outros ODS e outras metas que também falam da questão da cultura: como a meta 12.b, que refere explicitamente a relação do turismo sustentável com a promoção da cultura local. Ou seja, não podemos basear a nossa ação cultural na Agenda 2030 única e exclusivamente por via do ODS 4, senão estamos a transformar quase, e muitas vezes, um uso instrumental da cultura a serviço da educação. O que eu defendo é que a cultura deve se apropriar da Agenda 2030, percebendo outros aspectos.

Como a cultura pode, efetivamente, contribuir com os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável e também se beneficiar da Agenda 2030?

Costumo dizer que se o ODS 8 [Trabalho decente e crescimento econômico] estivesse a ser cumprido, os problemas da pandemia não teriam acontecido como aconteceram, porque significaria que os profissionais do setor cultural teriam trabalho digno. Perceber a relação da cultura com a Agenda 2030 é não ter medo de dizer e de usar a cultura de forma instrumental para o cumprimento da Agenda. Enquanto no primeiro caso a cultura pode contribuir para o desenvolvimento sustentável e é protagonista, como no caso do ODS 5, que sublinha a importância de alcançar a igualdade de gênero, no segundo caso a cultura é beneficiária, de que o empoderamento da população proposto na meta

10.2 é apenas um exemplo. E no terceiro, é utilizada de forma instrumental para cumprir os ODS, a exemplo do ODS 14, que traz a importância dos conhecimentos tradicionais, como a pesca artesanal, para atingir algumas das metas. Portanto, podemos olhar para esses outros contributos para além do ODS 4.

Quando você aponta para os problemas da pandemia enfrentados pelos profissionais da área da cultura, uma das saídas encontradas por eles foi utilizar as plataformas digitais para interface com o público e fruição cultural. Que análise você faz desse período?

No Observatório de Políticas de Ciência, Comunicação e Cultura da Universidade do Minho, Portugal (POLObs), desenvolvemos um estudo, no primeiro trimestre da pandemia, para perceber o impacto no setor cultural português e, paralelamente, por todo o mundo, estudos dessa natureza começaram a ser feitos. A conclusão a que chegamos, que não é muito diferente da conclusão de outros países, é que a pandemia não provocaria efeitos dramáticos no setor cultural se ele já não estivesse, em si, numa situação demasiada precária. Ou seja, a pandemia trouxe à tona os problemas e as fragilidades desse setor. Primeiro, ela permitiu dar luz ao problema da profissionalização, da necessidade de haver condições dignas de trabalho para os profissionais do setor cultural, ou seja, ODS 8. E a segunda questão é que, sendo o setor cultural um dos primeiros que fechou, ele também foi um dos primeiros que respondeu ativamente para que a população que ficou em casa pudesse ter sanidade mental por meio da fruição cultural.

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Não devemos ter medo das tecnologias, elas estão aqui para ficar. Devemos capacitar os fazedores de cultura para que usufruam o máximo possível das potencialidades que a digitalização nos traz

E qual foi um dos grandes problemas averiguados no estudo?

Foi o fato de não terem sido criadas condições para que essa transição para o digital – feita de forma muito rápida – permitisse meios de subsistência ao setor cultural. Atores, músicos e outros fazedores de cultura foram para as plataformas online fazer a sua arte, mas não eram remunerados por isso. Só a partir de certa altura, muito mais para a frente, é que começaram a receber alguma verba que, muitas vezes, não era minimamente aceitável. O que nos traz hoje a pandemia – se é possível encontrarmos aspectos positivos – é esta relevância que se tem que dar ao componente digital da cultura, sem que isso seja sinônimo de que o contato presencial torne-se substituível.

O Observatório de Políticas de Ciência, Comunicação e Cultura da Universidade do Minho também analisou a reação do público quanto à fruição cultural nas plataformas digitais? Nos estudos de público que fazemos no Observatório, isso é notório. Quando perguntamos às pessoas, entre o digital e o online, o que preferem, a maioria prefere o presencial. A grande questão é: não obstante isso, os fazedores de cultura têm que encontrar duas coisas: primeiro, competências para que o seu espetáculo de teatro, por exemplo, possa se transformar num produto de fruição online. Deve haver verdadeiras habilidades para isso. Há equipamentos culturais que são completamente digitais. A Universidade do Minho, por exemplo, tem um museu que não existe fisicamente, o Museu Virtual da Lusofonia. Ele existe numa plataforma digital e é uma unidade orgânica da universidade. Muitas organizações têm esta dupla face do presencial e do online, mas é preciso fazer com que a digitalização não se transforme em mais um constrangimento no acesso à cultura.

A presença de manifestações artísticas no ambiente virtual, reforçada pela grande influência das plataformas digitais (redes sociais, serviços de streaming etc.) na produção, distribuição e consumo de informação foi denominada como “plataformização da cultura” e tem sido objeto de debate e preocupação por parte de artistas, produtores e pesquisadores. Que reflexão podemos fazer sobre esse processo?

Eu vejo, primeiro, o desafio de tornar a cultura e a questão da cultura digital acessível a todos. Quando pensamos nos indicadores para a cultura, quer seja nos indicadores da Unesco, quer seja de outros documentos internacionais,

nos falam que para haver a questão do online, da digitalização, dessa forma de fruir cultura, é fundamental que a população tenha a capacidade de escolher. Para que eu possa escolher os conteúdos que eu quero, e que não sejam as grandes multinacionais que nos digam aquilo que vamos consumir, eu tenho que, primeiramente, ter acesso à internet, mas essa não é a realidade. O segundo problema é que tem de haver um letramento digital para as pessoas poderem, de forma consciente, fazer uma escolha deliberada e, assim, não consumir a primeira coisa que aparece à frente. Estou a construir o meu próprio patrimônio cultural e a fruição a partir de um leque, e hoje a internet nos permite esse leque diversificado.

Nesse caso, a partir de um letramento digital seria possível fazer a própria curadoria de conteúdos, retomando essa escolha deixada a cargo dos algoritmos? Completamente. É importante percebermos que temos que ter ferramentas para não deixarmos que um algoritmo escolha tudo o que queremos consumir, porque isso, evidentemente, vai deixar um conjunto de culturas minoritárias, com menor visibilidade, de fora. Mas se apostarmos no letramento digital e no letramento cultural, não haverá algoritmo que me impeça de ver determinada forma de expressão artística ou de manifestação cultural só porque ela é minoritária. E para as grandes plataformas elas não são financeiramente vantajosas. Portanto, há aqui uma relação muito importante: não podemos ignorar que estamos em 2023, nem que o mundo vive transformações de uma forma completamente acelerada. Não podemos ignorar, também, que este desenvolvimento tecnológico é desigual. Ele torna mais veemente as disparidades e poderá tornar o consumo cultural online de forma ainda mais problemática, porque a facilidade do acesso pode agravar a lógica do que é padronizado e deixar as margens ainda mais às margens. O problema é que já não se pode falar em democratização, e sim em democracia cultural.

Democratização e democracia cultural se distinguem em que aspectos?

São conceitos diferentes. Quando falamos em democratização, estamos a falar numa questão de cima para baixo. Enquanto a democratização da cultura é uma questão vertical de um conjunto de “iluminados”, que vai disponibilizar à população aquilo que considera como relevante – e o algoritmo é aquele que considera o que é relevante para termos acesso em termos culturais –, a democracia cultural parte de uma base

completamente contrária. Parte da valorização das culturas e das comunidades locais, da valorização do que uma comunidade tem e quer para construir, a partir daí, uma dimensão cultural do seu território. Portanto, é importante apostarmos numa democracia cultural, em que todos temos o direito de fruir, de criar e de consumir cultura. Em que todos temos o papel de construirmos nosso patrimônio cultural, tendo a consciência de que não há ninguém que tenha que me dizer aquilo que eu preciso consumir. Não é pelo fato de termos uma iniciativa cultural num espaço privilegiado, que ela seja mais importante do que uma manifestação cultural tradicional, ancestral e muitíssimo valorizada por aquele território.

Estamos vivendo um grande debate sobre inteligência artificial e como ela pode ocupar o espaço da produção intelectual humana. Recentemente, ferramentas como o ChatGPT tornaram-se alvo de protestos. Essas novas tecnologias são uma ameaça?

Há certas coisas que são incontornáveis, como a inteligência artificial. Outro dia, fizeram um exercício muito interessante na Europa. Existe uma iniciativa chamada Capital Europeia da Cultura, e deram a essa “ferramenta” um conjunto de instruções. Pediram que ela fizesse uma candidatura e foi assustador, porque a candidatura, não foi extraordinária, mas foi feita rapidamente, integrando palavras-chave interessantes para responder a um edital. E isso é muitíssimo perigoso. Tal como um livro feito quase à medida [por ferramentas de IA]. É um desafio enorme que eu não sei como podemos resolver. Acho que temos que partir,

também, do letramento digital e do letramento cultural. Se eu valorizo a dimensão cultural de um escritor, eu não posso pedir a um programa que me faça um livro. Mas é evidente que haverá sempre quem consuma determinados tipos de produtos “fastfood cultural”.

Ou seja, é preciso reavaliar a forma como fazemos uso dessas ferramentas.

Há duas questões aí. Por um lado, [esse uso] pode ser ruim, porque percebemos que há um trabalho muito grande que precisa ser feito para que as pessoas consigam distinguir uma produção [humana] da outra [feita por um robô]. Também pode ser ótimo que esse livro que uma pessoa pede à medida [para a IA] possa formar leitores que, passado um tempo, vão comprar um livro de Jorge Amado. Portanto, é uma coisa de dupla face, e não vale a pena estarmos a dizer que vai ser péssimo. Do meu ponto de vista, temos que apostar na formação e na capacitação da sensibilização das pessoas para que não misturemos as coisas. Não devemos ter medo das tecnologias, elas estão aqui para ficar. Devemos capacitar os fazedores de cultura para que usufruam o máximo possível das potencialidades que a digitalização nos traz.

*Assista ao vídeo com trechos da entrevista com o pesquisador Manuel Gama, realizada no Centro de Pesquisa e Formação do Sesc São Paulo.

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É importante apostarmos na democracia cultural, em que todos temos o direito de fruir, de criar e de consumir cultura

JOÃO GiLBERTO

AO ViVO NO SESC _ 1998

25 anos depois da performance de João Gilberto no teatro do Sesc Vila Mariana, o Selo Sesc recupera esse registro e lança o álbum Relicário: João Gilberto (ao vivo no Sesc 1998).

cd duplo Relicário: João Gilberto (Ao vivo no Sesc 1998)

Disponível em CD nas lojas Sesc SP, pelo site sescsp.org.br/loja e nas plataformas de streaming

Visite a loja virtual e conheça o catálogo completo sescsp.org.br/loja

/selosesc

sescsp.org.br/relicario

DESACELERAR É

Numa época em que a velocidade atravessa a rotina, como a sociedade vem experimentando o tempo?

POR MARIA JÚLIA LLEDÓ

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Com pressa, o Coelho Branco de olhos cor-de-rosa tirou um relógio do bolso do colete e disse: “Ai, ai, ai! Vou chegar atrasado demais”. Alice, espantada por nunca ter visto um coelho falante e vestido, saiu em disparada e o seguiu até sua toca, de onde começaria uma fantástica viagem rumo ao País das Maravilhas.

Publicada em 1865, a obra Aventuras de Alice no País das Maravilhas, uma das histórias mais importantes da literatura mundial, foi fruto da imaginação do escritor e matemático Lewis Carroll (1832-1898), mas também de suas indagações sobre a relatividade temporal. O Coelho Branco pode simbolizar, por meio de sua obsessão pelo tempo, a angústia causada pela brevidade da experiência humana.

Afinal, na época em que a história foi escrita, os dias passaram a ser contados pelos ponteiros do relógio, e não mais pelo nascer e pôr do sol. Foi a partir da Revolução Industrial, na segunda metade do século 18, que a vida foi compartimentada em horas, minutos e segundos, entre “tempo de trabalho” e “tempo livre”. Assim como Alice, a humanidade caiu na toca do Coelho Branco e começou a correr atrás do tempo.

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SE TUDO É PARA ONTEM, PERDEMOS O SENSO

DE HIERARQUIA DO TEMPO – O QUE É MESMO

IMPORTANTE E O QUE PODE FICAR PARA DEPOIS

Luís Mauro Sá Martino, cientista social

Desde então, a sociedade sonha com a dilatação das 24 horas do dia para conciliar o rendimento no trabalho com momentos de lazer com família e amigos, fazer atividade física, ler um livro ou simplesmente ficar de pernas para o ar. Num século em que o tempo se tornou privilégio, a consequência dessa “falta de tempo” vem provocando quadros de ansiedade, depressão e outros sofrimentos psíquicos. De acordo com o mais recente mapeamento global de transtornos mentais, realizado pela Organização Mundial da Saúde (OMS), o Brasil possui a população mais ansiosa do mundo.

“Precisamos ter em mente que questões de saúde mental estão estreitamente relacionadas aos modos de vida, ao quadro cultural do país e como está organizada a vida social. Então, eu colocaria a questão do tempo na perspectiva desse arranjo social, político e econômico neoliberal, que leva a uma mobilização integral da nossa vida para o trabalho”, aponta o professor do Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP) Ricardo Rodrigues Teixeira, que coordena a diretoria de Saúde Mental e Bem-Estar Social da próreitoria de Inclusão e Pertencimento da instituição.

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Autor do livro Sem tempo para nada – como tudo ficou acelerado, por que estamos cansados e as alternativas realistas para mudar (Vozes, 2022), o cientista social Luís Mauro Sá Martino endossa esse diagnóstico. “Como sociedade, podemos nos perguntar o quanto esse ritmo acelerado está nos fazendo bem, sobretudo a longo prazo. Você pode tentar levar uma vida adequada à sua saúde e bem-estar, mas como fazer isso se tudo ao seu lado está em um ritmo rápido e contínuo?

Algumas pessoas talvez possam ver uma mensagem de trabalho e pensar: ‘Ok, eu respondo no meu tempo’. Para outras, resta entrar nesse circuito de aceleração no qual tudo é para ontem”, alerta. Como resultado, complementa Martino, “se tudo é para ontem, perdemos o senso de hierarquia do tempo – o que é mesmo importante e o que pode ficar para depois”.

A FICHA CAIU

Em sua aventura pelo País das Maravilhas, Alice chega à casa da Lebre de Março, e senta-se, a contragosto, à mesa com a anfitriã e o Chapeleiro para tomar um chá. Entediada com a conversa sem pé nem cabeça dos dois, pergunta: “Acho que vocês poderiam fazer coisa melhor com o tempo”. E, então, o Chapeleiro retruca: “Se você conhecesse o Tempo tão bem quanto eu, falaria dele com mais respeito”. No caso da jornalista e educadora Michelle Prazeres, esse respeito veio com a maternidade. Até então, vivia ao ritmo 24 por 7 –abreviação de “24 horas por dia, 7 dias por semana”, que denota algo em funcionamento sem interrupção.

Durante a gestação do filho mais velho, em 2010, Michelle reavaliou a “relação tempo-trabalho-condição feminina-condição de mãe”, como ela descreve. O saldo de horas parecia estar sempre negativo. Foi aí que a jornalista criou um blog sobre empreendedorismo materno, mas o projeto teve de ser interrompido. Cinco anos depois, os mesmos questionamentos deram origem a um guia chamado Desacelera São Paulo, no qual ela reuniu pessoas, projetos, iniciativas e lugares que compartilham valores do Movimento Slow, que despontou na década de 1960, inicialmente, com o movimento Slow Food, em reação à alimentação industrializada (fast food). Entre esses valores estão: consumo consciente, valorização de pequenos produtores e do tempo livre na infância.

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PASSOU CORRENDO O TAL COELHO, PARECIA PREOCUPADO, OLHAVA PARA O RELÓGIO NO CINTURÃO AMARRADO, DIZENDO: _ PERDI A HORA!

O QUE VOU FAZER AGORA?

ESTOU DE NOVO ATRASADO! (...)

ELA AINDA OUVIA A VOZ

DO COELHO ENGRAVATADO

REPETINDO SEM PARAR: _ OH CÉUS! ESTOU ATRASADO!

QUEM DO RELÓGIO DEPENDE SUA LIBERDADE VENDE, POIS ASSIM DIZ O DITADO!

(Trecho do livro Alice no País das Maravilhas em cordel, de João Gomes de Sá, com ilustrações de Marcos Garutti, lançado pela editora Nova Alexandria, em 2010, e inspirado pela obra original de Lewis Carroll)

Da reunião das iniciativas desse guia, nasceu o Dia Sem Pressa, inédito festival da cultura slow no Brasil, cuja primeira edição – São Paulo precisa de uma pausa – aconteceu em 2018, com o objetivo de mostrar que é possível desacelerar nas grandes cidades quando se criam espaços de convivência e novas experiências. A partir daí, formou-se a Rede Desacelera São Paulo, que hoje engloba o guia, o festival e a Escola do Tempo, voltada para palestras, cursos e formações em organizações e empresas.

Desde então, a jornalista, educadora e fundadora do Desacelera São Paulo trabalha para que uma consciência temporal faça parte da vida de outros moradores da cidade. “Gosto muito de uma frase de Antonio Candido: ‘O tempo é o tecido da vida’. A gente é o tempo, a gente não usa o tempo. Uma vez que você entra em contato com essas reflexões, você estará apto a fazer melhores escolhas. A minha luta hoje é para que essas escolhas sejam de todos, e é importante lembrar que num país tão desigual como o nosso, a experiência temporal também é marcada pela desigualdade. Por isso, o Desacelera é uma iniciativa que busca o que lá fora estão chamando de wellness equity, quer dizer: equidade de direito ao bem-estar”, explica.

Realizado a partir de parcerias e de uma rede de voluntários, a sexta edição do Dia Sem Pressa deve acontecer em setembro. “Este ano, queremos dar ao evento o tom que o movimento ganhou no póspandemia, que é Do bem-estar ao bem-viver, porque queremos construir essa ponte entre o movimento que pensa o bem-estar e a saúde mental para os indivíduos, e o movimento que pensa o bem-estar e a saúde mental como política”, acrescenta Michelle.

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TEMPO AO TEMPO

O dia pareceu estender-se quando a pandemia forçou grande parte da população a permanecer em casa e evitar o convívio social. Aqueles que puderam restringirse ao espaço doméstico tiveram que reinventar uma rotina, que passou a ser ditada pelo ritmo do trabalho remoto, das aulas virtuais, do lazer e das relações por meio de telas. A saúde mental, que já era uma preocupação global, foi agravada. Estudiosos voltaramse à reflexão sobre o lugar da cultura na produção de saúde. Coordenada pelo médico Ricardo Rodrigues

Teixeira, em 2021, a pesquisa A reinvenção da vida e da saúde em tempos de pandemia: o lugar da cultura mostrou que o grupo de respondentes que disse ter usufruído do tempo livre na rotina foi aquele que apresentou melhores indicadores de saúde mental. Entre as atividades realizadas fora do tempo de trabalho, que mais contribuíram para a qualidade da saúde mental, estavam: assistir a filmes, ouvir música, ler, participar de cursos online e cozinhar, nessa ordem.

TEMPORAL TAMBÉM É MARCADA
DESIGUALDADE
É IMPORTANTE LEMBRAR QUE NUM PAÍS TÃO DESIGUAL A EXPERIÊNCIA
PELA
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Michelle Prazeres, fundadora do Desacelera São Paulo

É PRECISO REAVALIAR UMA ROTINA, SE NELA NÃO SOBRA TEMPO PARA UMA ATIVIDADE FÍSICA, PARA O LAZER, PARA O CUIDADO DE SI E O CONVÍVIO COM OUTRAS PESSOAS

Hoje, esse estudo, que é fruto de uma parceria entre o Centro de Pesquisa e Formação do Sesc São Paulo e o Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da USP mostra, segundo Teixeira, que a saúde mental está diretamente relacionada à forma como as pessoas lidam com o tempo, “algo que, para mim, é sinônimo de vida”, diz o pesquisador. Ou seja, “é preciso reavaliar uma rotina, se nela não sobra tempo para uma atividade física, para o lazer, para o cuidado de si e o convívio com outras pessoas”, ressalta Teixeira.

Para o cientista social Luís Mauro Sá Martino, questionar a naturalização de crenças como “a vida é corrida mesmo” e a glamourização do excesso de atividades é outro caminho para pisarmos no freio dessa lógica. “Primeiro, como você usa seu tempo? Saber disso ajuda a pensar como dirigir melhor as horas, poucas, talvez, que você tem. Segundo, lembrar que o tempo não é só quantidade, é qualidade: você pode definir a importância de cada momento e restaurar a hierarquia do tempo – se você só tem uma hora livre por dia, como vai usá-la? Acessando redes sociais? Brincando com seu filho? Falando com alguém de quem você gosta? Terceiro, respeitar os ritmos do corpo, porque um dia ele manda a conta, e geralmente é alta”, arremata.

*Ilustrações de Nicole Bustamante criadas originalmente para a programação reAlices: narrativas artevisuais, projeto híbrido realizado pelo Sesc Santo André em 2021, composto por ações online e mostra com obras de outros sete artistas. Acesse o catálogo da exposição em: sesc.digital/ colecao/exposicao-realices

QUALIDADE DE VIDA

Ações do Sesc aproximam público de iniciativas que promovem saúde e bem-estar

Falar em saúde é falar de cuidados em todos os aspectos da vida, em todas as idades, esferas sociais e relações. A programação do Sesc São Paulo foca nessa dimensão em ações que integram o programa de Saúde. Além das atividades permanentes, neste ano o projeto InspiraAções para uma vida saudável, realizado em abril, trouxe para sua sexta edição reflexões sobre a qualidade de vida no cotidiano do indivíduo e suas interfaces com a sociedade e o trabalho.

“O objetivo foi colocar em pauta temas como a saúde das populações negra e indígena, o esgotamento mental de docentes, a gestão do tempo, o aprisionamento das ferramentas digitais, ou seja, como as redes sociais e aplicativos podem nos distanciar das relações pessoais, do lazer, do afeto e principalmente do autocuidado. Diante disso, o projeto Inspira promoveu encontros que auxiliaram o público na busca de uma melhora da qualidade de vida e bem-estar, além do equilíbrio nas ações do cotidiano”, explica Fernando Oliveira, assistente técnico da Gerência de Saúde e Odontologia do Sesc São Paulo.

Confira alguns destaques da programação de Saúde do Sesc São Paulo neste mês:

CARMO

Clareira

Instalação de Rodrigo Bueno, do ateliê Mata Adentro, que propõe um espaço de refúgio verde com água, vegetação, madeira e pedra, na busca pela reconexão sensorial com a natureza.

De 1º de maio a 1º/6, segunda a sexta, das 10h às 19h. GRÁTIS.

PIRACICABA

Seres radiais com Ramon Saci

A psicanálise se encontra com a arte neste espaço de troca e circulação de palavras e afetos. Conduzida pelos psicanalistas

Patrícia Olandini e Pedro Henrique Choairy, a atividade é ativada por meio da contemplação e reflexão sobre obras de arte apresentadas aos participantes. Dia 4/5, quinta, das 19h às 22h. GRÁTIS.

REGISTRO

Vivência de Qi Gong, respiração e automassagem

O terapeuta holístico Mauricio Yajima convida o público a experimentar exercícios de Qi Gong, que auxiliam na concentração, relaxam o corpo e fortalecem a energia. De 7 a 28/5, domingos, das 10h às 11h. GRÁTIS.

Evelson
No Sesc Carmo, o ciclo de encontros As medicinas Tupi-Guarani: das ervas ao canto, com Luã Apyká, da comunidade Tabaçu Reko Ypy (Peruibe-SP), fez parte da programação do projeto Inspira
de Freitas
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para ver no sesc / saúde

reluz TALENTO QUE

Os caminhos desbravados com coragem e pioneirismo pela atriz Ruth de Souza

Oespetáculo O Imperador Jones, do dramaturgo norte-americano Eugene O'Neill (1888-1953), representa um marco na história das artes cênicas, no Brasil, por variadas razões. A encenação simboliza a estreia oficial do Teatro Experimental do Negro (TEN), histórica companhia fundada em 1944 por Abdias Nascimento (1914-2011), com o objetivo de reivindicar a valorização social da população negra e da cultura afro-brasileira por meio da educação e da arte. A peça foi, também, a primeira produção teatral formada exclusivamente por artistas negros a se apresentar no Theatro Municipal do Rio de Janeiro, instituição que já contava, à época, com quase quatro décadas. Foi naquele elenco que despontou uma das mais polivalentes atrizes brasileiras: Ruth de Souza (1921-2019), então com 24 anos. No papel de “velha nativa”, única personagem feminina da montagem, a intérprete arrebatou elogios e deu início a uma carreira revolucionária, reconhecida pelo pioneirismo que segue inspirando novas gerações de artistas nos palcos e telas.

Em entrevista ao jornalista Acyr Mera Junior, publicada no jornal O Globo de 15 de maio de 2018, Ruth de Souza disse: “[A atriz] Taís Araujo e [o ator] Lázaro Ramos estão realizando um sonho que sempre tive: ver artistas negros nos papéis principais. Sempre trabalhei, mas raramente protagonizei, com exceção da Cloé da [novela] A cabana do pai Tomás [TV Globo, 1969]”. A artista faz referência ao folhetim pelo qual se tornou a primeira protagonista negra da emissora carioca – antes, Yolanda Braga (19412021) esteve à frente do elenco de A Cor da Sua Pele (1965), na TV Tupi. A cabana do pai Tomás, no entanto, se tornou notória pela controvérsia. O personagem-título, vivido pelo ator Sérgio Cardoso (1925-1972), fazia uso de blackface [prática racista na qual artistas brancos são pintados de preto para retratar personagens negros].

POR MANUELA FERREIRA
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FORÇA E RESISTÊNCIA

O escritor e dramaturgo Plínio Marcos (1935-1999) encabeçou as reações de repúdio à novela, chamando a atenção para outras práticas racistas no audiovisual da época, como a predominância de atores brancos em sucessivas produções. “Depois, houve o problema com meu nome, que deveria aparecer na frente das outras atrizes, junto ao de Sérgio Cardoso, pois éramos os protagonistas. Tiveram de colocar meu nome depois dos demais atores, o que foi uma comprovação do preconceito que a gente sofre, que o ator negro enfrenta em relação à colocação de seu nome. A minha luta eterna é para ter meu nome creditado em meus trabalhos”, revelou a atriz na biografia Ruth de Souza: A Estrela Negra - Coleção Aplauso Perfil (Imprensa Oficial, 2007, org. de Maria Angela de Jesus).

Na TV Globo, Ruth atuou em mais de 30 novelas ao longo de meio século, sem jamais abandonar a voz crítica de sua presença, rara em meio à ausência de negros nas telenovelas, informes publicitários e noticiários. “Até o escritor e político Abdias do Nascimento, o grande líder da nossa causa, fundar o Teatro Experimental do Negro, quando éramos representados em cena, um ator branco era pintado de preto. Nós avançamos. Outro dia, vi um bebê negro em um comercial de fraldas. A [jornalista] Maju Coutinho é exemplo de elegância no Jornal Nacional. Nossa raça é uma das mais bonitas (...)”, analisou a atriz na entrevista ao jornal O Globo.

PRIMEIROS IMPULSOS

A intérprete, nascida no bairro de Engenho de Dentro, zona norte do Rio de Janeiro, interessou-se pelas artes ainda criança. Sua mãe, a lavadeira Adelaide Pinto, acompanhava a garota nas sessões de filmes hollywoodianos que lotavam os antigos cinemas de

rua do Centro da capital fluminense, nos anos 1930. Depois de assistir ao filme Tarzan, o Filho das Selvas (1932), a menina tomou gosto de vez pela sétima arte. Confidenciou os planos de atuar profissionalmente apenas para a mãe – tímida, temia as críticas e gozações que receberia ao dizer que desejava ser atriz. Com ingressos que dona Adelaide ganhava das patroas, passou a assistir aos espetáculos do Theatro Municipal, até se aproximar do TEN, no começo da década de 1940.

Sua primeira grande atuação foi em 1947, na montagem teatral de O Filho Pródigo, de Lúcio Cardoso (1912-1968). Um ano depois, a pedido do amigo e escritor Jorge Amado (1912-2001), estreou no cinema com Terra violenta (1948), adaptação do romance Terras do sem-fim (1943). Na mesma época, Ruth também passou a trabalhar em produções cinematográficas do estúdio Atlântida, como o drama Também somos irmãos (1949), dirigido por José Carlos Burle (1910-1983). A atriz ainda compôs o elenco fixo dos estúdios Maristela Filmes e Vera Cruz. Nesse período, recebeu uma bolsa de estudos da Rockefeller Foundation, em Nova York, e realizou o sonho de estudar nos Estados Unidos. Frequentou a Howard University, em Washington, a escola de teatro da Karamu House, em Cleveland, e a American Musical and Dramatic Academy de Nova York. De volta ao Brasil, atuou em Deusa Vencida (TV Tupi, 1965), sua primeira novela, e integrou o elenco de produções da Record e Excelsior.

MUITAS POTÊNCIAS

No período de estudos, Ruth de Souza mergulhou nas obras de autores expoentes do realismo teatral norte-americano, como Tennessee Williams (1911-1983) e Arthur Miller (1915-2005). Atuou com grupos de teatro amadores e ampliou a formação em áreas técnicas, como sonoplastia, figurino, maquiagem e iluminação.

Temos muita estrada e barreiras pela frente, mas sei que temos muitas conquistas também. Devemos isso a mulheres potentes e únicas como a nossa Ruth de Souza
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Clara Paixão, atriz e professora de teatro

Na biografia Ruth de Souza: A Estrela Negra, a artista refletiu sobre a experiência no exterior. “Quando menina, li uma matéria sobre a Howard University, em Washington, na revista Life. Tinha uma foto belíssima que mostrava estudantes negros muito elegantes na frente da universidade. Durante anos alimentei o sonho de um dia poder frequentar um lugar como aquele. Anos mais tarde, quando fui estudar nos Estados Unidos, me senti entrando naquela foto da Life, naquele recorte de revista que vinha guardando.”

Após retornar ao Brasil, a atriz se firmou em atuações magnéticas, como no filme Sinhá Moça (1953), dirigido por Tom Payne (1914-1996), com o qual conquistou uma indicação ao prêmio de melhor atriz no Festival de Veneza, na Itália, em 1954. Foi a primeira nomeação de uma atriz brasileira a uma premiação internacional de cinema. Sinhá Moça competiu, também, pelo Leão de Ouro de melhor filme no mesmo festival. Apesar do reconhecimento internacional, as personagens reservadas para a intérprete aqui em seu país voltavam-se, quase sempre, para a vivência de pessoas negras da sociedade brasileira até então. Ruth de Souza trazia visibilidade aos relatos com maestria, como ao dar vida à escritora Carolina Maria de Jesus (1914-1977) na adaptação para o teatro do livro Quarto de Despejo: Diário de uma Favelada (1960).

“A representação dos atores negros tem sofrido uma lenta mudança desde a década de 1960, quando somente atuavam interpretando afro-brasileiros em situações de total subalternidade. Naquela década, a mulher negra era representada regularmente como escrava

e empregada doméstica, encaixando-se na reedição de estereótipos comuns ao cinema e à televisão norteamericanos, como as mammies. O melhor exemplo foi o grande sucesso da atriz Isaura Bruno (1916-1977), quando interpretou a mamãe Dolores, na mais popular telenovela do período, O Direito de Nascer (1964)”, escreveu o cineasta, professor e pesquisador Joel Zito Araújo no artigo O negro na telenovela: um caso exemplar da decadência do mito da democracia racial brasileira, publicado na revista francesa de cinema Cinémas d’Amérique Latine – Revue Annuelle de l’Association Rencontres Cinémas d’Amérique Latine de Tolouse, em 2007.

Sobre tal representação, Joel Zito esmiuçou: “Nos anos 1970, o sucesso temático típico das telenovelas foi a representação dos conflitos e dos dramas dos brasileiros na luta pela ascensão social em uma década considerada como a última de crescimento econômico do país no século 20. No entanto, somente alguns autores, em especial Janete Clair (1925-1983), criaram papéis de personagens negros buscando ascenção profissional. A exemplo do psiquiatra Dr. Percival, interpretado por Milton Gonçalves (1933-2022) em Pecado Capital (1975). No entanto, nenhum desses personagens foi protagonista ou antagonista. Eram sempre escadas. A única personagem negra que foi protagonista, e que se tornou um sucesso internacional de vendas desde os anos 1970, foi interpretada por uma atriz branca no papel-título da novela Escrava Isaura (1976). Somente nos anos 1990, uma atriz negra, Taís Araujo, viria quebrar o tabu e desempenhar o papel-título da telenovela Xica da Silva (1997) [inspirada no filme de Cacá Diegues]”, relatou o pesquisador em sua publicação.

No último dia mostrei para ela o trailer do filme, que ela não chegou a ver pronto. Ela se emocionou muito e agradeceu. Eu também fiquei emocionada porque quem tinha a agradecer era eu, pelos ensinamentos e pela abertura de espaço para aquela construção Juliana Vicente, cineasta
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ANCESTRALIDADE PRESENTE

“A potência Ruth de Souza não se encaixa em uma síntese, pois cada papel que essa grandiosa atriz fez foi uma aula de talento. Uma mulher preta além de seu tempo, que quebrou barreiras e padrões sociais. Destemida, não se limitou às falas que diziam: ‘Não, você não pode!’. Ela simplesmente foi, acreditou e seguiu. Por isso, é um marco para nós, atrizes pretas e retintas”, avalia a atriz, professora de teatro e jornalista Clara Paixão.

Segundo Paixão, devido aos movimentos incessantes de inserção socioeconômica e cultural da população negra – e muitas lutas travadas neste âmbito – há mais pessoas que pesquisam e querem conhecer as potências negras que abriram caminhos para as que vieram depois. “Temos muita estrada e barreiras pela frente, mas sei que temos muitas conquistas também. Devemos isso a mulheres potentes e únicas como a nossa Ruth de Souza”, acrescenta.

Retratar uma trajetória tão extensa – e que fala não somente das artes no Brasil, mas também da própria história do país – representou um desafio para a cineasta e roteirista Juliana Vicente, diretora do documentário Diálogos de Ruth de Souza (2022). O filme foi exibido em março deste ano, no CineSesc, durante a OJU –Roda Sesc de Cinemas Negros. “Acompanhei a Ruth nos últimos 10 anos de sua vida. Esse período foi de muita transformação, de todas as formas. Foi quando ela deixou de andar, mas também, aos poucos, foi se abrindo mais e se permitindo ser filmada de forma mais espontânea. Eu tive muita dificuldade de chegar ao formato do filme, entender os caminhos. Eu duelei com informações do passado, com um sentimento de quem estava vivendo polêmicas dos anos 1950 encontradas em cartas e, sobretudo, refleti muito sobre sua dedicação exclusiva à carreira, a todas às suas lutas e solidão”, recorda Juliana Vicente.

A diretora explica que o processo de curadoria foi intenso, não somente por revisitar quase meio século de trabalho da atriz. “Foi emocionalmente complexo [para] depurar, porque de alguma forma, a Ruth de Souza era uma mistura de entidade que abriu todas as portas. Um espelho ancestral em tempo de fragilidade enorme, mas a câmera era a condutora da força do encontro”, conta a cineasta. A decisão de compartilhar a história da atriz a partir dos diálogos que tiveram, quando Ruth de Souza era nonagenária, deu-se após reflexões em relação à presença da intérprete frente ao relato sobre seu legado.

“A gente viu, ao longo das nossas histórias pretas, que poucos tiveram a chance de enunciar a própria vida. A possibilidade de tê-la como narradora da própria história se impunha, e a maneira que isso aconteceu, com a perda de mobilidade, me parecia ainda mais bonita. O universo que ela consegue criar, mesmo diante dessa limitação, através das imagens que [ela] pode produzir com a memória, me parecia encaixado para a história. No último dia, mostrei para ela o trailer do filme, que ela não chegou a ver pronto. Ela se emocionou muito e agradeceu. Eu também fiquei emocionada porque quem tinha a agradecer era eu, pelos ensinamentos e pela abertura de espaço para aquela construção. A gente não sabia que seria a última vez que nos encontraríamos para falar do filme”, arremata a diretora de Diálogos de Ruth de Souza.

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A atriz em cena do longa-metragem Ladrões de Cinema (1977), de Fernando Coni Campos.

para ver no sesc / bio

RECONHECER LEGADOS E CONQUISTAS

Do 13 ao 20 – (Re)Existência do Povo Negro propõe ações para o reconhecimento e fortalecimento das lutas,

manifestações e realidades do povo negro no Brasil

Do 13 ao 20 – (Re)Existência do Povo Negro chega à sua quinta edição ampliando reflexões sobre a história, legados, cultura e identidades da população negra no país. A ação faz alusão aos dias 13 de maio de 1888 e 20 de novembro, datas da assinatura da Lei Áurea e Dia Nacional de Zumbi e da Consciência Negra, respectivamente. A iniciativa acontece de forma presencial e online, de maio a novembro, com oficinas, batepapos e apresentações artísticas em todas as unidades e plataformas digitais do Sesc São Paulo.

"Neste ano, o projeto inspira-se na ideia de ensinagens negras que, para além do compartilhamento de

conteúdos negroreferenciados, dá lugar também às cosmopercepções e modos de fazer da negritude, considerando processos e experiências como potencializadores do ensino-aprendizagem e de transformação social. Nesse contexto, caberá ainda observar o marco de 20 anos da criação da Lei 10.639/2003, que decretou a obrigatoriedade do ensino da História e Cultura Afro-Brasileira nas instituições educacionais do país”, afirma Fabiano Maranhão, assistente na Gerência de Estudos e Programas Sociais do Sesc São Paulo.

Entre os destaques da programação de maio e junho, estão o curso Sobrevivendo no inferno: a obra

de Racionais MC´s, realizado pelo Centro de Pesquisa e Formação do Sesc; o passeio Quilombo Saracura, que parte do Sesc Avenida Paulista em direção ao bairro do Bixiga, na região central da capital paulista; e a apresentação da peça O Avesso da Pele, baseada no romance do escritor Jeferson Tenório, no Sesc Thermas de Presidente Prudente. Na abertura do projeto, dia 13/5, o Sesc Santana realiza a gira de abertura, seguida da apresentação do espetáculo Malungo IXI - música, tempo e afeto

Do 13 ao 20 - (Re)

Existência do Povo Negro

De maio a novembro. sescsp.org.br/do13ao20

O espetáculo O Avesso da Pele, inspirado na obra homônima do escritor Jeferson Tenório, será apresentado no Sesc Thermas de Presidente Prudente.

vitórias,
Matheus José Maria
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No Brasil, aquarelista japonês Takeo Sawada dedicou sua carreira ao ensino da arte para crianças e adultos

DA CEREJEIRA AO FLAMBOYANT

Acervo da Família. Foto: Paulo Miguel
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Meu Sítio (1967 – 1969). Aquarela sobre papel. gráfica

gráfica

Para conseguir lidar com o luto pela perda precoce da mãe, aos 10 anos, o japonês Takeo Sawada (1917-2004) começou a pintar. Ganhou um kit de desenho do pai, na cidade de Yuki, a 100 quilômetros de Tóquio. Participou de duas exposições e, aos 12 anos, conquistou o Prêmio Imperial do governador da província de Ibaraki. Com a promessa de uma vida melhor, decidiu emigrar para o Brasil, então com 16 anos de idade, e seguir os passos dos familiares que se estabeleceram em Rancharia, no oeste paulista.

Sem conhecer a língua portuguesa e os costumes do país, teve ajuda de um tio comerciante e trabalhou em plantações de café e algodão. Sua sensibilidade artística foi aguçada pelos elementos da natureza, e uma árvore frondosa de flores vermelhas foi a que mais chamou sua atenção: o flamboyant. Sawada gostava de admirá-la, pintá-la e fotografá-la pela cidade, num convite à contemplação. Sete décadas depois, o artista nascido na terra das sakuras (cerejeiras) ainda se lembrava dela: “Essa flor que desabrocha no caminho da vida de todos nós”, dizia.

Na década de 1970, residente no Brasil há quase 40 anos, o artista começou a ensinar japonês na Associação Cultural, Agrícola e Esportiva de Presidente Prudente (Acae), onde depois fundou um curso de artes visuais para crianças. Ao longo de três décadas, cerca de 4 mil alunos – incluindo adultos – tiveram aulas com o sensei [mestre ou professor], que se tornou referência em arte-educação. “Frequentei as aulas de Sawada em 1987, aos 25 anos. Lembro-me de sua voz tranquila, dos óculos pendurados por um

cordão e de muitos pincéis e lápis no bolso da camisa”, recorda-se a artista visual, pesquisadora e educadora Carmo Malacrida, uma das curadoras da exposição À Sombra do Flamboyant: Takeo Sawada, em cartaz no Sesc Registro [Leia mais em Infindável viagem].

As aulas do artista incluíam desde passeios ao ar livre a exercícios de técnicas de desenho e pintura no ateliê. Em entrevista a um canal de televisão, Sawada – que também fazia poemas [haikais e tankas], crônicas e escrevia em diários – definiu sua atuação: “Ensinar criança não é para criar artista, é para formar uma boa pessoa, uma pessoa de paz, de boa índole, que possa se dedicar ao Brasil, à sociedade”. Inspirada pelo mestre, Carmo dá aulas de artes para crianças há 22 anos, e diz que aprendeu com ele a ver o mundo de forma poética. “Ele nos preparava para a vida, queria que criássemos livremente. Dizia para não termos medo do vazio do papel, que na folha grande há muito espaço para desenhar e pintar”, conta.

Aquarelista, Sawada dedicou-se a telas figurativas, paisagens coloridas em transformação, naturezasmortas e autorretratos. Suas pinceladas densas tinham a força da caligrafia japonesa. Voltou ao Oriente em 1976 e 1992, onde expôs obras de sua autoria e de alunos – fez o mesmo no Brasil, onde também ganhou prêmios. “Sua obra e pesquisa nos convidam a olhar para a poética do cotidiano”, avalia Valéria Prates Gobato, também cocuradora da exposição. “No dia de sua partida, um aluno resumiu o sentimento de muitos colegas: ‘O que podemos fazer daqui para a frente é não esquecer os ensinamentos do professor’”, lembra Gobato.

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Acervo fotográfico: Takeo Sawada / Reprodução fotográfica: Paulo Miguel 43 | e gráfica
Registro da Escola e Centro Cultural da Colônia Japonesa no Guarujá (SP), na década de 1950. Acervo da Família. Foto: Paulo Miguel Norte do Paraná (1986). Guache sobre papel. Sem título (1963). Aquarela sobre papel.
FLAMBOYANT NA INFINDÁVEL VIAGEM, FLORESCE VERMELHO O FLAMBOYANT
Acervo da Pinacoteca de Presidente Prudente / Foto: Paulo Miguel
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Panorama da Estação de Presidente Prudente e Viaduto (1981). Aquarela sobre papel.

MÃE SONHANDO… NO DIA DAS MÃES, COM A MÃE QUE NÃO CONHECI

Vista de Alvares Machado (1979). Técnica mista sobre papel. Praia Massaguaçu (1986). Aquarela sobre papel. Acervo da Família. Foto: Paulo Miguel Sem título (1995). Guache sobre papel.
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Acervo da Família. Foto: Paulo Miguel gráfica Paisagem Presidente Prudente (2000). Aquarela sobre papel. Acervo da Família. Foto: Paulo Miguel

INFINDÁVEL VIAGEM

Em cartaz no Sesc Registro, exposição narra, em imagens, vida e obra do artista japonês

As várias facetas de Takeo Sawada inspiraram o projeto Infindável Viagem: Takeo Sawada – artista, educador, realizado entre 2021 e 2022 pelo Sesc Thermas de Presidente Prudente, e do qual fez parte a exposição À Sombra do Flamboyant, que agora ocupa o Sesc Registro, no Vale do Ribeira. Dividida em cinco núcleos, a mostra reúne cerca de 180 obras – entre pinturas, desenhos, fotografias, documentos, registros biográficos e livros, bem como trabalhos de

alunos. Além da exposição, que vai até o fim de julho, também estão previstos ateliês e oficinas artísticas, contações de história e apresentações de música e dança.

“Takeo Sawada foi um artista e educador apaixonado por cuidar, incentivar e desenvolver as novas gerações. Com sua paixão por educar através das artes, sempre procurou provocar nos seus alunos uma reflexão sobre o desacelerar, o contemplar e a busca do bem-estar”, destaca Jefferson Valentin, coordenador de programação do Sesc Registro.

O projeto Infindável Viagem abarcou, ainda, ações como formação de professores da rede pública, o documentário Takeo Sawada e a Criança do Próximo Passo, produzido em parceria com o SescTV, um intercâmbio artístico com apoio da Fundação Japão e oficinas de arte para crianças.

para ver no sesc / gráfica

REGISTRO

Exposição À Sombra do Flamboyant: Takeo Sawada

Curadoria de Carmo Malacrida, Valéria Prates

Gobato e Valquíria Prates. Visitação até 30/7. Terça a sexta, das 13h30 às 21h30. Sábado, domingo e feriado, das 10h30 às 18h30. GRÁTIS. sescsp.org.br/registro

SESCTV

Takeo Sawada e a Criança do Próximo Passo

Documentário dirigido pelo jornalista Hossame

Nakamura reúne alguns dos principais momentos da vida e da produção de Takeo Sawada, com depoimentos de filhos, alunos e amigos.

Disponível em: sesctv.org.br/doc

Pantanal (1998). Aquarela sobre papel.
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Acervo da Família. Foto: Paulo Miguel

crianças / para ver no sesc

BRINCANTES POR NATUREZA

Semana Mundial do Brincar reúne oficinas, cursos, debates e outras atividades que valorizam o brincar ao ar livre

Desde 1999, celebra-se o Dia Internacional do Brincar em 28 de maio. A data foi reconhecida pelo Unicef (Fundo das Nações Unidas para a Infância) e hoje é comemorada em mais de 40 países, ao longo de uma semana. Neste mês, a Semana Mundial do Brincar é realizada entre os dias 20 e 28 pela Aliança pela Infância, rede mundial que promove o evento no Brasil desde 2009 – e desde 2013, em parceria com o Sesc São Paulo. A edição deste ano tem como tema A Natureza no Brincar, buscando incentivar o livre brincar em áreas verdes, como parques, praças, quintais, hortas e jardins – além de outros espaços abertos, como praias e rios. Dessa forma, as crianças podem descobrir o mundo, desenvolver suas potencialidades e aprender seus limites, além de respeitar as diferenças e entender a importância da sustentabilidade ambiental.

Camile Lopes Magalhães, assistente técnica da Gerência de Programas Sociais do Sesc São Paulo, explica

que é por meio das brincadeiras que a criança se apresenta, se reconhece e comunica ao mundo seus desejos e impressões.

“Portanto, a Semana Mundial do Brincar é um convite à imersão e à ressignificação de um brincar que respeita a natureza presente nas infâncias. O tema escolhido para este ano reforça essa expressão genuína da criança, que é capaz de transformar qualquer local num espaço de brincar”, conclui.

Confira alguns destaques da programação:

24 DE MAIO

Praça dos afetos: iniciativas em espaços públicos que favorecem o brincar

Roda de conversa propõe intersecções entre cidadania, infâncias, direito à cultura, autogestão comunitária e o brincar como direito. Com

Mineia Oliveira (Brincando na Kebrada), Lívia Arruda (Motoca na Praça) e Catarina Cervelleira (Praça Elis Regina).

Dia 20/5. Sábado, das 14h às 16h. GRÁTIS.

ITAQUERA

Apartamentando! Trazendo elementos da natureza para ambientes fechados

Oficina propõe experiências que possam ser replicadas em casa pelas crianças e suas famílias, usando materiais naturais adequados a pequenos espaços. Com o artista visual Fábio Amadeu. Dia 25/5. Quinta, das 9h30 às 11h. Dia 27/5. Sábado, das 11h às 12h10 e das 12h30 às 13h40. Dia 28/5. Domingo, das 11h30 às 12h40 e das 13h às 14h30. GRÁTIS.

CAMPO LIMPO

Brincar nas quatro estações Bebês, crianças e adultos cuidadores regam plantas, fazem bolhas de sabão e procuram bichinhos no jardim. Ocupação com a educadora Evelyn Dalla Marta. Dia 27/5. Sábado, das 10h30 às 12h30. GRÁTIS.

JUNDIAÍ

Uma casinha no quintal Espaço ao ar livre com uma casinha criada a partir de técnicas de bioconstrução, além de outros recursos para brincar. De 20 a 28/5. Terça a domingo, das 10h30 às 12h e das 15h às 17h. GRÁTIS.

Saiba mais: sescsp.org.br/ semanamundialdobrincar

Brincadeira ao ar livre no Quintal do Sesc Ipiranga.
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Rafaela Queiroz

Conferir às crianças a possibilidade de realizar sua essência de brincar de maneira espontânea, descobrindo o mundo, aprendendo sobre seus limites e potências, construindo valores de sustentabilidade ambiental e respeito a todas as diferenças.

PROGRAMAÇÃO COMPLETA

sescsp.org.br/semanamundialdobrincar

#SescnaSMB2023

educação DEMOCRACIA E

Espelho de uma comunidade, a escola reflete tanto as aspirações quanto as contradições que acompanham a vida de crianças e jovens do lado de fora de instituições de ensino. Casos recentes de violência física e moral a professores e alunos seriam, portanto, reflexos do autoritarismo, da intolerância e de radicalismos em diferentes esferas da sociedade brasileira. Diante disso, de que forma seria possível restabelecer a relação intrínseca entre educação e democracia para a mudança desse cenário?

Para o pedagogo e filósofo Fernando José de Almeida, precisamos fazer alguns questionamentos.

“Qual o papel social da escola quando ela exerce seu caráter democrático por meio dos currículos escolares, dos equipamentos arquitetônicos, de seus profissionais formadores e de sua força de rede? É possível explicitá-lo e, a partir da clareza de seu conceito, formar pessoas e instituições

para a vivência da democracia? À escola e ao seu aparato pedagógico e científico cabem, sim, propor a vivência crítica dos valores da democracia, durante toda a trajetória educativa das crianças e jovens”, defende.

Coordenador-geral da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, o cientista social Daniel Cara acredita que “se as injustiças e as desigualdades permanecerem como as principais marcas da educação nacional, diferenciando as condições de acesso e permanência dos estudantes por local de moradia, renda, questões étnico-raciais, de identidade de gênero e de orientação sexual, entre outras, jamais as políticas de educação conseguirão colaborar com o fortalecimento da democracia”.

A fim de trazer novos contornos para a relação entre educação e democracia, os professores Fernando José de Almeida e Daniel Cara levantam reflexões e propostas neste Em Pauta

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Será a democracia ensinável?

POR FERNANDO JOSÉ DE ALMEIDA

O domingo de 8 de janeiro de 2023 foi uma experiência viva, transmitida online, dos descalabros e ensandecimentos de pessoas em guerra contra a sua própria nação. Os símbolos de vida, de coesão social, de identidades nacionais foram terroristicamente vandalizados por um grupo cego de ódio contra moinhos de suas imaginações, cheias de conteúdos conspiratórios.

Repetição da pantomima vista em Washington (EUA), faz dois anos, abriu-nos, a todos os brasileiros, a reprodução da história como farsa. Nada se viu neste episódio que lembrasse um movimento das primaveras do início deste século, que também em nada resultaram a não ser em esvaziamento de uma luta sem causa, sem projetos, construída a partir da virtualidade das redes e de suas bolhas.

O cerne da questão em todos eles foi trazer para nós a percepção e o questionamento de um antiquíssimo sonho humano: a democracia! Presenciamos um ato de antidemocracia. Os mais de 2.500 anos de sua evolução, redesenhos, experiências, contramarchas e derrocadas fizeram-nos, no domingo fatídico, lançar num vórtice de dúvidas o sentido da democracia. O que de fato ela é e como é vista por todos? Há um consenso mínimo sobre o tal “governo do povo”? Eu julgava que sim.

A ideia da minha geração dos anos de 1940-1950, pós-Segunda Guerra, era de que a democracia fosse um bem implícito, nascido no dia do parto de cada um de nós, depois de termos visto os horrores das guerras. Nasceria conosco o conceito espontâneo, puro, intuitivo e mandatário da democracia como valor.

NÃO É. Trata-se de um conceito dos mais sofisticados e fenecíveis da história da cultura, ocidental e oriental. Norte ou Sul. Tem três mil anos de construção, desconstrução, desaparecimentos seculares e retor-

nos sangrentos e promissores – exatamente pela sua perspectiva de fazer desaparecer a desigualdade. Não só inexiste o consenso sobre a vida democrática, como, por causa de sua rejeição, vemos combates cruentos de guerras contínuas. Longa é sua história.

Uma das sementes da democracia vai nascer na tragédia grega, nos séculos 6 e 5, com a criação dos coros do teatro. Eles comentavam, com voz popular e crítica, os desarranjos das nobrezas, generais e deuses gregos sempre metidos em crimes – parricídio, fratricídio, matricídios sem fim. O povo – na forma de coro e de pessoas simples, sem o charme dos atores representantes das classes belas e ricas e poderosos reis – vinha à cena para ter voz e trazer a sua visão. A sanguinolência devia acabar nesse ambiente das tramas sórdidas do poder, recomendavam os coros, a partir de seu olhar de povo.

O conceito de democracia é complexo e volátil, historicamente. Suas práticas, que se desenvolveram inicialmente no cristianismo perseguido no Império Romano, vão desaparecer poucos séculos depois em nome das alianças propostas para a propagação do império e da fé. Tal aliança vai atribuir o poder do Rei à sagração direta pela vontade divina – mediatizada pelas Igrejas. A democracia fica, assim, na Europa, sepultada durante séculos. Sua reconceituação reaparecerá treze séculos mais tarde.

Só Maquiavel (1469-1527) vai, no início do Renascimento, quebrar tal lógica da democracia divina. Sua obra descreve os esquemas de poder, tais como eles concretamente se constituem. Destaca de forma especial como se operam os mecanismos de poder, nascidos do desejo dos poderosos de gerar pressão e controle, diferentes daqueles do povo que quer liberdade e segurança. Maquiavel vai partir do princípio de que a sociedade não é um grupo buscando o bem comum, dentro de um agrupamento coeso e indiviso. A sociedade é um enorme e diverso conglomerado que tem interesses antagônicos: opressão e riqueza versus liberdade e segurança.

Entre a Idade Média, o Renascimento e a configuração atual das formas de produção das riquezas e a distribuição do poder político, muitas coisas mu-

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daram. As modalidades de democracia explodem em múltiplas faces no mundo e desaparecem com certa rapidez. Simplificadamente, destacam-se as erupções democráticas na Inglaterra, em 1640, as independências dos Estados Unidos, a Revolução Francesa de 1789, a Revolução Russa de 1917, e a proclamação dos Direitos Humanos, em 1948. Momentos ímpares que desapareceram rapidamente.

Até aqui veem-se as construções do conceito como algo frágil, objeto de disputas constantes, e sujeitas a histórias, territórios, condições econômicas e culturais distintas e lábeis. Portanto, a família, os partidos, os sindicatos, as religiões, os meios de comunicação, todos disputam o domínio e a imposição de seus conceitos de democracia, enquanto liberdade, igualdade e justiça. Tal disputa é feita também por valores impostos pela economia.

E é aqui que entra a educação formal. Que papel social tem a escola quando exerce seu caráter democrático por meio dos currículos escolares, dos equipamentos arquitetônicos, de seus profissionais formadores e de sua força de rede? É possível explicitá-lo e, a partir da clareza de seu conceito, formar pessoas e instituições para a vivência da democracia? À escola e ao seu aparato pedagógico e científico cabem, sim, propor a vivência crítica dos valores da democracia, durante toda a trajetória educativa das crianças e jovens. Tal afirmação se ancora em dois pressupostos.

Um: outras instituições, como a família, os sindicatos, as religiões e as redes de comunicação, têm compromisso lateral com tal formação. O compromisso diuturno e orgânico com o tema está presente na escola formal e em seu projeto cidadão, científico e cognitivo de longa duração.

Dois: o tempo escolar lhe atribui condições de vivência da complexa rede de formação de valores.

Pensando na formação obrigatória no Brasil, ela tem em média 15 mil horas de presença na escola ou em suas atividades, contando os 15 anos de escolarização. Somam-se aí a educação infantil e os ensinos fundamental e médio.

Não se trata de excluir outras instituições, elas são corresponsáveis. A educação tem papel hegemônico inerente às finalidades da aprendizagem escolar, exercida pelos seus conhecimentos interdisciplinares, pela intencionalidade de formação de valores para a justiça, a equidade, a fraternidade, a cultura da paz e a ética. Não se trata de criar uma disciplina “democracia”, mas de promover metodologias ativas e democraticamente participantes para o próprio processo da construção do conhecimento. Professores, alunos e a comunidade, aí inserida.

As vivências democráticas possíveis durante os 15 anos da educação básica (sem contar a educação superior) são amplas e fundamentais. Saber ouvir, aguardar seu momento de fala, argumentar logicamente, ser cumpridor de seus compromissos com o grupo e com a comunidade, produzir análises sociais de macroproblemas históricos, aprender a trabalhar e a respeitar os grupos, ter sensibilidade para com o bem comum, valorizar o diferente. A sabedoria ética, estética e política são componentes da formação do cidadão. O nosso compromisso é não apenas construir um projeto de vida com cada aluno, mas construir um projeto de sociedade com as novas gerações.

em pauta

Fernando José de Almeida é pedagogo, filósofo e doutor em tecnologias na educação pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).

Não se trata de criar uma disciplina “democracia”, mas de promover metodologias ativas e democraticamente participantes para o próprio processo da construção do conhecimento
É docente no Programa de Pós-graduação em Educação: Currículo da PUC-SP. 63

A escola pública pela democracia

Já no artigo 206, são afirmados os princípios da educação nacional. Vou destacar apenas três dos nove princípios, por serem tão descumpridos quanto fundamentais para o estabelecimento das escolas públicas como máquinas da democracia: a “igualdade de condições para o acesso e permanência na escola”, a “garantia de padrão de qualidade” e a “gestão democrática do ensino público”. Por que elegi esses três princípios?

Anísio Teixeira (1900-1971), um dos maiores defensores da educação pública brasileira, afirmou em 1936: “Só existirá democracia no Brasil no dia em que se montar no país a máquina que prepara as democracias. Essa máquina é a da escola pública”. Estamos há quase 87 anos dessa afirmação e, infelizmente, ela ainda não se tornou realidade. O que é preciso para mudar a (nossa) história?

O DIREITO À EDUCAÇÃO E AS INJUSTIÇAS E DESIGUALDADES BRASILEIRAS

A educação é um direito humano estabelecido pelo artigo 26 da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948. Segundo o texto, todos os seres humanos têm direito à educação e ela deve ser gratuita pelo menos nos graus elementares e fundamentais. A educação elementar deve ser obrigatória e a educação técnico-profissional deve ser acessível a todas e todos, bem como a educação superior.

Segundo a Declaração de 1948, a educação deve ser orientada ao pleno desenvolvimento da personalidade humana e ao fortalecimento do respeito pelos direitos humanos e pelas liberdades fundamentais. Ela deve promover a compreensão, a tolerância e a amizade entre todos os povos, grupos raciais e religiosos, colaborando com a construção e manutenção da paz.

No Brasil, é o artigo 205 da Constituição Federal de 1988 que determina a tripla missão da educação nacional. Em diálogo com a Declaração de 1948, nossa Carta Magna estabelece que a educação deve visar o pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.

Em primeiro lugar, se as injustiças e as desigualdades permanecerem como as principais marcas da educação nacional, diferenciando as condições de acesso e permanência dos estudantes por local de moradia, renda, questões étnico-raciais, de identidade de gênero e de orientação sexual, entre outras, jamais as políticas de educação conseguirão colaborar com o fortalecimento da democracia. Pelo contrário, se tudo permanecer como está, a educação acaba por reproduzir injustiças e desigualdades.

É necessário dar um exemplo: quase sempre, um estudante de uma escola localizada no centro urbano de uma cidade brasileira tem melhores condições de acesso e permanência à escola do que um aluno da periferia desse mesmo município. Uma estudante de Porto Alegre (RS) está mais próxima de ter consagrado seu direito à educação do que um aluno com deficiência de uma pequena cidade do interior do Rio Grande do Sul, especialmente se ele viver no campo. E poderíamos investir páginas e mais páginas deste texto descrevendo essa revoltante realidade. O fato é que sob injustiças e desigualdades no acesso e permanência à escola, não há como a educação colaborar com o fortalecimento da democracia.

Nesse sentido, o mesmo fenômeno de injustiças e desigualdades no acesso e permanência à escola também se reproduz no princípio da garantia do padrão de qualidade. Para ficar apenas no exemplo mais clássico: alunos de escolas privadas têm acesso a um padrão de qualidade muito superior ao observado em milhares de escolas públicas pelo país afora.

Diante do problema, a Campanha Nacional pelo Direito à Educação conseguiu mobilizar parlamenta-

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res para incluir o Custo Aluno-Qualidade na Constituição Federal de 1988. O CAQ é um mecanismo desenvolvido pela Campanha, que determina que toda escola pública deve ter profissionais da educação recebendo um piso salarial, uma política de carreira, e todas as escolas públicas devem ter número adequado de alunos por turma, biblioteca, sala de leitura, brinquedoteca para as crianças, laboratórios de ciências, quadra poliesportiva coberta, internet banda larga, merenda nutritiva, transporte escolar digno e acesso à água potável e saneamento básico. Contudo, o CAQ – como tudo o que há de melhor na Constituição Federal de 1988 – ainda não saiu do papel. Nesse sentido, é preciso lutar.

O QUE FAZER?

Um caminho fecundo para o Brasil enfrentar todas as formas de injustiças e desigualdades na educação é tornar efetivo um princípio fundamental: a gestão democrática da escola pública. A gestão democrática permite que todos os envolvidos na escola tenham voz e possam contribuir para a construção de um ambiente inclusivo, justo, participativo, transparente e comprometido com a qualidade do ensino.

Fundamental para garantir uma educação de qualidade, e parte essencial do sucesso educacional de países como Finlândia – para citar apenas um exemplo –, segundo pesquisas, a gestão democrática tem uma outra vantagem: ela tende a determinar um processo promissor de (re)discussão curricular, me-

lhoria das condições para o ensino-aprendizagem na escola e, normalmente, leva a comunidade escolar ao debate sobre as injustiças e desigualdades existentes no bairro, na cidade, no estado e no país – em processo inverso ao que ocorre com a interação via redes sociais.

Obviamente, a gestão democrática das escolas é um caminho promissor, mas não suficiente para mudar o Brasil. Inclusive, qualquer resultado educacional leva tempo para ser percebido. Portugal, para citar apenas um caso, só colhe agora os frutos da prioridade dada à educação em 1974, no contexto da Revolução dos Cravos. Contudo, uma coisa é certa: a prática democrática nas escolas, por meio de grêmios estudantis, associações de pais e mestres e de conselhos escolares, compõe uma trilha pedagógica cidadã com potencial de formar uma geração de jovens (e também de adultos) conscientes dos valores da democracia e aptos a agir democraticamente.

Ou seja, a própria participação democrática pode colaborar com a democratização do Brasil. E não há melhor lugar para o exercício e a conscientização da democracia do que a escola pública.

Daniel Cara é cientista social e mestre em ciência política pela Universidade de São Paulo (USP), professor da Faculdade de Educação da USP e coordenador-geral da Campanha Nacional pelo Direito à Educação.

A gestão democrática permite que todos os envolvidos na escola tenham voz e possam contribuir para a construção de um ambiente inclusivo, justo, participativo, transparente e comprometido com a qualidade do ensino
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ASFALTO flor do

Neide Santos no Parque Santo Dias, no Capão Redondo, zona sul de São Paulo, onde também são realizadas ações do Projeto Vida Corrida.
Adriana Vichi

Marineide Santos Silva chegou à capital paulista na caçamba de um pau de arara, quando criança, na década de 1960. Depois de desembarcar no Terminal Rodoviário da Luz, que funcionou até 1982 na Praça Júlio Prestes, no Centro de São Paulo, ela foi parar numa oficina de costura, onde começou a trabalhar, até que o poder público, ao descobrir seu paradeiro, a realocou em Cotia (SP), na casa de um casal de japoneses cujo sonho era ter filhos. Eles se tornaram seus tutores até ela encontrar sua família biológica. Foi a partir desse momento que, aos 12 anos de idade, Neide entrou na escola e, inspirada por um professor de matemática, deu largada a um novo capítulo de vida dedicado ao esporte.

A prática de atividades físicas, principalmente da corrida, foi decisiva na vida de Neide Santos, que precocemente vivenciou perdas – a do marido, em 1979, e a do filho mais velho, Mark, em 2000, em situações de violência no Capão Redondo, zona sul de São Paulo, onde mora até hoje com a família. Decidida a também ajudar outras mulheres a superar traumas e dificuldades como as suas, criou, em 1999, o Projeto Vida Corrida. De lá para cá, a iniciativa se transformou em organização não governamental e já mudou a

realidade de milhares de pessoas por meio da prática esportiva em espaços urbanos públicos.

Atualmente, o Projeto Vida Corrida atende 800 pessoas, metade mulheres e a outra metade crianças (55% são meninas e 45% são meninos), emprega 22 funcionários e soma mais de 30 voluntários, entre parceiros, colaboradores e mentores de dentro e fora da comunidade, como gestores de grandes empresas. Mãe, avó e bisavó, a presidente-fundadora e voluntária da ONG Projeto Vida Corrida é a convidada deste Encontros, compartilhando conosco como o esporte pode, de fato, mudar vidas.

FAMÍLIA

Nossa família no Capão Redondo era diferenciada. Eu era a única mulher atleta em corridas de rua na cidade de São Paulo. Meus filhos praticavam esporte. A gente saía daqui, atravessava a ponte e ia para o [Centro Esportivo Municipal] Joerg Bruder, para o Sesc Interlagos, que era o único polo esportivo que tínhamos na década de 1970 por perto. E o sonho do meu filho Mark [que foi morto aos 21 anos de idade após reagir a um assalto, em 2000] era que nossa comunidade pudesse vivenciar isso que nós vivenciamos e que a gente tanto

encontros

ama. Eu achei a minha tão sonhada felicidade motivando outras pessoas à prática esportiva, porque o esporte transforma vidas e, para mim, aqui no Capão Redondo, o esporte salva vidas, como salvou a minha e a de centenas de jovens. Eu costumo dizer que a mesma comunidade que tirou a minha família [Neide também perdeu o marido, em 1979] me deu milhares de filhos para cuidar.

ESCOLA

Comecei minha prática esportiva influenciada por um professor de matemática que era apaixonado por esportes. Ele me apresentou várias modalidades que, até então, eu não conhecia: handebol, vôlei e queimada. No campeonato colegial, no Capão Redondo, eu fui no Joerg Bruder, onde as escolas se encontravam para disputar várias modalidades, e aí faltou uma menina no revezamento 4 por 100m. O professor me tirou do handebol, e disse que eu era muito rápida em quadra, que eu ia tirar de letra. Desde então, nunca mais parei de correr. É por isso que hoje, no Vida Corrida, a gente oferece várias modalidades, porque eu acredito que toda criança tem que vivenciá-las até chegar num ponto em que ela vai gostar de uma e falar: “Essa será a paixão que vou levar para o resto da vida”. Mas também acredito muito no brincar, no lúdico.

Criadora do projeto Vida Corrida, Neide Santos muda a realidade de mulheres e crianças da periferia de São Paulo por meio do esporte
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encontros

ESPORTE

A primeira vez que eu assisti a uma olimpíada pela TV, em preto e branco, foi na década de 1970. Ali eu vi a humanidade. Tinha países que estavam em guerra e seus representantes estavam nas mesmas raias, nas mesmas pistas, nas quatro linhas, nos tatames. Isso é a humanidade: todo mundo com o único propósito de jogar os jogos olímpicos. Desde muito cedo, o esporte foi entrando e enraizando. Ali estavam todas as crenças, todos os credos. Desde muito cedo, enxerguei um ser humano na minha frente. Sempre um ser humano.

COMEÇO

O Vida Corrida surgiu na década de 1990. Um jornalista me entrevistou na [Corrida de] São Silvestre e me perguntou de onde eu vinha. Na hora, ele anunciou que eu era a única mulher da periferia de São Paulo correndo uma São Silvestre. No dia seguinte, na comunidade, eu fui à quitanda e me falaram: “Eu te vi ontem na TV. Você é atleta!”. Expliquei que nunca fui uma atleta de alto rendimento, mas em 1975 as mulheres correram a São

Silvestre pela primeira vez, corrida de rua, e foi quando falei assim: “Então, não vou parar de correr na rua”. Depois disso, uma senhora de 60 anos, Maria Gonçalves, que nunca tinha corrido na vida, quis correr comigo. Ela tinha um excelente condicionamento, veio da roça, da lavoura, do trabalho braçal. Foi a primeira “crossfiteira” que eu conheci. Não demorou muito tempo para Maria Gonçalves se tornar uma maratonista. Em 2012, ela foi a única mulher de 75 anos a cruzar a linha de chegada da Maratona Internacional de São Paulo.

TRANSFORMAÇÃO

Depois dela, vieram várias mulheres querendo correr. Eu digo que não fui eu que me tornei inspiração, foi Maria Gonçalves, porque elas me falavam: “Se essa mulher, nessa idade, consegue todas essas proezas, por que eu também não posso?”. E foi assim que começou: uma mulher inspirando outra, uma compartilhando com a outra os benefícios da atividade física, o quão importante era e quanto agregava na vida delas. Além disso, era ir além daquela rotina diária nas comunidades. A mulher era

aquela que tinha que levantar cedo, preparar o café da manhã, o almoço, o lanche da tarde e o jantar. Imagine, num domingo, essa mulher sair de casa para uma corrida, não preparar o café da manhã e chegar na hora do almoço? Elas começaram a descobrir outras coisas que eram importantes. Até uma delas veio me falar: “Cheguei em casa e meu marido tinha preparado o almoço para toda a família”. Depois, elas me falaram: “Vamos atender as nossas meninas, os nossos filhos?”. E foi assim que começou um simples trabalho na comunidade. Comecei a atender às terças e quintas, e aí aumentou o número de crianças no projeto.

TROFÉU

Para nós, a maior medalha que uma mãe favelada, uma mãe periférica pode ter é ter um filho digno e honesto. E se ele for um atleta [palmas], vamos celebrar mais ainda. Lógico que a gente quer ver um filho nosso jogando basquete, um dia, na NBA, mas são poucos que vão chegar lá, né? Hoje, parte dos nossos jovens e adolescentes estão na universidade – uma empresa esportiva paga a universidade e

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O QUE EU FAÇO VEM DE TUDO QUE ME FOI NEGADO, QUE EU NÃO TIVE DIREITO E ACESSO, MAS EU
VEJO
QUE HOJE POSSO PROPORCIONAR ISSO, TRANSFORMAR A VIDA DE OUTRAS PESSOAS

uma ajuda de custo para mantêlos, para que tenham tempo de fazer sua prática esportiva. Olha quanta conquista para uma mulher que terminou os estudos aos 59 anos. Essa mulher que já falou na Assembleia Geral da ONU.

PERCURSO

Quando começou o projeto, não tinha ideia [do que aconteceria]. Imaginava que fosse durar algum tempo, mas que meu futuro seria ter uma lojinha na comunidade, costurando minhas próprias peças e vendendo. Só que deu uma guinada de forma extraordinária com o passar do tempo. Depois de 10 anos, veio o primeiro patrocínio, que permanece até hoje. Depois vieram leis de incentivo, e o Sesc São Paulo nos convidando para palestras e mais participações. Eu sou muito curiosa. Aprendi a ler, e quando eu cheguei na tão sonhada universidade, descobri que não preciso mais dela. Tenho uma grande virtude: quando eu não sei algo, falo: “Por favor, me ensina? Eu quero aprender”. Peço ajuda para os universitários, os doutores e professores.

AVANTE

Eu vivi tudo isso: desde morar num barraco de favela, na beira do córrego, conviver com ratos, mas sempre com sonhos. O que eu faço vem de tudo que me foi negado, que eu não tive direito e acesso, mas eu vejo que hoje posso proporcionar isso, transformar a vida de outras pessoas. Hoje eu tenho jovens que estão trabalhando e estudando no Canadá. Hoje eu vejo nossas mulheres irem para uma universidade e sonhar, um

dia, trabalhar como professora de educação física no projeto. Mulheres que resolveram empreender, ou seja, que passaram de cuidar dos filhos dos outros para empreender na comunidade, para ter tempo de fazer uma prática esportiva, levar seu filho à escola e estar mais perto do convívio da família. Por que não? “Cada favelado é um universo em crise. Quem não quer brilhar? Ninguém aqui quer ser coadjuvante de ninguém”, são frases dos Racionais MC's [versos da música Da ponte pra cá]. Porque a vida é um jogo onde vencer, para nós, é a única saída.

LAÇOS

O afeto é revolucionário, porque aqui a gente cria um ambiente seguro onde as pessoas são ouvidas, respeitadas. As relações no entorno, o respeito às particularidades, o investimento nas potencialidades de cada um são muito importantes. Na comunidade, nós temos laços sociais, o que é fundamental. Nós somos, estamos e fazemos como, por e para pessoas. São

laços de solidariedade, laços de cidadania, laços afetivos. Agindo assim, nós conseguimos impactar governos, empresas e a sociedade civil. E se faz necessário contar essas histórias e falar do passado. Porque para escrever o futuro, precisamos conhecer o passado e cuidar do presente. Eu costumo dizer: “Não mude seus sonhos, mude o mundo”. Nada pode parar o que podemos fazer juntos. E o Vida Corrida leva essa bandeira: que nenhum dos nossos atendidos ficará sem atividade física em momento algum.

Ouça, em formato de podcast, a conversa com a empreendedora social Neide Santos, que esteve presente na reunião virtual do Conselho Editorial da Revista E, no dia 16 de março de 2023. A mediação é de Giovanna Benjamin Togashi, doutora em ciências pela Universidade de São Paulo (USP) e pesquisadora do Centro de Pesquisa e Formação do Sesc São Paulo.

Bella Santos 69 | e encontros
Atividade no espaço da ONG Vida Corrida, onde são atendidas 400 crianças.

COSQUINHA NO PEITO

e | 70 inéditos
POR ELIZANDRA SOUZA ILUSTRAÇÕES AMANDA LOBOS

Há convites que te reconectam ao seu propósito

Solicitação de sua presença...

O que veio fazer aqui nessa existência?

Seu tempo como ele tem sido gasto?

Dentro de si tá aquele limbo

Musgo em volta de tuas pedras

Aquela paisagem entre passado e futuro...

Há convites que te lambem as feridas ...

Muda o dia, a tarde, a noite

Talvez uma vida inteira

Há tanto esquecimento de si mesma e de tudo

Que um convite te adverte da boa companhia que se é

Do bom trabalho que se faz

Da construção, do caminho e dos passos que tem dado

A lembrança de ser lembrada é cosquinha no peito

MORINGA SAGRADA

Pela manhã respiro fundo Encontro teu beijo Abraço abundante

Nossos pontos de forças

Mistura cabocla de mil encantos

Meus caminhos nas suas estradas Esculpidas por suas mãos

Sou moringa sagrada

Reservatório de água fresca

Dentro de minhas pernas

Vem tomar café comigo?

JARDIM FLORIDO

Plantados em cada parte de mim, teus Olhos

Deitada em teu peito

Acordo com o canto dos pássaros

Abraçada por teu querubim

Jardim florido dos meus dias

Na beira da cama

Rega-me com abundantes águas

Poda-me as folhas murchas, Para que nasçam novas

Em tuas mãos, sou terra molhada

Sementes de um amor chegando...

71 | e

inéditos

BORDADO DO MEU VESTIDO

O que fazer quando uma irmã morre?

Onde vamos guardar nossas brincadeiras

Nossas risadas, nossos bons dias...

A boneca velha que partilhávamos

O que fazer quando uma irmã morre?

E agora as palavras que não disse que pote eu guardo?

Os abraços que não dei em que frasco armazeno?

Nossas gargalhadas, podemos espalhar no mundo, como purpurinas?

O que fazer quando uma irmã morre?

A vida é como se a linha acabasse

Ou melhor se a linha saísse da agulha e se apartasse

Ficando só o tecido, agulha e a linha

O que fazer quando uma irmã morre?

Queria costurar seu sorriso no bordado do meu vestido

Assim toda vez que eu girar, seu sorriso rodopiaria comigo

Entregaria todo ouro e prata para você aqui

Quando vamos ter tudo no mesmo espaço novamente...

O que fazer quando uma irmã morre?

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CARTA DE AMOR ÀS MULHERES NEGRAS

Eu sei tem dias que é difícil até acordar Brasil, um país que odeia meninas, mulheres, mães negras ... Cada dia uma notícia triste de uma partida Há corações partidos em todas as partes Nosso corpo exposto, abusado ou abduzido

Escrevo às mulheres negras que se permitam Saber quem são, amar quem quiser Caminhar para todas as partes

Abrir todas as portas

Se preciso for arrombar todas as trancas

Há gritos silenciados de muitas gerações

Cabe a ti mulher negra dessa geração

Libertar todas as dores, destralhar todos os traumas

É preciso liberar espaço para caber amor Essas toneladas de dores precisam ser distribuídas para que carregue só o que for seu...

Eu sei como dói ser arrastada como Cláudia, Assassinada como Marielle Amordaçada como Anastácia

Oprimida como Luana

Mas também sei como nos fortalecer com Sueli, Conceição, Débora, Lia de Itamaracá, Mães da Sé ...

Escrevo para lembrar que não somos apenas nossas dores e nossas forças, somos vulcões em erupções, mas também a rebeldia da flor que despertou, bela e cheirosa ...

Para as mulheres negras flores em vida...

Elizandra Souza (@elizandra_mjiba) é escritora, jornalista, poeta e integrante do Sarau das Pretas. Autora de Quem pode acalmar esse redemoinho de ser mulher preta? (2021), Filha do fogo – 12 contos de amor e cura (2020) e Águas da Cabaça (2012). É editora das publicações do Coletivo Mjiba e coorganizadora de Narrativas Pretas - Antologia Poética Sarau das Pretas..

Amanda Lobos (@maisdeumlobo) é designer e ilustradora capixaba, nascida em 1999. Premiada no Brasil Design Award 2021, atua como freelancer desde 2016, fazendo desenhos manuais e digitais.

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depoimento

DE MACABÉA A PACARRETE

Prestes a celebrar 60 anos de vida, a atriz e diretora paraibana Marcélia

Cartaxo reflete sobre protagonismo feminino, estereótipos e maternidade

POR LUNA D’ALAMA

e | 74

depoimento

Filha de uma costureira com um agricultor, Marcélia Cartaxo nasceu e cresceu em Cajazeiras, no interior da Paraíba. Aos 12 anos, encontrou o teatro e, de maneira improvisada, na rua, revelou-se numa trupe que percorreu o país. Foi nessa itinerância, em São Paulo, que a atriz foi descoberta, aos 19 anos, pela cineasta Suzana Amaral, que a convidou a interpretar a protagonista Macabéa no filme A hora da estrela (1985), baseado na obra homônima de Clarice Lispector (1920-1977). Em seu papel de estreia na tela grande, Marcélia foi indicada ao prêmio de melhor atuação no Festival Internacional de Cinema de Berlim, na Alemanha, em 1986 – e venceu, trazendo um Urso de Prata para o Brasil.

Depois de um período em São Paulo (SP), morou com a amiga e atriz Rosi Campos, residiu no Rio de Janeiro (RJ), e hoje vive em João Pessoa (PB). Desde o longa-metragem que a consagrou, vem trabalhando em dezenas de outras obras premiadas, como Madame Satã (2003) e O céu de Suely (2006), ambas dirigidas por Karim Aïnouz, além de Batismo de sangue (2006, de Helvécio Ratton), Pacarrete (2019, de Allan Deberton), Helen (2021, de André Collazzo) e A mãe (2022, de Cristiano Burlan).

Pelo papel em Pacarrete, Marcélia foi eleita como melhor atriz nos festivais de cinema de Gramado, Los Angeles e Vitória, além de conquistar prêmios no Festival Sesc Melhores Filmes e no Grande Prêmio do Cinema Brasileiro. E, pela

Maria de A Mãe, levou estatuetas no Festival de Cinema de Gramado e de Vitória, em 2022. Na televisão, a atriz participou de novelas da Manchete e em Mico preto (1990), da Globo. Em 2003, Marcélia incursionou pela direção, com o curta-metragem Tempo de ira, obra que entrou na seleção de Gramado. Este ano, estará na série Cangaço novo, da plataforma Amazon Prime Video. Na produção, gravada na Paraíba e no Rio Grande do Norte, ela interpreta uma líder social, tia de um dos protagonistas. “É como se fosse um Robin Hood nordestino: a gente rouba dos ruralistas para dar aos pobres”, resume. No ano em que completa seis décadas de vida (27 de outubro), Marcélia fala sobre momentos e personagens marcantes da carreira, protagonismo feminino, estereótipos, maternidade e novos voos que pretende alçar.

telona

Sou muito atraída pelo cinema. Minha experiência toda vem dele, embora, quando fiz Macabéa em A hora da estrela, eu ainda não tivesse experiência nenhuma com a câmera. Suzana [Amaral] me viu no teatro e disse que eu era muito sensível, não tinha gestos largos. Porque, no teatro, você tem que se expandir para conseguir se comunicar com a plateia, que [muitas vezes] está te vendo distante [do palco]. Quando ela me viu nessa peça, eu fazia uma personagem bem contida, um pouco próximo do que fiz depois com Macabéa.

protagonismo

Como a bailarina aposentada Pacarrete, no filme homônimo de 2019, a atriz conquistou diversos prêmios de atuação dentro e fora do país.

Acho que nós, mulheres, estamos avançando bastante, ocupando espaço em todas as áreas do audiovisual, na atuação, na parte técnica, na direção. Estou muito feliz. É extremamente

Luiz Alves
75 | e

depoimento

importante e necessário alcançarmos esse espaço e conquistarmos nossos direitos. Em todos os sentidos, a mulher é um ser muito sensível. E com essa sensibilidade e habilidade que temos, conseguimos tocar o coração das pessoas e fazer com que todos respeitem nosso trabalho. Algo que me impressionou positivamente foi o desempenho da [roteirista de A mãe ], Ana [Carolina Marinho], lá dentro do Jardim Romano [na zona leste de São Paulo], numa casa para guardar equipamentos, [que virou] um espaço de encontro com crianças, jovens e idosos. Foi por meio disso que a gente teve acesso àquele lugar.

perdas

Para interpretar Maria em A mãe, tive um encontro com [integrantes do movimento] Mães de Maio [rede de mães, familiares e amigos de vítimas de crimes cometidos por agentes do estado de São Paulo, em maio de 2006], que foi muito forte. Quando aquelas mães perderam seus filhos, todas ficaram doentes, perderam as forças para a vida. E não só as mulheres, mas os pais e demais filhos também. Na estreia do filme [no CineSesc, em outubro de 2022, durante a 46ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo], foi maravilhoso ver todas aquelas mães reunidas ali. Além de terem passado por essas perdas, elas foram totalmente desassistidas

pelo Estado, só têm umas às outras para encontrar forças. Contracenei com a Débora Silva [fundadora do movimento], e foi uma das cenas mais lindas que já fiz. Ela conta como perdeu o filho e como entrou na luta após ter sonhado com seu filho dizendo: “Agora, mãe, a senhora tem que enfrentar, ajudar outras pessoas”.

violência

Vejo [a escalada da violência no Brasil e no mundo] com muito medo. Medo às vezes de ir para a rua. A gente fica o tempo todo tentando se proteger. Com a internet, a gente está conectada com o mundo. Então tudo que acontece em qualquer lugar já é noticiado, como esses atentados terroristas no Rio Grande do Norte [ocorridos em março contra ônibus, prédios públicos, unidades de saúde e supermercados], esses crimes em escolas, que antes aconteciam só lá fora, mas hoje em dia têm aqui. [Quando gravou A mãe, no Jardim Romano] ficção e realidade se misturaram muito. Não podíamos passar em algumas ruas, porque não estavam liberadas. Estavam sob domínio do tráfico, que ficava muito incomodado [com a nossa presença] quando a gente precisou gravar, por exemplo, cenas em que havia policiais e viaturas. Você se depara com o Brasil desassistido, as casas coladas umas nas outras, a falta de saneamento, crianças brincando no esgoto. Por outro lado, o rap [Antígona, feito pelo ator Dustin Farias e reproduzido nos créditos finais] conta a realidade daqueles jovens, que não querem ser vistos como bandidos, mas como estudantes e trabalhadores.

Pelo papel de Macabéa no longametragem A Hora da Estrela (1985), de Suzana Amaral, a atriz foi premiada com o Urso de Prata no Festival Internacional de Cinema de Berlim.

Divulgação
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PESSOAS ATRAVÉS DO SENTIMENTO E DO QUE REALMENTE SE DESEJA CONTAR

estereótipos

Ao dirigir meu primeiro curtametragem [Tempo de ira, de 2003, em parceria com Gisela Bezerra de Mello] pensei exatamente isto:

“Quero dirigir e atuar para poder diversificar meus personagens”. Porque, senão, vou ficar só nessa batida, fazendo [papéis de] nordestinas. Na época em que morei no Rio de Janeiro, cheguei a fazer exercícios para perder o sotaque. Acho que, quando você interpreta um personagem, independentemente do sotaque, do que for, ele pode ser grande, tocar o coração das pessoas através do sentimento e do que realmente se deseja contar. Já fiz prostituta, freira, bailarina, imigrante. Em Madame Satã, tive a oportunidade de viver a garota de programa Laurita, uma mulher para cima, para frente – bem distinta dos personagens muito sofridos que sempre me chamavam para fazer. Eu dizia ao Karim: “Não vou chorar, podem me bater, me matar, não vou chorar”. Ela era uma mulher muito forte, que ao mesmo tempo

dava muita força ao Madame Satã [protagonizado por Lázaro Ramos], aguentava os trancos. Ainda há muitos estereótipos e preconceitos [contra os nordestinos].

idade

Tenho recebido muitos convites para falar sobre a questão do idoso [tema do filme Pacarrete, por exemplo], como é que se recepciona uma pessoa nessa idade. Eu, a atriz Soia Lira e [o diretor] Allan Deberton fomos para a China lançar o filme num festival gigantesco em Xangai, em 2019. Concorremos ao prêmio e eu estava bem cotada. Fiquei impressionada que, na língua deles, me chamavam de “senhorinha”, achando que eu tinha uns 70 anos [por conta da personagem]. Na internet, dizem que já sou avó, por causa do meu papel em Helen [de 2021, dirigido por André Collazzo].

Agora, interpreto mãe, tia, avó.

voos

Sou muito grata por esse olhar especial pelo meu trabalho, por esse espaço e visibilidade. Quando

fui à [46ª] Mostra, havia uma fila enorme [para ver A mãe], e pensei: “Nossa, que orgulho!”. Tenho ideias de direção, mas ainda não as coloquei no papel. Também recebo convites para dirigir, com roteiros de outras pessoas. Acho essa uma experiência incrível, mas, quando um filme está em processo, sempre me vem a vontade de atuar, de fazer determinada personagem. E ainda tenho o desejo de que aconteça de novo comigo [uma indicação e uma vitória internacionais, como no Festival de Berlim]. Seria importante para mim e para o cinema brasileiro. Torço muito para que filmes nacionais alcancem essa visibilidade mais ampla. O Urso [de Prata] eu já ganhei, mas quero alçar outros voos, nos grandes festivais.

Assista ao vídeo com trechos do Depoimento da atriz e diretora Marcélia Cartaxo.

QUANDO VOCÊ INTERPRETA UM PERSONAGEM, INDEPENDENTEMENTE DO SOTAQUE, DO QUE FOR, ELE PODE SER GRANDE, TOCAR O CORAÇÃO DAS
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ALMANAQUE

SP subterrânea

Túneis, passagens e criptas que guardam histórias da capital paulista convidam visitantes a conhecer a cidade por outros ângulos

Metros abaixo da superfície da maior cidade da América Latina, bem distante do trânsito caótico, das buzinas e do vai e vem apressado das pessoas, “escondem-se” mausoléus, túneis e espaços culturais que guardam parte da história e das memórias de São Paulo. São locais subterrâneos, onde é possível respirar literatura, ouvir música clássica, conferir apresentações artísticas, conhecer diferentes estilos arquitetônicos e até túmulos de figuras importantes sepultadas ali. Neste Almanaque, listamos seis desses lugares submersos para se visitar e aprender sobre o passado –e o interior profundo – da capital paulista. Bom passeio!

No subterrâneo do mais alto monumento da capital paulista, o Obelisco do Ibirapuera, é possível fazer um passeio por entre restos mortais de mais de 800 figuras históricas.

MAUSOLÉU DE COMBATENTES

Para os antigos egípcios, um obelisco era um monumento erguido em adoração a Rá, o Deus Sol, e também sinônimo de proteção contra energias negativas. Essa construção imponente se proliferou por grandes cidades modernas, como Washington, nos EUA, Buenos Aires, na Argentina, e em São Paulo. Aqui, o Obelisco Mausoléu aos

Heróis de 32, mais conhecido como Obelisco do Ibirapuera, é o mais alto monumento da capital paulista, com 72 metros de altura e quase 2 mil metros quadrados. Inaugurado em 9 de julho de 1955, homenageia os combatentes que morreram na Revolução Constitucionalista, um levante paulista contra o governo de Getúlio Vargas (1882-1954). O obelisco em mármore foi projetado pelo escultor ítalo-brasileiro Galileo

Emendabili (1898-1974). Na parte subterrânea, fica um mausoléu com os restos mortais de mais de 800 combatentes, entre estudantes, soldados, mártires e o governador da época, Pedro de Toledo (1860-1935).

Obelisco do Ibirapuera

Avenida Pedro Álvares Cabral, s/n°, Parque Ibirapuera, São Paulo (SP). GRÁTIS. Visitas diárias, das 9h às 17h. bit.ly/obelisco_ibira

Adriana Vichi
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O espaço cultural Passagem Literária Consolação vende livros e promove saraus musicais e exposições.

VIAGEM AO CENTRO DA TERRA

Em setembro de 2001, após uma década de escavações no quarto e quinto subsolos de um prédio em Perdizes, zona oeste de São Paulo, foi inaugurado o espaço cultural Centro da Terra. Gerenciado por Ricardo Karman, da Kompanhia do Centro da Terra, o local sem fins lucrativos – situado 12 metros abaixo da superfície – apresenta espetáculos teatrais, musicais e de dança, além de fomentar a cena cultural independente e autoral. O nome do lugar (e da trupe)

ARTE PEDE PASSAGEM

Quem cruza a Avenida Paulista com a Rua da Consolação pode não imaginar que, sob o asfalto, há uma passagem subterrânea ligando os dois lados da rua – um deles, ao lado do cinema Belas Artes, e o outro, em frente ao histórico Riviera Bar. Cercado por grafites e cartazes, o espaço cultural Passagem Literária Consolação vende livros e promove saraus musicais e exposições temporárias de fotografia e pintura. Aberto na década de 1970, o espaço é administrado por Dona Odete Machado e recebe doações de títulos literários. Aos pedestres que confundem aquelas escadarias com a entrada do metrô, um aviso: “Não é metrô...porque é grátis e te leva mais longe!”.

Passagem Literária da Consolação

Rua da Consolação, s/nº (ao lado do nº 2.423), São Paulo (SP). GRÁTIS. Segunda a sexta, das 10h30 às 19h. Sábado, das 11h às 19h. instagram.com/ passagemliteraria_oficial

vem de um espetáculo multimídia realizado em 1992 pelos atores, sob o rio Pinheiros, e também inspirado na obra clássica de ficção científica de Júlio Verne (1828-1905), publicada em 1864. As instalações do Centro da Terra incluem um teatro com palco italiano, uma praça de convivência com café, um ateliê, um terraço e salas multiuso.

Centro da Terra

Rua Piracuama, 19, Perdizes, São Paulo (SP). Espetáculos de segunda a sexta, às 20h. centrodaterra.org.br

No bairro de Perdizes, zona oeste de São Paulo, o palco do Teatro do Centro da Terra fica 12 metros abaixo da superfície. Adriana Vichi (Passagem Literária da Consolação); Divulgação (Centro da Terra)
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ALMANAQUE

SONS DA CRIPTA

Inaugurada há 104 anos, a Cripta da Catedral Metropolitana de São Paulo, mais conhecida como Catedral da Sé, abriga 30 câmaras mortuárias sete metros abaixo do nível da praça. No local, projetado em formato de cruz num espaço de 365 metros quadrados, ficam os túmulos

de bispos que viveram na cidade entre 1745 e 1908, além do regente do Império, Diogo Feijó (1784-1843), do líder indígena Tibiriçá (?-1562) e do arcebispo Dom Paulo Evaristo Arns (1921-2016). As visitas diárias narram fatos históricos, detalhes sobre a arquitetura e curiosidades do santuário. Em junho deste ano, o local abre as portas para a

série Concertos

Cripta da Catedral da Sé

Praça da Sé, s/nº, Sé, São Paulo (SP). GRÁTIS (todos os concertos) e R$10 (tour guiado). Visitas: segunda a sábado, das 9h às 17h. Domingos, das 12h30 às 16h15. instagram.com/concertoscripta

Divulgação
Cripta, com obras clássicas do século 15 ao 21.
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Sob a Praça da Sé, a Cripta da Catedral Metropolitana recebe concertos de música clássica e visitas guiadas para o público.

CULTURA A TODO VAPOR

De longe é possível avistar três chaminés monumentais com 30 metros de altura e tijolos aparentes. De perto, a centenária Casa das Caldeiras – criada para fornecer energia ao complexo industrial do empresário italiano Francesco Matarazzo (1854-1937) – abriga túneis, janelões e um pé-direito de

ALTAR REAL

Cerca de 130 peças de bronze formam o Monumento à Independência (ou Altar da Pátria), instalado no Parque da Independência, no bairro do Ipiranga, sobre uma ampla base de granito e mármore. A obra do artista italiano Ettore Ximenes (1855-1926) foi inaugurada em 7 de setembro de 1922. A construção de

nove metros de altura. No térreo, tombado em 1986 e restaurado em 1999, dividem espaço um ateliê, uma cervejaria artesanal, uma coquetelaria e uma hamburgueria, com a proposta de integrar gastronomia e arte. Além de exposições e oficinas, o público pode conferir apresentações de jazz realizadas periodicamente, bem como participar de visitas guiadas mensais.

Casa das Caldeiras

Av. Francisco Matarazzo, 2000, Água Branca, São Paulo (SP). GRÁTIS (entrada e visitas guiadas). Café com jazz e eventos fechados são pagos. Quinta, das 18h às 23h. Sexta, das 18h às 2h. Sábado, das 12h às 2h; e domingo, das 12h às 23h. casadascaldeiras.com.br

12 metros de altura representa fatos e personalidades importantes da história do Brasil. Em 1953, começou a ser construída no interior do monumento a Capela ou Cripta Imperial, que reúne os restos mortais de Dom Pedro I (1798-1834), da imperatriz Maria Leopoldina (1797-1826) e da segunda imperatriz brasileira, Dona Amélia de Leuchtenberg (1812-1834). Em 2000,

o espaço subterrâneo foi aberto ao público, mas atualmente está fechado para reforma, com reabertura prevista para junho deste ano.

Monumento à Independência e Capela Imperial Parque da Independência (acesso pela Rua dos Patriotas, 20), Ipiranga, São Paulo (SP). GRÁTIS. museudoipiranga.org.br

Adriana Vichi
Eventos gastronômicos e apresentações culturais ocupam o subsolo da Casa das Caldeiras.
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Florescer leva tempo

Como desacelerar em um mundo em que parecemos constantemente atrasados? Seja no sentido literal ou simbólico, o sentimento de estar atrasado pode nos paralisar ou impulsionar e, muitas vezes, somos pressionados a adotar um ritmo que não é nosso. Está na origem da palavra: atraso vem de “atrás”. E quem quer ficar para trás?

Logo que entendi que estar conectada, atualizada e atenta aos fluxos digitais são exigências da minha atividade profissional como comunicadora, procurei ocupar meu tempo livre com atividades que me ajudassem a botar o pé no freio e me mantivessem longe das telas. Os principais passatempos que experimentei foram tricô, crochê, bordado, origami, culinária e jardinagem. Um pouco de tudo.

Apesar do prazer que eu sentia ao aprender algo novo, como construir uma peça de roupa, cozinhar uma nova receita e fazer tsurus a torto e a direito, havia sempre uma pressão interna de me tornar mais habilidosa e assim acelerar a conclusão dos projetos. Na maioria dos passatempos, o treinamento e a repetição ajudavam a melhorar meu desempenho e ter mais rapidez na execução, mas com a jardinagem foi outra história.

Conhece aquela expressão popular “olhar o fogo não faz a água ferver mais rápido”? Pois bem. Ela cabe perfeitamente para explicar como me senti diante da ansiedade de ver minhas plantas crescerem e darem flores. Durante um período, consultei os vasos quase que diariamente para checar se havia novidades por ali. Mesmo seguindo todos os cuidados específicos para ajudar no seu desenvolvimento, não havia mágica que fizesse as plantas obedecerem ao meu tempo. Cada uma delas tinha o seu tempo próprio e inegociável.

Foi um desafio aceitar esse ritmo que rejeita a pressa e mesmo assim nunca pode ser considerado atrasado.

Quando me conformei que esta era uma condição para que pudesse manter minhas plantinhas saudáveis, confesso primeiro ter sentido um pouco de inveja da posição de proprietárias do tempo, mas depois comecei a reparar as lições discretas que elas me transmitiam.

Primeiro, precisei respeitar a diferença entre cada uma delas. Mais água, menos água, mais luz, menos luz. A gente vai pegando o jeito. Depois, aprendi sobre os ciclos de vida. De nada adiantou ter pena de colher os raminhos de manjericão, já que ele nasce, cresce e morre em aproximadamente um ano. Outra dificuldade foi aceitar a hibernação. Como assim o vaso vai ficar vazio? Meu tinhorão vai voltar? Era só o clima esquentar para ele dar as caras de novo.

Quanto à floração, essa foi uma das lições que mais me fez refletir. Eu torcia para ver as flores surgirem nos vasos, mas as espadas-de-são-jorge não entravam na onda. Nada de flor no primeiro, segundo ou terceiro ano de vida. Quando desisti de esperar, lá estavam as pétalas brancas com cheiro doce no meu quintal. A flor apareceu me afrontando e parecia me dizer: “Por que a pressa?”.

Dentre todos esses passatempos (acho um termo injusto, quem deseja que o tempo passe quando se faz algo de que se gosta?), cuidar das plantas foi o único capaz de me trazer uma perspectiva não produtiva sobre o tempo. Não é fácil contemplar um vaso vazio. É isso. Às vezes a gente demora a florescer e a pressão não vai fazer algo acontecer mais rápido. Mas cuidar bem do ambiente que você está pode ser um bom começo!

Thaís Cristina Kruse é comunicóloga e mestra em Educação: Currículo. Atua como editora web na Gerência de Saúde e Odontologia do Sesc São Paulo.

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MAIO 2023

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