A Operacao Urbana Faria Lima

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Faculdade de Arquitetura e Urbanismo Universidade de São Paulo

A OPERAÇÃO URBANA FARIA LIMA: Estudo de um mecanismo de parceria entre Estado e Capital na cidade de São Paulo nos anos 90”

ROBERTO C. ROCCO DE CAMPOS-PEREIRA

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“A OPERAÇÃO URBANA FARIA LIMA: Estudo de um mecanismo de parceria entre Estado e Capital na cidade de São Paulo nos anos 90”

Dissertação de Mestrado apresentada à Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo. Área de Concentração: Estruturas Ambientais Urbanas

Orientação: Profª. Dr.ª Sueli T. Ramos Schiffer São Paulo, 2002.

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Dedico esta dissertação a Lucca D., com confiança e esperança no futuro.

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Agradecimentos: Agradeço à Professora Dr.ª Sueli T. Ramos Schiffer, por seu valioso trabalho de orientação, seu apoio e paciência durante 3 anos de pesquisa. Agradeço à FAPESP (Fundação de Apoio à Pesquisa do Estado de São Paulo) por ter financiado e tornado possível este trabalho.

Agradeço às seguintes pessoas e instituições, que com seu apoio, intelectual ou moral, contribuíram para a realização desta pesquisa: Minha família (Tilde, Fernanda, Lucca, Akio & Honey) Dr. Joaci Pereira Furtado Prof. Dr. Fábio Mariz Gonçalves (FAUUSP) Profª. Dr.ª Vera M. Pallamin (FAUUSP) Prof. Dr. Csaba Déak (FAUUSP) Prof. Dr. Philip Gunn (FAUUSP) Prof. Dr. Ricardo Toledo Silva (FAUUSP) Prof.ª Dr.ª Otília Arantes Profª. Dr.ª Marisa Carmona (TU Delft) Dr.ª Miriam Dohlnikoff (CEBRAP) Samir Calixto, Roberta Asse e Walter Moreira Prof.ª Dr.ª Enalí de Biaggi (Université de Lyon) Biblioteca da Pós-Graduação da FAUUSP Secretaria Municipal do Planejamento (SEMPLA) Empresa Municipal de Urbanização (EMURB) Departamento de Tecnologia FAUUSP (Silvana, Lúcia, Rose & Viviane)

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Sinopse Este trabalho analisa o mecanismo da Operação Urbana, tomando a Operação Urbana Faria Lima como estudo de caso principal. Busca descrever o que é a Operação Urbana dentro de uma perspectiva institucional/ legal, bem como seus objetivos declarados como instrumento a serviço da administração municipal na área de gerenciamento do uso e ocupação do solo e do desenvolvimento urbano. Entretanto, a ênfase maior está na descrição da Operação Urbana Faria Lima num contexto histórico específico, interpretando-a dentro do atual estágio da acumulação capitalista no país. Isso se justifica pela importância que um mecanismo como a Operação Urbana pode ter na produção do espaço intra-urbano e na própria dinâmica de produção e reprodução do capital na metrópole.. Por fim, busca avaliar os “resultados” da Operação no que diz respeito aos seus objetivos pretendidos, à forma urbana resultante e finalmente seu significado no contexto de uma metrópole que se internacionaliza ao mesmo tempo em que se fragmenta social e espacialmente.

Abstract This work seeks to analyse the urbanistic tool known as “Urban Operation” [Operação Urbana], taking the Urban Operation Faria Lima as the main study case. It seeks to describe what the Urban Operation is within a legal/ institutional framework and to assess its stated objectives as a tool for urban development, as well as an instrument for the administration and managing of urban land use. The emphasis, however, is in the description of the Urban Operation Faria Lima within a specific historical context, seeking to interpret it within the current stage of capitalist accumulation in the country. The justification is to be found in the utmost importance that this urbanistic tool may have in the production of urban space and indeed in the capitalist reproduction dynamics itself within the metropolis. Finally, it seeks to evaluate the “results” of the Urban Operation in reference to its objectives, the resulting urban form and its general meaning in the context of a (Third) world city that becomes increasingly more fragmented, both socially and spatially.

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Sumário: – Sinopse/ Abstract ............................................................. I-5 – Sumário ............................................................................. I-6 – Índice das ilustrações ..................................................... I-9 – Introdução .........................................................................I-13

– Capítulo 1: Esfera Pública e parceria entre o público e o privado ............................................................................... 1

1.1-

Esfera pública e parceria entre o público e o privado...................... 1

2.1-

Constituição e erosão da idéia de contrato social............................ 3

1.3-

Ressurreição da idéia de contrato social ......................................... 13

1.4-

Buscando uma definição para a governância ................................. 27

1.5-

Razão, capital e espaço .................................................................. 38

– Capítulo 2: Globalização e inserção brasileira na divisão internacional do trabalho ................................................. 48

2.1-

Globalização e inserção brasileira na divisão internacional do trabalho A aceleração

contemporânea

................................................................

48 2.2-

A aceleração contemporânea ............................................................. 53

2.3-

O trabalho flexível na nova ordem econômica .................................... 56

2.4-

A inserção brasileira num mundo globalizado ..................................... 61

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– Capítulo 3: Uma aproximação ao entendimento da metrópole paulista no quadro da globalização ............. 70

3.1-

São Paulo: Cidade Mundial ................................................................. 70

3.2-

A proeminência da macrometrópole paulista no território nacional ... 85

3.3-

Globalização e rumos das políticas municipais ................................... 103

– Capítulo 4: Políticas públicas e ideologia na configuração da cidade mundial brasileira ........................................... 113

4.1-

Políticas viárias: um caso de associação entre Estado e Capital na produção do espaço urbano ................................................................ 113

4.2-

Políticas viárias e valorização imobiliária ............................................. 117

4.3-

Construção civil, mercado imobiliário e estratégia política ................. 123

4.4-

A “ideologia” das obras” no imaginário da cidade e na condução de sua administração

......................................................................................

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– Capítulo 5: A Operação Urbana Faria Lima

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5.1-

Fundamentos dos mecanismos de Operação Interligada e Operação

Urbana

.............................................................................................................

132 5.2-

Um antecedente à Operação Urbana:

a Operação Interligada .........

140 5.3-

A Operação Urbana .............................................................................. 151

5.4-

A Operação Urbana Faria Lima: gênese e primórdios da Operação.. 167 5.4.1- Os Cepacs ................................................................................. 184

5.5-

O

desenrolar

da

Operação:

favorecimentos,

irregularidades,

desapropriações e a atuação das associações de bairro ............................... 195 5.6-

Mudança acentuada de usos e congestão da infra-estrutura ............. 224

5.7-

Acentuamento do boom imobiliário, mudanças nos CEPACs e mais suspeitas de corrupção ........................................................................ 239

5.8-

A constituição de um novo Eixo Corporativo ao longo do rio Pinheiros............................................................................................... 241

5.9-

Projetos aprovados na Operação Urbana Faria Lima e diagnóstico.. 262

5.10- Perspectivas da Operação Urbana Faria Lima ................................... 286

– Capítulo 6: Conclusões ........................................................ 290

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– Referências bibliográficas ................................................... 295 – Apêndices ............................................................................... 305

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Índice das ilustrações, mapas e tabelas Capítulo 2 Tabela 2.1: Distribuição dos ocupados, segundo Posição na Ocupação. Região Metropolitana de São Paulo (1999). P. 57 Tabela 2.2:

Distribuição dos ocupados, segundo Setores de Atividade.

Região Metropolitana de São Paulo (1999). P. 58

Capítulo 3 Tabela 3-1: Inventário GaWC das Cidades Mundiais. Fonte: Beaverstock et al. (1999). P. 84 Figura 3-2: A ‘macrometrópole’ de São Paulo iluminada à noite. A região inclui cidades importantes como Campinas, São José dos Campos, Santos e Sorocaba, que não pertencem à área metropolitana. A área total iluminada mostrada no mapa foi estimada em 8.015 km2. (junho 2001). Fonte: INPE/ Pub. FSP: 05.08.2001. P. 87 Tabela 3-3: Hotéis da Rede Accor macrometrópole paulista. Fonte: Accor. P. 92 Mapa 3-4: Regiões industriais da Região Metropolitana de São Paulo. Fonte: Bolsa de Imóveis de São Paulo, 2001. Mapa elaborado por Sírio Cançado. P. 95 Mapa 3-5: As principais áreas para desenvolvimento imobiliário comercial na MASP: 1. Sé (Centro), 2. Avenida Paulista, 2.a. Jardins, 3. Avenida Faria Lima, 3.a. Itaim, 3.b. Vila Olímpia, 4. Avenida Berrini, 4.a. Marginal Pinheiros, 4.b. Rua Verbo Divino, Fonte: Bolsa de Imóveis de São Paulo, 2001. Mapa elaborado por Sírio Cançado. P. 97. Mapa 3-6: Sistema viário e ferroviário Região Metropolitana de São Paulo. Fonte: CESAD-FAUUSP/ Mapa elaborado por INFURB_FAUUSP, 1998. P. 98 Tabela 3-7: Evolução da População Residente (em mil habitantes) Brasil, Estado, Região Metropolitana e Município de São Paulo. Fonte: Censos IBGE. P. 99

Capítulo 4

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Quadro 4.1: Principais obras viárias na administração Maluf concentram-se num raio de 10 km do Centro da cidade. Maioria encontra-se no quadrante Sul/Sudoeste da cidade. Fonte: (FSP: 30.08.1996: 1-8). P. 121 Gráfico 4.2.: Financiamento da campanha eleitoral para prefeito da cidade de São Paulo em 1996, em %. Fonte: Tribunal Regional Eleitoral. P.126.

Capítulo 5 Quadro 5-1: Operações Interligadas: 1986 a 1998. P. 149 Foto 5-2: Operação Urbana Anhangabaú. Reurbanização do Vale do Anhangabaú com construção de laje sobre a Avenida Prestes Maia. Foto do autor (2002). P. 156 Mapa 5-3:

Perímetro da Operação Urbana Centro. Fonte: EMURB, “A

Cartilha da Área Central”, São Paulo: EMURB, 2000: 2. P. 158 Foto 5-4: Edifícios Comerciais construídos no perímetro da Operação Urbana Água Branca. Fonte: EMURB. P. 162 Planta 5-5: Projeto EMURB Operação Urbana Águas Espraiadas. Perímetro e localização das favelas. Fonte: FIX (2001: 86). P. 164 Foto 5-6: Região Avenida Nações Unidas com empreendimentos. Fonte: Bolsa de Imóveis do Estado de São Paulo. P. 165 Mapa 5-7: Projeto Faria Lima 1968. Fonte: Proj 004 Secretaria de InfraEstrutura Urbana. Mapa autor. P. 170 Figura 5-8: Projeto alternativo do urbanista Cândido Malta Campos Filhos para a região da Operação Urbana Faria Lima. Fonte: arquivos pessoais do urbanista. P. 179 Planta 5-9: Operação Urbana Faria Lima. Limites de Áreas Diretamente Beneficiadas e Áreas Indiretamente Beneficiadas. Fonte: SEMPLA, 2000: 14-15. P. 181 Tabela 5-10: Conversão valor de CEPACs nos diferentes subperímetros. P. 189 Imagem 5-11: Alternativa de Carlos Bratke para a interligação entre a Avenidas Faria Lima e Engenheiro Luiz Carlos Berrini. Fonte: FSP:15.03.95: 3-3. P. 197

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Planta 5-12: Proposta de ‘bolsões’ residenciais para o bairro de Alto de Pinheiros. Fonte: Sociedade Amigos do Alto dos Pinheiros (SAAP). P. 204 Foto 5-13: A Rua Paes Leme, no núcleo mais antigo do bairro de Pinheiros. Ao fundo, a Igreja Nossa Senhora de Mont Serrat. A Paes Leme conservou suas características de entreposto madeireiro. Foto do autor, 1996. P. 206 Foto 5-14: Vila residencial na região da rua Paes Leme, no “Baixo-Pinheiros”. A extensão das quadras propiciou o surgimento de inúmeras vilas residenciais naquela área. Foto autor, 1996 . P. 207 Foto 5-15: Edifício comercial na rua Butantã, “Baixo Pinheiros”. Poucos projetos foram aprovados para a região do “Baixo Pinheiros” (AIB 3 Baixo Pinheiros), devido à dificuldade de incorporação de terrenos para grandes projetos. A maioria dos projetos aprovados nessa área concentram-se nas áreas lindeiras à Avenida Faria Lima. P. 208 Imagem 5-16:

Distrito de

Pinheiros, Serviços e instituições. FSP:

06.10.2002: Imóveis- 2. P. 208 Tabela 5-17: Perfil Sócio Econômico do Distrito de Pinheiros em 2002. P. 209 Figura 5-18: Trechos inaugurados da Avenida Nova Faria Lima: extensão, custo e desapropriações. Fonte: FSP:10.08.1996. P. 213 Figura 5-19: Traçado da Avenida Faria Lima nos distritos de Pinheiros e Itaim, com serviços e instituições. Fonte: FSP: 06.10.2002: Imóveis-2. P. 214 Tabela 5-20: Tabela paramétrica com simulação do efeito da adoção de valores diferentes para o CEPAC no perímetro da Operação Urbana Faria Lima. Fonte: SEMPLA, 2000: 17. P. 219 Figura 5-21: Edificio Premium na AIB 3 (Baixo Pinheiros), Op. Urb. n.º 20, 21 ou 78 (verificar) FSP: 28.08.1996: B-12. P. 223 Figura 5-22: Idem. Vista para as Avenidas Faria Lima e Rebouças. P. 223 Imagem 5-23: O Distrito do Itaim. Instituições e serviços. FSP: 06.10.2002: Imóveis-2 . P. 225 Tabela 5-24: Configuração sócio-econômica do distrito do Itaim-Bibi. P. 226 Figura 5-25: Mapa limites at. movimento Colméia. Fonte: FSP:08.09.2001. P. 230 Figura 5-26: Projeto Continental Square. Projeto Aflalo e Gasperini. Fonte: Informativo Planeta Imóvel, março 2002. P. 235

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Imagem 5-27: Ligação Berrini /Faria Lima mostrada na publicidade do Faria Lima Continental Square. Fonte Planeta Imóvel, 2002. P. 236 Figura 5-28: Extensão Av. F. Lima até Berrini. FSP: 08.04.2001: Imóveis-1. P. 237 Figura 5-29: Constituição de um novo eixo corporativo ao longo da Marginal do Rio Pinheiros. Fonte: Informativo Bolsa de Imóveis, Databolsa (n.º 29), 2002. Mapa elaborado por Sírio Cançado. P. 241 Mapa 5-30: Mapa Itaim, Fonte: Boletim Eletrônico Bolsa de Imóveis, Databolsa (n.º 26), 2001. Mapa de autoria de Sírio J. B. Cançado . P. 243 Figura 5-31: Edifício Eletropaulo. Fonte: Asbea . P. 244 Figura 5-32: Edifício CBS. Av. Pres. Juscelino Kubitschek, n.º 50. Fonte: Granimar Mármores e Granitos. http://www.granimar.com.br/obras.html . P. 245 Figura 5-33: JK Financial Center fonte Infomativo Bolsa de Imóveis, Databolsa (n.º 23) 2001. Foto Arquivo: Brazil Realty. P. 246 Figura 5-34: JK Financial Center Fonte: Informativo eletrônico ArcoWeb n.º 153. http://www.arcoweb.com.br/ . P. 246 Figuras 5-35: Ed. Spazio JK. Projeto Edo Rocha Arquitetos Associados. Incorporação e Construção Kauffmann. Foto Especial Edifícios Comerciais, Informativo Eletrônico

Flex

Eventos

http://www.flexeventos.com.br/capa_edificios_coml.asp,

25.10.2002. P. 247 Figura 5-36: Ed. International Plaza. Fonte: Escritório Técnico Júlio Neves. P. 248 Figura 5-37: JK Century Plaza. Fonte Enit Projetos Consultoria Ltda. P. 248 Figura 5-38: Ed. Plaza JK Fonte: Informativo Eletrônico Databolsa (n.º 28). P. 249 Figura 5-39: Edifício Plaza JK. Fachada com iluminação noturna. Fonte Stan Desenvolvimento Imobiliário. P. 249. Figura: 5-40: Brascan Century Plaza Fonte: Anúncio publitário, FSP 24.11.2001: A-26 . P. 250 Figura 5-41: Faria Lima Financial Center. Fonte: Brazil Realty. P. 251 Figura 5-42: Detalhe da planta do Projeto de Plano Diretor, Administração Marta Suplicy. Em destaque a Operação Urbana Consorciada Águas Espraiadas. Fonte: FSP: 01.07.2002: C-4. P. 261

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Quadro 5-43: Propostas protocoladas e aprovadas na SEMPLA (1995 a outubro 2000). P. 262 Quadro 5-44: Projetos incluídos na Operação Urbana Faria Lima, contendo nome do empreendimento e localização, de 1995 a 2000. Fonte: SEMPLA: 2000. P. 263 Quadro 5-45: Propostas aprovadas 29 outubro 2002 (não contabilizadas). P. 277 Mapa 5-46: AIBs Operação Urbana F. Lima, base SEMPLA, 2000:14-15. P. 279 Mapa 5-47: ANBs Operação Urbana F. Lima, base SEMPLA 2000:14-15. P. 280 Tabela 5-48: Projetos aprovados na Operação Urbana Faria Lima, em ADB e AIB, 1995 a outubro de 2002. P. 281 Figura 5-49: Vista panorâmica Avs. Nações Unidas e Águas Espraiadas, agosto de 2001. Foto: Roberto Caldeyro Stajano. P. 288

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Introdução “O prolongamento da Av. Nova Faria Lima deve elevar o valor dos imóveis da região da Vila Olímpia em até 30%. Essa é a opinião do Sr. José Luís de Toledo Barros, Office Market da Colliers International do Brasil, a respeito do recém assinado projeto de prolongamento da Faria Lima até a Luís Carlos Berrini. Quem também aposta nessa valorização é um dos maiores especialistas em vendas e em consultora imobiliária da cidade, a Lopes, que tem percebido um expressivo aumento da demanda tanto para ocupação quanto para novas incorporações na região. A viabilidade do projeto de prolongamento é resultado imediato de uma iniciativa arrojada que tem à frente o Movimento Colméia, uma ONG constituída pela associação de moradores, usuários e empresários da Vila Olímpia em parceria com a Prefeitura Municipal de São Paulo, por meio da EMURB, CET e da Administração Regional de Pinheiros [...]”. Informe Publicitário, Folha de S. Paulo, 4 de abril de 2002: A-8. Este trabalho analisa o mecanismo da Operação Urbana, tomando a Operação Urbana Faria Lima como estudo de caso principal. A Operação Urbana constitui-se num mecanismo legal de parceria entre o município e setores da iniciativa privada adotado nos anos 1990 na cidade de São Paulo. Em poucas palavras, esse mecanismo permite modificações importantes nos índices de ocupação e no uso do solo, com a flexibilização das regras de zoneamento em vigor na área de intervenção, permitindo a intensificação do investimento imobiliário privado. Os fundos arrecadados com a venda de “potencial construtivo adicional” aos investidores privados permitiria a atenuação do ônus dos investimentos em infra-estrutura por parte do Poder Público na área-alvo. Nosso estudo estruturou-se em torno de três esferas principais. Buscamos descrever os aspectos institucionais e legais da criação, efetivação e funcionamento da Operação Urbana, bem como seus objetivos declarados como instrumento a serviço da administração municipal na área de gerenciamento do uso e ocupação do solo e do desenvolvimento urbano.

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Entretanto, isso não seria de grande utilidade se não fizéssemos também o esforço de descrever a Operação Urbana num contexto histórico específico, tentando interpretá-la dentro do atual estágio da acumulação capitalista no país. Isso se justifica pela importância que um mecanismo como a Operação Urbana pode ter na produção do espaço intra-urbano e na própria dinâmica de produção e reprodução do capital na metrópole. A criação do mecanismo e seu funcionamento se deram dentro de um quadro ideológico preciso e serviram à consecução de determinados objetivos políticos e econômicos que descreveremos ao longo do texto. Por fim, tentamos avaliar os “resultados” da Operação no que diz respeito aos seus objetivos pretendidos (o auto-financiamento das obras, a melhoria da infraestrutura viária, a criação de um espaço propício aos investimentos etc.), no que concerne à forma urbana resultante (ou seja, que tipo de espaço resultou da Operação Urbana?) e finalmente seu significado no contexto de uma metrópole que se internacionaliza ao mesmo tempo em que se fragmenta social e espacialmente. Ao longo do desenvolvimento da análise da Operação Faria Lima, manifestou-se a necessidade de uma base teórica sólida e explícita e de um “fio condutor” que unificasse os diversos aspectos da Operação Urbana estudados até então, pois a ausência de uma teoria que desse conta das relações entre Estado e iniciativa privada e o papel destes na produção do espaço urbano dificultava a compreensão de fenômenos diversos num mesmo quadro geral coerente. A necessidade do estudo do caráter do Estado capitalista aparecia de forma destacada, já que se tratava de analisar uma parceria entre este Estado e a iniciativa privada (afinal, que “parceria” era essa entre o “público” e o “privado”? É possível tal parceria? Não haveria aí uma confusão de termos entre “Estado”, “o público” ou ainda a “esfera pública”? A “parceria” entre Estado e iniciativa privada não seria apenas um eufemismo retórico de caráter eminentemente ideológico, já que, como veremos, o Estado teria sido sempre “parceiro” do capital? Por fim, como se insere esta “parceria” no estágio atual de acumulação capitalista no país?). Metodologicamente, optamos por uma interpretação das Operações Urbanas calcada no pensamento marxista, já que aí poderíamos inseri-la num quadro histórico-material amplo e minimamente coerente e crítico. Parecia-nos infrutífero

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analisar o mecanismo pelo viés institucional, privilegiando uma leitura weberiana do “caso em estudo”. Como estrutura básica de avaliação, baseamo-nos no trabalho de Schiffer (1989, 1992 e 1999, principalmente), onde encontramos de maneira clara e sucinta uma discussão sobre a teoria do Estado no pensamento marxista. Por sua vez, Schiffer trabalha em parceria com Déak (1988) e utiliza sua teoria sobre a “acumulação entravada” para explicar a configuração da territorialidade regional e nacional. Nossa hipótese é de que seria possível explicar a dinâmica da configuração do território intra-urbano, e particularmente o papel de mecanismos como a Operação Urbana nesta dinâmica, a partir desta mesma teoria da “acumulação entravada”, em que pese o fato de que as teorias territoriais nacionais, regionais e urbanas sejam fortemente distintas, mas não incompatíveis. Acreditamos que vários fenômenos do desenvolvimento e da configuração intra-urbanos apenas espelham ou reproduzem dinâmicas da “acumulação entravada”66 a nível nacional, sendo aqueles conseqüência direta destes. Além de estudar as condições de produção e reprodução do capital nesta fase específica de acumulação no país, seria necessário também nos debruçar sobre o papel e a atuação do Estado nesta produção, tendo em vista, entre outros aspectos, o fato de que a Operação Urbana é essencialmente conduzida por esse Estado. Sabemos que “o papel do Estado na economia capitalista talvez seja um dos temas mais controversos na interpretação da economia política” (Schiffer, 1989: 17). Não pertence ao escopo deste trabalho determinar qual das diversas teorias sobre a constituição do Estado e seu papel na economia capitalista deve prevalecer na análise das Operações Urbanas. Entretanto, seria impossível desenvolver uma crítica minimamente consistente sem tentar entender, ainda que de maneira apenas preliminar, o papel do Estado na condução de políticas públicas de produção do espaço urbano no modo de produção capitalista.

66 A noção de “acumulação entravada” (Déak, 1988), será explicitada adiante. 67

Já indicamos o equívoco na confusão entre “Estado” e “o público” e entre a “iniciativa

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Mas este papel coloca em questão como se dão as associações entre Estado e classes dominantes, e exigiu um aprofundamento no estudo do caráter do Estado (afinal, o Estado se distingue da classe dominante? Como? Como se articulam os diferentes interesses em jogo?). Ao estudar o caráter do Estado no sistema capitalista, pretendemos, em última instância, desenvolver algumas reflexões sobre o pensamento urbanístico contemporâneo dentro do quadro da acentuada retração da esfera pública em favor dos interesses privados nas últimas décadas do século XX. As razões desta retração são múltiplas e complexas. Não seria possível entendê-las sem tentar compreender a própria constituição da esfera pública e a natureza do Estado (liberal, democrático, ocidental) num mundo marcado, entre outros fatores, pelos novos modos de acumulação flexível do capital, pela desvalorização do trabalho, pelo crescente poder das grandes organizações transnacionais, pelo movimento irrestrito de capitais especulativos trans-fronteiras e pela revolução tecnológico-informacional. Portanto, mesmo sem pretender estabelecer uma “teoria do Estado”, a nossa primeira dificuldade consistiu na fundamentação de uma crítica ao caráter do Estado nesta fase específica da acumulação capitalista no país, já que nossos estudos mostravam que o mecanismo da Operação Urbana serviria a várias funções, isto é, o de instrumento estatal facilitador das operações de valorização e mercantilização do solo, o de instrumento para a adequação da metrópole às novas condições de acumulação e a de instrumento para a perpetuação de dominação política por parte das classes dominantes.

Porém, era preciso ir além do Estado e de sua parceria com o capital para entender a Operação Urbana. Circunscrevemo-nos assim à possibilidade de interpretar um instrumento urbanístico de caráter institucional à luz de uma análise conduzida de maneira multidisciplinar. Para tanto, desenvolvemos um estudo crítico das Operações Urbanas enquanto instrumento de geração e constituição discursiva do poder político (nos termos de Hannah Arendt e Jürgen Habermas), e que por sua vez “molda” a forma urbana (o território) de acordo com os interesses do capital.

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Isto é, tentamos


conjugar uma análise calcada no pensamento marxista com um tipo de análise que privilegiou o estudo crítico dos discursos dos agentes envolvidos na constituição e na efetivação da Operação Urbana, e da constituição de um discurso ideológico que sustenta o poder político e suas ações. Em sintonia com a atual fase da acumulação capitalista no país, esse poder político procuraria adequar a metrópole paulistana às novas exigências da chamada “globalização”, buscando aparelhar São Paulo como uma das “cidades mundiais”, isto é, um dos centros de controle da reprodução deste capital num mercado unificado, identificado com o território brasileiro, mas com conexões rápidas com outros centros de operação de uma economia internacionalizada, com ênfase nos movimentos financeiros e nos serviços corporativos de alto nível.

Assim, o presente trabalho estruturou-se em cinco capítulos principais, divididos em sub-ítens. No primeiro capítulo, estudamos as teorias da constituição do contrato social e do Estado em contraste com a idéia de uma possível “parceria” entre Estado e capital. Utilizamos o conceito de “governância” para analisar o surgimento de uma “nova” modalidade de relação entre o Estado, a sociedade civil e a empresa, criando um “tensão positiva” que permitiria controlar democraticamente os rumos de uma administração excessivamente comprometida com os interesses privados, para em seguida proceder à crítica da idéia de governância como instrumento ideológico para a legitimação das parcerias entre esse Estado supostamente enfraquecido e uma iniciativa privada cada vez mais investida de funções antes tipicamente estatais. No segundo capítulo, analisamos as raízes dessa mudança de paradigmas a partir da globalização e suas consequências no modo de acumulação capitalista e na desvalorização do trabalho. Analisamos a inserção brasileira nessa quadro e suas consequências mais imediatas na elaboração de políticas públicas com ênfase naquelas que têm impacto direto sobre a produção do espaço urbano. No terceiro capítulo, analisamos o lugar da metrópole paulista dentro do quadro da globalização, buscando resgatar alguns aspectos de sua conformação

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histórica, econômica e política que pudessem ajudar a explicar sua posição destacada na condução do processo de acumulação capitalista ao nível nacional. No capítulo quatro, voltamos a analisar mais profundamente as políticas públicas, agora no nível local, influenciadas pelo quadro ideológico e econômico contemporâneo. Aqui destacamos a ascensão do ideário neoliberal e suas consequências na elaboração das políticas municipais das gestões de Paulo Salim Maluf e Celso Roberto Pitta. Finalmente, no quinto capítulo, desenvolvemos um estudo detalhado dos fundamentos e das origens dos mecanismos do tipo da Operação Urbana e procedemos à análise da Operação Urbana Faria Lima propriamente dita, destacando suas características institucionais e legais e descrevendo em detalhe o seu desenrolar, desde sua aprovação em 1995 (gestão Maluf) até 2000 (gestão Pitta), avançando por onde foi possível na análise dos resultados da Operação até o final de 2002 (gestão Marta Suplicy). Particular atenção foi dada à análise da Operação como retratada na imprensa, visando analisar as construções ideológicas que são ao mesmo tempo constituintes e produtos da Operação. Nesse capítulo analisamos a Operação Urbana Faria Lima contra o pano de fundo da análise desenvolvida nos capítulos precedentes, inserindo-a no quadro da acentuada abertura e transnacionalização da economia brasileira e do papel preponderante da cidade de São Paulo na condução desse processo, procurando, sempre que possível, relacionar esses fenômenos com o espaço construído e a conformação de um novo Eixo Corporativo na zona sudoeste paulistana.

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Capítulo 1 : Esfera pública e parceria entre o público e o privado. 1.1- Esfera Pública e Parceria entre o Público e o Privado Através do estudo das mudanças na natureza e no papel do Estado, buscamos encontrar definições que servissem de base para a análise das parcerias entre

o

“público” e “privado”67 para a modificação do espaço urbano, exemplificadas pelo caso das Operações Urbanas levadas a cabo na cidade de São Paulo durante os anos 90. De modo geral, podemos afirmar que as teorias que escoraram as novas aproximações aos problemas urbanos têm origem

no surgimento de uma “razão

instrumental” que dialeticamente produz e é produzida pelos fenômenos relacionados ao modo de produção capitalista. Tal fenômeno se faria mais evidente nas atuais questões sobre o Estado mínimo, governância (governance68), legitimidade do poder público e parcerias entre o “público” e o “privado”. Estas parcerias justificam-se, segundo nossa hipótese inicial, somente no âmbito de um suposto contrato social do tipo proposto por Hobbes e Rousseau, mas apresentam-se muito mais problemáticas sob a crítica ao contrato social elaborada por Hegel e levada adiante, entre outros, por Marx. Este teria contribuído de maneira definitiva para a desmitificação das construções baseadas no modelo de contrato social hobbesiano, ao considerar o Estado moderno como “a instituição que, acima de todas as outras, tem como função assegurar e conservar a dominação e a exploração de classe” (Bottomore, 1988).

67

Já indicamos o equívoco na confusão entre “Estado” e “o público” e entre a “iniciativa

privada” e o “privado”, mas utilizamos estes termos aqui para reproduzir uma falsa dicotomia que permeia os discursos oficiais ou oficialistas sobre esta associação. 68

Traduziremos aqui a expressão inglesa governance por “governância”, conceito que será

explicado adiante.

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A instalação de uma “razão instrumentalizada”69 no mundo contemporâneo teria tido como efeitos imediatos, entre outros, um desengajamento político generalizado e a corrosão interna das utopias sociais igualitárias que dominaram o pensamento ocidental moderno desde antes da Revolução Francesa (ver Harvey, 1989), com reflexos imediatos sobre a pesquisa e o pensamento sobre o urbano. Tal processo, acreditamos, deu-se através da corrosão “por dentro” do núcleo que sustentava a concepção de permanência de um ideal “universal” de igualdade e justiça, passando pela corrosão das utopias igualitaristas e o conseqüente abandono das idéias do welfare state, especialmente após a propalada “vitória” do sistema capitalista (agora em fase de aceleração e intensificação) diante da queda do Muro de Berlim (1989), do desaparecimento da URSS (1991) e o conseqüente incremento das críticas ao pensamento marxista, da noção de contrato social através de uma suposta “razão comunicativa”. “Hoje”, diz Singer, “são as diversas modalidades de estruturalismo _ o marxismo e o keynesianismo_ que estão em ocaso. Sem crises e guerras mundiais, os fundamentos do Estado previsor e redistribuidor estão sendo derrubados e em seu lugar uma nova edição do laissez-faire, sob o signo da globalização, está sendo erigida” (Singer, 1999: 8).

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Grosso modo, a expressão “razão instrumentalizada” refere-se, aqui, à utilização da razão

para a construções ideológicas que escoram o Estado liberal moderno e o sistema de livre mercado. Este conceito será detalhado no decorrer do texto.

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1.2- Constituição e erosão da idéia de contrato social Marilena Chauí (1996) afirma que a história da racionalidade ocidental “pode ser lida como um trabalho para alcançar a determinação completa dos fenômenos naturais e humanos, oferecendo a ‘definição dos seres’ e as ‘leis necessárias de suas relações’. “(...) A racionalidade trabalhava no sentido de eliminar o acaso na natureza, a contingência na história e a fortuna na ética e na política” (Chauí, 1996: 22). Desta busca racional das “leis necessárias” para as relações entre os seres humanos, surgiu na Grécia antiga, ainda embrionária, a noção de contrato social. Segundo Goyard-Fabre (1990), o problema das origens e dos fundamentos da sociedade recebeu duas respostas na filosofia antiga, uma naturalista e a outra artificialista. Assim, a idéia do contrato social nasceu com os sofistas a partir do século V A.C., como produto do questionamento sobre a origem da pólis. Para os sofistas, era clara a oposição entre phúsis e nómos70, sobre cuja origem antropocêntrica não haveria dúvidas, sendo o nómos a condição sine qua non da pólis. Não há cidade na natureza. Ela só existe através das decisões voluntárias que os homens tomam de comum acordo. A cidade resulta, portanto, de um pacto. Platão expõe na sua obra, através do mito ou do raciocínio, o nascimento da sociedade política. O indivíduo, explica, não pode bastar a si mesmo. A autarquia é impossível, pois a multiplicidade das necessidades conduz os homens a se associar. A comunidade dos homens é a cidade. Assim, se a vida social e política é natural pela necessidade, ela é artificial pela relação voluntária e necessária que une os homens. Platão coloca a questão em termos de um contrato que liga o cidadão à cidade e o engaja livremente nela. Este pacto tácito é a regra da vida

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Trata-se de uma das oposições clássicas com as quais os gregos “pensaram” o mundo. A

phúsis , traduzida habitualmente como o físico ou corpóreo, em realidade corresponde à força crescente e indomável do vivo, ou natural. À phúsis se opõe o nómos, a ordem regulada e estável em que habitam as instituições, que pode ser identificada por exemplo com a lei e estendida ao conceito de sociedade. Esta regula as relações humanas e as instituições. Esta oposição entre phúsis e nómos, que foi proposta originalmente pelos sofistas, foi estudada por KIRK, G.S. (1971), Myth: Its meaning and functions in ancient and other cultures. Cambridge: Cambridge University Press.

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cotidiana. Nesta etapa, a problemática do contrato social não é formulada de maneira específica, mas há duas idéias fundamentais: o antinaturalismo e o voluntarismo estão na base da concepção contratualista das sociedades humanas. É somente no século XVI da era contemporânea que o desenvolvimento do pensamento político, aliado aos rigores da história político-religiosa, dá à idéia contratualista sua independência conceitual. Segundo Goyard-Fabre (1990), nos séculos XVII e XVIII há uma “inflação contratualista”, onde uma gama enorme de pensadores vêem no contrato o artefato necessário à instituição das sociedades civis, relegando a um segundo plano quase místico a hipótese do “estado natural”. Porém, à falta de um esclarecimento lógico das categorias às quais se referem os diversos autores, o conceito acumula problemas, já que a natureza específica do contrato é de difícil compreensão. O contrato social é um ato que forma a sociedade, sendo então um pacto de associação, ou um ato que funda a autoridade civil, o que implicaria a submissão e a obediência dos sujeitos? Ele resolve um problema de origem ou um problema de fundamento? Em outras palavras, o contrato possui uma realidade histórica ou tem ele um valor de princípio explicativo? As questões suscitadas nesta etapa podem se multiplicar: a idéia do contrato social esclarece a gênese ou a estrutura das sociedades? Responde a uma questão de constituição social ou de legitimidade política? Sob a aparência de uma clara verdade, a idéia do contrato social se encontra em realidade atulhada de equívocos. O estatuto epistemológico do contrato social é problemático. Se alguns autores como Milton, Locke e Hume falam da realidade histórica do contrato, outros, como Hobbes e Rousseau, vêem nele uma hipótese lógica que responde à exigência de cientificidade de sua filosofia. Mas, desconsiderando a dúvida relativa à historicidade do contrato social, eles desconsideram dificuldades epistemológicas de grande importância. Para Hobbes e Rousseau, a problemática do contrato social é a questão lógica do fundamento da sociedade civil. Eles situam suas investigações num contexto científico: Hobbes declara-se o pai da “ciência política” e Rousseau busca “o direito e a razão”. Eis porquê, tanto num como noutro, a teoria se adapta à hipótese metodológica, racionalmente elaborada, de um estado de natureza. Neste contexto, afirma GoyardFabre (1990), o contrato social adquire um valor operatório: ele é o ato pelo qual os homens escapam a este hipotético estado de natureza. Esta operação exprime a necessidade racional sem a qual a humanidade morreria. O contrato social é então a

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definição causal e genética da vida civilizada. Ele é uma idéia que tem valor de instrumento operatório. Entretanto, o procedimento contratualista não é o mesmo em Hobbes e Rousseau. Para Hobbes, ele resulta de um cálculo racional de interesses. Para escapar à guerra de todos contra todos, cada um desiste de seus poderes naturais e, fazendo todos o mesmo, estes poderes são confiados à persona civilis que é seu representante. Já segundo Rousseau, o contrato não é concluído inter pares, pois ele não é uma transferência de direitos. Ele é o ato através do qual a abdicação das vontades particulares engendra a vontade geral soberana. Kant, por sua vez, se debruçará sobre estas dificuldades. Ele sublinha que o contrato é um dever não condicionado, o imperativo categórico do político, sendo portanto de ordem normativa. Ele não explica nem o nascimento da sociedade civil nem a instituição do poder civil. Para Kant, ele é uma “simples idéia da razão” que não tem, como nenhuma idéia teria, um poder constitutivo. A idéia de contrato social, para Kant, tem simplesmente um valor de princípio regulador, puro e a priori. O fundamento do Estado é, portanto, de ordem transcendental. À “inflação contratualista” dos séculos XVII e XVIII de que nos fala GoyardFabre (1990), suceder-se-á a crítica do contrato social, que teve início com Hume e Burke na Inglaterra a partir do século XVIII, assim como com Herder e Fichte na Alemanha. Ela atinge seu paroxismo com Hegel em 1821, com seu Princípios da filosofia do direito. Hegel atém-se à realidade das tradições sociais, ele quer evitar o jogo inútil dos “briguentos do livre arbítrio” e operar um retorno ao concreto. Ele estuda, por conseguinte, a “prosa da vida”, tal como esta se manifesta no mundo. Ele encontra aí o contrato, onde identifica duas características essenciais: ele é, de um lado, um acordo entre duas vontades particulares independentes que se reconhecem mutualmente e, de outro, um ato pelo qual pode-se tornar proprietário de uma coisa. O contrato, para Hegel, estabelece-se portanto sobre o modo de posse. Assim, fundamentalmente, o contrato é um ato de direito privado. Conseqüentemente, seria impossível admitir as teorias que fundam o Estado sobre o contrato social, qual seja um contrato de associação ou um contrato de governo. Segundo Hegel, autores como Hobbes e Rousseau cometeram uma confusão grave: eles transportaram para a esfera da vida pública uma noção que só tem sentido na vida privada. Hegel vem assim denunciar o caráter individualista da idéia do contrato social, que priva o Estado de toda realidade substancial. Nele se manifesta uma liberdade puramente abstrata, de tal forma que o

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contrato liberal, como o imaginou Rousseau, integra-se num sistema racional imaginado, mas não corresponde às mediações concretas objetivas que permeiam a realização da liberdade e do universal concretos. Em suma, o erro das doutrinas contratualistas

seria pensar a vida política segundo esquemas abstratos de

subjetividade. Seguindo a razão que o inspira, o contrato social habita uma opacidade total; seu conceito não tem mais nenhuma transparência. Hegel “resolve” estas contradições buscando apresentar o Estado como a materialização do interesse geral da sociedade, portanto acima da idéia de contrato. Tendo em vista que o Estado está supostamente “acima” dos interesses privados, seria capaz de superar a divisão entre ele próprio, Estado, e a sociedade civil, bem como o abismo criado entre o indivíduo, como pessoa privada, e o cidadão. Marx rejeita estas elaborações em sua Crítica da filosofia do direito de Hegel, de 1843, dizendo que o Estado, na prática, não representa o interesse geral da sociedade, mas apenas defende os interesses das classes dominantes proprietárias. Ao deparar-se com a questão da verdadeira natureza do Estado e de como resolver a contradição entre sociedade e Estado, Marx chega à conclusão que não basta a realização plena da democracia para que isso aconteça, mas que seria necessária uma mudança muito mais profunda e complexa, isto é, a abolição da propriedade privada. Entretanto, Marx nunca empreendeu uma análise sistemática do Estado (Bottomore, 1988: 133). Foi somente a partir dos anos 1960 que o Estado se tornou um campo de investigação e de discussão importante dentro da corrente de pensamento marxista (Bottomore, 1988: 133). Houve então uma crítica às tendências de análise excessivamente “economicistas”, que atribuíam um papel derivado e “superestrutural” ao Estado e o viam como um mero servo das classes dominantes, sem problematizá-lo (Bottomore, 1988: 134). A partir de então, dentro do pensamento marxista, procurou-se explorar e explicar a “autonomia relativa” do Estado e as complexidades que envolvem sua relação com a sociedade. Poulantzas, defensor da autonomia relativa do Estado, ao debater com Miliband, “critica a [sua] posição instrumentalista (...), argumentando que o Estado capitalista ‘só pode servir verdadeiramente à classe dominante até o ponto em que seja relativamente autônomo em relação às várias frações dessa classe, com vista justamente a tornar-se capaz de organizar a hegemonia do conjunto de classe” (Poulantzas & Miliband, 1975:22, apud Schiffer, 1989:18).

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Entretanto, como alerta Schiffer (1989), “A questão central proposta por Poulantzas para justificar esta autonomia relativa reside na subdivisão da classe dominante em ‘frações de classe’. No entanto, o fato da classe dominante não significar um conjunto coeso e unânime de interesses não faz possível a sua subdivisão em ‘frações de classe’ na medida [em] que não existe especificidade nestas desagregações particulares, sendo conjunturais as uniões em torno de interesses específicos” (Schiffer, 1989: 18). Para Holloway e Picciotto (1978 apud Schiffer, 1989:18), o debate entre Poulantzas e Miliband indicaria uma falsa polarização, pois ambos admitem a separação entre os níveis político e econômico. Haveria um enfoque alternativo a esse problema, que se caracteriza por propor a “derivação” do Estado da categoria do capital, mas Schiffer alerta que esta derivação parte de distintos pontos de vista, segundo a ótica de cada autor (Schiffer, 1989:19). Schiffer cita Jessop (1983: 139), para quem, ainda que as teorias de derivação falhassem em propor um conjunto completo e coerente da sua natureza [da derivação], o debate suscitado pelos seus defensores teria contribuído para o avanço do entendimento do Estado capitalista, ao conceber o “(...) Estado como um elemento

essencial

na

reprodução

burguesa;

[sendo]

uma

força

política

complementando a força econômica da competição e que pode intervir contra o capital, bom como contra a classe trabalhadora” (Jessop, 1983: 139 apud Schiffer, 1989: 19). “Jessop, como síntese do seu trabalho, propõe que se considere o poder do Estado como autônomo, isto é, ‘como condensação da forma determinada do balanço das forças de classes’, e o aparelho estatal como instrumento de dominação política de classe” (Jessop, 1983: 247 apud Schiffer, 1989: 20). Schiffer considera tal posicionamento incongruente, posto que nenhum aparelho de Estado “agiria” com autonomia em relação ao poder do Estado (Schiffer, 1989: 20). “O poder do Estado está justamente em usar o aparelho do Estado no sentido dos interesses dominantes. Interesses estes que são resultantes do confronto entre os interesses do capital individual e do capital em geral. O Estado, no papel de compatibilizar estes interesses, necessita organizar a classe hegemônica, não no sentido de Poulantzas, que considera esta função possível em vista de uma autonomia relativa do Estado (Poulantzas, 1980: 146), mas porque ele tem, efetivamente, função de regular o mercado e viabilizar a reprodução do capitalismo, inclusive a longo prazo” (Schiffer, 1989: 21).

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Portanto, como vemos, duas abordagens diferentes sobre a natureza do Estado prevaleceram na segunda metade do século XX dentro do pensamento marxista. A primeira analisa o Estado a partir de fatores ideológicos e políticos, como as pressões que as classes economicamente dominantes podem exercer sobre o aparelho do Estado e a sociedade, e a convergência ideológica entre aquelas classes e os que efetivamente dispõem de poder no Estado. A segunda abordagem baseia-se mais nas chamadas “coerções estruturais” a que o Estado está sujeito numa sociedade capitalista e a idéia de que, a despeito das disposições ideológicas e políticas daqueles que dirigem o Estado, suas políticas devem forçosamente assegurar a continuidade da produção e reprodução capitalista. Segundo Bottomore (1988: 134), essas abordagens não são excludentes, mas complementares. Junte-se a isso o fato de que correntes políticas tradicionais ou identificadas com posições claras quanto à ação do Estado na sociedade e seu papel na regulação da economia têm visto seus discursos e práticas aproximarem-se cada vez mais. Ou seja, grosso modo, partidos da direita têm incluído cada vez mais elementos do discurso de esquerda e os partidos de esquerda têm cada vez mais admitido ações antes identificadas com a agenda da direita. Essa diminuição dos antagonismos discursivos e programáticos na arena política reforça ainda mais a percepção do papel do Estado como assegurador da reprodução capitalista. De fato, esse papel é cada vez mais exposto e assumido como “garantia de progresso”, bem-estar e ingresso na modernidade. Entretanto, subsistem os antagonismos entre os diversos grupos que poderíamos identificar como pertencentes à classe dominante e portanto avalizadores do poder do Estado e seus beneficiários diretos. Esses conflitos e antagonismos vêm sendo resolvidos, no âmbito do Estado liberal democrático, através de uma série de alianças e mecanismos antes impensáveis ante a heterogeneidade dos interesses. Podemos imaginar que, ao menos parcialmente, a derrocada do “socialismo real” e a propagada vitória da sociedade de mercado tenham contribuído para a instalação de um conserto entre as elites de vários países, preocupadas com a manutenção do status quo, mas receosas de alguns dos “efeitos” de uma sociedade democrática liberal, como a excessiva liberdade de expressão, associação e sindicalização, que ameaçariam sua dominação. Isso ocorreria também no âmbito do Estado de direito, onde as elites não podem ignorar completamente os direitos das classes trabalhadoras, ainda que se

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produzam continuamente mecanismos de exclusão e de alienação como forma de assegurar a continuidade da dominação. Entretanto, o núcleo da crítica marxista da natureza do Estado (e sua negação da constituição de um suposto “contrato social”) permaneceu intacta. No mínimo, essa crítica nos faz compreender que o nascimento dos Estados não é o resultado de um protocolo de acordo. Pensar o social do ponto de vista do individual seria a incongruência máxima do pensamento liberal. Paradoxalmente, Rousseau já teria antevisto alguns destes problemas, principalmente diante da fissura que separa o burguês do cidadão. O individualismo burguês não resistiria à visão dialética do direito político onde a verdade reside na reconciliação da originalidade individual com a totalidade política. Schiffer chama a atenção para o papel do Estado, “(...) não como sujeito da história, mas [como] aquele que, ao implantar os projetos políticos da classe dominante, assume uma condição histórica” (Schiffer, 1989:21), tendo não somente a responsabilidade de construir diretamente a infra-estrutura física necessária à acumulação e reprodução capitalista, mas também difundir a ideologia para manter as condições de dominação entre classes. Para Schiffer, “avaliar o papel do Estado, uma vez que as condições de reprodução das relações de dominação evoluem de acordo com os estágios de desenvolvimento, só faz sentido num estágio determinado do processo de acumulação” (Schiffer, 1989: 22). Torna-se necessário explicar as características deste processo de acumulação nos vários níveis (nacional, regional e local) para entender seus “efeitos” na configuração da territorialidade. Seguindo Schiffer (1989), consideramos que a produção do espaço deve ser avaliada “a partir de uma perspectiva histórica que favoreça o entendimento de porque e como uma sociedade produz e transforma o espaço” (Schiffer, 1989: 6). Do ponto de vista de uma análise marxista, este entendimento remete intrinsecamente às condições de produção e reprodução do capital num determinado estágio do desenvolvimento de dada sociedade e a atuação do Estado nesta produção. Como em Schiffer, a “produção do espaço” de que tratamos neste trabalho refere-se à produção do espaço como resultado do trabalho, e portanto inserido no tempo e num modo de produção específico.

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“A produção do espaço estaria assim relacionada à estrutura econômica da sociedade, ao nível da ‘base concreta’ e não da superestrutura ideológica” (Schiffer: 1989: 8)71. Para Schiffer (1992), “as transformações na territorialidade devem ser interpretadas como resultantes do processo conduzido pelas sociedades visando a constituição de um mercado unificado no interior de sua Nação-Estado. Cabe lembrar que o capitalismo pressupõe uma sociedade de classes, na qual a classe dominante, detendo os meios de produção, controla o processo de acumulação interno. “Os meios pelos quais a classe dominante exerce esse controle, objetivando viabilizar seus projetos políticos e manter as condições de dominação, devem ser entendidos como resultantes da luta de classes intra-nação, a qual, mediada pela instância do mercado, reflete o estágio de desenvolvimento das forças produtivas. “Segue, portanto, que interpretar a configuração da territorialidade em um determinado estágio de desenvolvimento de uma sociedade requer, em primeira instância, caracterizar esta organização social. Para tal, torna-se importante avaliar a sua formação e evolução, identificando o modo pelo qual sua classe dominante conduziu ao longo da história o controle do processo de acumulação” (Schiffer, 1992:8). Como estas proposições aparecem em nosso trabalho? Entendemos que as transformações na territorialidade também têm uma grande importância no nível intraurbano, pois constituem-se em esforços para a adequação do território aos novos modos de acumulação capitalista e que se dão primariamente no território urbano. Isto é, os fenômenos de aceleração do mundo contemporâneo têm na metrópole seu locus principal, pois é na metrópole que ocorre a hiper-concentração de serviços, infraestrutura e mão de obra que possibilitam esta aceleração. Ao analisarmos o tipo de inserção do país no mercado internacional [na divisão internacional do trabalho]72, pudemos verificar a hipótese (polêmica), descrita por Schiffer (1989: 22), de que o capitalismo no Brasil não tem evoluído historicamente no sentido de que uma sociedade burguesa efetivamente se estabeleça. Isto ocorreria, nos termos de Fernandes (1973), em sociedades onde “o capitalismo avançou suficientemente para associar, estrutural e dinamicamente, o modo de produção 71 Contudo, algumas vezes também nos referimos à produção do espaço quanto à forma resultante e os usos possíveis. Nestes casos, tentamos explicitar a diferença, qualificando esta produção. 72 Esta análise é desenvolvida principalmente no capítulo 2 do presente texto.

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capitalista ao mercado como agência de classificação social e à ordem legal que ambos requerem, fundada na universalidade da propriedade privada, na racionalização do direito e na formação de um Estado nacional formalmente representativo” (Fernandes, 1973: 33 apud Schiffer, 1989: 22). Esse fenômeno é explicado por Fernandes nos seguintes termos:

“(...) a

continuidade e a constante renovação dos vínculos de subordinação ao exterior e da satelização dos dinamismos econômicos, sócio-culturais e políticos não se impõem colonialmente, mas graças a uma modalidade altamente complexa de articulação (parcialmente espontânea, parcialmente programada, orientada e controlada) entre economias, sociedades e culturas com desenvolvimento desigual. [...] O liame que as une, porém são as decisões internas de burguesias que desfrutam de autonomia, para escolher soluções alternativas e de poder, para impor suas vontades; elas [burguesias] envolvem os interesses nacionais e usam o Estado para atingir seus fins” [...] “Ao impor posições econômicas, sociais e políticas heteronômicas, o capitalismo dependente impõe, ao mesmo tempo, o privilegiamento no senso mais alto possível das classes ‘altas’ e ‘médias’ como um mecanismo elementar de autodefesa e de preservação das bases internas das relações de dominação” (Fernandes, 1973: 59-60 e 96 apud Schiffer, 1989: 23). Para Schiffer o resultado deste processo é a formação de uma elite dominante, e não de uma sociedade onde a classe dominante é a burguesia (1989:23). “Ao optar por um desenvolvimento associado ao capital estrangeiro como forma de manter sua dominação (o que só se reforçou na década de 90, com a articulação dos interesses conjunturais das elites pelo governo de Fernando Henrique Cardoso: 1995-1998; segundo mandato: 1999 a 2002), a elite nacional o faz em detrimento do próprio desenvolvimento do capitalismo interno, pois esta união, tendo como pressuposto que ambos os parceiros lucrem, impõe um modelo expatriador” (Schiffer, 1989: 23). Schiffer explica que a especificidade da sociedade de elite em relação à sociedade burguesa se refere à impossibilidade de generalização da forma-mercadoria, o que faz com que as relações sociais não se desenvolvam em ambas de modo idêntico (1989:24). Segundo Déak, “ a acumulação desimpedida no mercado interno tanto requereria quanto induziria o pleno desenvolvimento das forças produtivas e em particular o fortalecimento da burguesia que, em última instância, acabaria por desafiar a dominação da elite enquanto classe” (Déak, 1989:8 apud Schiffer, 1989: 24)

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Déak denomina este processo de acumulação interna comandado pela elite dominante no sentido de impedir o livre desenvolvimento das forças produtivas como “acumulação entravada”. A acumulação entravada se caracterizaria portanto por adotar um modelo econômico expatriador, onde “uma parte substancial do excedente é continuamente retirada e enviada além das fronteiras, ao invés de ser incorporada à reprodução ampliada, ainda que haja uma certa acumulação interna como condição mesma da expansão do excedente expatriável” (Déak, 1989:8). Schiffer considera que “as diretrizes econômicas adotadas pelo Estado são portanto decorrentes desta opção da elite nacional que, para se manter dominante, desenvolve um processo de acumulação entravada, o qual reflete simultâneamente os privilégios internos desta elite e as necessidades de reprodução do capitalismo internacional. E o espaço brasileiro é fruto destas diretrizes” (Schiffer, 1989: 25). Ainda que Schiffer esteja se referindo à produção do espaço em escala nacional, a produção do espaço em nível metropolitano (ou intra-urbano) se dá de maneira análoga, pois obedece evidentemente à mesma dinâmica. Em suma, em nosso trabalho, procuramos trabalhar com a hipótese de que a acumulação entravada descrita por Déak, também determina a

produção do espaço intra-urbano, resultando num espaço

fragmentado social e materialmente.

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1.3- Ressurreição da idéia de contrato social Pode-se afirmar que a idéia do contrato social é ressuscitada no século XX, acompanhada de uma certa transformação. O século XIX assistiu a “descoberta” da inter-subjetividade, tomada por pensadores do século XX como fundamento científico para a elaboração de suas teorias. A fenomenologia, por exemplo, teria mostrado que nós “estamos sempre com os outros” e que esta coexistência de fato, originária e irredutível, torna ultrapassada a tese de um contrato social que implica, para constituição da sociedade civil, a participação do individualismo, do voluntarismo e do consensualismo. Mas, se a sociedade não deve ser “constituída”, deve ser organizada, estruturada e institucionalizada. Max Weber reconhece na burocratização da sociedade ocidental o fenômeno maior de seu tempo, mas dá relativamente pouca importância ao paralelismo deste fenômeno com a predominância crescente de uma racionalidade instrumental, isto é, uma racionalidade a serviço das classes dominantes e da organização da sociedade como sociedade de mercado. Weber afirma a possibilidade de uma ciência social “objetiva e rigorosa”, ao mesmo tempo em que proclama a ruína das grandes ambições da filosofia racionalista (e.g. Hegel e Marx), seja no plano teórico (pois a história não poderia ser deduzida de categorias filosóficas), seja no plano prático (porque a pluralidade dos sistemas de valor proíbe qualquer esperança de uma discussão racional sobre estes sistemas). A sociologia de Weber faz eco à sua reflexão filosófica, pois esta, ao excluir que a razão possa colocar objetivos, parece fundar a confusão entre razão e a racionalidade instrumental (Châtelet, 1989). Weber funda a compreensão da ação sobre uma tipologia de determinantes da ação social (Weber, 1971: 22-23) que distingue basicamente quatro tipos de ação: ação racional em finalidade; ação racional em valor; ação emocional e ação tradicional A ação racional em finalidade implica uma consciência dos fins, dos meios e das conseqüências previsíveis da ação, e é plenamente inteligível. Os três outros tipos de ação somente são compreensíveis através de derivação. Weber indica os perigos do uso de conceitos coletivos (como em Marx), abrindo caminho para o chamado “individualismo metodológico”. Para Weber a sociologia só

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pode ser praticada a partir da ação do indivíduo ou de indivíduos, qualquer que seja seu número, portanto de maneira estritamente “individualista” quanto ao método (Weber, 1920), o que visaria a prevenir uma má interpretação substancialista dos conceitos coletivos. O historiador e o sociólogo deveriam evitar a atribuição às entidades que designam estes conceitos os predicados de um sujeito ativo (e.g. “tendência”, “vontade”, etc.). A denúncia da utilização irrefletida das categorias coletivas marca em Weber a vontade de liberar definitivamente as ciências históricas dos pressupostos “metafísicos” do idealismo alemão do século XIX (Huisman, 1993: 2916). Esta “denúncia” é balizada por uma dupla preocupação que guia o conjunto de sua metodologia: assegurar a univocidade da linguagem das ciências humanas e evitar toda interpretação ontológica de seus conceitos. Com isso, Weber quer evitar a confusão entre a lógica dos modelos inteligíveis e a lógica do real. A reflexão metodológica de Weber ligou-se, segundo Huisman (1993), à sua análise do Ocidente Moderno. Os procedimentos colocados em prática pelas ciências históricas devem ser rigorosamente empíricos, para satisfazer às exigências de uma “concepção do mundo orientada de maneira puramente mundana” (Weber, 1965: 39), o que responderia ao desencantamento do mundo operado desde o início pela razão, isto é, a eliminação do recurso à magia como técnica de salvação ou, de maneira mais geral, o desaparecimento do pressuposto de que o mundo pode ser pensado como um cosmos unificado pelo seu sentido. Porém, Weber vai mais longe, como vimos, ao colocar em cheque qualquer representação ou modelo generalistas. Como vimos anteriormente, a constituição da razão como modo de suprir as indeterminações do mundo sem recorrer à magia ou à religião constitui a gênese da sociedade ocidental. Esta racionalização se traduziria tanto no campo das práticas econômicas como no campo das práticas políticas e jurídicas. No entanto, Weber distingue duas esferas da existência: a esfera racional, na qual ele inclui, como vimos, a economia, a política e o direito, e a esfera irracional, que inclui a esfera estética e a erótica (estas seriam, para Weber, lugares de compensação à opressão do racionalismo teórico e prático). Em suma, para Weber, o “mundo moderno” seria produzido pela racionalização das práticas sociais, pela lógica dos sistemas, pela economia de mercado e pela

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dominação do Estado racional. Esta seria uma lógica à qual a ação individual teria de se submeter, a não ser que quisesse ficar condenada à marginalização e à ineficácia. Para Weber (1958), a busca do desenvolvimento econômico pelas nações estaria condicionada a essa racionalidade calcada na inexorabilidade do engajamento com a economia global, cuja contrapartida vem se verificando na desnacionalização do coletivo nacional. Essa inexorabilidade num engajamento “racional” que erode o poder do Estado e a noção de soberania nacional em nome de um interesse difuso e globalizado através dos mercados mundiais carrega em si contradições que procuraremos explorar neste trabalho, pois parece-nos que a legitimidade e a efetiva capacidade do Estado para gerir este coletivo nacional só se enfraquece efetivamente nas sociedades que buscam inclusão no mundo do capital de maneira dependente, não se aplicando de maneira nenhuma às sociedades e aos governos dos Estados desenvolvidos. Ainda que Weber não tenha jamais precisado quais seriam as características formais que nos permitiriam identificar um mesmo processo de racionalização dentro de esferas de ação heterogêneas, parece-nos que a própria história teria se encarregado de explicitar quais seriam estas características num mundo dominado por uma só e mesma razão:

o mercado ou a eficácia da reprodução do capital. Como afirmam vários

pensadores, entre os quais Harvey (1992), o mercado e suas leis teriam estabelecido uma meta-linguagem pervasiva e contaminante de todas as esferas de atuação humana e da própria reflexão. Habermas (1984), por exemplo, concorda que a história e funcionamento da racionalidade moderna fundamentam-se nos sujeitos privados que exprimem livremente seu ponto de vista, mas para ele estes sujeitos vão gradualmente colocando seus próprios interesses acima do bem comum, num uso instrumental da razão, reduzida ao cálculo de seus interesses. Estes interesses se superpõem à busca da universalidade. Os meios tomam o lugar dos fins. A razão instrumental é, assim, a formalização da razão visando, entre outras coisas, à manipulação das massas, através da imprensa, da propaganda e da indústria cultural, dentro do quadro do capitalismo e da crença nas relações sociais reguladas pelo mercado e pelo Estado. Arantes (1999a) indica que, para Habermas, algo pode sobreviver “ao lado” desta razão instrumental, através da linguagem, que é a “comunicação racional”.

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Arantes critica este “fatiamento” da razão, que “ressuscitaria” a esfera pública, mas colocando muita coisa “entre parênteses”: o Estado, a economia, etc.73 O movimento moderno, por sua vez, já havia apostado no poder civilizatório do capital, na mudança e na transformação através da mudança qualitativa que se daria a partir do crescimento quantitativo. Mas, quais são as conseqüências desse progresso técnico? Tão logo nos perguntamos “para quê?” e “para quem?” vão os benefícios da sociedade da informação, ficam claras as lacunas e os vazios sobre os quais se apóia a crença num mercado e num progresso “universalmente benéfico”. Mas as construções ideológicas que dão legitimidade à sociedade tecnológica de mercado são naturalmente bem mais complexas. A noção da “mão invisível do mercado” (nos termos de Adam Smith) foi inflacionada pelos teóricos do liberalismo. A idéia de um mercado que regula praticamente todas as trocas sociais adquiriu uma aparente autonomia epistemológica. Esta autonomia escora as elaborações e discursos que têm como fundamento uma suposta transcendência moral, social e ética do mercado, em suma, a sua quase independência em relação a outros fenômenos da sociabilidade, transcendendo inclusive a própria razão. Isso resultou numa “animização” do mercado, ou a atribuição a ele de características propriamente humanas (“o mercado está agitado”, “o mercado está nervoso”), o que é reflexo desta ideologia e ao mesmo tempo a alimenta, identificando o próprio mercado com o real. Para Arantes (1999a), é aí que a ideologia se torna “não-ideologia”: exatamente quando se identifica inexoravelmente com o real. Toda forma de conhecimento seria ideológica (nos termos de Marx e Engels, em A ideologia alemã, de 1845-46 ), pois mesmo a ciência e a técnica têm um forte componente ideológico, que se expressa nas mediações não claras, naquilo que não está dito, na tomada da parte pelo todo, nos interesses em jogo etc., colocando em cheque toda a elaboração weberiana, baseada em supostos critérios de objetividade e rigor, pois a ciência e a técnica são também expressão da sociedade de classes e do juízo de classes sobre estas categorias. A realidade mediada pela ciência e pela técnica se torna então ideologia dela mesma. A realidade mediada pelo mercado é resultado dessa fetichização.

73

A noção de “fatiamento da razão” servirá mais adiante em nossa crítica da razão

comunicativa habemasiana e seus frutos no campo do pensamento urbanístico.

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Marilena Chauí define a ideologia como sendo não apenas a “representação imaginária do real para servir ao exercício da dominação em uma sociedade fundada na luta de classes”, nem tampouco a “inversão imaginária do processo histórico na qual as idéias ocupariam o lugar dos agentes históricos reais”. A ideologia, definida por Chauí como “forma específica do imaginário social moderno”, seria a maneira necessária pela qual os agentes sociais representam para si mesmos o aparecer social, econômico e político. Esta aparência não deve ser confundida com ilusão ou falsidade. É antes o modo pelo qual sistematizamos as representações e normas sociais que nos “ensinam” a agir, “(...)o conjunto coerente e sistemático de imagens ou representações tidas como capazes de explicar e justificar a realidade concreta. Em suma: o aparecer social é tomado como o ser do social” (Chauí, 1993: 19). Esta construção coerente e lógica nasce de uma determinação “muito precisa”: a pretensa coincidência com as coisas que o discurso ideológico busca, anulando as diferenças entre o pensar, o dizer e o ser, engendrando assim uma lógica que unifica o pensamento, linguagem e realidade para, “através desta lógica, obter a identificação de todos os sujeitos sociais com uma imagem universalizada, isto é, a imagem da classe dominante74. Em outras palavras, a coerência ideológica não é obtida malgrado as lacunas, mas, pelo contrário, graças a elas” (Chauí, 1993: 3 e 21). Assim, ao ocultar e manter indeterminados aspectos essenciais, a ideologia busca dar a si mesma uma coerência que não conseguiria se todas as lacunas fossem preenchidas. Coloca-se como destacada do tempo, normativa e transcendente, “sensata” (ainda que “apaixonante” para alguns) para além dos paradoxos e contradições que mascara. “A operação ideológica fundamental consiste em provocar uma inversão entre o ‘de direito’ e o ‘de fato’. Isto é, (...) de direito e de fato, a sociedade está internamente

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Ainda que Chauí fale em classe dominante, no singular, Francisco de Oliveira afirma que os

grupos dominantes hoje no Brasil representam um conjunto diversificado, que precisa ser articulado: burguesia industrial, burguesia financeira, setores da classe média, empresas multinacionais, ambiente internacional etc. (FSP: 10.02.97, p.1-4). Entendemos essa diversidade dentro do proposto por Schiffer (1989), para quem “o fato de a classe dominante não significar um conjunto coeso e unânime de interesses não faz possível a sua subdivisão em ‘frações de classe’ na medida [em] que não existe especificidade nestas desagregações particulares, sendo conjunturais as uniões em torno de interesses específicos” (Schiffer, 1989: 18).

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dividida e o próprio Estado é uma das expressões desta divisão. (...) A operação ideológica consiste em afirmar que ‘de direito’ a sociedade é indivisa (...), por outro lado a ideologia afirma que ‘de fato’ (e infelizmente ) há divisões e conflitos sociais, mas a causa deste fato injusto deve ser encontrada em homens injustos (...). Assim, a divisão constitutiva da sociedade de classes reduz-se a um dado empírico e moral” (Chauí, 1993:20). A ideologia “oferece à sociedade fundada na divisão e na contradição interna uma imagem capaz de anular a existência efetiva da luta, da divisão e da contradição: constrói uma imagem da sociedade como idêntica, homogênea e harmoniosa. Fornece aos sujeitos uma resposta ao desejo metafísico de identidade e ao temor metafísico da desagregação.” (Chauí, 1993:27). Arantes (1999 a), por sua vez, alerta para a dimensão dialética da ideologia. As “bases” sobre as quais se assenta a ideologia são verdadeiras: a ideologia só é falsa quando se pretende realizada. Haveria um terreno de “convivência” entre a verdade e o erro, onde brotaria a ideologia, ou a ideologia seria este próprio campo? A ideologia não seria então uma “depuração” da verdade ou do erro, mas transforma-se, para Arantes, em simples cinismo, engodo, em coisa explícita, quando cruza a fronteira que a torna igual ao real. Ou, dito de outra maneira, quando o real “passa a ser” a própria ideologia. Mas voltemos às elaborações weberianas, pois nelas encontraremos a raiz de vários discursos contemporâneos que definem e delimitam os conceitos de “Estado”, “empresa” e “sociedade civil” e justificam e avalizam as relações entre estes “atores”. Como vimos, também para Weber a operação de constituição dos objetos, a delimitação dos objetos das ciências humanas, passa por uma “relação de valores”. Isto implica na definição dos problemas em função das orientações de interesse da cultura à qual pertence o sujeito: a “direção da curiosidade” (Weber, 1965: 203), que seria culturalmente condicionada. Entretanto, tal constituição dos objetos dá margem à instrumentalização do próprio modo como se constitui o saber, isto é, as forças criativas tendem a obedecer a direção de um vetor “predominante”, que no caso do Ocidente moderno é evidentemente a lógica do mercado. Como vimos, Weber considera a economia, a política e o direito como esferas “racionais” da existência, sendo que a esfera irracional seria constituída pela estética e pelo erótico, lugares de compensação à opressão do racionalismo teórico e prático. Entretanto, Weber parece ter desconsiderado a contaminação destes campos uns pelos outros, principalmente no que se refere à contaminação da “esfera racional” pela “esfera

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irracional”, e não só pelo erótico, como pretendia Freud, mas muito especialmente pelo estético, como nos indicam vários pensadores contemporâneos, como Harvey, Debord, Galard, entre outros. A contaminação dos campos ditos racionais pelo estético é hoje um fenômeno central da cultura contemporânea e está umbilicalmente relacionada à utilização da estética pelo mercado. Esta “contaminação” das esferas racionais e irracionais encontra seu epíteto nas relações de fetichização da mercadoria e da própria animização do mercado, mas também se fundamentam nas próprias construções ideológicas que sustentam a legitimidade do Estado numa sociedade liberal de mercado. A estas contaminações Weber contrapõe uma autonomização dos campos práticos, que liberaria a lógica específica de cada um, o que permitiria desenvolver uma ação racional em finalidade, independente de qualquer transcendência. Assim, Weber coloca a definição do objeto em perspectiva, do ponto de vista do pesquisador e de sua cultura, mas impõe como campo de análise a tradição positivistailuminista européia, isto é, a reflexão metodológica de Weber uniu-se estreitamente à sua análise do Ocidente moderno, criando uma área nebulosa entre o real e o ideologicamente construído. Em suma, ele identifica na razão instrumental a própria razão. “Fatiando” a razão (para usar o termo de Arantes) descarta em sub-categorias as “outras” razões que poderiam colocar em xeque a razão que justifica o “progresso” e, em última análise, a própria ideologia que coloca o mercado como regulador último das trocas sociais. Em outras palavras, Weber reconhece que podem existir formas de racionalidade distintas daquelas selecionadas pela civilização ocidental moderna, mas sua interpretação da gênese desta civilização nos termos de um processo contínuo de racionalização, conserva laços com uma teleologia eurocêntrica da qual não soube se livrar, colocando certas categorias racionalmente construídas como transcendentais. Como conseqüência desse processo de racionalização nos termos de Weber, identificam-se, numa só coisa, “razão” e “mercado”. Assim, tudo o que está fora dessa “razão” estaria condenado realmente ao fracasso, não por suas características intrínsecas, mas por encontrar-se exilado do campo maior da própria racionalidade. A força com que tudo o que é alternativo é negado pelo capitalismo, seja através de sua absorção, seja através da inversão do seu conteúdo ou ainda pela simples eliminação faz com que as alternativas possíveis acabem por parecer inviáveis.

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Weber, como sabemos, dava pouco crédito às esperanças de emancipação ligados ao ideal racional dos iluministas. Privilegiava a ação livre, liberta das “significações impostas pelas tradições e pelas crenças religiosas”. O homem seria a partir de então um produto da “modernidade”, a única instância doadora de sentido, e esse homem deveria escolher os valores em função dos quais ele orientaria sua ação. Mas Weber, como indicam seus críticos, se acomoda demasiado facilmente na dominação de uma racionalidade instrumental, característica certamente do mundo contemporâneo, mas que não esgotaria inteiramente as possibilidades que contém a razão dos modernos. Sabemos que esta racionalização, atrelada hoje constitutivamente às “leis” do mercado (que, de qualquer maneira, não parecem obedecer sempre a qualquer racionalidade) não tem o mesmo “efeito” em todos os lugares, isto é, a racionalização ad infinitum dos meios de reprodução do capital não implicaria numa racionalização da distribuição dos produtos dessa reprodução. Esta racionalização da distribuição dos produtos escapa à razão weberiana, pois teria de contaminar-se de outras razões, como a ética ou a moral, fundadas numa concepção altruísta e utópica do mundo. Ainda que o fenômeno de racionalização da produção alcance o “mundo todo”, já que o capitalismo é um fenômeno global, esta racionalização não produz os mesmos resultados em todos os lugares. O que é “racional” para uns _no sentido mais chão do termo_ pode ser “irracional” para outros, segundo as conseqüências imediatas daquela racionalidade sobre a vida material e espiritual, e somente pode ser tomado como racional num contexto onde a racionalidade que habita fronteiras historicamente definidas (identificadas com o modelo da democracia liberal ocidental) é generalizada para o mundo todo. Como resposta a estas indagações, Kurz (1996) afirma que

“a sociedade

moderna não se pauta (...) pela estrita racionalidade face a objetos naturais. A escala em que o atual modo de produção destrói seus próprios fundamentos naturais de vida nos deixa em dúvida sobre a afirmação de Weber [de que o mundo moderno define sua relação com o mundo pela racionalidade em oposição às antigas sociedades, que a definiriam de uma maneira “irracional”]”, (Kurz, 1996: 5-7). Para Kurz, “deveríamos antes nos reportar a um ‘segundo desencantamento’ do mundo pela sociedade moderna [em oposição àquele desencantamento operado pela razão]. Tal desencantamento, de fato, ultrapassa todos os anteriores, pois sua pretensão ‘mágica’ é total e inconsiderada.

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A cisão dos sentimentos, das experiências sensíveis e dos sonhos pela razão abstrata deu origem a uma esfera de ‘irracionalismo’ divorciada dos fins e idéias racionais _e isso tanto nos indivíduos como na sociedade em geral. A própria razão abstrata autonomizada é apenas em seus meios racional, não em seu fim.” (Kurz, 1996: 5-7) Esse “fim”, para Kurz, seria a própria “economização do homem e da natureza sob os ditames da moeda, que por sua vez não tem procedência racional, mas mágica. Não somente as relações sociais da modernidade são transpassadas pela moderna magia da moeda e seu irracional fim em si mesmo, mas também a própria ciência e técnica modernas” (Kurz, 1996: 5-7). Tal relação entre uma irracionalização da razão e a ficção monetária aparece também em Harvey (1989). Em suma, a razão, que está na base da constituição do pensamento ocidental, mas que foi irremediavelmente instrumentalizada pelos homens, acabou por engendrar uma ficção que contém vários elementos (de magia, de fetichismo, de animização) que a própria razão nega: o “Mercado” (com “M” maiúsculo para indicar sua transformação em “ente” autônomo). Retomando a arqueologia do contrato social, voltemos por um instante à primeiras décadas do século XX. Para levar a cabo a tarefa de organizar, estruturar e institucionalizar a sociedade, um novo contrato social é necessário. A partir desta premissa, Merleau-Ponty e Albert Camus entreviram a problemática: a “vontade geral” muda de forma e de sentido; ela se torna uma vontade de comunicação que ultrapassaria a aporia solipsista e que faz da experiência dos outros um fato concretamente vivido e integrado à prática corporal do mundo. Às perspectivas existenciais deste novo contrato social viriam juntar-se as considerações técnicas dos juristas e cientistas políticos que se esforçam por promover, segundo a expressão de Faure, “a democracia humanista da época técnico-científica”. Eis a base da razão comunicativa proposta por Habermas. À razão instrumental que “desencanta” o mundo e reduz os fenômenos sociais a pantomimas sem importância frente a uma “inexorabilidade” do progresso tecnológico e da mercantilização do mundo, Habermas contrapõe uma “razão comunicativa”, na esteira de uma mudança de paradigmas que deixaria de lado o trabalho em favor da comunicação entre as classes, buscando pequenos consensos. Isto o afasta definitivamente do pensamento marxista. Para Marx, a esfera pública não se confunde

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com a “opinião pública”, campo onde se desenvolveria a “razão comunicativa” de Habermas. Marx não fala de opinião pública, que seria um mero “conjunto de preconceitos” para o pensamento marxista. Se, para o iluminismo, a opinion publique seria uma forma de controle crítico do Estado, eternamente atento a esta opinião “reguladora”, para o pensamento moderno de esquerda, a opinião pública representa uma opinião da classe dos proprietários, com pretensão à universalidade, indicando seu caráter manipulatório, sendo mero resultado das relações de poder. A esfera pública seria, portanto, mero resultante do processo de esgotamento decorrente da propaganda e da utilização da indústria cultural, reduzindo a política a “questões de ordem técnica” e a ética a “questões de caráter utilitário”. Para Hegel, a “opinião pública” não é mais que uma ficção liberal visando à dominação e de evidente caráter coercitivo. As “razões” da opinião pública são no mínimo suspeitas para Hegel. É doxa (em oposição à ciência), como nota Arantes (1999a), sujeita ao erro, pertencendo ao domínio da retórica. Em outras palavras, a “opinião pública” não seria mais que a “expressão de um conflito de interesses”. A despeito da crítica à noção de opinião pública, o novo contrato social deve então ser elaborado, nos termos lançados por Habermas, em torno do tema da concertação que, em termos filosóficos, responderia ao reconhecimento da intersubjetividade e da responsabilidade comunitária. O “consentimento em ação” que isso supõe encontra-se, entretanto, em situação incômoda perante uma opinião pública que existe mais como figura retórica (ideológica) e os abismos criados entre os portadores do “saber” em oposição aos que “não sabem”, a oposição entre sujeitos competentes e sujeitos incompetentes (ver Chauí, 1982), entre os donos da palavra e os “sem voz”, ou entre os proprietários e os não-proprietários. A nova concepção da ação pública resultante das elaborações sobre a razão comunicativa relativiza o papel do Estado, pois afirma que este não é o único agente a ser levado em conta no jogo desenvolvido entre os vários “atores” da esfera pública. Haveria outros atores que adquirem ainda mais importância na medida em que o Estado atravessa uma crise financeira que reduz sua capacidade realizadora. O suposto fortalecimento dos outros “atores” atuantes na esfera pública estará na base para as elaborações de uma nova construção ideológica na elaboração de uma nova percepção

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da condução dos rumos da sociedade: a governância. Trataremos do assunto mais adiante. Esta “crise financeira” do Estado parece, entretanto, ter estreita relação com as novas estratégias desenvolvidas por este mesmo Estado para, em parceria com a iniciativa privada, atualizar o gerenciamento do mercado e a proteção do lucro. Não pode, por isso mesmo, ser aceita como verdade operativa. Romain Laufer, por exemplo, na esteira dessa suposta constatação de uma falência financeira do Estado, explica a necessidade das parcerias entre o “público” e o “privado” em termos de uma modernização da ação pública e escora estas parcerias numa suposta “relação de tensão” entre as duas categorias, tensão que estaria na base do “sistema de legitimidade” que substitui de certa maneira o contrato social e dá a base para a noção contemporânea de governância. Laufer vê a esfera pública em termos exclusivamente contratualistas, onde o Estado só se legitima, na tensão estabelecida entre público e privado, à medida em que consegue fornecer ou regulamentar e disciplinar o fornecimento de serviços aos cidadãos. Essa legitimação dependeria, por conseguinte, de uma modernização da capacidade de ação do Estado. Essa modernização da ação pública implica numa transformação da relação entre usuários e os agentes responsáveis pelos serviços, públicos ou privados e é bastante congruente com o entendimento da racionalização das relações sociais em Weber e Horkheimer. Na prática, vimos como o Estado se retirou da maioria destes serviços, deixando à iniciativa privada a tarefa de estabelecer novos parâmetros de relacionamento entre os prestadores de serviços essenciais e os usuários, agora transformados em “consumidores” no sentido forte do termo. Porém, essa retirada se deu à custa da renúncia à noção da universalidade dos serviços e à isonomia da qualidade e das tarifas. Em suma, o reconhecimento das desigualdades e a adoção de parâmetros de mercado na resolução dos impasses. Tendo em vista que a legitimidade do Estado não seria atemporal, mas histórica e, portanto, sujeita a crises, as vicissitudes daquele para conservar sua legitimidade num quadro tão desfavorável ao cidadão comum podem parecer quase impossíveis de serem vencidas. Contudo, foi à custa de uma des-legitimização programada que o Estado pôde, nas democracias liberais, conservar alguma legitimidade frente à renúncia aparente em mediar e regular as trocas sociais no capitalismo. Em primeiro lugar, se é

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verdade que o Estado cedeu o papel de mediador e regulador (o que ele não fez inteiramente), ele conservou, aos olhos do cidadão comum, alguns instrumentos que ainda o colocam como o mediador último e legítimo dos conflitos. Afinal, na maioria dos países do Ocidente, o Estado ainda mantém nominalmente o monopólio da violência legal (isto é, o poder legal de punição dos crimes cometidos contra a “sociedade”, entendida como todo homogêneo e encarnada nesse mesmo Estado). Essa seria uma das razões para a inflação na atuação do poder judiciário em sociedades altamente organizadas, como as da América do Norte, ao lado das novas necessidades de arbítrio e regulação decorrentes das novas tecnologias e produtos. A suposta “crise de legitimidade do Estado” teria sido provocada, nos termos de Laufer (entre outros), pela crise fiscal e por sua incapacidade em seguir seu papel como provedor de serviços e organizador do mercado. Essa crença na ineficácia organizacional e na falência fiscal do Estado contribuiu para a derrocada da ação política e resultou também numa confusão de critérios sobre o caráter do público e do privado. Isso acabou inflacionando o papel da ação individual (o “terceiro setor”) e conseqüentemente o papel da razão comunicativa, que repentinamente viu-se de certa forma legitimada pela multiplicação dos interlocutores possíveis. Sendo o poder exercido pelo Estado uma encarnação dos “valores” sociais e o Estado uma “soma de relações sociais num momento dado” (nos termos de Durkheim), a sobrevalorização da ação individual colocou em cheque o uso do poder pelo Estado. A razão comunicativa que escora o crescimento da ação individual (e, portanto, da esfera privada), responde a esse problema propondo o exercício de um “poder compartido”, sempre sujeito à disputa, que seria resolvida através dos inúmeros fóruns de participação, concerto social e diálogo, criando condições ideais de “governância” baseada na legitimidade conseguida através deste suposto “conserto social”. Isso não significa, no entanto, uma volta à “política”, pois a razão comunicativa só se desenvolve entre sujeitos individuais lutando por causas pontuais e específicas, já que o princípio de isonomia _ou igualdade de direitos_ está irremediavelmente abalado e não haveria mais causas “globais” pelas quais lutar. A sociedade, sob essa ótica, é irremediavelmente fragmentada, pois seus interesses também são fragmentados. Desaparece a noção de classe social, substituída por “indivíduos” lutando por interesses diversos e que fazem e desfazem alianças de maneira pragmática visando a conclusão de seus interesses, a

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partir do que a aliança é desfeita e é necessário refazer todo o esquema de alianças para a conclusão de um novo objetivo. Em meio a tal tempestade, o Estado moderno apóia-se numa cambaleante “legitimidade racional-legal” (nos termos de Durkheim), baseada na (aparente) racionalização da administração e dos procedimentos codificados pelo direito e reconhecidos pelos cidadãos e que encontra seu epíteto na noção de “governância”. Essa racionalização, entretanto, é conduzida, como vimos, nos termos do mercado e, em grande medida, para o mercado, já que agora o Estado não retiraria mais sua legitimidade da sua capacidade de “servir” o público, nem de sua missão de tornar todos iguais através de mecanismos redistributivos que visassem reparar as desigualdades (uma utopia iluminista revigorada pelos modernos), mas da sua capacidade de gerir a economia e tornar a sociedade “competitiva” e “dinâmica” (nos termos de Michael Porter), determinando a morte de qualquer utopia igualitária, pois a lógica da competição (ou, mais claramente, a lógica do mercado) estende-se a todos os recantos da vida pública e privada (nos termos de Sennet, 1999). Este novo quadro de coisas é em parte mascarada por uma suposta tensão positiva reguladora produzida dentro da esfera do Estado liberal democrático, base do conceito de governância. A razão comunicativa aplicada às elaborações da democracia liberal, aliada à crença no poder da ciência, da técnica e da instituição como instrumentos de organização e concerto da sociedade lograram, em larga medida, desmobilizar a vida política, sem que o concerto entre as oposições se tornasse de fato operacional ou que se criassem maneiras de diálogo entre estas várias oposições. O “novo contrato social”, surgido da crença nas estratégias caso-a-caso, na tensão positiva produzida entre o Estado, a empresa e uma ainda nebulosa “sociedade civil” e finalmente a crença na eficácia do mercado como regulador das trocas sociais, definiu um “modelo” de sociedade e de certa maneira determinou um programa de ação que acompanharia uma estratégia de execução, estreitamente ligada ao ideário liberalizante nas relações econômicas e sociais. Sua finalidade é a gestão da sociedade atual de maneira mercantil, constantemente buscando legitimidade para suas ações através de elaborações institucionais e da construção de um aparente concerto social. Esta gestão se apoiaria num consenso criado através das estratégias publicitárias, da crença na técnica e na ciência como campos isentos, das construções ideológicas que ocultam a complexidade

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do real e, finalmente, na confusão entre esfera pública e o Estado e entre a esfera pública e o mercado, através de um nivelamento operativo dos termos. O fenômeno corrente do mercado como sucedâneo do Estado na intermediação das trocas sociais está na base da confusão em torno da razão comunicativa, por exemplo, pois esta não encontra uma verdadeira esfera pública na qual se apoiar e se desenvolver. O mercado não é capaz de engendrar uma verdadeira esfera pública, simplesmente porque não é público, pois se estabelece com base em contratos privados sobre as relações de uso, troca ou posse e na exploração da força de trabalho dos nãoproprietários dos meios de produção. Da mesma maneira como Rousseau e Hobbes, transportou-se para o reino do público relações que se estabelecem no reino do privado. Passaremos a seguir ao estudo de uma das modalidades através das quais a “razão comunicativa” se tornaria operacional, a governância, onde encontraremos uma ilustração clara das idéias expostas neste capítulo.

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1.4- Buscando uma definição para governância Traduziremos aqui a expressão inglesa governance por “governância”, palavra ainda não incluída nos principais

dicionários da língua portuguesa no Brasil75.

Optamos por utilizar um termo que vem sendo consagrado pelo uso e que diferencia-se da palavra portuguesa “governança”, próxima em sua etimologia, por seu significado algo mais específico no campo das ciências humanas e mais especialmente no campo das ciências políticas76 . O significado específico de governance justifica, ao nosso ver, a adoção de um neologismo. Definir um neologismo a partir de sua origem numa língua estrangeira poderia ser tarefa relativamente fácil, mas nesse caso o termo parece adquirir significados diversos de acordo com o âmbito em que é utilizado. Fala-se em governância corporativa, governância financeira, governância universitária, mas também da governância de redes (de agências bancárias, de bibliotecas, da Internet, etc.) e da governância de sistemas (de pagamentos, de previdência social, de administração hospitalar, etc.). Aqui falaremos da governância no âmbito do Estado nacional e de suas implicações na caracterização do papel deste nos dias atuais. Num segundo momento, estudaremos o conceito de governância dentro da perspectiva de um mundo globalizado, onde o termo seria utilizado de maneira instrumental para reforçar e justificar uma ordem política e econômica estabelecida pelos países capitalistas desenvolvidos. Governance (no âmbito da condução dos negócios públicos) não é um conceito novo, mas sua origem etimológica na palavra “ [to] govern” (do grego kybernáo, “pilotar”, pelo latim gubernare) pode gerar confusões quanto às nuances no seu significado. Facilmente confundida com a própria noção de government (“governo”, entendido como corpo governante), a governance também aparece identificada com a idéia de governability (“governabilidade”, que se refere às condições de governo ou o ambiente em que ele é exercido). A palavra governance foi utilizada durante muito

75

Dicionário Aurélio (Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001) e Dicionário Houaiss (Rio de

Janeiro: Objetiva, 2002). 76

Segundo os dicionários da língua portuguesa, “governança” é sinônimo de “governação” (

“[Do lat. gubernatione.] S. f. 1. Ato de governar(-se); governo; governança.” Dicionário Aurélio, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.

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tempo na língua inglesa no sentido genérico de operação/ administração / gerência de um governo ou de qualquer entidade ou corpo administrativo ou gerencial (SANP, 2001). Neste sentido, a definição dada pelo Webster’s Third New International Dictionary indica somente que governance é um sinônimo de governo (government), ou “o ato ou processo de governação, de direção com autoridade e controle” (Webster’s, 1986: 982). Esta acepção destaca a importância do poder executivo no corpo governante institucional. Mais recentemente, a governância no âmbito do Estado tem sido compreendida como o “conjunto das tradições, instituições e processos que determinam como o poder é exercido, como é dada a palavra aos cidadãos e como as decisões são tomadas em questões de interesse público” (IOG, 2001: s.p.). Porém, seu significado vem sendo refinado por instituições e pensadores, terminando por expressar um “processo” e um “campo de ação” dentro do âmbito da condução dos negócios públicos: a governância suporia uma relação em “tensão positiva” entre governo constitucional, sociedade civil (instituições) e empresas (SEF, 2001), visando a criação ou manutenção de condições que propiciem a otimização da administração pública, o bem-estar e a justiça social, através da maior interação daqueles três atores principais nos processos decisórios que regem os destinos da sociedade como um todo. Segundo o Governance Working Group do International Institute of Administrative Sciences (Bruxelas), a governância: – “Refere-se ao processo através do qual os elementos da sociedade manejam o poder e a autoridade, além de influenciar e criar leis e regulamentações sobre a vida pública e o desenvolvimento econômico e social. – “É um conceito mais amplo que ‘governo’, cujos principais elementos incluem a constituição, o legislativo, o executivo e o judiciário. A governança envolve a interação entre essas instituições formais e aquelas instituições formadas no seio da sociedade civil. – “Não tem uma conotação normativa automática. Entretanto, os critérios típicos para avaliar a governança num contexto particular pode incluir o grau de legitimidade, representatividade, confiança popular e eficiência

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com as quais os negócios públicos são conduzidos.” (Governance Working Group, IIAS, 1996). Nas suas nuances, este conceito varia de autor para autor, ou de instituição para instituição. Para o Conselho Britânico, órgão oficial do governo do Reino Unido, a governância não seria mais que a “pressão exercida sobre o Estado e as instituições do governo local pelas instituições civis, funcionando como chave para o desenvolvimento da responsabilidade governamental (accountability) e a democracia. As organizações da sociedade civil têm o papel de desafiar sistemas e estruturas de poder e controle que perpetuam a desigualdade, assim como em contribuir para a redução da exclusão e da pobreza” (British Council, 1999). Para o Conselho, essas organizações da sociedade civil podem ter caráter muito diverso e cambiante e podem incluir grandes associações formais (como partidos políticos, sindicatos, corpos acadêmicos etc.) e organizações não-governamentais, bem como associações locais de caráter informal (British Council, 1999). A definição do Conselho deixa de fora a empresa, mas insiste na “tensão” entre diversos atores sociais como forma de condução da administração pública e da correção das estruturas e sistemas instituídos que propiciam a perpetuação da pobreza e da exclusão. Para o Centre d’ Études en Gouvernance da Universidade de Ottawa, o conceito de governância envolve: – “As maneiras complexas como as organizações privadas, públicas e sociais interagem e aprendem umas com as outras; – As maneiras como os cidadãos contribuem para o sistema de governância, direta ou indiretamente, através de sua participação coletiva em instituições civis, públicas e corporativas e – Os instrumentos, regulações e processos que definem as ‘regras do jogo’” (CEG, 2001). Portanto, para o CEG, o campo onde se exerce a governância é a instituição (pública, civil ou corporativa). O CEG vê a coordenação e a organização dos processos institucionais como a base para uma boa governância e prefere substituir a “tensão positiva” entre os diversos atores por um processo de “aprendizado mútuo” e de “contribuição voluntária” para o bem comum.

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Para o Banco Mundial, a boa governância tem especial relevância para os países em desenvolvimento. “A epítome da boa governância é a condução das políticas de maneira previsível, aberta e esclarecida; uma burocracia imbuída de um ethos profissional atuando em prol do bem público; a prevalência da lei, a transparência dos processos e uma sociedade civil forte e atuante nos negócios públicos. Por outro lado, a má governância é caracterizada pela condução das políticas de maneira arbitrária, burocracias pouco confiáveis, sistemas legais fracos ou injustos, o abuso do poder executivo, uma sociedade civil não engajada na vida pública e corrupção generalizada” (World Bank, 1994: s.p.). O Global Development Research Center (GDRC: 2001) observa que o viés adotado pelo Banco Mundial na sua interpretação de governância reflete a crença generalizada na liberalização política e econômica. Segundo o GDRC, tal viés invariavelmente enfatiza questões ligadas à eficiência e responsabilidade estatal e o impacto destes fatores na estabilidade política e no desenvolvimento econômico, características que ficarão mais explícitas adiante, na análise do discurso do FMI sobre a boa governância. As Organização das Nações Unidas, conforme expresso no documento United Nations Millenium Declaration77, considera a boa governância como fator chave para o desenvolvimento das nações, identificando a governância de maneira inequívoca com a democracia e o Estado de direito (UNDP, 2001:1). Em outras palavras, somente em regimes democráticos existiriam as condições para a “tensão” positiva entre os diversos atores sociais. A ONU dá como exemplo a questão das grandes fomes que assolaram alguns países nos anos 90.

“(...) Amartya Sen, um dos mais antigos mentores

intelectuais do Programa de Desenvolvimento da ONU, argumentou que nenhuma grande fome jamais ocorreu num regime democrático onde o governo tem de tratar partidos de oposição, responder a perguntas pouco amistosas no parlamento, enfrentar a condenação da mídia pública, fazer frente a eleições regularmente (...)” (UNDP, 2001:1). Nesse documento, a ONU lembra que, no início do século XXI, mais de 120 países, compreendendo mais de 2/3 da população mundial, estariam “engajados na construção de sociedades democráticas” (UNDP, 2001:1), enquanto no final dos anos 77

Millenium Summit, Assembléia Geral das Nações Unidas, 6-8 setembro, 2000. Anais.

50


70, esses países não seriam mais que 40 no mundo todo. Apesar disso, a ONU reconhecia que em muitos casos “o crime, a corrupção, a exclusão social e política, a fraca administração pública e a falta de ‘responsabilidade’ [accountability] ameaçam os ganhos duramente alcançados” (UNDP, 2001:1), enumerando alguns dos fatores que contribuem para o enfraquecimento das condições de boa governância. Já a definição de governância utilizada pelo Programa de Desenvolvimento da ONU esclarece algumas das características atribuídas ao termo pela instituição: – “Participação: todos os homens e mulheres deveriam ter voz no processo de tomada de decisão, seja diretamente ou através da intermediação de instituições legítimas. Tal participação ampla é construída sobre a liberdade de associação e de expressão, assim como da capacidade [dos cidadãos] de participar construtivamente [do processo de tomada de decisões]; – o império da lei: as regras legais devem ser justas e aplicadas de maneira imparcial, particularmente as leis sobre os direitos humanos; – transparência: a transparência é baseada no livre fluxo de informações. Processos, instituições e a informação são diretamente acessíveis para os interessados, [além disso] informação suficiente deve ser fornecida para que sejam compreendidos e monitorados; – receptividade: instituições e processos tentam servir a todos os interessados; – orientação de consenso: a boa governância faz a mediação de interesses divergentes para alcançar um consenso amplo sobre o melhor para o grupo e também, quando possível, sobre políticas e procedimentos; – igualdade: todos os homens e mulheres devem ter oportunidades para melhorar ou manter seu bem-estar; – efetividade e eficiência: processos e instituições produzem [sic] resultados que vão ao encontro de necessidades, fazendo o melhor uso possível dos recursos; – responsabilidade: os líderes [decision makers] nas organizações do governo, do setor privado e da sociedade civil são responsáveis perante os interesses do público e das instituições envolvidas. Esta responsabilidade [accountability] difere dependendo das organizações e [também] se uma decisão é tomada interna ou externamente a uma organização;

51


– visão estratégica: os líderes e o público devem ter uma perspectiva ampla e a longo termo sobre a boa governância e o desenvolvimento humano, assim como um senso do que é necessário para este desenvolvimento. Deve haver também uma compreensão das complexidades históricas, culturais e sociais nas qual esta compreensão deve estar baseada.” (UNDP, 1997: s.p.) Em suma, também para a ONU, a governância está próxima da noção de governo, mas inclui, como em outras definições encontradas, os atores que estão fora da “instituição governamental”. Também aqui estes atores deveriam interagir com o governo instituído, criando a tensão positiva em que a instituição governamental é levada a avaliar, planejar e discutir suas ações e onde os “desvios” na administração pública são corrigidos pela pressão dos atores sociais através dos mecanismos institucionais criados num regime democrático. As boas condições de governância estariam portanto embutidas não somente em instituições governamentais bem estruturadas e democráticas, mas também numa sociedade civil dinâmica e participativa, que possuísse fóruns de discussão, crítica e intervenção nos rumos da administração. Contudo, a própria ONU admite que concentra seus esforços, através dos seus diversos programas de desenvolvimento, na gerência e aperfeiçoamento do setor público78. A ONU, nesse documento, parece acreditar que o Estado seria capaz de engendrar ou favorecer, a partir de suas próprias práticas, as condições necessárias para o desenvolvimento das instituições civis e privadas (de caráter formal ou informal), que criariam com ele aquela tensão positiva. Isso é consoante com a idéia que o Banco Mundial defendia já em 1989: “Esforços para a criação de um ambiente favorável e para o desenvolvimento de capacidades será desperdiçado se o contexto político não for favorável. Em última instância, a melhor governância requer renovação política. Isto significa um ataque coordenado à corrupção, do nível mais alto até o mais baixo. Isto pode ser feito através do

estabelecimento

de

bons

exemplos,

pelo

reforço

da

responsabilidade

[accountability], pelo encorajamento do debate público e pelo favorecimento de uma 78

O Programa de Desenvolvimento das Nações Unidas (UNDP, 2001) apresenta as seguintes

“linhas” de atuação no fomento às boas condições de governância: organização do legislativo; processos e sistemas eleitorais; acesso ao sistema judiciário e direitos humanos; acesso à informação; descentralização e governância local; administração pública e reforma do serviço público.

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imprensa livre. Significa também (...) estimular as classes trabalhadoras [grassroots] e as organizações não governamentais, tais como as organizações de agricultores, cooperativas e grupos feministas” (World Bank, 1989: s.p.). Atingir estes objetivos pressupõe uma ação externa na “correção” do papel do Estado em sociedades onde a boa governância não encontra campo favorável para se desenvolver, tendo em vista que a tensão positiva necessária para a correção desse papel viria de uma sociedade civil organizada e atuante_ e não o contrário. A ONU propõe-se a ser esta força externa através de suas várias agências de fomento e ajuda e seus fóruns de debate e discussão, papel também reivindicado pelo próprio Banco Mundial e principalmente pelo Fundo Monetário Internacional (FMI), como discutido adiante. A ONU justifica sua ênfase nas boas condições de governância afirmando que estas estariam ligadas às condições objetivas para a redução da pobreza e à promoção do bem-estar social, indicando a confiança deste órgão no poder transformador da esfera pública, ainda que reconheça suas limitações: “(...) instituições de governância fracas ou pouco abertas podem anular o impacto [de políticas de erradicação da pobreza, pois] (...) em muitos casos, os pobres não podem se fazer ouvir em suas reivindicações em regimes pouco democráticos, não podem ter acesso aos serviços públicos em regimes burocráticos fechados; ou não foram nem mesmo informados de que estes serviços existem” (UNDP; 2001:2). Porém, a ONU, bem como os outros organismos internacionais mencionados, não responde ao fato de que, mesmo em regimes considerados “democráticos”, não há garantias de que certos setores sociais possam se mobilizar institucionalmente para fazer valer suas reivindicações, ainda que as condições de governância sejam consideradas adequadas, especialmente face às construções ideológicas com que o Estado mantém seu poder na sociedade de mercado. Por fim, a governância também vem sendo objeto de estudo acadêmico, principalmente por pesquisadores trabalhando com ou para agências internacionais de desenvolvimento ou ajuda. A maioria destes profissionais têm se concentrado quase que exclusivamente na questão da legitimidade política79, que é a variável necessária produzida pela boa governância. A governância, tal como entendida neste âmbito, “é o

79

Especialmente na França, como em Romain Laufer, François Ascher, Alain Bourdain, etc.

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gerenciamento consciente de estruturas políticas, visando a reforçar o reino público” (SANP, 2001: s.p.). Destacamos a contribuição de Goran Hyden80, para quem a governância é uma noção ampla que serve para definir um viés de estudo em política comparativa. Sob este ponto de vista, Hyden enfatiza o potencial criativo da política, especialmente com relação à habilidade de alguns líderes para se “elevarem acima das estruturas existentes, mudar as regras do jogo e inspirar outros a compartilhar esforços para levar a sociedade a rumos novos e produtivos.” (SANP, 2001: s.p.). Para Hyden, a governância possui as seguintes características: – “É uma aproximação conceitual que, quando bem elaborada, pode delimitar uma análise macro-política comparativa; – trata de ‘grandes’ questões de uma natureza ‘constitutiva’ e estabelece as regras da conduta política; – envolve uma intervenção criativa dos atores políticos para mudar as estruturas que inibem a expressão do potencial humano; – é um conceito racional, que enfatiza a natureza das interações entre o Estado e os atores sociais e entre os atores sociais propriamente ditos; – refere-se a tipos particulares de relação entre os atores políticos, isto é, aqueles que são socialmente sancionados, e não agem arbitrariamente” (SANP, 2001: s.p.). Em suma, o conceito de governância ganhou destaque nos últimos anos, além de ter adquirido um significado mais complexo. O conceito de governância pode servir como um balizador no gerenciamento dos negócios públicos e uma medida de desenvolvimento político. O conceito também se tornou um mecanismo útil para reforçar a legitimidade do Estado, não escapando da instrumentalização para a construção ideológica dessa legitimidade. Entretanto, se entendido dentro de um quadro que leva em conta esta utilização instrumental e o caráter do Estado numa sociedade de mercado, pode servir como um dos elementos num quadro de análise das ações do poder público e da evolução de um novo cenário político nacional e mundial.

80

Professor de Ciências Políticas na Universidade da Flórida, EUA. Autor, entre outros, do

livro, Governance and Politics in Africa (1992).

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A globalização teria elevado a tensão entre os três sustentáculos da governância -_sociedade civil, governo e empresa_ (Henderson, 1997:1), induzindo vários estudiosos a clamar pelo estabelecimento de parâmetros de “governância global”. Essa governância global significaria “em palavras simples, (...) o desenvolvimento de políticas para a monitoração e resposta ao processo de globalização” (SEF, 2001: 1). A tensão entre os diversos “atores” da governância, operando agora em escala global, atingiu nos últimos anos um nível que exigiria a criação de novas instituições e mecanismos para o gerenciamento das relações _ou novas tensões_ entre a sociedade civil dos diversos países, os governos e a corporações globais. Entretanto, é no âmbito do FMI (Fundo Monetário Internacional) e do Banco Mundial que os conceitos de governância nacional e global adquiriram valor instrumental, ganhando maior visibilidade e relevo institucional nos últimos anos. O FMI trabalha com o conceito de governância como parâmetro para aferição na condução das políticas nacionais de desenvolvimento, condicionando empréstimos a boas condições de governância. É preciso clarificar qual é o papel desta instituição no cenário político-econômico mundial para entender porque a sua definição de governância e o uso que dela tem feito adquiriram tanta relevância. Para o FMI, os aspectos da boa governância relevantes incluiriam primeiramente itens como a estabilidade macro-econômica, a viabilidade externa e o crescimento econômico ordenado (FMI, 1997:3). Outros aspectos envolveriam um ambiente menos propício à especulação, a melhoria na transparência dos processos decisórios e nos processos de elaboração orçamentária, a redução nas isenções fiscais e subsídios, melhorias no sistema de gerenciamento de fundos, melhorias e disseminação das práticas e estudos estatísticos, melhorias na composição do gasto público e a aceleração da reforma no serviço público (FMI, 1997: 7), ítens que tem forte impacto sobre a governância local. O envolvimento do Fundo, diziam seus técnicos, deveria se concentrar essencialmente nos “aspectos econômicos” da boa governância, através dos seus conselhos políticos e assistência técnica, principalmente em duas esferas: – “a melhoria da administração dos recursos públicos (e. g. os bancos centrais, os bancos nacionais, as empresas públicas, o serviço público e as instituições oficiais de estatística), incluindo procedimentos administrativos (e. g., controle de gastos, administração da receita e coleta de impostos);

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– o apoio ao desenvolvimento e a manutenção de um ambiente econômico e regulatório [das atividades econômicas] transparente e estável, propício à eficiência das atividades do setor privado (e. g., sistema de preços, regime de câmbio e comércio exterior, os sistemas bancários e as regulamentações correlatas)”. (FMI, 1997:3) Em outras palavras, os aspectos da boa governância descritos acima funcionariam como fatores de “condicionalidade” para a liberação de empréstimos ou apoio do Fundo para a obtenção dos mesmos junto a outros organismos internacionais, como o Banco Mundial e o Banco Interamericano de Desenvolvimento, com os quais o FMI mantém parcerias. Condicionando seus empréstimos não só às boas condições de governância política, mas principalmente a parâmetros de “governância econômica” que pretendem reger aspectos tão essenciais de uma economia como os descritos acima, o Fundo não pode deixar de interferir em aspectos essenciais do governo dos países que a ele recorrem, com reflexos também sobre as administrações locais. Através de seu poder de barganha, que inclui o poder de barrar qualquer tipo de investimento internacional para qualquer país que não tenha seu aval, o Fundo tem o poder de inviabilizar administrações e frustar planos de governo, constituindo-se assim numa força coercitiva muito mais poderosa que qualquer outra força ou instituição internacional, como a ONU. O poder do Departamento de Estado dos Estados Unidos de influenciar as decisões do Fundo só confirmam a hegemonia daquele país nos fóruns internacionais de discussão e ação política81. Ainda que a noção de boa governância pareça carregar em si a busca da resolução de problemas fundamentais que assolam diversos países em desenvolvimento, o problema reside em permitir ao FMI definir quais parâmetros da boa governância serão utilizados para estabelecer quem merece e quem não merece novos fundos. Além, obviamente, do poder mais que efetivo que o Fundo possui para “punir” os países que

81

Num exemplo recente, o FMI e o Tesouro dos Estados Unidos divulgaram comunicado

conjunto em que afirmavam que os empréstimos à Argentina, já em estado declarado de moratória, só seriam retomados com a reestruturação da dívida externa e uma reforma tributária (Folha de S. Paulo: 13.02.2002, p. B-4).

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alegadamente não seguem estes parâmetros, sem um efetivo controle democrático (a nível global) de suas ações. Não é de se espantar, portanto, que o FMI tenha servido de instrumento para os EUA na promoção de sua política econômica externa aos países dispostos a aceitá-la e de sua agenda política a nível mundial. Qual o significado que adquire o conceito instrumentalizado de governância num quadro como o descrito acima? Longe de representar um conjunto de regras isentas para a melhoria do desempenho dos governos nacionais, aumentando sua responsabilidade [accountability] perante seus cidadãos, e submetendo-os à tensão positiva que os levaria a escolhas mais justas para toda a sociedade, a governância torna-se um instrumento de controle do Fundo Monetário sobre os países onde as reformas estruturais ditadas pelo liberalismo econômico, tal como advogado pelas nações ricas (e especialmente pelos EUA), ainda não se completaram. Estas reformas estruturais, geralmente identificadas com a flexibilização das regulamentações trabalhistas e de proteção à produção nacional, obedecem ao um ideário construído a partir de meados dos anos 70 por organizações como o próprio FMI, o Banco Mundial, a OMC, o Fórum Mundial Econômico (Davos) e o Departamento de Estado dos Estados Unidos. Esse ideário está imbricado no próprio conceito de governância utilizado pelo FMI e outros órgãos internacionais, pois implica também na privatização de setores controlados pelo Estado e na desregulamentação das leis trabalhistas e tarifárias. O Estado, de acordo com esse ideário, supostamente enfrenta duas “crises”: a de “legitimidade” na condução dos negócios públicos e na gerência dos serviços e a “financeira”, que o obrigaria a abrir mão da liderança dos investimentos em infraestrutura e ao abandono dos sistemas de seguridade social apenas esboçados no caso da maioria dos países do Terceiro Mundo nas décadas anteriores. Neste trabalho, o conceito de governância será utilizado como índice das mediações entre

“sociedade civil” e Estado, cumprindo um papel eminentemente

ideológico. Isto é, a “tensão positiva” de que falam alguns teóricos seria apenas uma construção para o mascaramento e atenuamento dos conflitos inerentes à dominação de classes e que se espelha na produção do espaço urbano de maneira também conflituosa. A mediação das formulações ligadas à governância serviriam apenas para legitimar processos de cooptação que a retórica oficial substitui pelo “consenso”.

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A imposição de um ideário neo-liberal ligado às regras da “boa governância” estabelecidas por órgãos internacionais, baseando-se numa suposta crise de legitimidade e numa propagada crise fiscal do Estado são o pano de fundo sobre o qual se desenvolvem ações e políticas ao nível local.

1.5- Razão, Capital e Espaço Dentro de um quadro como o que vimos descrevendo, onde a liberalização da economia vai de par com a crença na infalibilidade do mercado e na confiança (de caráter positivista) numa sociedade regida por critérios pretensamente técnicos, mas profundamente identificados com o ideário liberal, é notável o retorno de alguns aspectos de irracionalidade, contra a qual a própria noção de Estado se fundamenta. “Na sociedade capitalista contemporânea, sob domínio do capital financeiro, [a razão] não opera mais com a materialidade concreta da produção, isto é, do trabalho e dos produtos, mas com o jogo imprevisível do deslocamento veloz do capital e com a fragmentação e dispersão da produção, de sorte que o referencial deixa de ser o trabalho, tanto como força de trabalho quanto como trabalho cristalizado nos produtos, para ser o consumo ou o que Marx chamara de fetichismo da mercadoria” (Chauí, 1996: 22). Como conseqüência, há um abandono da ética, idealmente universal e humanista, passando-se cada vez mais à utilização da técnica e da estética como base do julgamento, inclusive moral, para os problemas do mundo. Se num primeiro momento é a crença cega na ciência e sua pretensa “isenção” que domina o imaginário e as construções ideológicas que justificaram as violências perpetradas em nome de uma suposta superioridade da civilização ocidental liberal, vinculada aos valores da burguesia, hoje é o mundo das aparências e dos simulacros que toma o lugar do mundo das coisas mesmas, deslocando a discussão e descolando as idéias do real, com conseqüências nefastas para o pensamento. As coisas mesmas dão lugar a “produtos”, à mercadoria fetichizada (nos termos de Marx), à “aparência” sem substância e à forma publicitária pura. A estética, numa sociedade cada vez mais espetacularizada (nos termos de Guy Debord) se impõe como um consenso artificial e pretensamente isento e que envolve o social num manto de aparência descolado da base real das condições da vida material de

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vastas populações: os “excluídos” ou qualquer outro nome que se lhes queira dar. Ou ainda, como prefere Cardoso, “aqueles que entraram no desvão de história” e não são “necessariamente portadores de futuro” (Cardoso, 1996). A estética torna-se assim cada vez mais a mediadora do real. Para Jean Galard (1999), haveria um descondicionamento da experiência estética pela generalização. Para o filósofo francês, a dimensão estética já estaria presente no julgamento crítico de maneira espontânea, mas a estetização generalizada da vida em diferentes instâncias geraria um “anestesiamento” do pensamento crítico fora dos fenômenos estéticos. Esta “estetização” do real, que tão bem serve ao mercado, envolve não só a fetichização da mercadoria (material e imaterial) levando a fenômenos como a obsolescência programada ou o “demodismo” precoce, como a própria fetichização do espaço onde se dá a produção, que passa a ser entendido puramente na sua formalidade e na sua instrumentalidade para a produção capitalista contemporânea. O próprio social toma ares de pura representação (no sentido teatral), para escapar do reino da ética para o império da estética. A instrumentalização do espaço urbano através dos discursos formalistas (estéticos)

ou

pretensamente

técnicos

resulta

em

fenômenos

análogos

de

“descolamento” do social como a preocupação em resgatar o lugar público (e não o público propriamente dito), como descreveremos adiante. Rosalyn Deutsche (1996) lembra que as formas espaciais são antes de mais nada “estruturas sociais materializadas”. “Vista através das lentes da função, a ordem espacial parece, ao contrário, ser controlada por leis naturais, mecânicas ou orgânicas. É reconhecido como social [somente] no sentido em que vai ao encontro das assim chamadas necessidades dos indivíduos agregados” (Deutsche, 1996:50). Segundo Deutsche, o espaço, seccionado de sua produção social, é então fetichizado como uma entidade física e acaba experimentando uma transformação que se dá por “inversão”. “Representado como um objeto independente”, aponta Deutsche, “parece exercer controle sobre as próprias pessoas que o produzem e utilizam”. A impressão de objetividade, segundo ela, é real, “tanto quanto a cidade é alienada da vida social de seus habitantes” (Deutsche, 1996: 50-51). A funcionalização da cidade representa o espaço como politicamente neutro ou meramente utilitário. “Pois a noção de que a cidade fala por si mesma esconde a identidade daqueles que falam através da cidade” (Deutsche, 1996:50-51).

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Milton Santos, em A aceleração contemporânea (1993), identifica no espaço este conteúdo de racionalidade, que surge graças à “intencionalidade na escolha dos seus objetos, cuja localização, mais do que antes, é funcional aos desígnios dos atores sociais capazes de uma ação racional” (Santos, 1993: 17) Esta “matematização” do espaço, decorrente de uma instrumentalização geral da razão em favor de uma ideologia dominante, tornaria propícia a matematização da vida social. Isto é, a razão é instrumentalizada para tornar a apreensão da realidade, e conseqüentemente a ação, cada vez mais mediadas por índices, números e valores que podem ser “escolhidos” em detrimento de análises mais amplas e compreensivas dessa mesma realidade. Os métodos de análise, índices e metas quantitativos82 seriam quase sempre utilizados conforme os interesses que Santos chama de “hegemônicos”. Assim se instalariam “não só as condições de maior lucro possível para os mais fortes, mas também as condições para maior alienação possível para todos.” (Santos, 1993: 18). Nos espaços de “racionalidade” criados, o mercado, segundo Santos, torna-se tirânico e o Estado tende a ser “impotente”. Entretanto, observa-se que, longe da impotência, o Estado alia-se como sempre ao capital, ajudando a criar os espaços onde este habitará sem constrangimentos. Ao mesmo tempo, a espetacularização e extrema visibilidade das ações “públicas” ao fazê-lo contribui para a manutenção da legitimidade das administrações e para a perpetuação desse ou daquele indivíduo no poder (nos termos de Chomksy, que atribui papel fundamental às estratégias publicitárias para a legitimização e perpetuação do poder político nas sociedades modernas). A “aceleração” da reprodução capitalista, largamente baseada nas estratégias empresariais da chamada “acumulação flexível”, nas novas tecnologias informacionais, na desregulamentação do trabalho e na des-solidarização generalizada entre os vários grupos sociais, vai de par com um suposto declínio da esfera pública (Habermas, 1984; Sennett, 1999) onde é a própria razão construída pelo iluminismo (uma razão “ética”, em última instância) que se vê substituída por uma razão matematizada, cinicamente pragmática e flexível, como flexíveis e “pragmáticas” seriam as próprias condições de acumulação do capital. Este declínio da vida pública significa um declínio do próprio

82

Utilizados, por exemplo, na elaboração de macro políticas econômicas por parte de

organismos supranacionais (como o FMI e o Banco Mundial) ou nacionais (como os governos).

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humanismo e da solidariedade como parâmetros para a sociabilidade, substituídas agora pela competição e pelas relações pragmáticas e instrumentalizadas, como indica Sennett (1999). Em última instância, a razão ancorada nas regras do mercado significa a falência da própria razão, substituída agora por uma “razão em ação”, que justifica a si mesma através de construções ideológicas e se legitima através de ações publicitárias ou da espetacularização do real. Portanto, o espaço é mero “instrumento” para essas ações e para a acumulação do capital. Aqui o espaço atinge seu grau máximo de fetichização. O espaço urbano é apreendido e julgado através dos filtros opacos de sua funcionalidade (a cidade “bem administrada”) ou de sua plasticidade (a cidade “bela”, nos termos de Deutsche, 1996), sem que os conflitos sociais que aí se dão sejam levados em conta dentro de um projeto verdadeiramente público. Ao contrário, agora “esterilizado” socialmente, o espaço urbano é instrumento de “desenvolvimento” e de um “progresso” ideologicamente apresentado como “de todos”, sem que jamais sejam explicitados os indivíduos a quem este progresso realmente atinge e a quem este “desenvolvimento” beneficia de fato. Esse parece ser o caso da Operação Urbana Faria Lima, conforme veremos adiante. O espaço urbano é, como sempre, “espelho” de uma burguesia que celebra as artes e a cultura _ em suma, sua “civilização” _, enquanto promove operações de gentrificação [gentrification] e expulsão de populações de zonas “decadentes”, abandonadas pelas populações mais ricas ou simplesmente impróprias para a realização do lucro, seja ele de natureza imobiliária, cultural, turística ou outras. A estética e a funcionalidade _ além da “segurança”, no caso brasileiro_ assumem hoje de maneira mais proeminente o papel que teve o sanitarismo na época de Cerdá e Haussmann ou Saturnino de Brito em São Paulo, entre outros, para justificação de grandes processos de intervenção urbana. Segundo Deutsche, a ideologia da função obscurece a maneira conflitual pela qual as cidades são usadas e definidas na prática, repudiando a existência mesma dos grupos que contrariam os usos dominantes do espaço (Deutsche, 1996: 51). Deutsche cita Raymond Ledrut para definir a cidade como “produto das práticas sociais”, o que se opõe fortemente às definições tecnocratas da cidade como produto de “especialistas”. A cidade, Ledrut insiste, não é uma moldura espacial externa aos seus usuários, mas é produzida por estes. Segundo Deutsche, estas definições seriam, apesar de sua aparente obviedade, uma base importante para a luta política.

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Deutsche prossegue: “Desapontadoramente simples, as formulações de Ledrut têm implicações muito profundas. Não somente ele reconhece explicitamente a participação de grupos sociais diversos na produção do meio, mas também argumenta contra um meio imposto de cima pelas instituições estatais ou pelos interesses privados, ditados pela necessidade de controle e lucro, porém legitimados pelos conceitos de eficiência e beleza” (Deutsche, 1996:51). Tais asserções vão ao encontro do processo de “estetização” do real descrito por Galard e de matematização do espaço de Santos. A “cidade eficiente” e a “cidade bela” serão as imagens sustentáculo para as grandes intervenções urbanas, mesmo as mais violentas. A instrumentalização do espaço urbano está na raiz de outra ficção evocada para a reconstituição de uma esfera pública: o “resgate” do “lugar público”. Na raiz da obsessão pelo lugar público está a vontade de “restauração” de uma sociabilidade perdida nas cidades modernas. Isto, segundo Arantes (1999), teria um forte cunho ideológico, visando preencher um vazio deixado pela própria falência do espaço público, como nas chamadas “teorias da presença”. Aqui os “espaços públicos” transformam-se em simples imagem, em geral de caráter mercadológico: cenários de uma vida social que inexiste, representações cenográficas de uma vida urbana perdida. Como nos lembra Arantes, citando Jean-Pierre Jeudy: “Trata-se de uma cenografia gestionária da cidade, algo como uma teatralização da vida quotidiana, em que a história da cidade não é mais do que estética da memória, uma sucessão de quadros ‘representativos’ da vida cotidiana” (Arantes, 1999: 135) Aqueles que levantaram a questão da cidade como lugar acreditavam no espaço público como espaço de interação social. Mas isso se dá somente como imagem imposta. Cria-se artificialmente uma coesão social sobre o espaço público através da adesão das pessoas a uma imagem “construída” da cidade ou outra ficção ideológica qualquer. A “nova” vida pública se daria, segundo estes teóricos, na metamorfose das teorias do discurso e das práticas urbanas. Na prática, aponta Arantes, resulta numa pura e simples “decoração urbana”, com a evidente manutenção de um status quo razoavelmente conhecido. Aqui está o ponto onde a ideologia da “esfera pública” e da “opinião pública” se mostra mais claramente como construção lacunar e deixa de ser ideologia propriamente dita, transformando-se em indústria cultural, em publicidade,

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em manipulação, em falácia: quando seu caráter opressivo se torna suficientemente evidente. Portanto, na base das ações para a “recuperação” do lugar público, estaria a ideologia que o celebra, enquanto não faz nada para recuperar a esfera pública que o habitaria. É sintomático que as grandes operações de recuperação ora em curso no centro das principais metrópoles mundiais (Berlim, Paris, Londres, entre outras, e mesmo São Paulo, Rio de Janeiro e Buenos Aires) se realizem às custas de vultosas somas concedidas pela iniciativa privada em troca da divulgação institucional de sua parceria e que os antigos usuários dos locais recuperados sejam muitas vezes mantidos à distância à custa de violência institucionalizada. O chamado planejamento estratégico apresenta-se como uma resposta pragmática à idéia da tensão positiva contida na noção de governância, aliada à crença de que essa tensão poderia ser equacionada pela razão comunicativa. Associa-se também à crença na falência da capacidade do Estado em gerir a cidade e o fracasso do planejamento territorial urbano dos modernos, que produziu os planos diretores de caráter generalista. Esse fracasso teria como causa a “relativa inoperância destes planos quando não se apoiam em dinâmicas econômicas e sociais que permitam seu desenvolvimento em projeto” (Borja & Castells, 1997: 235). Ainda que reconheçam a importância do planejamento para o desenvolvimento urbano, os teóricos do planejamento estratégico colocam em evidência a distância que separa o plano globalizante do efetivamente concretizável no campo do projeto e do desenho urbano. Reconhecendo o papel regulador e impulsor da administração pública, ressalvam, porém, a incapacidade desta para desenvolver, operar e financiar os grandes projetos necessários para a costura e o desenvolvimento do tecido urbano sem as parcerias com a iniciativa privada. Neste aspecto, identifica-se como um instrumento de governância e vem sendo usado por administrações municipais ditas progressistas para apoiar e justificar suas políticas urbanas. De fato, a participação de agentes públicos e privados seria condição básica para a elaboração e realização de um plano estratégico, já que o planejamento estratégico, calcado nas idéias de governância, pretende envolver em sua dinâmica “todos” os atores sociais, visando criar consenso e aceitação sobre seus objetivos. Borja e Castells (1997) reconhecem o desnível entre estes atores, pois admitem que “uma parte da população

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tem baixos níveis de organização, de liderança e de visibilidade social” (Borja & Castells, 1997:243). Porém, confiam num concerto baseado na razão comunicativa capaz de gerar legitimidade e consenso. Para esses autores, a comunicação em relação à cidadania e o marketing em relação ao exterior formariam parte essencial do planejamento estratégico. Poderíamos identificar o modelo proposto por Borja e Castells com as teorias sobre a governância, em relação às parcerias entre o público e o privado, onde existiria uma “tensão de relação” criando um certo equilíbrio que por sua vez sustentaria um sistema de legitimidade qualquer. Porém, na fala dos autores consubstancia-se uma teleologia da ideologia, isso é, as instrumentações ideológicas são abertas e incorporadas aos processos de planejamento, sem que sejam verdadeiramente desmascaradas. A ideologia da dominação, nos termos de Chauí, é incorporada de maneira pouco sutil aos processos que levam à legitimação das ações do poder público. Evidencia-se a afinidade do planejamento estratégico com a razão comunicativa baseada no concerto entre atores sociais, ancorado em “estratégias” de atuação que visam a conquistar posições de maneira gradual e acumulativa, base para condições de governância ideais. Condicionando a elaboração de uma estratégia válida à consideração do entorno (a globalização), às dinâmicas e às atuações em marcha, Borja e Castells (1997: 240) parecem estar dizendo o óbvio. Mas o que revela o caráter de sua elaboração é o que não é dito pelos autores. Em momento algum parece haver a possibilidade de alternativas ou dissensos sobre as dinâmicas mercantis prevalentes. O caráter estratégico da atuação não inclui a atuação nos interstícios destas dinâmicas visando contrariá-las, invertê-las ou anulá-las através da ação racional, mas produzir uma ação de resultados que levasse a uma situação de progresso dentro de um quadro dado a priori. Na ação estratégica, identifica-se mercado e sociedade de maneira inexorável, criando assim a confusão de que tratamos na primeira parte deste texto, onde a confusão criada pela substituição das categorias públicas pelos contratos privados invade as intermediações da razão sobre a atuação do homem em seu próprio universo social, artificialmente (culturalmente) produzido. No caso do planejamento estratégico, é a miríade de contratos privados firmados entre os diversos atores sociais que formam a base para a ação. Mas quem são os agentes da ação? Aqui reside um problema, pois estes contratos não se fazem somente entre agentes privados, mas entre

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estes e um poder “público” (o Estado). Este poder público é visto aqui como defensor dos interesses de TODA a sociedade, o que não é congruente com a verdadeira natureza do Estado contemporâneo, como discutimos anteriormente. Borja e Castells (1997) identificam três níveis de intervenção (grande, média e pequena), segundo sua escala, sendo que a grande intervenção partiria de uma visão estratégica do território e implicaria três condições : – Devem corresponder a um cenário futuro e a objetivos econômicos, sociais e culturais; – devem ser coerentes com outras atuações e dinâmicas que se realizam no território; – devem ter efeitos “metastáticos” sobre seus entornos, ou seja, devem ser geradores de iniciativas que reforcem seu potencial articulador. Em outras palavras, trata-se de intervenções complexas, multifuncionais e geradoras de novas centralidades de âmbito urbano-regional, que Borja e Castells identificam com o novo sistema urbano metropolitano. A intervenção de nível médio corresponde àquela que se dá dentro da cidade existente. Esta seria a escala das intervenções de renovação de centros e da promoção de novos eixos de desenvolvimento e de novas centralidades. Elas se apoiariam na recuperação daquilo que Borja e Castells chamam “espaços potentes e obsoletos”, que os autores aparentemente identificam com áreas mais ou menos centrais cuja obsolescência das funções liberou-as para a implantação de novas atividades. Os autores também citam as “ações infra-estruturais qualificadoras do entorno”, isto é, obras de infra-estrutura que possuiriam caráter gerador de novas dinâmicas no território, com a combinação de infra-estrutura e investimento em atividades do terciário de “excelência”. De maneira geral, a Operação Urbana Faria Lima e a abertura da Avenida Águas Espraiadas, tais como foram realizadas em São Paulo nos anos 90, correspondem a esta escala de intervenção, sendo que a primeira constitui-se no tema desta dissertação. Por fim, a pequena escala de intervenção corresponderia aos projetos urbanos pontuais, mas que, apesar de sua escala reduzida, teriam também uma “função estratégica” no desenvolvimento urbano. Teriam natureza muito variada, como “ações monumentais, realização de equipamentos ou locais de negócios (hotéis, centros

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comerciais, centros de lazer, etc.), reabilitação de ruas ou conjuntos de edifícios valorizados por sua posição ou por seu simbolismo, à criação de pontos dotados de forte visibilidade e acessibilidade” (Borja & Castells, 1997: 239). De maneira geral, esta última escala de intervenção corresponde aos programas de “revitalização” de centros urbanos ou orlas marítimas e portuárias, como os projetos de revitalização de equipamentos culturais e imóveis no centro de São Paulo, propostos por várias instituições na década de 90 (notadamente a estratégia programática que vem sendo levada a cabo tanto pelo poder público como pela iniciativa privada com a recuperação de edifícios no centro de São Paulo para fins culturais: Sala São Paulo na Estação Júlio Prestes, antigo prédio do DOPS, a Pinacoteca do Estado, a antiga sede dos Correios, o Centro Cutural Banco do Brasil, o Teatro Abril, a Galeria Prestes Maia, entre muitos outros exemplos, além de algumas iniciativas na área de serviços, como o Shopping Light). O “irracionalismo moderno”, segundo Kurz (1996), “não se dá a conhecer sob a mera roupagem de movimentos religiosos, mas muitas vezes sob a figura racional de idéias políticas de fachada e até mesmo como pretenso conhecimento científico” (Kurz, 1996). Neste sentido, podemos citar as idéias urbanísticas contidas em formulações como o planejamento estratégico, que, sob a égide de um “senso de oportunidade dirigido”, conduziria nossas cidades a um “happy-end” em meio à barbárie urbana produzida pelo sistema capitalista, especialmente no Terceiro Mundo, mas também no Primeiro. O “planejamento estratégico” em urbanismo aparece como um subproduto daquela “razão instrumental” _uma espécie de “razão de mercado”_, reforçando-a sem jamais contradizê-la. Apoiando-se numa terminologia bélica e diretamente saída da lógica competitiva do próprio capitalismo, o planejamento estratégico promete justamente o contrário do que a lógica em que se baseia foi capaz de produzir até os nossos dias. Com a desculpa de que os “fins justificam os meios”, já largamente utilizada na etapa anterior da acumulação capitalista nacional _a frase “É preciso que o bolo cresça para então dividi-lo”, cunhada por Antônio Delfim Netto, um dos nomes fortes do pensamento econômico no Brasil durante a ditadura militar, é sua melhor ilustração_, o planejamento estratégico alia-se ao capital e faz concessões que acabariam por inverter seus objetivos proclamados. A pretensa distribuição da renda que seria gerada pelas parcerias Estado/capital perdem seu sentido declarado quando se

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entende o Estado moderno como mero “facilitador” da acumulação, função histórica que vem exercendo desde a formação dos Estados nacionais burgueses a partir da Revolução Francesa. Ocorre uma perversão: os meios justificam-se a si mesmos, pois é em função deles que se pensa a sociedade, isto é, através da própria acumulação capitalista. É o que Kurtz chamou “a biologização do social”. Os fundamentos do planejamento estratégico encontram-se calcados na crença no equilíbrio possível entre os “atores” sociais (o Estado, a empresa e a sociedade civil), nivelados (ao nível do discurso) na tensão positiva que criaria a condições ideais de governância. Essas condições ideais de governância não seriam mais que o aplainamento do terreno para a boa reprodução do capital global, com o mascaramento dos conflitos entre “atores” sociais através da criação de falsos consensos entre sujeitos absolutamente díspares em sua capacidade e disposição para o gerenciamento e resolução destes conflitos e nos seus objetivos finais.

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Capítulo 2 Globalização e inserção brasileira na divisão internacional do trabalho 2.1- Globalização e inserção brasileira na divisão internacional do trabalho O proclamado desaparecimento das metanarrativas que haviam sustentado o movimento moderno pelos teóricos da Pós-Modernidade deu lugar, paradoxalmente, à uma meta-narrativada ainda mais abrangente: o discurso da globalização.

“A

globalização é filha legítima da lógica e da história do capital.” Assim Braga (FSP: 01.09.96: 5-3) define este fenômeno que se impõe em quase todos os aspectos da vida nesta virada de século. É portanto na própria lógica interna do sistema capitalista que encontraremos as raízes deste processo, a que poderíamos caracterizar simplesmente como o estágio atual do modo de produção capitalista. Há fortes oposições, hoje, sobre a validade da própria expressão globalização. É inegável que as acelerações do mundo contemporâneo teriam mudado quantitativamente,

mas

também

qualitativamente

o

caráter

das

transações

internacionais, ainda que, como nos indica Batista Jr. (FSP:17.10.96 :2-2), os países centrais não tenham apresentado variação percentual importante nos investimentos no Terceiro Mundo ou nas suas taxas de importação de produtos, conservando bem protegidos seus mercados, sua indústria e seu controle sobre as tecnologias. Estaríamos, assim, muito longe da definição apologética que reza, segundo a descrição de Paulani (1996), que a globalização decorreria, da “extensão, para um mundo ‘sem fronteiras’, dos benefícios do círculo vicioso da concorrência-produtividade-crescimento da riqueza” (Paulani, 1996:5). Porém, as novas dinâmicas ligadas à maneira como a globalização se realiza representariam, de qualquer maneira, a falência de um modelo baseado na regulação fordista, no controle keynesiano da demanda efetiva, no desmanche do Estado de BemEstar Social, entre outros fatores. Para Santos (1996, a, Mais!), é como ideologia que a

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globalização se realiza de maneira mais funesta, pois serviria para levar alguns países, entre os quais o Brasil, a “se alienar completamente da condução de seu destino e da construção de um projeto nacional” . Neste trabalho, utilizamos a expressão “globalização” para definir não o processo de integração das economias mundiais “num mundo sem fronteiras”, mas da aceleração e intensificação dos fenômenos de transnacionalização da acumulação capitalista conduzida pelos países desenvolvidos [centrais ao capitalismo], que se identifica com uma construção ideológica que pretende dar conta dos fenômenos contemporâneos ligados a esta aceleração, no campo do trabalho, da produção, da cultura, da informação e da mobilidade do capital. Parece-nos claro que só é possível abordar o tema da globalização de um ponto de vista crítico, baseando-se não nos discursos que a enxergam como o um desenvolvimento “natural”, inevitável e até desejado da sociedade de mercado, mas naqueles que estudam a “globalização” como uma meta-narrativa social e politicamente construída, historicamente determinada e que não exclui elementos utópicos em sua formulação discursiva. Constitui-se, por isso mesmo, numa poderosa ferramenta ideológica. A utopia embutida no conceito de globalização é distinta da utopia que animou movimentos como a Revolução Francesa ou o Movimento Moderno. A principal diferença é que o centro utópico já não está mais no homem, mas no processo em si, isto é, o fim para o qual se trabalha é a própria eficiência e dinamização do mercado, com o lucro como paradigma básico para os julgamentos e decisões. Poderíamos dizer que a ética passou para segundo plano, ainda que alguns discursos sustentem a capacidade do mercado de promover um suposto “bem geral”. Ao contrário da Revolução Francesa, que buscava a “igualdade de direitos” entre os homens, ou do Movimento Moderno, que centrava sua ação num projeto futuro de homem em sociedade, a globalização é a realização da ideologia do mercado, baseada em formulações e estratégias como a produtividade e a competitividade. A produtividade está intrinsecamente ligada ao conceito de competitividade. Nos dias de hoje, segundo nos diz Santos, a competitividade toma como discurso o lugar que ocupava o progresso no início do século e o desenvolvimento, no pós-guerra (Santos, 1993:18-19). Santos alerta para o caráter ‘a-ético’ da busca da competitividade. “Antes (...) o debate era filosófico, teleológico. A noção de ‘progresso’, lembra Daniel Halevy,

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comportava também a ideia de progresso moral. O debate sobre desenvolvimento (...) tinha um forte acento moral.(...) Mas a busca da competitividade, tal como apresentada por seus defensores _governantes, homens de negócio, funcionários internacionais _, parece bastar-se por si mesma, não necessita qualquer justificativa ética, como, aliás, qualquer outra forma de violência” (Santos, 1993: 18-19). Haveria também a idéia, embutida nos discursos, de que qualquer um, em qualquer lugar do mundo, poderia ser beneficiário da riqueza gerada pela difusão da tecnologia decorrente do aumento da produtividade. Este incremento “geral” de produtividade seria resultante, entre outros fatores, da eliminação das barreiras ao livre comércio e à livre competição, em suma, da liberalização da economia. O que chamamos “globalização” é a realização em escala mundial de uma ideologia que se justifica plenamente em sua lógica interna de liberação de fluxos, flexibilização das regulamentações, velocidade e eficiência dos mercados. Por sua vez, estas categorias adquirem autonomia e naturalizam-se como categorias essenciais e necessárias. Passa-se a produzir saber e conhecimento não só sobre a globalização, mas a partir dela, como se fora inevitável e natural que os fluxos devessem ser intensificados, os mecanismos reguladores que supostamente “engessam” o mercado devessem ser flexibilizados, as velocidades aumentadas e a eficiência da produção incrementada. Mantendo o homem fora de seu centro e substituindo-o pela reificação e naturalização do mercado como regulador das trocas sociais através de formulações pretensamente isentas e técnicas, como o aumento da produtividade e o incremento da competitividade, parece fácil justificar esse movimento e dar-lhe um sentido, sem levar em conta as reais condições materiais de sobrevivência e reprodução de uma vasta parcela das populações. Recolocar a evolução do homem (e não das tecnologias) no centro do conhecimento é necessário para que se julgue a globalização a partir de um paradigma válido para o homem em sociedade, numa perspectiva não tecnicista e comprometida com as reais condições materiais de produção, reprodução e exploração da força do trabalho. Em suma, é necessário que a ética volte a nortear o pensamento. Uma possibilidade concreta seria, através de dados objetivos sobre a distribuição das riquezas, chegar a conclusões sobre o funcionamento negativo do

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modelo. Isso certamente tem sido feito, mesmo com os percalços criados por distorções estatísticas e metodológicas83. Mas essa é uma alternativa que pressupõe recolocar a priori o homem no centro utópico da discussão. Antes, porém, parece-nos necessário um trabalho de desconstrução do modelo atual e dos discursos que o sustentam, visando recolocar as categorias em uso em seu devido lugar, dentro de uma epistemologia baseada naquela ética. Ao fazê-lo, partimos da premissa de que a sociedade é dividida em classes sociais em permanente antagonismo e onde a classe dominante impõe sua ordem e sua lógica através, no mais das vezes, da ideologia.

No nosso caso, é

importante também destacar a dimensão geo-política que deveria permear qualquer análise. Os diversos países encontram-se em estágios distintos da acumulação capitalista. Contudo, mais importante que seu estágio de desenvolvimento é o arranjo encontrado pelas elites dominantes de cada país para sua inserção numa ordem global, hoje praticamente dominada por três grandes áreas de influência econômica : EUA, União Européia e Japão, com a primeira como líder do processo. Por que deveríamos recolocar aqui conceitos tão elementares da análise marxista, como a divisão da sociedade em classes e o conceito de ideologia? Parece-nos evidente que os processos e fenômenos descritos neste trabalho, em relação à Operação Urbana Faria Lima, têm seus fundamentos no pensamento neoliberal, revigorado durante a década de 90. A análise e a crítica do pensamento neoliberal e os resultados da sua hegemonia nos últimos anos exige a recolocação daquelas categorias de análise. Uma das características do chamado “neoliberalismo” e da sua fachada política, a “Terceira Via”, é a inversão e, em alguns casos, a abolição desses conceitos dos discursos e da vida política. Batista Jr. (1996) nota que “Em se tratando de neoliberalismo, por exemplo, a primeira tarefa da crítica deveria ser a de recusar a mitologia construída em torno de um conjunto de idéias ultrapassadas “(...) A própria etiqueta neoliberal é enganosa (...) [pois] confere status de novidade a um fenômeno que representa uma volta ao passado e que não incorpora nada de fundamentalmente novo ao velho liberalismo” (FSP:05.12.96: 2-2). Aqui, utilizaremos o termo neoliberal somente para distinguir as 83 Como no caso do diagnóstico do Banco Mundial quanto à diminuição da pobreza nos anos 90, contestada por vários estudiosos, que crêem que o Banco teria se visto forçado a “criar” avaliações positivas sobre o processo de globalização através de distorções metodológicas e manipulações estatísticas (Entrevista com Robert Wade, FSP: 11.11.2002: A-6)

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idéias liberais inseridas no fenômeno de intensificação e aceleração da reprodução do capital no final do século. Chauí (1999), por sua vez, argumenta que os defensores da chamada “Terceira Via”, a fachada moderna do velho liberalismo, trataram de abolir da sociedade e da política o conceito de luta de classes, tido como obsoleto com o fim da sociedade bipolar (capitalismo X socialismo). Essa afirmação partiria, segundo Chauí, de três idéias principais: – “a divisão direita/esquerda não teria sentido, pois só adquiriria significado numa sociedade bipolar, isto é, na sociedade da Guerra Fria; – “a divisão direita/esquerda deixa a esquerda cega para os benefícios materiais do capitalismo e a direita cega para a grandeza dos valores socialistas; – “a reunião desses benefícios e dessa grandeza para formar um novo consenso tem como condição desvincular a idéia de justiça social da idéia de igualdade social e afirmar a prioridade da iniciativa individual como instrumento de progresso coletivo contra o postulado obsoleto de propriedade coletiva dos meios de produção” (Chauí, 1999). Essas idéias teriam constituído a base da teorização inicial para a “Terceira Via”, que teria como “(...) pressuposto básico a harmonia essencial entre o capitalismo (a sociedade de mercado pragmática, criativa, inovadora) e a democracia (os valores da justiça e da individualidade), pois ambos se fundam na prática da competição e desprezam a busca covarde da segurança a qualquer preço (isto é, o Estado de Bemestar, agora, e a propriedade coletiva dos meios de produção, amanhã)” (Chauí, 1999). Esta construção não é nova. Manter o “núcleo duro da materialidade capitalista”, como diz Chauí, e recobrí-lo com elaborações de cunho social, destituídas de qualquer reflexo nas relações de exploração da força de trabalho, determinou a renovação e a perpetuação das contradições inerentes ao capitalismo em vários momentos de crise. Neste caso, representa uma intensificação destas contradições e a reafirmação da opção liberal do investimento dos fundos públicos para o capital, e não para o trabalho. Veremos como isso se dá na análise da adequação do território urbano às novas condições de produção exigidas pelo processo de intensificação dos fluxos e flexibilização das regulações, nos quais se baseia a Operação Urbana Faria Lima.

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2.2- A aceleração contemporânea De maneira geral, a segunda metade do século XX assistiu a uma inédita “aceleração”. Milton Santos define as acelerações como “momentos culminantes na História”, que abrigariam “forças concentradas, explodindo para criar o novo” (Santos, 1993:15). Nossa época seria caracterizada pela multiplicação e confusão dos signos, “após havermos vivido o tempo dos deuses, o tempo do corpo e o tempo das máquinas.” (Santos, 1993:15). Segundo Santos, para uma análise acurada deste fenômeno, não deveríamos limitar-nos à velocidade strictu-sensu, pois se a aceleração contemporânea impôs novos ritmos ao deslocamento dos corpos e ao transporte das ideias, teria também acrescentado novos itens à história, como a nova evolução das potências e dos rendimentos, o uso de novos materiais e de novas formas de energia, a expansão demográfica, a expansão urbana e a explosão do consumo, acompanhada do crescimento exponencial do número de objetos e do arsenal de palavras. Santos considera, entretanto, o conhecimento, “causa próxima ou remota de tudo isso”, a grande maravilha do nosso tempo. A aceleração contemporânea seria, por isso mesmo, um resultado também da “banalização da invenção, do perecimento prematuro dos engenhos e de sua sucessão alucinante. São na verdade, acelerações superpostas, concomitantes, as que hoje assistimos” (Santos, 1993:16). O espaço se adapta a este novo estado de coisas. Atualizar-se, afirma Santos, seria sinônimo da adoção dos componentes que fazem de uma determinada fração do território o locus das atividades de produção e das trocas de alto nível, por isso consideradas mundiais. Estes lugares seriam os espaços hegemônicos em que se instalariam as forças que regulam a ação em outros espaços (Santos, 1993:17). Em termos gerais, o final dos anos 70 assistiu à crise dos modos de gestão centrados no Estado e à reestruturação da divisão espacial do trabalho, tornando o desemprego e a insolvência pública o centro das preocupações de muitas sociedades. Houve uma diminuição progressiva na ênfase do consumo de massa e a “energia dos movimentos sociais organizados, direcionada a essas demandas, reflui” (Martins, 1993:8). A partir da década de 80, houve uma reação do sistema econômico, que se reorientou em direção a políticas chamadas neoliberais, como já observamos,

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significando especialmente a redução nominal da intervenção do Estado na economia, o que se refletiu na desregulamentação progressiva nas relações de produção e trabalho, nas privatizações e na relativa abertura dos mercados, sem que o Estado deixasse de exercer seu papel primordial no sistema capitalista, qual seja, a organização dos interesses da classe dominante, visando manter sua dominação política e otimizar as condições de acumulação (Schiffer, 1999). Segundo Paulani (1996), o panorama econômico hoje estaria fortemente influenciado pelos oligopólios mundiais. Estes grupos delimitariam espaços bem definidos, protegidos da concorrência, mas também espaços de cooperação, quando isto se faz necessário. “Indóceis e fora do alcance das regulações e controles nacionais, esses poucos grupos dominam a economia mundial, comandam setores inteiros e produzem, pela lógica cega que preside a seus movimentos, uma nova situação marcada por deslocalizações industriais ávidas de custos de mão-de-obra reduzidos e desregulados, pelo caráter rentista da riqueza, pela indistinção entre indústria, serviços e finanças e pela dominância inconteste da dimensão financeira de valorização.(...) O espaço da economia é o espaço mundial, de modo que os processos econômicos não podem mais ser considerados a partir de suas arenas nacionais” (Paulani, 1996:5). Entretanto, a pretensa redução do Estado não corresponde sempre à realidade. Batista Jr. (1996), demonstra que, se houve desregulamentação de mercados, dos sistemas financeiros, privatizações, etc., a presença estatal aumentou na grande maioria dos países desenvolvidos a partir da década de 8084. Para Lencioni (1996), o capital domina hoje o terciário, a produção científica e a difusão das informações, ou seja, a chamada produção imaterial, o que o desobriga a uma conexão mais forte com a base territorial onde opera. Este fenômeno não desobriga à formação de bases de operação e gerenciamento da produção, o que ocorre na forma de uma hiper concentração desta base material nas chamadas cidades mundiais, mas a desconexão do capital de uma base material e a multiplicação dos investimentos no mercado financeiro ou na chamada produção imaterial cria uma enorme mobilidade para este capital, facilitando os mecanismos de investimento e desinvestimento85. Além 84 Nos EUA e Japão, por exemplo, o gasto público total médio passou de 31% do PIB, em 1978-81, para 34% em 1992-95 (FSP: 05.12.96: 2-2). 85O fenômeno da rápida migração de capitais pelas bolsas de valores mundiais culminou na crise mexicana de 1994, quando a crise de confiança dos investidores no mercado mexicano significou a

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disso, a produção material flexível e pulverizada tornou menos onerosos os movimentos de desinvestimento dos setores industriais. Na atual fase da acumulação capitalista, a produção material se pulveriza, buscando mão de obra mais barata, fácil acesso aos insumos e estabilidade política e social, além da desregulamentação do trabalho, com a ausência de sindicatos fortes. Componentes diversos de um mesmo produto são fabricados em partes diversas do globo. Numa economia assim globalizada, onde o transporte de mercadorias de um ponto a outro do planeta se faz com facilidade, as unidades produtivas são cada vez menores, tornando a produção mais flexível e competitiva. Isso torna mais fácil a adaptação às novas exigências de demanda, com estratégias produtivas como o just in time (a produção de bens controlada para atender a demanda imediata, reduzindo os custos com produtos não vendidos e estocagem, além de disponibilização de capital de giro e maior flexibilidade no trato com os fornecedores de insumos). A crescente terceirização dos serviços contribui para a redução nos custos, mas também permite que o peso dos encargos sociais e a impopularidade causada pelas demissões em massa não mais atinjam as corporações86. Demissões e encargos passam a ser responsabilidade de uma multiplicidade de firmas contratadas, graças à terceirização das atividades. Na prática, há uma pulverização da capacidade de organização dos trabalhadores e uma diluição das demandas comuns, com a consequente diminuição da força dos sindicatos tradicionais87. transferência imediata de bilhões de dólares para mercados considerados mais seguros. Falou-se num efeito em cadeia que significaria a retirada dos investimentos estrangeiros dos mercados latinoamericanos, significando a quebra das economias regionais e, em última análise, uma nova grande crise financeira no mundo capitalista, semelhante ao grande crack da bolsa nova-iorquina de 29, o que não se concretizou graças à maciça ajuda norte-americana ao mercado mexicano. 86No Brasil, o desemprego atingiu em 1996 apenas 6,38% da população economicamente ativa (PEA), segundo dados do IBGE, porém na região metropolitana de São Paulo este número chegaria a 14% (1996). 87A fábrica de caminhões da Volkswagen, inaugurada em novembro de 1996 em Resende (RJ) era considerada pelos movimentos sindicais uma ameaça ao modelo vigente de representação trabalhista. (FSP: 02.01.97: 2-5). A fábrica incorporava o conceito de ‘consórcio modular’, sistema que modifica o processo de fabricação em uso, trazendo para dentro da fábrica os vários fornecedores. Cada empresa é alojada em um local específico da fábrica, assumindo a responsabilidade por sua parte no processo de montagem do veículo. O resultado é uma fragmentação da força de trabalho: dos mil trabalhadores, apenas 20% pertenciam à própria Volkswagen. Paulo Bresciani, técnico do Dieese, considerava que “O

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Como conseqüência da flexibilidade industrial e da escassa proteção ao trabalho, a transferência da produção de componentes pode ser facilmente transferida para plantas localizadas em pontos diversos do globo, sem grande prejuízo para as operações finais de venda do produto e realização do lucro. As grandes empresas não mais construiriam dispendiosas sedes para a administração de seus negócios a nível local, optando por alugar escritórios ‘inteligentes’, facilitando sua mudança para outra cidade ou país em casos onde isso fosse necessário. Várias destas empresas ocupam escritórios em edifícios de alto padrão nas imediações da Avenida Faria Lima e ao longo do Eixo Corporativo ao longo da calha do Rio Pinheiros, conforme veremos no capítulo 5 deste texto. No entanto, mesmo onde o mercado consumidor é suficientemente grande e diversificado para permitir a realização de lucro, não há garantias de que o capital gerado produza acumulação interna. A globalização reveste-se de um caráter inequivocamente ideológico ao fazer crer que seus benefícios são igualmente repartidos entre todos os países, pois com a flexibilização do trabalho e a liberalização das remessas de lucros, os processos de acumulação interna se tornaram ainda mais “entravados”, conforme definição de Déak (1991), discutida no capítulo 1.

2.3- O trabalho flexível na nova ordem econômica A desregulamentação do trabalho não se restringe à área industrial, mas a toda a relação trabalhista formal, incluindo os aspectos mais específicos do trabalho no setor terciário moderno. Márcio Pochman, especialista em relações trabalhistas da UNICAMP, destaca a desestruturação das relações formais de trabalho no Brasil, diretamente ligadas à “flexibilização” institucional e legal descritas: “Entre 1940 e 1980, em cada dez postos de trabalho criados no país, oito eram assalariados, sete com carteira assinada, e dois não-assalariados. Na década de 90, em cada dez postos, oito são não-assalariados e dois assalariados sem carteira assinada, segundo dados do IBGE” (FSP:14.06.99: 3-1).

novo sistema radicaliza a terceirização da produção e obriga os trabalhadores a repensarem sua estratégia de atuação”(FSP: 02.01.97: 2-5).

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Tabela 2-1: Distribuição dos Ocupados, segundo Posição na Ocupação. Região Metropolitana de São Paulo (1999), em %: POSIÇÃO NA OCUPAÇÃO

OCUPADOS

Assalariado (1) Setor Privado Com Carteira de Trabalho Assinada Sem Carteira de Trabalho Assinada Setor Público Autônomo Trabalha para o Público Trabalha para Empresa Empregador Empregado Doméstico Mensalista Diarista Outros

61,4 52,8 40,4 12,5 8,5 21,0 12,9 8,1 5,4 8,9 7,0 1,8 3,3

Fonte: Secretaria de Economia e Planejamento - SEP. Convênio Seade - Dieese. Pesquisa de Emprego e Desemprego - PED. (1) Inclusive os ocupados que não sabem a que setor pertencem.

As políticas de flexibilização e internacionalização da economia adotadas a partir de 1989 geraram desemprego em massa nas antigas áreas industriais, o que não foi compensado pela criação de novos postos de trabalho no setor terciário. Entre 1989 e 1997, Porto Alegre perdeu 31% de seus postos industriais, Campinas perdeu 28%, Curitiba 7.5%, Belo Horizonte 5.5%. Mas nada se compara às perdas ocorridas na cidade do Rio de Janeiro: 45% dos empregos industriais foram cortados naquele período (FSP: 19.09.99: 2-4). Entre 1989 e 1996, foram extintos 350 mil postos de trabalho na indústria metal-mecânica, que em 1996 empregava 600 mil pessoas na Grande São Paulo, segundo o SEADE. Segundo a entidade, 34,2% dos ex-metalúrgicos migraram para o setor de serviços. Outros ramos da indústria teriam absorvido 14% daquela mão de obra. Dos 30% restantes, metade estava inativa ou aposentada. A outra metade vivia de “bicos”, enquanto buscava um novo emprego (FSP:19.12.96: 2-1). O aumento do número de trabalhadores do setor terciário tem um impacto profundo no território urbano: “(...) [A] ampliação da participação do setor terciário (serviços) na composição do emprego tem impacto cada vez mais substancial sobre a

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organização das cidades. Dentre os serviços, as atividades financeiras apresentam um peso específico, gerando comportamentos econômicos, reestruturações urbanas e mesmo novas formas culturais que não decorrem da flexibilidade industrial” (Refinetti Martins, 1993: 10). Tal fato adquire uma importância inusitada quando constatamos que a indústria detia em 1999 somente 19,6 % dos empregos na grande São Paulo. Desde 1989, sua participação na composição do emprego vem caindo, em favor do setor terciário, que em meados da década de 90 teria 48,8% do postos de trabalho (SEADE/ Dieese, 1996) e ao seu término, 52,7% (SEADE/Dieese, 1999), indicando uma forte tendência de alta. Isso não indica, como vimos, uma transferência da mão de obra industrial para a terciária, ainda que se possa admitir algum trânsito entre estas esferas. Segundo o SEADE, muitos empregos gerados no terciário serão ocupados por mulheres ou jovens com alguma especialização, e não pelos antigos empregados das fábricas, fenômeno amplamente documentado nos Estados Unidos (Sennett, 1999). Tabela 2-2: Distribuição dos Ocupados, segundo Setores de Atividade, Região Metropolitana de São Paulo, (1999), em % : Setores de Atividade e Posição na Ocupação TOTAL Indústria Construção Civil Comércio Serviços Serviços Domésticos Outros

Ocupados 100,0 19,6 2,3 16,1 52,7 8,9 0,4

Fonte: Secretaria de Economia e Planejamento - SEP. Convênio Seade - Dieese. Pesquisa de Emprego e Desemprego-PED. (1) A amostra não comporta a desagregação para esta categoria.

A migração do emprego para o setor terciário representa também uma mudança no caráter do próprio vínculo empregatício. O trabalho estável e registrado vai dando lugar a ocupações autônomas ou temporárias de grande rotatividade. “Boa parte das pessoas que perderam emprego na indústria tiveram uma inserção precária no mercado de trabalho, no setor de serviços” (Pedro Paulo Martoni Branco, Fundação SEADE, FSP: 19.12.96: 2-1).

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Em 1997, o IBGE apontou a existência de 12,87 milhões de trabalhadores informais na economia brasileira. Desde então, o país perdeu ainda um milhão de postos de trabalho formais, agravando a tendência do informalismo no trabalho. A existência de uma força sindical minimamente organizada, porém, forçou a adoção de medidas intermediárias em alguns casos88. Contrariamente a algumas análises otimistas ou mesmo francamente apologéticas sobre a autonomia do trabalho89, no Brasil os trabalhadores “independentes” são encontrados entre os menos treinados e, consequentemente, também os menos passíveis de incorporação ao mercado formal. O “emprego informal” (segundo metodologia OIT/IBGE90) abriga geralmente pequenos empreendedores inexperientes e de renda muito baixa. Cobre apenas uma parte do exército industrial de reserva, agora talvez tornado inútil. “Em geral, devido à escolaridade frágil, o empreendedor informal tem baixa produtividade e renda muito pequena. Ele é mais um resíduo de deficiências do que fruto da livre iniciativa. Está no limite da exclusão”, avalia Pedro Branco, presidente do SEADE (FSP: 14.06.99: 3-1). Longe de representar uma tendência local, a exclusão de parcelas importantes da população da economia formal se desenvolve em escala global. Telles (1998), em sua resenha do livro do sociólogo francês Robert Castell, “As metamorfoses da questão 88 Um exemplo foi a negociação entre a companhia Volkswagen e o sindicato dos metalúrgicos do ABC, em dezembro de 1998.

A Volkswagen ameaçava então demitir 7.500 metalúrgicos. Para evitar a

demissão em massa, o sindicato aceitou que os salários fossem diminuídos em 15%. A empresa, por outro lado, propôs uma semana de trabalho de apenas 4 dias, durante 3 semanas de cada mês. FSP:22.09.99: 2-5 89 Como em Domenico de Masi, mestre internacional de sociologia do trabalho, autor do livro “A emoção é a regra”. Um dos ardorosos defensores da nova “liberdade” oferecida pelo trabalho flexível. Richard Sennett contrapõe-se veementemente a essa visão em seu livro “A corrosão do caráter” (1999). 90 Segundo estudo da CUT (Central Única dos Trabalhadores) haveriam divergências quanto à definição do trabalho informal, dada sua complexidade intrínseca. De um lado, pode-se compreender o trabalho informal a partir da precariedade da ocupação e da sua não adequação a um marco legal. De outro (como no caso da OIT e do IBGE) pode-se definir o trabalho informal como aquele vinculado a estabelecimentos de natureza não tipicamente capitalista. Estes estabelecimentos se distinguiriam pelos baixos níveis de produtividade e pela pouca diferenciação entre capital e trabalho. O núcleo básico seria formado pelos trabalhadores por conta própria, mas também pelos empregadores e empregados de pequenas firmas com baixos níveis de produtividade. De acordo com este enfoque, o trabalho informal não é definido pelo respeito ou não ao marco legal mas de acordo com a dinâmica econômica das unidades produtivas. Fonte: CUT (Central Única dos Trabalhadores), http://www.cut.org.br/a50110.htm.

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social: uma crônica do salário”91, chama nossa atenção para esta parcela da população ‘excluída’ do processo de globalização, identificável em muitos lugares: “Inúteis para o mundo. Essa é a condição em que vivem parcelas crescentes de trabalhadores, que não encontram um lugar estável e reconhecido na sociedade, que transitam à margem do trabalho e das formas de troca socialmente reconhecidas. São os desempregados de longa duração, jovens à procura de emprego, empregados de modo precário e intermitente, gente que se tornou não-empregável e supérflua na convergência entre o encolhimento dos empregos e as novas competências e qualificações exigidas no ciclo atual de reorganização do capitalismo mundial. Esse é o núcleo da nova questão social, segundo Castell” (Telles, 1998: s.p.92). As atuais condições de imensa parcela da classe trabalhadora nos grandes centros urbanos brasileiros, empurrada para a “informalidade” ou às voltas com o desemprego crônico produz fortíssimas demandas sociais que exigiriam forte investimento em serviços públicos em setores como educação, saúde ou moradia e uma ênfase muito menor em custosas operações voltadas para o capital imobiliário, como a Operação Urbana Faria Lima.

91 CASTELL, Robert. As metamorfoses da questão social: uma crônica do salário. São Paulo: Vozes, 1999. 92 TELLES, Vera da Silva, in “Inúteis para o Mundo”, Jornal de Resenhas, 12.09.1998.

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2.4- A inserção brasileira num mundo globalizado O violento impacto sofrido pela economia brasileira nos anos 90 tem pontos em comum com outros processos em países em desenvolvimento (ou assim chamados países emergentes). Alguns impactos no meio urbano também encontram paralelos alhures. Entretanto, as particularidades da inserção brasileira na cartilha do “Consenso de Washington”93 demandam uma análise particularizada tanto das causas como dos efeitos desta inserção. É preciso inicialmente reconhecer que os arranjos da elite nacional com as elites internacionais não é fixa, mas dinâmica, e não se prende a essa ou aquela zona econômica em particular, ainda que os EUA tenham sempre participado, com maior ou menor intensidade, de episódios críticos na definição do papel do Brasil na divisão internacional do trabalho. A idéia de inserção do país nos mercados internacionais, surgida na última parte dos anos 80, trouxe consigo a flexibilização das regras que protegiam a indústria nacional dentro do quadro de “substituição das importações” que regeu a economia brasileira no pós-guerra. Houve uma grande abertura de canais de intercâmbio com o resto do mundo em níveis diversos. Em sintonia com os mercados mundiais, o Brasil agora reflete e produz crises na economia mundializada de maneira ainda mais acentuada, enfatizando-se que este não é um fenômeno novo da realidade nacional, como ficou provado pelas extensas repercussões internas das crises sistêmicas do capitalismo ao longo século XX. Ilustrando essa nova intensidade das conexões entre economia interna e capitalismo global, o Fundo Monetário Internacional (maio de 1999), dá grande destaque à crise provocada pela desvalorização súbita do Real em fevereiro daquele ano. Esta desvalorização foi ela mesma conseqüência de uma série de crises iniciadas 93 “O termo ‘Consenso de Washington’ (Washington Consensus) nasceu na preparação de uma conferência organizada pelo Institute for International Economics (IIE), de Washington [em 1989]. A expressão serviu para resumir uma série de medidas que os países ricos consideravam necessárias para o desenvolvimento das nações mais pobres. Na ocasião, os Estados Unidos preparavam-se para lançar o Plano Brady (...), que refinanciaria

a dívida externa de vários países latino-americanos. Como

contrapartida à renegociação, o Congresso dos EUA cobrava uma série de reformas dos países que seriam beneficiados”. (CANZIAN, Fernando, FSP: 03.10.99: 1-13).

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com o ataque especulativo e posterior desvalorização da moeda tailandesa (o bath) em 1997, desencadeando a crise que se seguiu nas economias do sudeste asiático94. Por que ocorreram as crises nos mercados ditos emergentes e quais foram as reais consequências para as economias centrais? Uma reportagem na revista Time ilustra o desenvolvimento da crise e mostra que, em “caso de emergência”, os investidores procuram as saídas mais “seguras”, abandonando os mercados emergentes à própria sorte, revelando de forma clara a perversa lógica que rege os investimentos internacionais nos países ditos “emergentes”. Mas se a crise representou graves perdas para alguns, parece também ter tido efeitos positivos para outros. De fato, segundo o FMI, “(...) Durante a primeira fase da crise global, o redirecionamento dos fluxos financeiros para os mercados maduros [do 1º mundo] e o abrupto declínio dos preços das commodities [do 3º mundo], foram fatores importantes para a compensação dos efeitos comerciais negativos da Ásia ” (WEO, maio de 1999: 3).

94 Esta crise constituiu-se na segunda grande crise capitalista nos últimos 25 anos e teve as aproximadamente as seguintes etapas: -1997. Movimento de desvalorização geral das moedas dos chamados Tigres Asiáticos (Coréia, Taiwan e Singapura) e de outros países recentemente industrializados do Sudeste Asiático (Indonésia e Filipinas) -1997. Queda generalizada das bolsas de valores ao redor do mundo, com grande impacto nas bolsas brasileiras -1998. Desaquecimento da economia japonesa, fenômeno definido pelo FMI como “dialéticamente causa e sintoma da crise no Sudeste da Ásia” -1998. Intensificação dos problemas da rolagem da altíssima dívida externa e posterior eclosão de uma crise russa. -1999, janeiro. Ataque especulativo ao Real, aumento espetacular dos juros e crise de confiança dos investidores externos. Tal crise de confiança deveu-se à percepção de que o governo brasileiro não poderia honrar seus compromissos externos, devido ao forte aumento da dívida interna. Este aumento, por sua vez, foi gerado pelas altas taxas de juros praticadas pelo governo buscando segurar a (sobre)valorização da moeda nacional frente ao dólar estadunidense. Como conseqüência, as bolsas brasileiras despencam. O governo deixa o câmbio livre. O valor do real “flutua” até atingir um patamar de desvalorização de aproximadamente 45% em relação ao dólar. -2002, Maiores ataques especulativos ao Real, devido às mesmas razões, acrescidas da desconfiança dos mercados internacionais ante a perpectiva da eleição (concretizada) de um candidato de esquerda à presidência do país. O Real se desvaloriza em 56% entre janeiro e novembro.

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Os efeitos comerciais negativos foram compensados em relação aos Estados Unidos e à UE que, segundo o mesmo relatório, foram capazes de absorver muito da contrapartida de investimentos financeiros que deixaram a Ásia e outras regiões em desenvolvimento a partir daquele período. O Japão, cuja baixa demanda interna e difícil situação financeira dos bancos haviam sido em parte responsáveis pela própria crise asiática, viu seus investimentos nos países vizinhos em perigo, o que ajudou a contrair a sua demanda interna ainda mais, prolongando os efeitos da crise. Para as instituições financeiras internacionais, a possibilidade de contágio financeiro era motivo de grande preocupação, devido à crescente percepção por parte dos investidores dos altos riscos que o mercado financeiro apresentava nos países emergentes. As soluções apresentadas pelo FMI para evitar esse contágio incluíam o receituário liberalizante clássico: – rígida disciplina fiscal e monetária, com o controle da inflação em primeiro lugar; – controle da balança de pagamentos; – não aplicação de taxas de câmbio sobrevalorizadas (em referência específica à sobrevalorização do real, que acabava de cair); – não aplicação de medidas “defensivas”, como a desvalorização excessiva da moeda, protecionismo comercial e restrições cambiais distorcidas; – não aplicação de medidas de atrelamento do câmbio ao dólar, devido às crescentes dificuldades que o complexo mercado financeiro globalizado impunha àqueles países que desejavam estabilizar suas moedas por este caminho (WEO, maio de 1999: 7). Não por acaso, este foi o receituário aplicado pelo governo brasileiro desde que firmou o acordo com o FMI em outubro de 1998. Desde então, o governo brasileiro tem se esforçado em seguir à risca o receituário do Fundo. “Se fizermos o que deve ser feito, poderemos ter um crescimento positivo em 2000 e, talvez, experimentar uma aceleração em 2001”, diria mais tarde Delfim Netto95.

95 DELFIM Netto, Antonio, “2000?”, Revista Carta Capital, 22.12.99, no 113: 46.

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Como vimos, esta evidente inter-comunicabilidade entre as economias definiu, na esfera econômica, aquilo que genericamente se chama globalização. A globalização, tomada aqui como categoria estreita, tem um perfil bastante concreto quando se trata de analisar as medidas e ações tomadas pelo Estado brasileiro visando “integrar” o país aos mercados internacionais. Ao longo dos anos 90, a economia brasileira sofreu um profundo e brusco processo de desregulamentação e abertura, a partir do curto governo Fernando Collor de Mello (1990-1992) e prosseguindo pelos governos Itamar Franco (1992-1993) e Fernando Henrique Cardoso (1994-2002). Segundo Castro (1999), este fenômeno foi inesperadamente acentuado pela valorização da moeda quando do lançamento do Plano Real (1993), ainda no governo Itamar Franco. Tal cenário forçou a penetração em massa de produtos e capitais estrangeiros no mercado nacional. Castro (1999) destaca, e é reforçado por outros economistas, que a indústria brasileira reagiu prontamente às novas condições, adotando uma ou mais das seguintes medidas: – Técnicas de gerenciamento “modernas”, baseadas nos modelos japoneses [especialmente com referência às estratégias gerenciais da “qualidade total”, da “produção flexível” e do controle estrito dos estoques através da produção just in time]; – Racionalização dos gastos, [o que significou a retração de investimentos diretos, muitas vezes em função do aumento da aplicação no mercado financeiro, melhor remunerador]; – “Downsizing”, ou cortes estratégicos em folha de pagamento. [O setor industrial cortou postos de trabalho: de 6,3 milhões em 1989 para 4,8 milhões em 1997 (FSP: 22.09.99: 2-2). Outras fontes96 indicam uma perda no setor industrial de aproximadamente 1,5 milhão de postos de trabalho, ou 23.4% do total de postos de trabalho naquela área. (FSP: 19.09 1999: 2-1)]. – O aumento das importações de insumos e bens de consumo. Segundo Castro, o coeficiente de penetração das importações aumentou de 4,8% 96 João Augusto Sabóia, economista, UFRJ, setembro de 1999.

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em 1989 para 20,3% em 1998. Essa entrada em massa de bens e insumos importados, conjugada à política de juros altos,

sufocou muitas

pequenas e médias empresas. Entretanto, alguns setores econômicos foram beneficiados com a compra de bens de produção e insumos a preços baixos. – Desconcentração das plantas industriais. Como exemplo, Castro cita que, entre 1989 e 1997, o estado do Rio de Janeiro perdeu 43% de seus empregos industriais. Por outro lado, o estado do Ceará, pouco industrializado até a década de 90, aumentou o número de empregos industriais em 9%. De fato, sem condições de competir após a abertura do mercado, muitas empresas familiares cederam às propostas de grandes grupos estrangeiros. Os grupos familiares teriam percebido que “não haveria condições de crescer no mesmo ritmo das companhias estrangeiras, que têm acesso a recursos mais baratos para investimentos”97. Dados coletados pela empresa de consultoria KPMG98 mostram que, de 1992 a setembro de 1999, 1879 empresas brasileiras foram vendidas ou entraram em associações. Destas, 56% foram compradas por estrangeiros. Já em 1998, 62% dos negócios de compras de empresas brasileiras envolviam grupos no exterior, sendo que 74% dos investimentos estrangeiros no país não foram para a organização de novos negócios, mas para a compra de negócios já existentes99.

97 FSP:05.12.99: 2-6. Caso exemplar é o da Cia. Arno, que dividia com a Walitta (Grupo Philips, PaísesBaixos), a liderança no mercado nacional de eletrodomésticos portáteis. Com um faturamento de US$ 305 milhões e um lucro de US$ 32 milhões, a Arno exibia, até 1996, bastante solidez empresarial. Segundo reportagem da revista Exame, a empresa não tinha razões para ser vendida. No entanto, a família controladora previa dificuldades, “graças à sua dificuldade em adquirir tecnologia”, entre outras razões. Em março de 1997, a empresa foi vendida ao grupo francês SEB, um dos maiores fabricantes mundiais de eletroportáteis e utensílios de cozinha. O valor da transação situou-se bem abaixo do faturamento da empresa: US$162 milhões (“As virtudes da paranóia”, reportagem de Clayton Nez para a revista Exame, 09.04.97, edição n.º 633: 20-30). 98 “Falta política industrial, diz consultor”, FSP: 05.12.99: 2-7. 99 O Brasil foi o segundo maior receptor de investimentos diretos na América Latina em 1995, após o México. O primeiro contou com investimentos da ordem de US$ 4,9 bilhões, apenas 1,5% do total de

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Segundo Barrizzelli (FSP: 05.12.99: 2-7), a dificuldade para expandir as empresas menores estaria “acabando com o patrimônio nacional”. Para o analista, isso seria “gravíssimo”, pois os grupos estrangeiros acabariam mandando os lucros e dividendos conseguidos aqui para fora. “A longo prazo”_ dizia, “vamos ter mais problemas no balanço de pagamentos. Se o país tivesse uma política industrial, essas empresas não seriam desnacionalizadas” (FSP: 05.12.99: 2-7). De fato, o envio de dinheiro pelas multinacionais triplicou durante o plano Real: de US$ 2,5 bilhões em 1994 para US$ 7,2 bilhões em 1998 (FSP: 03.10.99: 1-10). Tais fenômenos, longe de representarem uma “derrota” para a elite industrial brasileira, significaram para muitos a oportunidade de ganhos que permitiram a aplicação de fundos no mercado financeiro e a oportunidade de novas associações com o capital estrangeiro. (...) “ ‘A maioria dos empresários que vende sua companhia volta ao mercado tocando um negócio menos importante, uma atividade mais de suporte’, avalia João Bosco Lodi, consultor especializado em empresas familiares” (FSP: 05.12.99: 2-6)100. O empresariado brasileiro se retirou sem muito conflito dos setores mais interessantes para o investimento internacional _setores alimentício, grandes redes de supermercados e auto peças no início da década de 90; mais recentemente os setores de telecomunicações e as instituições financeiras_ e migrou para atividades do setor de serviços, apoio logístico, embalagens e materiais de construção (essas últimas duas áreas relativamente intocadas pelo capital internacional até o final da década). O ingresso massivo de empresas estrangeiras no mercado nacional e associação do capital estrangeiro com o capital nacional foi particularmente importante no setor imobiliário, com consideráveis conseqüências para a configuração do espaço e da forma urbanos na região da Operação Urbana Faria Lima, conforme estudado no capítulo 5. Ao contrário do que sugere Castro (1999), não houve uma resistência ou uma recuperação da elite industrial frente aos “desafios da globalização” e da abertura dos investimentos mundiais. Já em 1996, o Brasil assumiria a liderança dos investimentos na América Latina, com investimentos de US$ 7,5 bilhões (FSP:25.09.96 : 2-14). 100 Porém, segundo Lodi, existiriam aqueles que preferem não mais participar do mundo dos negócios, vivendo da renda proporcionada pela aplicação dos recursos recebidos. “Quem antes reclamava dos juros elevados cobrados pelos bancos agora vive do dinheiro corrigido por estas taxas.”

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mercados, mas uma transferência das atividades industriais e financeiras para os grupos estrangeiros, assegurando à elite brasileira alguns benefícios em troca da sua liderança nos setores dinâmicos da economia e da perpetuação de seu domínio político. Transferido parte do controle da produção industrial dinâmica do país para o capital estrangeiro e associando-se a este em setores relacionados aos serviços, passouse a estabelecer novas estratégias de produção que permitiriam o aumento da taxa de lucro. Isso se refletiu na organização das relações de trabalho e da própria produção industrial no território brasileiro, além de intensificar as mudanças em setores-chave para a produção do espaço urbano, como o setor imobiliário (incorporação, administração, construção e, em muitos casos, projeto). Para Sabóia (1999), “estão ocorrendo dois fenômenos na indústria brasileira. Um deles é a descentralização regional, com o fortalecimento de Estados com pouca tradição industrial. A outra novidade é a migração de indústrias das capitais para o interior” (FSP: 19.09.99: 2-1). Podemos apontar as razões para esta descentralização como sendo: – Os altos preços dos terrenos industriais nos centros mais bem servidos de infra-estrutura; – a equiparação desta infra-estrutura em diversos pontos dispersos do país (ainda que a área compreendida entre Minas Gerais e Rio Grande do Sul continue a apresentar as melhores condições e, neste conjunto, a periferia da AMSP apresenta ainda os equipamentos mais sofisticados); – os

congestionamentos

viários

e

comunicacionais

nas

maiores

aglomerações brasileiras, especialmente na zona metropolitana de São Paulo; – as estritas regulações ambientais de alguns municípios industriais mais tradicionais; – a busca por mão de obra mais barata e menos organizada em sindicatos, que não pudesse oferecer resistência às desregulamentações trabalhistas que se seguiram. Quanto a esse último fator, parece-nos de destacada importância, pois é sabido que a flexibilização dos contratos de trabalho é um componente importante das

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vantagens comparativas buscadas pelas empresas para sua maior competitividade101. Entende-se que o alto grau de organização atingido pelas organizações sindicais industriais na Região Metropolitana de São Paulo vai contra a tendência geral de desregulamentação do trabalho formal, em benefício dos contratos temporários e flexíveis, o que ocasionou em parte a transferência de plantas industriais para outras regiões do Estado ou do país, acentuando a mudança de base produtiva verificada na região desde meados da década de 70. A supremacia do capital internacional sobre o doméstico na condução das empresas de grande porte parece mais evidente ao fim do século XX. As empresas de capital internacional no Brasil comandam o processo industrial e têm um papel preponderante na estruturação do território nacional, interferindo inclusive em decisões federais102. As conexões criadas entre os países centrais e os industriais da periferia podem se processar de várias maneiras. Contudo, não é a alocação de plantas industriais dispersas pelo território o fator de maior impacto no balanço destas relações. Este seria sim o setor financeiro que vem se tornando, neste período, “o integrador fundamental do sistema econômico mundial, através da transnacionalização do mercado de capitais e da reestruturação do capital em escala global, através da reciclagem do capital acumulado”(Cordeiro, 1993: 320). O capital financeiro teria vindo a dominar a economia internacional, tendo a chamada ‘cidade mundial’ como sua articuladora básica. Tais construções são questionáveis sob a ótica da análise de fluxos de capital e de remessas de lucros, que mostram claramente as relações de subordinação existentes. Os fluxos de capital sugerem a permanência do controle do processo capitalista nos países onde esse controle se deu tradicionalemente. Ou seja, não há uma transferência efetiva de poder ou mesmo de capital para as cidades mundiais do Terceiro Mundo.

101 Quando da união de empresas automobilísticas japonesas com suas congêneres americanas na produção de veículos em solo norte-americano, buscou-se instalar as plantas em lugares com pouca ou nenhuma tradição sindical, que pudesse fazer face à crescente flexibilização dos contratos e dos encargos trabalhistas (Gorender, 1996). 102 Como evidenciado no caso da Cia. Ford e a instalação de uma nova planta industrial no Estado da Bahia, após ser descartada pelo Estado do Rio Grande do Sul.

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Schiffer (2002) indica que as companhias internacionais procuraram uma maior sofisticação no conjunto de vantagens comparativas oferecidas pelas novas ‘cidades globais’ dos países em desenvolvimento: – boas oportunidades de negócio, – quadro institucional favorável, – disponibilidade de infra-estrutura, – existência de um mercado consumidor consolidado ou bastante promissor, – força de trabalho qualificada, permitindo maior produtividade. Numa economia globalizada, onde o estado nacional aparentemente cede lugar às cidades globais, o papel de São Paulo como cidade mundial tende a ser sobrevalorizado, já que a metrópole, por sua vez, é regida em vários aspectos por outros centros decisórios mais importantes. Isso indica um arranjo baseado ainda na hegemonia de alguns Estados Nacionais sobre outros, e não numa organização flexível, em rede e sem hierarquias, como defendem alguns teóricos da globalização. Tanto quanto nos foi possível verificar, e como tentamos demonstrar neste capítulo, as políticas locais têm uma conexão forte e essencial com as políticas macroeconômicas decididas no âmbito nacional e estas, por sua vez, com os rumos ditados pela dinâmica do capitalismo em sua atual fase e pelas políticas decididas pelas grandes empresas transnacionais e nos grandes fóruns internacionais, como o FMI, O Banco Mundial, o BID, O G-7, etc. Tal arranjo implica em diversas modalidades de pacto, parceria ou concessão por parte da elite nacional com as elites internacionais. Isso não implica que tal dinâmica fosse a priori inelutável. Belluzzo (1996) mantém que: “a crença na inevitabilidade numa inserção ‘passiva’ das economias nacionais no processo de globalização é um resultado da noção de que tal processo ocorre de maneira destacada e impessoal, muito acima da capacidade de reação do Estado”. Essa idéia assegura ao governo a missão de administrar os recursos públicos visando à “melhor inserção possível” no processo de globalização. Por esta razão, os governos nacionais dos países emergentes parecem tão impacientes em deixar para trás qualquer projeto nacional de maior conseqüência, ainda que isso signifique uma posição subordinada na “ordem global” ou a renúncia a políticas sociais de conseqüência.

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Políticas locais e nacionais não podem ser analisadas como categorias compactas e separadas. O chamado “poder local” conta sobretudo com um arranjo específico entre as elites nacionais e o capital internacional, para perpetuar uma situação de maior lucro e menor questionamento político, mantendo as rédeas sobre o processo de acumulação interno. É na chamada “cidade mundial brasileira”, São Paulo, que estes processos se materializam de maneira mais dramática, tema tratado no capítulo 3.

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Capítulo 3: Uma aproximação ao entendimento da metrópole paulista no quadro da globalização 3.1- São Paulo, “cidade mundial” Beaverstock, Smith and Taylor (1999) identificam hoje duas “aproximações básicas” à questão da natureza das cidades numa economia globalizada: a aproximação “demográfica” e a aproximação “funcional”. A primeira é baseada numa tradição que está profundamente interessada no tamanho das cidades e seria representada hoje pelo projeto “megacidades”, que “explora as implicações humanas e ecológicas das atuais e futuras grandes concentrações populacionais” (Beaverstock et al., 1999: s.p.). Mas quão grande precisa ser uma cidade para ser considerada uma megacidade? Parece não haver bases teóricas nem empíricas para determinar se uma cidade com 5, 8, ou 10 milhões de habitantes é qualitativamente diferente de uma com menos habitantes. “Talvez por esta razão, diferentes autoridades utilizem definições tão díspares para definir a megacidade. Ainda que Richardson (1993) e a UNDIESA e a UNU (1991) usem a marca dos oito milhões, a UNCHS (1987: 29), Ward (1990: xvii) e o Banco Mundial (1991:16) usam 10 milhões, enquanto Dogan e Karsarda (1988: 8), implicitamente usem 4 milhões” (Gilbert, 1996: s.p.). Uma das principais dificuldades, segundo Richardson (1973, apud Gilbert, 1996) seria separar os efeitos do tamanho daqueles decorrentes de outras variáveis. “Certamente, tentativas de examinar a relação entre o tamanho e os benefícios e patologias do crescimento urbano produziram muito pouco em termos de resultados confiáveis. Raramente há uma relação clara entre tamanho e qualquer variável individual de bem ou mau estar [na cidade]”, conclui Gilbert. São Paulo, por seu porte populacional, certamente pode ser considerada uma megacidade, mas não, como poderia parecer à primeira vista, uma cidade primária ou primacial (primate city). O Brasil não tem um sistema urbano dominado por uma grande

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metrópole primária103. Apesar de haver uma grande concentração populacional na área metropolitana de São Paulo, há um sistema urbano relativamente equilibrado no país, ainda que mal distribuído pelo território nacional. Por outro lado, de acordo com Beaverstock (1999), “a tradição funcional pode ser encontrada [hoje] em estudos sobre as chamadas cidades mundiais ou cidades globais, que por sua vez são entendidas como parte integrante dos processos contemporâneos de globalização” (Beaverstock et al., 1999: s.p.). Em termos gerais, São Paulo pode ser caracterizada tanto uma megacidade do Terceiro Mundo quanto uma “cidade mundial”. Este trabalho segue esta última corrente de estudos, pois nela encontramos a possibilidade de caracterizar o tipo de inserção nacional na divisão internacional de trabalho, com os reflexos que esta possui sobre a estruturação do território intra-urbano. Acreditamos que, analisando São Paulo como “cidade mundial”, estaremos localizando a pesquisa num quadro amplo onde os fenômenos relativos à produção do espaço se inserem no quadro geral do modo de acumulação capitalista contemporâneo.

103O conceito de cidade primária (ou primacial) refere-se à desproporcionalidade do tamanho de uma cidade em relação ao restante do sistema urbano de um dado país. A “lei” da cidade primária foi primeiro sugerida por Jefferson (1939) e foi uma das primeiras generalizações no estudo da distribuição das cidades (Goodall, p.375). Segundo Jefferson, “A cidade líder de um país é sempre desprorcionadamente grande e expressiva da capacidade e do sentimento nacionais. A cidade primária é em geral duas vezes maior que a segunda maior cidade e mais de duas vezes mais significativa” (Jefferson, 1939: 226-232). As cidades primárias são freqüentemente, mas não sempre, as capitais do país. As cidades primárias “dominam” os países em que estão localizadas e são o ponto focal da nação. Seu tamanho exagerado, em relação ao restante do sistema urbano nacional, e a concentração de atividades tornam-se um grande fator de atração, trazendo habitantes e fazendo com que a cidade primária se torne ainda maior e mais desproporcional dentro do sistema urbano em comparação com as outras cidades, bem menores. Um excelente exemplo de cidade primária é Paris, que é o foco econômico e populacional da França. O país conta com um sistema urbano desequilibrado, onde ocorre imensa concentração populacional, de serviços e de equipamentos na região parisiense. Esta possui 10.952.011 hab., ou 18.5 % da população francesa. A segunda aglomeração francesa, a região de Marselha/ Aix-en-Provence, possui apenas 1.349.772 hab., enquanto a região de Lyon, a terceira mais populosa, possui 1.348.832 hab. (Dados de 1999, INSEE). Outro exemplo clássico de cidade primária é Buenos Aires, na Argentina. A grande Buenos Aires possuía em 1995, 11.300.000 habitantes, aproximadamente 31.5% da população total do país. A segunda maior aglomeração argentina, Córdoba, teria apenas 1.200.000 habitantes (dados de 1995, Censo Nacional de Población y Vivienda, INDEC).

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Mas o que é exatamente uma “cidade mundial”? Segundo Beaverstock, Smith & Taylor (1999), do GaWC104, quatro aproximações principais dominaram a literatura sobre as cidades mundiais, a saber: -

“As características cosmopolitanas e a e economia corporativa

multinacional”, onde se privilegiaram os componentes elementares da caracterização das cidades mundiais que identificavam a dominação estratégica de certas cidades mundiais na rede mundial através da análise e ordenação de preferências locacionais e o papel das sedes das corporações “multinacionais” no mundo desenvolvido, como em Hall (1966), Hymer105 (1972) e Heenan (1977). -

“As cidades mundiais e a nova divisão internacional do trabalho”, onde,

a partir de Hall (1966) e Hymer (1972), concentrou-se no estudo das atividades gerenciais corporativas e o poder das corporações multinacionais, no contexto da nova divisão internacional (espacial) do trabalho a partir da segunda metade da década de 70. Beaverstock et al. citam os trabalhos de Cohen (1981), Friedmann e Wolff (1982), Friedmann (1986), Glickman (1987), entre outros e destacam os trabalhos de Cohen (1981) e Friedmann (1986). O primeiro relacionou as principais localizações das 198 maiores corporações não americanas numa ‘hierarquia global’, com Tóquio e Londres no seu topo, tendo Nova York a seu lado, formando a trilogia das centros mundiais predominantes de corporações e finanças. (Cohen, 1981: 308). Abaixo deles, identificou Osaka, a região do Reno/Ruhr, Chicago, Paris, Frankfurt e Zurique como sendo as cidades mundiais de “segundo nível”. O segundo, baseou sua hierarquia sobre a idéia de grandes cidades como “centros de controle” de capital na nova divisão internacional do trabalho. A hierarquia das cidades mundiais era aqui baseada na análise de vários 104 GaWC: Global and World Cities Research Group da Universidade de Loughborough, Inglaterra. 105 Para o Beaverstock et al. (1999), Hymer seria “(...) o mais significativo, ainda que menos citado, teórico da formação das cidades mundiais e de uma hierarquia urbana global durante este período” (Beaverstock et al., 1999: s.p.). Para Hymer (1972), as funções gerenciais corporativas de ponta levadas a cabo nas sedes das corporações multinacionais “necessitam estar localizadas perto do mercado principal, da mídia e do governo (...) por causa da necessidade do contato face-a-face nas instâncias decisórias mais elevadas. (...) aplicando este esquema à economia mundial, esperaríamos encontrar os escritórios mais importantes das corporações multinacionais concentradas nas maiores cidades do mundo” (Hymer, 1972: s.p. apud Beaverstock et al. 1999: s.p.).

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critérios-chave: maiores centros financeiros, sedes de corporações transnacionais (incluindo sedes regionais), instituições internacionais, rápido crescimento do setor de serviços, centro manufatureiro importador, grande nó de transportes e finalmente o tamanho da população. Beaverstock et al. apontam que Friedmann admitia que “nem todos os critérios foram usados em todos os casos, mas vários critérios tinham que ser satisfeitos antes que uma cidade pudesse ser identificada como uma cidade mundial [pertencente] a uma posição específica no rank” (Friedmann, 1986: 72). Muitos argumentaram contra aquilo que o GaWC chamou de “empirismo casual” (Beaverstock et al., 1999: s.p.). Entretanto Friedmann identifica vários tipos de “articuladores espaciais” (cidades mundiais): os articuladores espaciais globais (ex.: Londres), articuladores multinacionais (ex.: Miami), articuladores nacionais importantes (ex.: Paris) e articuladores subnacionais/regionais (ex.: Osaka-Kobe). -

“A internacionalização, concentração e intensificação dos serviços de

alto nível”. Segundo o GaWC, “ em contraste com a contextualização da formação das cidades mundiais na nova divisão (espacial) internacional do trabalho, uma terceira aproximação associou fortemente as cidades na da hierarquia urbana com a sua propensão a se engajar na internacionalização, concentração e intensidade dos serviços avançados na economia mundial.” (Bearverstock et al. 1999: s.p.). Aqui os autores destacam os trabalhos de Saskia Sassen, como The Global City (1991) e Cities in a World Economy (1994). Para Sassen, Nova York, Londres e Tóquio continuam sendo a tríade de cidades globais numa economia globalizada porque: “(...) estas cidades agora funcionam (...) como pontos de comando altamente concentrados na organização da economia mundial, (...) como localizações-chave para as finanças e para firmas de serviços especializados (...) como lugares de produção de inovação e (...) como mercados para os produtos e inovações” (Sassen, 1991: s.p. apud Beaverstock et al., 1999: s.p.). Para Sassen, o próprio conceito de “cidade global” teria emergido por causa de dois fatores interrelacionados: a globalização da atividade econômica e a estrutura organizacional dos serviços de alto nível e das finanças, “mais que de uma análise detalhada da base econômica das próprias cidades” (Sassen, 1991: s.p.). Segundo Beaverstock et al. (1999), “com respeito à globalização da atividade econômica, traduzida como sendo a transferência [da atividade econômica dinâmica] para os serviços e as finanças em escala global, Sassen (1991) acredita que estes processos trouxeram “uma importância renovada das cidades mais importantes como lugares para

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certos tipos de produção, prestação de serviços, marketing e inovação”. Em particular, a internacionalização tanto do setor de serviços de alto nível como do sistema financeiro fez das cidades centros vitais para o “gerenciamento e a coordenação” do poder econômico na economia global: particularmente Nova York, Londres e Tóquio” (Beaverstock et al., 1999: s.p.). Beaverstock et al. (1999) apontam que “paralelamente à globalização da atividade econômica, Sassen (1991) sugere que o rápido crescimento, especialização, e aglomeração das firmas de serviços de alto nível e a organização da indústria financeira foram eles mesmos responsáveis, em certa medida, pela formação mesma das cidades globais. As preferências locacionais das atividades de serviços de alto nível, como, por exemplo, a contabilidade, propaganda e serviços bancários, são portanto úteis na conceitualização da aglomeração e centralização das funções gerenciais nas cidades globais. Como Sassen (1991) comenta, as firmas de prestação de serviços de alto nível “obtém economias de aglomeração [agglomeration economies, ou economias de localização] quando se localizam nas proximidades de outras [firmas] que são fornecedoras de insumos-chave ou são necessárias para a produção conjunta na oferta de certos tipos de serviços” (Sassen, 1991). -

“Cidades Mundiais como centros financeiros internacionais”. Esta

aproximação identifica as cidades mais importantes e suas posições relativas através do ranking de seus centros financeiros internacionais. O GaWC aponta o trabalho de Howard Reed (1981), como pioneiro. Usando uma análise múltipla de nove variáveis bancárias e financeiras e 41 variáveis relacionadas à cultura, economia e geografia em 76 cidades em 40 países, entre 1900-1980, Reed identifica uma taxonomia de centros financeiros com cinco níveis hierárquicos: Centro Financeiro Supranacional (Londres), Centros Financeiros Supranacionais de primeira ordem (Nova York e Tóquio), Centros Financeiros Supranacionais de Segunda ordem (Ex.: Amsterdam), Centros Financeiros Internacionais (29 cidades) e Centros Financeiros Internacionais hospedeiros (39 cidades). O GaWC destaca ainda uma série de artigos da revista “The Economist” (1998) onde a conceituada revista britânica faz uma pesquisa sobre os centros financeiros mundiais, intitulada Capitais do Capital e onde é enfatizada a polarização existente entre os centros supranacionais de Londres, Nova York, Tóquio, Hong Kong, Paris, Frankfurt e Singapura e o “resto” (incluindo nesse rol cidades como Chicago, Zurich e Sidnei).

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Peter Hall (1997) afirma que Patrick Geddes havia reconhecido e definido as cidades mundiais já em 1915, num livro chamado Cities in Evolution (Geddes, 1915). O próprio Hall, como vimos, publicou um livro intitulado The World Cities (Hall, 1966), onde define as cidades mundiais em termos de papéis múltiplos: 1. Centros de poder político, tanto nacional quanto internacional, e centro de organizações relacionadas ao governo; 2. Centros de comércio nacional e internacional, agindo como entrepostos para seus países e algumas vezes também para os países vizinhos; 3. Centros bancários, de seguros e demais serviços financeiros; 4. Centros de atividade profissional de todo tipo, em medicina, direito, na educação superior e na aplicação do conhecimento científico e tecnologia; 5. Centros de produção e difusão de informação, através de publicações e da mídia de massas; 6. Grandes centros de consumo, tanto de produtos de luxo para a minoria privilegiada quanto dos produtos de massa para o grande público; 7. Centro de artes, cultura e entretenimento e demais atividades relacionadas. Neste trabalho seguiremos a sugestão do GaWC e tomaremos Friedman e Sassen como inauguradores da agenda de estudos da cidade global nesta fase de acumulação do capitalismo mundial. Fazemo-lo em consideração às teorias que defendem, como já dissemos, que a Globalização não é “verdadeiramente” um fenômeno novo, mas uma aceleração de vários fenômenos relacionados à produção, comunicação, transporte, difusão de informações, entre outros fatores, resultando numa intensificação de fenômenos relacionados à acumulação capitalista (Santos, 1993). Esta aceleração tem mudado de maneira profunda a forma e a função daquelas que chamamos “cidades mundiais”, justificando portanto uma nova aproximação. Hall implicitamente reconhece o fato de que as cidades mundiais não são um fenômeno inteiramente inédito quando afirma que sua definição (cunhada em 1966) “(...) ainda se aplica trinta anos depois. Mas necessita de ampliações e modificações por causa do fenômeno da globalização e seu impacto no sistema urbano, de par com o que poderíamos chamar de informatização da economia, [ou seja] a mudança progressiva das economias avançadas da produção de bens para o manejo da informação (...)” (Hall, 1997). Hall, como tantos outros teóricos, empresta aos fenômenos relacionados à aceleração contemporânea uma causa fundada essencialmente na aceleração do progresso tecnológico (do que discordamos em parte, pois coloca em segundo plano o caráter assimétrico da primazia política e econômica dos países capitalistas desenvolvidos no sistema mundial, como estudaremos mais adiante).

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É impressionante verificar como algumas das proposições lançadas por Hall já na década de 60, como a concentração de serviços de alto nível ou a concentração de produção e difusão de informação, continuaram válidas nas definições mais recentes de cidade mundial. No entanto, é preciso reconhecer que estas características tiveram uma mudança qualitativa importante após meados da década de 70. Com a reorganização do mundo capitalista ancorada na aceleração dos processos relacionados à automação da produção, o comércio internacional e a expansão do setor financeiro. Houve também uma mudança qualitativa importante no modo como as grandes cidades se organizam. No caso das cidades mundiais localizadas em países em desenvolvimento, o impacto sobre a base produtiva e sobre o território foi ainda mais evidente. Para Cordeiro (1993), no “(...) rearranjo espacial do sistema capitalista, as grandes corporações localizaram suas subsidiárias principalmente nas metrópoles dos países periféricos, onde encontraram as mais favoráveis condições para a reprodução do seu capital. Ao mesmo tempo, aí implantaram as sedes de gestão dos seus negócios. Formaram-se os elos de uma cadeia seleta de metrópoles, onde se realizam o controle e o comando do mercado capitalista no plano global”. Estas seriam para Cordeiro as “cidades mundiais” (Cordeiro, 1993: 319). De fato, as transformações na estrutura urbana das cidades durante os anos 90 têm sido relacionadas às estratégias nacionais de desenvolvimento e aos processos conhecidos como “ajustes estruturais”, relacionados à agenda do liberalismo econômico e da própria globalização, conforme discutido anteriormente. As cidades, sendo o locus destas rápidas transformações, muitas vezes sofreram flexibilização de suas antigas normas urbanísticas e desregulamentação de políticas de uso do solo, ou ainda foram palco de grandes intervenções urbanas promovidas pelo Estado em “parceria” com a iniciativa privada, além de aderir a várias estratégias de “competição”, tornando-se assim aparentemente mais autônomas em relação aos governos centrais. Ainda que esta autonomia fosse apenas aparente, resultando mais do discurso que da transferência efetiva do poder de decisão para as cidades, um processo de mudança de rapidez sem precedentes começou a se manifestar nas estruturas regionais e intra-urbanas em todo o mundo, com impactos díspares nas cidades localizadas em países com economias desenvolvidas e naqueles com economias em desenvolvimento.

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Processos simultâneos de descentralização da produção e concentração de capital, bens e serviços a nível regional acompanharam as mudanças mundiais na produção, nos processos gerenciais e na reorganização das atividades econômicas, especialmente no que tange as áreas financeiras e comunicacionais. Ao nível local, foram observadas importantes mudanças no comportamento do capital imobiliário, visando adequar as metrópoles às novas demandas de infra-estrutura e espaço, como veremos adiante, tanto no mundo desenvolvido como no mundo em desenvolvimento. Para isso, utilizaram-se várias estratégias de valorização imobiliária, como a recuperação de centros urbanos, redensenvolvimento de áreas portuárias ou orlas marítimas (water front areas redevelopment), grandes equipamentos culturais (em especial os museus), redesenvolvimento urbano baseado em grandes eventos esportivos, culturais ou comerciais (como as Olimpíadas, as feiras mundiais) ou ainda a readequação da estrutura urbana através de grandes projetos de infra-estrutura em “parceria” com o setor privado (como a Operação Urbana Faria Lima). De fato, para alguns teóricos, o fluxo imaterial em redes e a livre circulação de mercadorias teria como base a “cidade mundial”, eclipsando mesmo a noção de território nacional como unidade básica para o estudo do processo de acumulação. As dinâmicas descritas, inseridas no quadro da globalização, engendrariam uma “desterritorialização” ou desenraizamento da metrópole em relação à nação e ao território onde se insere. De acordo com esta análise, as cidades mundiais não deveriam mais ser entendidas somente em referência ao Estado nacional, mas em relação ao sistema urbano mundial. De fato, para Lencioni (1996), por exemplo, “não se pode pensar a metrópole só do ponto de vista interno. Não se fala mais em território de influência da metrópole, mas em rede de influência de uma metrópole, rede esta que desconhece as fronteiras transnacionais” (Lencioni, 1996). Também os fluxos imateriais (a informação, as finanças) em redes dispensaria o território, engendrando essa “desterritorialização”. De acordo com esta análise, São Paulo não deveria mais ser entendida somente em referência ao Estado nacional, mas em relação ao sistema urbano mundial. A função da metrópole, para Lencioni (1996), é “integrar” o país ao processo de globalização, pois “as diferenças de São Paulo em relação às demais cidades brasileiras indicariam claramente sua primazia sobre elas quanto à natureza de seu setor terciário e de seu crescente trabalho imaterial” (Lencioni, 1996).

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Consideramos essa análise em parte falaciosa, pois nada parece indicar que as cidades ditas “mundiais” (ou “globais”) de fato estejam se desligando de sua base territorial-econômica nacional, como tentaremos demonstrar. Trabalhamos com a hipótese de que as cidades mundiais devam ser analisadas e compreendidas em relação ao Estado nacional e à base econômico-territorial em que se inserem, mas também em relação à fase atual da acumulação capitalista nos níveis local, nacional e internacional. Isso inclui o estudo dos impactos deste processo de acumulação ao nível intra-urbano através do estudo da infra-estrutura instalada ou ainda o estudo das firmas transnacionais operando nas cidades mundiais, entre outras possibilidades. Mas também deveria incluir o modo como as relações entre empresas instaladas em distintos territórios nacionais se dá através da mediação dos respectivos governos. Conforme Cordeiro (1993), teria havido de fato um rearranjo espacial do sistema capitalista, com a instalação de subsidiárias das grandes corporações dos países desenvolvidos nas metrópoles dos países periféricos. Entretanto, a instalação das sedes de gestão destas filiais nas chamadas cidades mundiais não significa que tenha havido uma mudança radical na estrutura da acumulação ao nível nacional nesses países, ainda que mudanças importantes possam ser apontadas quanto à organização dessa acumulação. O que o caso brasileiro parece indicar é que houve rearranjos específicos quanto à distribuição da produção e dos empregos industriais, especialmente com o “espalhamento” das plantas industriais para o interior do Estado de São Paulo e para outras capitais regionais importantes (Belo Horizonte, Porto Alegre, Salvador etc.), sem que o município de São Paulo tivesse perdido sua primazia no controle do processo de acumulação capitalista brasileiro. A “abertura” econômica promovida a partir da conturbada presidência de Collor de Mello (1990-1992) teria resultado em rearranjos específicos na configuração das atividades de gerenciamento e na localização de algumas empresas, com impactos evidentes sobre a estrutura da metrópole paulista e seu entorno, reforçando fenômeno que vem ocorrendo em território brasileiro a partir dos anos 70 (Schiffer, 1999), conforme exposto no capítulo 2. Parece-nos que o erro conceitual básico é entender que a mudança nos modos de acumulação dinâmica (de uma economia ancorada na produção e comércio de bens materiais para uma economia baseada nos fluxos financeiros e de serviços) serve para

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explicar o declínio do Estado nacional e uma suposta ascensão da cidade mundial. Em realidade, há apenas uma descentralização das atividades de gerência a partir dos paísessede das empresas transnacionais, ocasionando a necessidade de instalação de serviços terciários de alto nível nas cidades eleitas para concentrar estas atividades nos países receptores (além de, no caso específico do Brasil, uma descentralização relativa das atividades secundárias a partir da Região Metropolitana de São Paulo). Este fenômeno certamente coloca a cidade onde estes fenômenos se concentram (a “cidade mundial”), num novo patamar de concentração de serviços e atividades correlatas. Porém, o Estado Nacional segue com seu papel primordial de organizador dos interesses da classe dominante, sem que as mudanças produtivas mencionadas implicassem em seu declínio. Se há uma mudança qualitativa nas bases da acumulação que respaldasse uma certa proeminência do local sobre o nacional, isso se dá principalmente ao nível do discurso. A súbita “ascensão” da cidade mundial como centro das atividades dinâmicas não interfere na essência da acumulação e de sua organização em bases nacionais, sem prejuízo para o poder das classes dominantes dos diferentes países. No caso brasileiro, esta “descentralização relativa das atividades secundárias” (nos termos de Schiffer, 1999), serviria apenas como “uma estratégia do capital paulista para manter o controle da acumulação interna, já na fase de acumulação intensiva, que seria determinante a partir dos anos de 1980, particularmente quanto às transformações na configuração da territorialidade nacional” (Schiffer, 1999: 76), confirmando o casamento de interesses da elite nacional com os investidores estrangeiros. Como se vê, o papel de São Paulo (cidade mundial) como pólo organizador do mercado nacional é fortalecido e acentuado, mas o Estado brasileiro segue como principal organizador deste mercado. Vimos portanto que, tanto quanto o próprio conceito de globalização, a cidade mundial está inserida numa dinâmica pré-existente. A definição de cidade mundial com que trabalharemos vem sendo estabelecida a partir de meados da década de 80, mas ainda há concepções divergentes entre autores e a inclusão de uma certa cidade nessa categoria é objeto de disputa, podendo variar de acordo com a metodologia adotada. Entretanto, parece haver um consenso sobre quais seriam as cidades “líderes” num mundo globalizado: Nova York, Londres e Tóquio, cada uma correspondendo a uma certa arena econômico-política de destaque, com predomínio de uma moeda padrão: a

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América do Norte (com o dólar americano), a Europa Ocidental (com o euro) e o Extremo Oriente (com o yen japonês), respectivamente. Estas cidades são sedes ou centros de gerenciamento de importantes empresas transnacionais e possuem Bolsas de Valores cujos desempenhos influenciam toda a economia global, entre outros fatores que as colocam no topo de uma possível hierarquia das cidades mundiais, como veremos adiante. Entretanto, desde a hipótese inaugural de Friedman (1986) e o trabalho seminal de Sassen (1991), o inventário das “cidades mundiais”, afora as três cidades líderes, parece ainda opaco. O estudo do papel das cidades mundiais abaixo do primeiro escalão, em especial aquelas localizadas nos países em desenvolvimento, quanto à atração, coordenação e materialização do Investimento Estrangeiro Direto (IED) deve ser ainda melhor compreendido. Isso tem conexão direta com alguns parâmetros adotados para “classificar” ou estabelecer uma hierarquia de cidades mundiais ou para determinar o grau de sua participação em redes transnacionais e o grau de subordinação dos fenômenos estudados. Importantes centros urbanos ao redor do mundo (como São Paulo) atravessam atualmente um processo acelerado de internacionalização e reconcentração do capital: o rápido desenvolvimento das telecomunicações e das tecnologias digitais; os processos de descentralização da produção e a aceleração dos fluxos financeiros e do investimento estrangeiro direto contribuem para que a economia se internacionalize e fenômenos análogos ocorram em concentrações urbanas bastante diversas (Castells 1992, 1995; Sassen, 1991, 1994, 1998, 1998 (a); Santos 1990, 1993(a), 1993(b) UNCTAD, 2000, entre outros). A natureza e a velocidade deste processo criaram novas formas de organização do capital e do trabalho e produziu transformações nas condições de reprodução social, com efeitos evidentes sobre o ambiente construído das cidades. Este processo também demandou ou induziu a criação de novas ferramentas legais para a transformação, readequação ou adaptação do espaço urbano às novas demandas de uma economia globalizada. Este é o caso da Operação Urbana, tema central desta dissertação. Como indica Sassen (1994), o campo específico do urbanismo requer um entendimento de como esta nova “economia global” se estrutura no território urbano através de ações e projetos específicos no campo das infra-estruturas básicas, da infraestrutura da comunicação digital, das novas necessidades programáticas nos edifícios e

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de uma nova articulação dos espaços intra-urbanos, o que nos dá a conexão para o estudo da Operação Urbana Faria Lima dentro do quadro amplo pretendido. Acompanhando a argumentação de Sassen, verificamos que a dispersão da atividade econômica foi a acompanhada por novas formas de centralização no território. Esta centralização está relacionada principalmente às operações de gerência e administração, à prestação de serviços, ao trânsito e ao consumo de alto nível . Os mercados nacionais e globais, assim como todas as operações integradas globalmente, necessitam de espaços “centrais” de coordenação e controle onde possam se realizar materialmente (Sassen, 1994: 14). Além disso, a indústria digital e a necessária rede de serviços que tornam uma cidade verdadeiramente “global” requerem uma grande infraestrutura física que contém nós com uma hiper-concentração de certos processos, atividades e infra-estrutura material relacionados aos serviços de alto nível. De acordo com Sassen (vários anos), Harvey (1992 e 1996) e Santos (vários anos), entre outros, estes nós são essenciais para a implementação da globalização e estão intimamente relacionados à própria noção de “cidade mundial”, criando as chamadas economias de localização. As economias de localização estão fortemente apoiadas em lugares onde uma grande oferta de trabalho altamente especializado está disponível. O processo de “metropolização” ou formação de grandes metrópoles como a metrópole paulista, está intimamente ligado, nas últimas décadas, aos processos de globalização da economia. Aziz Ab’Sáber (1997) define a metropolização como um crescimento extraordinário da estrutura de algumas cidades, acompanhado de uma multiplicação de funções, uma composição complexa da vida social, mas também por um aumento do desemprego estrutural em cidades do Terceiro Mundo, uma grande dificuldade para se ampliar, na escala do necessário, o mercado de trabalho. O autor ressalta o desajuste entre as expectativas das populações em relação a todos os tipos pontualizados de políticas governamentais (Ab’Sáber, 1997: 27). Sobral (1997) considera que, ainda que o processo de metropolização não seja recente, vem tendo características diferenciadas nas últimas décadas, o que coincide com a avaliação de muitos estudiosos sobre o próprio fenômeno da globalização. Essas características vêm apontando para uma diferenciação cada vez maior entre as grandes metrópoles situadas em países desenvolvidos e as grandes aglomerações dos países em desenvolvimento, principalmente no que tange às taxas de crescimento populacional e investimento em infra-estrutura. Estas, por sua vez, influem

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diretamente na qualidade e na distribuição dos serviços oferecidos através de um território urbano extenso. “As projeções demográficas da Organização das Nações Unidas indicam que a população urbana mundial, no período de 1980 ao ano 2000, deve crescer a uma taxa de 2,8% ao ano. Entretanto, essa média esconde grandes discrepâncias pois, enquanto a taxa de crescimento anual projetada para as cidades do Terceiro Mundo é de 3,7% ao ano, a das cidades dos países desenvolvidos é de 1,1% ao ano. As mesmas projeções indicam que, no ano 2000, deverão existir no mundo 21 cidades com mais de 10 milhões de habitantes e, destas, 17 estarão no Hemisfério Sul e somente 4 no Primeiro Mundo. De 82 cidades com mais de 4 milhões de habitantes (...), 61 estarão em países em desenvolvimento e 21 em países desenvolvidos” (Sobral, 1997: 41-42). São Paulo seria então uma “cidade mundial”? Parece evidente que sim, mas é necessário qualificar esta constatação, dentro do quadro analisado até aqui. Segundo estudos conduzidos por Taylor, Beaverstock et al. (1999), baseados na presença de firmas transnacionais de serviços de alto nível, há evidências de que, do ponto de vista das redes de comando e organização da acumulação capitalista, a cidade de São Paulo estaria entre as principais cidades mundiais, logo abaixo das três cidades a partir das quais o capital opera nas três grandes arenas econômicas globais (Nova York, Londres e Tóquio), sendo um centro importante para a operação e gerência das atividades relacionadas à globalização no mercado brasileiro, na área do Mercosul e na América do Sul (um espaço econômico subordinado à três grandes arenas citadas). Taylor, Beaverstock et al. (1999)

trabalham com uma designação muito

específica do termo “cidades mundiais”. “Seguindo a deixa de Sassen (1991:126), tratamos as cidades mundiais como ‘lugares de produção pós-industrial’ particulares, onde as inovações nos serviços corporativos e na finança têm sido integrais à recente reestruturação da economia mundial, hoje largamente conhecida como globalização” (Beaverstock et al., 1999: s.p.). Aqui se trata de um tipo particular de serviços, que chamamos aqui de “alto nível” ou serviços corporativos. “Para Sassen, estes serviços dão a um número limitado de cidades líderes um ‘papel específico fase atual da economia mundial’” (Sassen, 1991: 126 apud Beaverstock et al., 1999: s.p.). Para Beaverstock et al. (1999), “isto [ocorre] em consequência do crescimento geral das corporações e a reorganização [que teve lugar] nas últimas três décadas, [e] que

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resultaram simultaneamente numa dispersão da produção e da dos serviços empresariais rotineiros, e numa concentração dos serviços avançados necessários para gerenciar e organizar esta dispersão. Com o crescimento em escala destes serviços, as oportunidades para a ascensão de corporações especialistas em serviços servindo outras firmas globais cresceram. É nestas últimas que necessidades de aglomeração em termos de complexos informacionais serão encontradas num grupo seleto de cidades _cidades mundiais_ através do mundo” (Beaverstock et al., 1999: s.p.). Beaverstock et al. (1999) propõe os seguintes serviços como exemplos para a pesquisa: – contabilidade, – publicidade, – bancos/finanças e – serviços de consultoria jurídica106. O nome e o número de firmas estudadas obedece metodologia baseada na “competência global” das firmas de serviços em termos de geografia de sua presença num determinado número de cidades ao redor do globo. O GaWC trabalha somente com “presenças significativas”, o que significa a coleta de dados firma a firma e o estabelecimento de um patamar de presença de cada uma dessas firmas num determinado número de cidades de maneira a definir o que o grupo de pesquisa chama de “capacidade global” das diferentes firmas (Beaverstock et al., 1999). O GaWC elaborou a partir de suas pesquisas um inventário de cidades mundiais baseada na presença de serviços corporativos de alto nível107, com os seguintes resultados, expostos aqui a título de ilustração e comparação108. Foi elaborado um ranking onde o

106 Seria possível enriquecer esta lista agregando alguns outros ramos de atividade altamente dinâmicos, que operam em caráter transnacional, tais como companhias de desenvolvimento e incorporação imobiliária, companhias de seguros, telecomunicações e redes de hotéis e centros de convenção, além de outros setores menos ligados à atividades terciárias de alto padrão, mas não menos internacionalizados, como as grandes redes de distribuição alimentícia (super e hipermercados) ou cadeias de restaurantes de comida rápida. As redes internacionais de prestação de serviços pessoais de alto padrão, bem como as cadeias internacionais de distribuição de produtos de luxo também podem fornecer pistas sobre a operação do IED no território metropolitano. 107 Ver metodologia detalhada de pesquisa em Beaverstock et al., 1999. 108 Ver tabelas específicas para cada tipo de serviço no apêndice.

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“grau” de mundialização das cidades varia de 1 a 12, reunindo as cidades em 4 grupos principais:

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Tabela 3-1: Inventário GaWC das Cidades Mundiais Inventário GaWC de Cidades Mundiais A. Cidades Mundiais ALFA 12: Londres, Paris, Nova York, Tóquio 10: Chicago, Frankfurt, Hong Kong, Los Angeles, Milão, Singapura * B. Cidade Mundiais BETA 9: São Francisco, Sidnei, Toronto, Zurique 8: Bruxelas, Madri, Mexico, SÃO Paulo 7: Moscou, Seul C. Cidades mundiais GAMMA 6: Amsterdam, Boston, Caracas, Dallas, Dusseldorf, Genebra, Houston, Jakarta, Joanesburgo, Melbourne, Osaka, Praga, Santiago, Taipé, Washington 5: Bancoc, Beijing, Montreal, Roma, Estocolmo, Varsóvia 4: Atlanta, Barcelona, Berlin, Buenos Aires, Budapest, Copenhague, Hamburgo, Istambul, Kuala Lumpur, Manilla, Miami, Minneapolis, Munique, Shangai D. Cidades que apresentam evidência de mundialização Di. Evidência relativamente forte 3: Atenas, Auckland, Dublin, Helsinque, Luxemburgo, Lyon, Mumbai (ex-Bombaim), Nova Délhi, Filadélfia, Rio de Janeiro, Tel-Aviv, Viena

Dii. Alguma evidência de mundialização 2: Abu-Dabi, Almaty, Birmingham, Bogotá, Bratislava, Brisbane, Bucharest, Cairo, Cleveland, Colônia, Detroit, Dubai, Ho-Chi-Minh City, Kiev, Lima, Lisboa, Manchester, Montevidéu, Oslo, .Roterdam, Riad, Seattle, Stuttgart, Haia, Vancuver

Diii. Mínima evidência de mundialização 1: Adelaide, Antuérpia, Arhus, Baltimore, Bangalore, Bolonha, Brasília, Cargary, Cidade do Cabo, Colombo, Columbus, Dresden, Edinburgo, Gênova, Gotemburgo, Guagzhou, Hanoi, Kansas City, Leeds, Lille, Marselha, Richmond, São Petersburgo (Rússia), Tashkent, Teherã, Tijuana, Turim, Utrecht, Wellington. * Não há cidades que se qualificam em 11o lugar. Fonte: Beaverstock et al. (1999)

106


3.2- A proeminência da macrometrópole paulista no território nacional A constatação de que São Paulo ocupa um lugar bastante proeminente na localização de serviços de alto nível vai ao encontro de nossas expectativas quanto à sua importância numa possível rede de cidades mundiais. Mas a importância de São Paulo como cidade mundial só se explica por sua proeminência no quadro brasileiro e sulamericano. Quais seriam as razões para tal relevo no comando do processo capitalista no espaço econômico brasileiro? Encontraremos a explicação no desenvolvimento histórico do processo de unificação econômica do território nacional a partir do processo de acumulação local gerado pelo café a partir de meados do século XIX. Uma classe assalariada suficientemente numerosa para desencadear uma dinâmica capitalista de produção e consumo de bens pôde a partir de então desenvolver-se, permitindo depois à acumulação do capital diversificar-se e tornar-se dinâmica, ainda que “entravada”, nos termos de Déak (1991), expostos no capítulo 1. “O Estado de São Paulo foi o maior beneficiário do ciclo do café, ainda que tenha conquistado a hegemonia econômica nacional apenas em meados do século XIX, quando a produção cafeeira ultrapassou a região de Campinas com destino ao Oeste Paulista, ocasião em que o café produzido nessa região passou a ser escoado pelo porto de Santos e não mais pelo Rio de Janeiro. (...) Para tal, contribuíram fortemente a construção de estradas de ferro no Estado paulista, da quais a primeira, inaugurada em 1868, interligava São Paulo ao porto de Santos” (Schiffer, 1999: 81). Grosso modo, o dinamismo do processo permitiu a acumulação de capital excedente, o que propiciou o investimento na indústria. “[As políticas de subvenção ao café]...garantiram internamente uma renda que deveria ser empregada em investimentos alternativos, face à desestabilização da economia cafeeira de exportação. A indústria aparece na economia nacional nesse período como alternativa de inversão de capital, imbricadamente vinculada à produção agrária (...). São Paulo apresentava-se como locus natural da industrialização brasileira, já que registrava a existência de relações de produção com base no trabalho assalariado junto a uma ocupação territorial contínua do interior paulista” (Schiffer, 1999: 83).

107


A acumulação de capital nessa região permitiu a paulatina sofisticação de suas atividades e grandes investimentos em infra-estrutura. A entrada do capital estrangeiro só serviu para consolidar essa hegemonia e acentuar as desigualdades no território nacional, pois desde cedo a elite paulista se aliou a esse capital para a manutenção de sua hegemonia, sufocando a formação de parques industriais regionais em outros estados. Causa pouca surpresa o fato de que a “abertura” da economia a partir do início dos anos 90 tenha ocorrido paralelamente à retirada do Estado de atividades produtivaschave e que essa abertura (acompanhada de uma pretensa “diminuição” do Estado) tenham encontrado tanto entusiasmo na elite paulista. Esta mais uma vez viu uma oportunidade para um “salto” qualitativo que lhe permitiria entretanto manter sua dominação econômica e política no cenário nacional. “A descentralização de atividades industriais a partir da metrópole e do Estado paulista (...) no início dos anos 70, significou de fato nova estratégia voltada para a manutenção da hegemonia do capital paulista. Tratava-se então de incrementar a acumulação intensiva, e para tal necessitavase de certa descentralização das atividades produtivas para fortalecer o mercado unificado, nos moldes requeridos por essa acumulação” (Schiffer, 1999: 100). A “rede urbana” criada a partir do ciclo cafeeiro no Estado de São Paulo engloba em realidade todo o sistema urbano nacional, mas a configuração de uma macro-metrópole paulista (nos termos da EMPLASA, 2002), com seu centro dinâmico localizado no município de São Paulo apoia-se justamente na proximidade de centros urbanos importantes e na grande concentração de infra-estrutura aí existente, tornado-a uma região dinâmica e atraente para o investimento estrangeiro direto. Como afirma Schiffer (1999): “O padrão locacional emergente da industrialização dentro do Estado de São Paulo registrou significativo desenvolvimento do interior a partir da década de 1970. (...) Esse desenvolvimento, no entanto, deu-se de forma concentrada em três regiões, a saber, Campinas, Baixada Santista e Vale do Paraíba” (Schiffer, 1999:103). Como resultado, a rede urbana da “macrometrópole” paulista (SEMPLA, 2002) adquirem peso e importância específicos, graças à especialização de suas atividades, funcionando como rede de apoio e atração de capital, área para instalação de indústrias de ponta, desenvolvimento residencial e de lazer, entre outras funções.

108


109


Figura 3-2: A ‘macrometrópole’ de São Paulo iluminada à noite. A região inclui cidades importantes como Campinas, São José dos Campos, Santos e Sorocaba, que não pertencem à área metropolitana. A área total iluminada mostrada no mapa foi estimada em 8.015 km2 (junho 2001). Fonte: INPE/ Pub. FSP: 05.08.2001

Entretanto, a preponderância econômica da cidade de São Paulo no território nacional não explica, por si só, sua condição de “cidade mundial”. Suas características podem ser explicadas pelo modelo de “metropolização” proposto por Ab’Sáber (1997)? Nos anos 80, a aceleração das conquistas tecnológicas e as novas técnicas gerenciais,

entre

outros

fatores,

teriam

intensificado

a

solidariedade

e

a

interdependência entre as economias centrais e de alguns países em desenvolvimento, entre eles o Brasil (Cordeiro, 1993). O setor financeiro teria se tornado, neste período, “o

integrador

fundamental

do

sistema

econômico

mundial,

através

da

transnacionalização do mercado de capitais e da reestruturação do capital em escala global, através da reciclagem do capital acumulado” (Cordeiro, 1993: 320). O capital financeiro teria vindo a dominar a economia internacional, tendo a chamada cidade mundial como sua articuladora básica.

110


A reforma do sistema financeiro nacional (1964/65) e a expansão da rede nacional de telecomunicações produzida pela Embratel (fundada em 1967) se constituem em dois fatores fundamentais para a “financeirização” do espaço brasileiro (Cordeiro, 1993) e sua integração com o espaço financeiro mundial. A partir destes e de outros fatores estruturantes, teriam se desenvolvido na região Metropolitana de São Paulo as condições que a capacitaram a exercer o papel de ponto articulador da rede de “cidades mundiais” em território brasileiro. Para Cordeiro (1993), as grandes redes bancárias

paulistanas

estariam

entre

as

grandes

responsáveis

por

essa

“financeirização”109. Paralelamente a este fenômeno, e na esteira da melhor infraestrutura de comunicação e transportes, teria havido um aumento do número de escritórios centrais de grandes empresas transnacionais na macro-metrópole paulista. A região metropolitana de São Paulo cobre uma superfície de 8.051 km² , com 39 municípios, divididos em 137 distritos. Abrigava em 2000 uma população de aproximadamente 17,5 milhões de habitantes (ou aproximadamente 10% da população brasileira), com um produto interno bruto (PIB) de US$ 147.1 bilhões em 1997 (18% do total brasileiro naquele ano) e uma renda per capita de aproximadamente US$ 8.758/ano (1997)110. O PIB da Região Metropolitana evoluiu para 20% do PIB nacional em 2000 (Schiffer, 2002: 214 apud Exame São Paulo, 2000: 7), indicando o aumento da preponderância econômica paulista no período, apoiada num espetacular mercado e infra-estrutura regional: o Estado de São Paulo contava com 33 milhões de habitantes em 2000 e US$ 6.200 de renda per capita no mesmo ano e dispunha da maior companhia elétrica da América Latina (CESP), o maior porto brasileiro (Santos) e 42 aeroportos, sendo 3 aptos a operar vôos internacionais (Schiffer, 2002: 215), entre outros ítens infraestruturais de peso. Segundo Schiffer (2002), “similarmente ao que ocorreu em várias cidades globais, a cidade de São Paulo experimentou um aumento ainda maior na atividade do seu setor terciário, de 58,7 % em 1985 para 67,4% em 1995, e um aumento dos serviços financeiros e especializados de tal magnitude (…) que sua liderança dentro do país foi reforçada. A Bolsa de Valores de São Paulo [Bovespa] _a maior da América Latina_ atualmente transaciona aproximadamente 10% do PIB brasileiro anualmente; a Bolsa de 109 Das duas dezenas de redes bancárias que atingiram a escala nacional no início dos anos 90, 12 estavam sediadas no centro metropolitano de São Paulo (Cordeiro, 1993: 321). 110 IBGE Anuário Estatístico 1997.

111


Mercadorias e Futuros [BMF] é a terceira colocada mundialmente, em termos de dinheiro negociado” (Schiffer, 2002: 216). Schiffer (2002), ressalta ainda que das 20 maiores firmas estrangeiras operando na América Latina em 1999, 12 operavam no Brasil, sendo que seis dessas estavam regionalmente baseadas na cidade de São Paulo (Schiffer, 2002: 216). É evidente que a estruturação de uma rede financeira centrada em São Paulo, com a presença de uma importante bolsa de valores, contribuiu até certo ponto para a presença de um número maior de escritórios de firmas transnacionais de serviços de alto nível. A crescente preponderância financeira da cidade não é causa, mas consequência da dominação do mercado nacional por capitais paulistas. Esta preponderância em todos os setores também se verifica em outros serviços de alto nível, como a publicidade111, os serviços de auditoria e consultoria, os serviços jurídicos, entre outros. A tendência à concentração de infra-estrutura, recursos e mão de obra altamente especializada que caracterizariam, entre outros fatores, as economias de localização, têm sido objeto de vários estudos, colocando pesquisadores sobre novas trilhas para o estudo das cidades como locus de operação do capital global. A formação de agrupamentos de atividades ligadas aos processos da globalização na região próxima à Região Metropolitana de São Paulo indicam a conformação de uma “região global” com características particulares, onde o 111 A importância da indústria publicitária está intimamente ligada à criação de uma “cultura capitalista” dentro do que Taylor e Beaverstock (2002) chamam a “era da hegemonia americana”, com a publicidade no centro do capitalismo moderno. “Através da criação e da manutenção de marcas, os publicitários agregaram valor aos produtos, permitindo a seus clientes vender mais pelo mesmo preço ou vender mais ou menos o mesmo em maiores quantidades (Mayer, 1991: xi-xii). As marcas, como as patentes e o copyright, criam poderes monopolísticos, mas sem os limites de tempo (...)” (Taylor & Beaverstock, 2002). Dentre os serviços de alto nível mencionados, a publicidade é certamente um dos mais característicos, constituindo-se num fenômeno central na manutenção e expansão do capitalismo mundial e da hegemonia americana. A região de São Paulo controla cada vez mais o mercado publicitário do país, através de escritórios nacionais, muitas vezes em associação com firmas internacionais, ou através de filiais destas firmas que vêm a São Paulo buscando aproximar-se do mercado consumidor local, utilizando talentos, infra-estrutura e tecnologia locais e diminuindo seus custos. No começo da década de 80, a soma das contas publicitárias da cidade de São Paulo eram já maiores que as do Rio e em 1985 as companhias paulistas controlavam mais de 2/3 destas contas (Cordeiro, 1993). Em 2001, São Paulo abrigava 60% das maiores agências publicitárias e 9 das 11 agências operantes no Brasil com mais de 250 empregados (Balanço Anual, Gazeta Mercantil, 2001).

112


aparecimento de áreas privilegiadas de investimento imobiliário representa mais que uma “competição entre cidades” para a atração de investimentos diretos, mas seria o resultado de uma estratégia nacional de inserção no mercado mundial. No Estado de São Paulo existem três Regiões Metropolitanas muito próximas: a de São Paulo, da Baixada Santista e de Campinas. Estas concentram cerca de 20,8 milhões de habitantes, ou seja, 58,3% da população do Estado e 13% do total do País. Apresentam também um Produto Interno Bruto (PIB) que corresponde a 63,5% do PIB estadual e quase um quarto do nacional112. As regiões de Sorocaba e vale do Parnaíba, com a cidade de São José dos Campos à frente, também são pólos importantes de atividades ligadas a uma economia de escala metropolitana/regional. Juntas, estas regiões conformariam a “Macrometrópole” ou “Complexo Metropolitano Expandido”, onde “(...) são intensas as relações econômicas e a viagens diárias” (SEMPLA, 2002: 1). Segundo o SEADE, “Ao associar a condição de maior mercado, principal centro econômico e financeiro e maior centro industrial da América do Sul, a Região Metropolitana de São Paulo ocupa uma posição ímpar no continente, que a torna um referencial obrigatório para todas as organizações de negócios que queiram atuar na América do Sul. Mesmo aquelas empresas que optam por instalar-se fora da Região Metropolitana de São Paulo acabam procurando localizações próximas. O resultado é que as cidades que mais vêm atraindo investimentos no Estado de São Paulo são, além das que fazem parte da Região Metropolitana de São Paulo, aquelas que se situam em suas proximidades. Conforma-se, assim, uma espécie de região metropolitana expandida, abrangendo municípios num raio de cerca de 150 quilômetros da capital, cuja vida econômica é polarizada por esse grande centro de gravidade que é a Região Metropolitana de São Paulo. Entre eles destacam-se Campinas, São José dos Campos, Santos e Sorocaba, que, por sua vez, polarizam um conjunto de municípios menores a sua volta” (SEADE, 2002113). No campo da forma urbana e do desenvolvimento imobiliário, as chamadas áreas dinâmicas para a operação do investimento estrangeiro direto no setor da 112 EMPLASA, Metrópole em Dados, 1999. O Brasil teve um PNB total de US$ 730,4 bilhões em 1999. O montante total de IED no país foi de aproximadamente US$ 33 bilhões para o mesmo período. (World Bank Development Report, 1999). 113 Fonte: http://www.seade.gov.br/negocios/snpct_03.html

113


incorporação e desenvolvimento imobiliário podem ser identificadas através das estatísticas de investimento imobiliário na metrópole e na macrometrópole paulista. A presença de algumas das maiores companhias de incorporação internacionais no mercado paulistano114, é uma indicação de que o mercado imobiliário nesta região tem atratividade suficiente para gerar negócios de um caráter que escapa aos fenômenos puramente locais. Um exemplo importante deste tipo de negócio são as redes hoteleiras internacionais, que atualmente realizam investimentos por toda a macrometrópole paulista. Essa presença indica não somente investimentos imobiliários de peso, mas também a sofisticação dos serviços na região115. A título de exemplo, a rede francesa de hotéis Accor, que opera diversas marcas por faixa de preço, possui unidades nas seguintes cidades do Estado de São Paulo:

114 CB Richard Ellis, Jones Lang Lasalle, Cushman & Wakefield Semco, entre outras. Este tema será tratado com maior detalhe no capítulo 5. 115 Segundo reportagem de Claúdia Santos, o número de apartamentos e suítes deve chegar a 310 mil em 2004, representando um aumento de 142% em relação a 1992. “O interesse do pequeno e do médio investidor por produtos imobiliários, como os flats, também ajudou a impulsionar o aumento da oferta hoteleira. Muitos dos novos empreendimentos têm projetos e operação de hotel sob responsabilidade de cadeias internacionais.” Ao contrário do que ocorre na maioria dos países, onde o mercado dos flats é quase totalmente dominado por grandes incorporadoras e fundos de pensão, no Brasil estes agentes dividem espaço com o pequeno investidor. “O fim da inflação e a estabilidade econômica, além de trazerem o pequeno investidor para o setor, foram os principais responsáveis por atrair grandes investimentos [estrangeiros]. Depois de o Plano Real entrar em operação vieram para o Brasil grandes redes internacionais, caso das norte-americanas Marriott e Choice, e a mexicana Posadas”. Fonte: Cláudia Santos, “O mercado de hotéis cresce no Brasil”, sítio oficial do Planeta Imóvel, 26.04.2002.

114


Tabela 3-3: Hotéis da Rede Accor na macrometrópole paulista. Fonte: Accor Hotéis

Rede

Brasil

Accord *

Estado de

Bacia

Paulista

(macrometrópole)/

Município

S. Paulo

cidades **

Paulo/bairro

Sofitel (luxo)

6

1

1

1: Ibirapuera

Novotel (superior)

13

5

2: Campinas, S.José dos Campos

3:

de

Barra

Funda,

Morumbi Ibirapuera Ibis (econômico)

13

8

5: Indaiatuba, Paulínia, Piracicaba, S.

1: Barra Funda

José dos Campos, Sorocaba Formule

1(super

1

1

0

1: Paraíso

82

30

8: Campinas, Guaratinguetá, Jundiaí,

21: vários

econômico) Parthenon (flats)

Mogi das Cruzes, Santos, S. Bernardo do Campo, S. Caetano do Sul, S. José dos Campos Total

115

45

16

27

*Por categoria/ marca. Inaugurados até 2001. Fonte: Rede Accor Brasil, 2002 ** Com exceção do município de S.Paulo.

Em meados da década de 90, Santos (1996), já afirmava que São Paulo não era somente o centro econômico dominante do Brasil, mas havia se estabelecido como uma importante cidade mundial. No processo, começou a mudar sua forma urbana. Sem perder inteiramente sua importância industrial, tornou-se o mais importante centro de serviços e o centro inconteste de decisões. Essas mudanças trouxeram também consequências importantes para a estrutura de emprego e distribuição de renda, com reflexos sobre a organização do território intra-urbano. À medida em que o emprego industrial começou a migrar para cidades do interior do estado ou mesmo para outros estados do país, São Paulo vem se transformando num complexo informacional. Isso se reflete no crescimento do emprego técnico, científico e artístico na cidade, em detrimento dos empregos industriais. De 205.000 trabalhadores em 1971, o total aumentou para 460.000 em 1981 e 760.000 em 1990 (Pesquisa Nacional de Domicílios, 1971, 1981 e 1990). Enquanto a força de trabalho total da cidade aumentou em 119% entre 1971 e 1990, a força de trabalho em

115

S.

e


atividades informacionais cresceu 271%. A participação percentual deste setor no total do emprego se expandiu de 6.3 % para 10.4 % no mesmo período (Santos, 1996), acompanhando o declínio no setor industrial resultante da migração das indústrias para o interior do Estado e também para outros estados do país. Conforme analisado, a transferência das indústrias para o interior pode ser entendida como parte de um grande processo de descentralização industrial que se explica por uma estratégia de redução de custos, procura por mão de obra mais barata e menos sindicalizada, benefícios fiscais e terras mais baratas para a instalação de plantas industriais. Tal processo foi beneficiado por incrementos qualitativos e quantitativos na infra-estrutura e acesso das regiões do interior. A primeira fase foi a da transferência física das plantas industriais para o hinterland próximo, estabelecendo-se principalmente nos eixos viários que ligam a Grande São Paulo a outras regiões consumidoras e produtoras de insumos. Na etapa seguinte, as indústrias transferidas começaram a atrair também os fornecedores de matérias-primas e de insumos que entram na fabricação do produto final. A terceira etapa desse processo ocorre desde meados da década de 90, com a mudança dos departamentos de vendas, de apoio logístico, de pesquisa e desenvolvimento e de tecnologia para as novas áreas industriais. Porém, a mudança do setor terciário para municípios da área metropolitana ou do hinterland próximo deve ser relativizada, por conta de um fenômeno peculiar. “Algumas cidades da Grande São Paulo estimulam a criação de empresas dentro dos limites de seus territórios sem que elas desenvolvam qualquer atividade econômica no município” (FSP: 22.04.2002: C1). Isso ocorre porque nestes municípios, a alíquotas para recolhimento do ISS (Imposto sobre Serviços) são muito menores que na capital, variando desde 0,15 (Santana de Parnaíba), 0,3% (Carapicuíba) a 0,5% (Barueri) , enquanto no município de São Paulo é de 5%. Empresas de prestação de serviços e profissionais liberais “alugam” endereços fiscais nos municípios periféricos, mas mantém suas atividades na capital, pagando com isso menos impostos. Segundo dados da Prefeitura de São Paulo, o ISS representou 50,98% de sua receita tributária em 2001. A importância do imposto levou François Bremaeker, coordenador do Núcleo de Articulação-Institucional do Ibam_ Instituto Brasileiro de Administração Municipal_ a declarar que o fenômeno de locação de endereços fiscais e a manutenção de alíquotas

116


baixas do ISS constitui-se “numa modalidade mais avançada de fazer guerra fiscal” (FSP: 22.04.2002: C-3)116. Finalmente, o hinterland próximo a São Paulo atrai também população de alto poder aquisitivo, que acompanha a migração das atividades econômicas, e também foge da violência e da degradação ambiental da cidade. Segundo a EMBRAESP (Empresa Brasileira de Estudos de Patrimônio), 67 novos condomínios foram lançados na região da Grande São Paulo entre 1997 e 2002, 20 deles no município de Cotia. Para a Habicamp, entidade ligada ao SECOVI-SP (sindicato das imobiliárias e construtoras), no primeiro semestre de 2002 haveriam ao menos 20 empreendimentos sendo comercializados na região de Campinas e municípios próximos. A imobiliária Fernandez Mera teria vendido, entre 1998 e 2002, oito condomínios de casas em Campinas e em cidades como Barueri, Arujá e Sorocaba (FSP: 14.04.2002. Imóveis: 1). Para os consultores, o boom imobiliário na bacia urbana de São Paulo tem vários componentes geradores: “Ainda que o valor da construção do metro quadrado seja semelhante no interior e na capital, os terrenos em São Paulo chegam a ser dez vezes mais caros. Além disso, essas cidades têm boas vias de acesso e amplas áreas disponíveis para a criação de condomínios” (FSP: 14.04.2002. Imóveis: 1). Haveria três perfis de clientes: 1. Os que viviam nas próprias cidades onde os condomínios são construídos e procuram mais segurança, 2. Os que seguem trabalhando na capital, mas viajam diariamente, ou ainda utilizam a casa como refúgio de campo, 3. Os que se mudam para cidades menores a trabalho. Este último parece ser um grupo cada vez mais importante A transferência de atividades e empregos para a região parece ser um fator preponderante. Segundo Fernadez Mera, presidente da imobiliária que leva seu nome “esses municípios estão recebendo empresas e com isso atraem gerentes e diretores em busca de casas de alto padrão” (FSP: 14.04.2002. Imóveis: 1). Como resultado da migração das indústrias para outras regiões da macrometrópole, do Estado e mesmo do país, antigos distritos industriais da Região Metropolitana de São Paulo dão lugar a novos desenvolvimentos residenciais, comerciais ou de lazer. 116 Não encontramos estatísticas sobre a evasão indevida de ISS do município de São Paulo.

117


De acordo com a companhia de consultoria imobiliária internacional Richard Ellis, 19,1% das antigas áreas industriais da Região Metropolitana de São Paulo são ocupadas por serviços e outras atividades não relacionadas ao setor industrial (2001). A região Metropolitana tem

25 milhões de metros quadrados em área construída

industrial, da qual uma grande porcentagem pode estar em processo de conversão para outros usos no início do século XXI. A companhia Bamberg Incorporadora, uma companhia de operações imobiliária nacional, avaliava no primeiro semestre de 2002 que de 300 a 400.000 m² de imóveis industriais seria vendida todos os anos para utilização em atividades não industriais. Estudos conduzidos pela Bolsa de Imóveis de São Paulo (uma companhia privada), indicam que diferentes regiões industriais têm tendências de reconversão para distintas atividades. Amplos terrenos industriais no setor leste da cidade têm a tendência a tornar-se áreas residenciais verticalizadas, enquanto que antigas áreas industriais no setor sul da metrópole dão lugar a edifícios de escritórios de alto padrão ou grandes centros de compras. (Folha de S.Paulo: 29.07.2001, Imóveis: 2). Mapa 3-4: Regiões industriais da Região Metropolitana de São Paulo. Fonte: Bolsa de Imóveis de São Paulo, 2001. Mapa elaborado por Sírio Cançado.

118


Apesar de apresentar uma estrutura radial concêntrica e um centro historicamente caracterizado, a cidade de São Paulo não tem um “Distrito Central de Negócios”, típico de outras cidades na América Latina, América do Norte e Europa. De acordo com a empresa de consultoria imobiliária Bolsa de Imóveis de São Paulo (2001), São Paulo teria atualmente 9 áreas dinâmicas para o desenvolvimento imobiliário, e que podem ser agrupadas em 4 regiões de negócios. Estas regiões correspondem de maneira geral aos vários ciclos de desenvolvimento econômico que pelos quais passaram a cidade e o país. Estas áreas dinâmicas são: 1. Centro [Centro Histórico, em torno do Triângulo original formado pelas ruas Direita, XV de Novembro e São Bento, onde estão localizadas, entre outras instituições importantes, a BOVESPA (Bolsa de Valores de São Paulo) e a BMF (Bolsa de Mercadorias e Futuros) e Centro Novo, que se situa além do vale do Anhangabaú, na região em torno da Praça da Repúplica]; 2. Avenida Paulista; 3. Avenida Faria Lima/Vila Olímpia e 4. Avenida Berrini/Marginal Pinheiros (Avenida Nações Unidas). Eles se desenvolvem mais ou menos paralelos um ao outro em direção ao oeste. Os investimentos no mercado imobiliário são mais importantes no setor Sudoeste da metrópole, como veremos mais adiante. Há outros centros de investimento nas municipalidades vizinhas de Santo André, São Bernardo e São Caetano (sudeste da AMSP), assim como nas “edge-cities” de AlphaVille e Tamboré (Noroeste da AMSP), bem como em alguns pólos dentro da macrometrópole paulista.

119


Mapa 3-5: As principais áreas para desenvolvimento imobiliário comercial na MASP: 1. Sé (Centro), 2. Avenida Paulista, 2.a. Jardins, 3. Avenida Faria Lima, 3.a. Itaim, 3.b. Vila Olímpia, 4. Avenida Berrini, 4.a. Marginal Pinheiros, 4.b. Rua Verbo Divino, Fonte: Bolsa de Imóveis de São Paulo, 2001. Mapa elaborado por Sírio Cançado.

120


Como resultado dessa configuração, o sistema de preços e investimentos não é tão facilmente mapeável como em outras aglomerações, onde declinam conforme nos distanciamos do Centro de Negócios. Como em outras metrópoles com grandes desenvolvimentos imobiliários comerciais suburbanos, o preço da terra está diretamente relacionado à acessibilidade aos serviços e à qualidade ambiental, mas em São Paulo isso ocorre de maneira bastante complexa, onde produtores e consumidores fazem um balanço entre o preço da terra e as características do entorno quanto à sua acessibilidade, qualidade de urbanização, atributos de vizinhança e outros fatores relacionados às diferenciações espaciais decorrentes dos altos desníveis de renda, como a violência urbana, o acesso ao equipamentos culturais, de lazer e de consumo, entre outros fatores. O resultado de inúmeras decisões de localização por parte de empresas, particulares e do setor público produzem um mosaico urbano complexo, composto de distritos de negócios, comerciais e residenciais. No conjunto das quatro regiões de negócios mais dinâmicas descritas acima, o antigo coração da cidade não é a região mais atraente para o investimento imobiliário, apesar de suas excelentes condições de acessibilidade. Mapa 3-6: Sistema viário e ferroviário Região Metropolitana de São Paulo. Fonte: CESAD-FAUUSP/ Mapa elaborado por INFURB_FAUUSP, 1998.

121


Entretanto, nenhuma destas áreas dinâmicas de investimentos pode ser considerada isoladamente do conjunto da metrópole, cujo estruturação definiu sua localização e cuja dinâmica global produz sua valorização ou desvalorização. Uma das características mais marcantes do desenvolvimento da metrópole paulista é a concentração do investimento público em infra-estrutura viária na zona Sudoeste da metrópole, acompanhando o deslocamento das elites paulistanas para o Oeste. Porém o fator preponderante na caracterização e diferenciação da metrópole paulistana foi seu crescimento meteórico e descontrolado a partir da segunda metade do século XX (Tabela 3-5) Tabela 3-7: Evolução da População Residente (em mil habitantes) Brasil, Estado, Região Metropolitana e Município de São Paulo 1960

1970

1980

1991

1996

2000

Brasil

70.191

93.139

119.003

146.825

157.080

169.591

Estado de S. Paulo

12.824

17.772

25.041

31.589

34.121

36.969

Região

4.791

8.140

12.589

15.445

16.583

17.835

3.783

5.825

8.493

9.646

9.839

10.406

Metropolitana de S. Paulo Município de S. Paulo Fonte: IBGE, Censos Demográficos

Os serviços de alto padrão oferecidos pela aglomeração paulistana, que poderiam caracterizá-la como uma “cidade mundial”, estão concentrados em regiões muito específicas da metrópole. Entretanto, este setor de serviços de alto padrão tem ramificações, através da cadeia de contrato e subcontrato, uso e demanda, administração pulverizada e governância, que pervadem a aglomeração e alcançam muito mais longe que o território metropolitano, invadindo o território nacional e alcançando o exterior. A posição do município de São Paulo como centro da macrometrópole ou desta “região global”, coloca-a também na posição de receptora privilegiada de

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investimento estrangeiro direto, mas também a torna objeto de investimentos especulativos na área imobiliária. Os impactos na estruturação espacial intra-urbana são evidentes, o que não impede que ocorram grandes desníveis de investimento ao nível do território do município. Esta demanda por novos espaços de operação na cidade de São Paulo resulta no desenvolvimento de novas áreas de negócios (como no caso da região Vila Olímpia/ Av. Luiz Carlos Berrini e Avenida Nações Unidas) com características particulares. A posição privilegiada do município torna os mecanismos de “parceria” entre o público e o privado ao nível municipal instrumentos essenciais para a consecução da inserção nacional ao processo de acumulação capitalista mundial contemporâneo. Conforme analisado, ocorre ao mesmo tempo uma desconcentração relativa do sistema produtivo e um fortalecimento da concentração do sistema de gestão do setor transnacional da economia. Os fluxos imateriais, o controle de informação gerencial à distância redefinem a posição da metrópole paulista, redesenhando-a em conformidade com a localização das empresas do setor financeiro e sedes de multinacionais. A metrópole não necessita mais ser contínua e compacta para que os fluxos se realizem sem entrave, mas heterogênea e polinucleada, graças à sofisticação e concentração da infra-estrutura em ‘clusters’, ao adensamento das ‘redes’ de empresas (conformando eixos claros de investimento imobiliário corporativo), a maximização da utilização da infra-estrutura de comunicação e a utilização de meios de transporte alternativos pelos que comandam o processo de acumulação a nível local 117. Em suma, como aponta Schiffer (2002), “a concentração de infra-estrutura de comunicação e de atividades financeiras em São Paulo contribuiu definitivamente para torná-la a localização preferida para as sedes regionais das corporações atuando na área do Mercosul. Além da infra-estrutura e serviços especializados necessários para os negócios, São Paulo oferece hotéis, shopping centers e oportunidades de lazer que

117 Como tem se verificado com a utilização massiva de helicópteros por executivos de grandes empresas, tornando São Paulo a segunda cidade com maior frota destes aparelhos do mundo, com cerca de 450 aparelhos em 2001. Segundo números do setor (2001), São Paulo perdia somente para Nova York, que possuía 1.500 dessas aeronaves registradas (nem todas operando na cidade). Somente na capital paulista existiam em 2001 cerca de 180 helipontos homologados pelo Ministério da Aeronáutica e outros 120 em fase de aprovação, enquanto Nova York possuía apenas três, todos na Ilha de Manhattan (OESP: 24.06.2001).

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atendem às demandas de uma nova elite internacional” (Schiffer, 2002: 229). “Entretanto”, prossegue Schiffer (2002), “a grande escala da cidade, seus crescentes problemas de trânsito, sua degradação ambiental e sua violência social têm perturbado sua qualidade de vida a tal ponto que sua atratividade funcional pode ser eclipsada por seus problemas quotidianos” (Schiffer, 2002: 229). De fato, “já estariam (...) convivendo sobre o mesmo espaço a cidade massificada, da produção em série, da mão-de-obra intensiva, densa, extensa e convulsiva da era industrial, com a slean city, a cidade tecnológica, formada por nichos e guetos de população diferenciadas”, indicando que “(...) as novas formas de organização social e da produção já estariam presentes no contexto físico da cidade atual” (SEMPLA, 2000: 9). Conforme analisado no capítulo 2, uma das características da nova economia seria o agravamento da polarização social já existente no modelo capitalista. As atividades industriais (que em princípio são capazes de gerar e manter uma classe média), dão lugar às atividades ligadas ao setor financeiro, à criação e principalmente aos serviços. Acompanhada de uma desregulamentação profunda das relações trabalhistas, este fenômeno produz assalariados de alto nível (gerentes, criadores, advogados especializados, etc.), mas demanda uma grande quantidade de mão de obra de baixa remuneração (pessoal de limpeza, manutenção, transporte etc.) (Sassen, 1998). O número de empregados na indústria tende a diminuir de maneira global. A desregulamentação das relações trabalhistas e a eliminação das proteções ao trabalho e ao trabalhador conseguidas durante o período de preponderância industrial vêm sendo fortemente minadas, aumentando o desemprego e empurrando parcelas da população para as atividades informais. Não é surpreendente que durante os anos 90, de acordo com pesquisa conduzida pelo SEADE (Pesquisa de Condições de Vida, PCV 1998), a concentração de renda tenha aumentado na Região Metropolitana de São Paulo. A reunião de investimentos nas áreas mais ricas da cidade, em detrimento de investimentos em suas áreas mais carentes, aliada à desconcentração da produção industrial, com o aumento expressivo do desemprego, foram os fatores determinantes deste fenômeno. Ainda que se possa argumentar que a tendência à concentração de renda não é nova no cenário econômico nacional, é evidente que as escolhas políticas locais, aliadas às políticas

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nacionais de liberalização e desregulamentação da economia, também contribuíram em grande parte para a perpetuação dessa dinâmica na cidade de São Paulo. Entre os anos de 1994 e 1998, a renda familiar per capita aumentou 32% na Região Metropolitana de São Paulo. Entretanto, o aumento de renda para os 10% mais pobres foi de apenas 24%, inferior portanto à média. Por outro lado, os 10% mais ricos tiveram ganhos de aproximadamente 37%. A renda das classes altas era de 41,2 vezes superior à renda das classes menos favorecidas em 1994. Em apenas 4 anos, essa diferença aumentou para 45,5 vezes (SEADE, Pesquisa de Condições de Vida, PCV, 1998). Podemos presumir que, como resultado direto da concentração de renda descrita, a população vivendo em favelas e cortiços tenha aumentado, como de fato ocorreu. De acordo com dados do SEADE, os moradores precários na cidade aumentaram de 10,8% em 1994 para 14,1% em 1998 (SEADE, PCV, 1998). Já para a Fipe_ Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas _, a população residente em cortiços e favelas somaria aproximadamente 25% da população total da cidade. Em 1991, segundo a própria Fipe, havia na cidade de São Paulo 23.688 cortiços, que então abrigariam 595.110 pessoas, ou 6% da população municipal à época. Os moradores em favelas seriam 1.901.892 pessoas, ou 19% da população. Segundo a Fundação, esses números não sofreram grandes modificações ao final da década de 90. As regiões de São Paulo com maior número de cortiços seriam: Sé, Moóca, Santo Amaro, Vila Prudente, Freguesia do Ó e Campo Limpo. Uma grande parcela da metrópole tem sido construída fora de qualquer padrão ou regulamentação urbanística, constituindo o que Grostein (1987) chamou a “cidade clandestina”. Somente no município de São Paulo, os loteamentos e condomínios clandestinos ocupavam em abril de 2002 uma área estimada em 338,8 km² (aproximadamente 22,5 % da área total do município), onde viveriam cerca de 3 milhões de pessoas (aproximadamente 29% da população estimada), segundo pesquisa conduzida pelo Departamento de Regularização de Parcelamento do Solo (Resolo, 2002). Este número não refletiria o total das áreas clandestinas, que incluiriam ainda as favelas e cortiços da capital. O perfil das áreas clandestinas é variado, mas há o predomínio de terrenos loteados irregularmente (“grilados”) nas periferias do município, principalmente no extremo sul, junto aos mananciais e na Zona Leste.

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As áreas escolhidas pelos atores econômicos dinâmicos para estabelecer suas atividades estão cada vez mais “destacadas” de um cenário social mais amplo e, portanto, cada vez menos propensas a assumir uma “influência positiva” sobre as populações pobres, mesmo que indireta, segundo prega o ideário liberal. A criação de espaços prestigiosos e funcionais onde as atividades de controle do capital podem se desenvolver incorpora-se à lógica de mercado imobiliário e às políticas públicas, que tradicionalmente acompanham aquela lógica. Poderemos acompanhar este processo nas ações do poder público municipal na cidade de São Paulo para sua qualificação para o papel de Cidade Mundial.

3.3- Globalização e rumos das políticas municipais Os novos processos de reprodução material, que se expressam no fenômeno da globalização, resultam num novo paradigma de desenvolvimento urbano e a grandes mudanças no perfil da administração da cidade. “O governo local passa, cada vez mais, a investir-se do papel de empresário, não se restringindo, portanto, à mera função de gerenciamento dos serviços. Tais percalços de autonomia se apóiam igualmente nas possibilidades de manter conexões diretas com circuitos financeiros e econômicos mundiais, sinalizando, deste modo, a fragmentação em curso do Estado central.” (Davidovich, 1993: 314). Este esforço pela manutenção das “conexões diretas”, que se traduzem em investimentos e transferência de tecnologia, toma forma nas ações objetivas dos poderes municipais para adequar a metrópole às novas condições. Porém o discurso sobre a inclusão de São Paulo no rol destas cidades servirá para a consecução de várias estratégias políticas e econômicas, conforme discutido adiante. Davidovich (1993) destaca que a inserção de cidades do Terceiro Mundo na rede de cidades mundiais vem acompanhada de uma vertente ideológica, “na medida em que, para países do Terceiro Mundo, ela é interpretada como uma garantia de ingresso no Primeiro Mundo” (Davidovich, 1993). Tal vertente pode ser encontrada também na defesa de São Paulo como Cidade Mundial. Esta construção é questionável através da análise de fluxos de capital e de remessas de lucros, que mostram claramente as relações de subordinação existentes (ver capítulo 2).

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Em debate promovido pelo jornal “O Estado de São Paulo” no dia 16 de fevereiro de 1993, Paulo Salim Maluf e César Maia, então prefeitos de São Paulo e Rio de Janeiro, respectivamente, convergiram ao defender o aparelhamento de suas cidades para a competição pela liderança econômica na região do Atlântico Sul, posição que estaria sendo duramente disputada com Buenos Aires, na Argentina, e Joanesburgo, na África do Sul. César Maia buscava a saída no desenvolvimento cultural e tecnológico da metrópole. São Paulo, segundo Maluf, deveria ser ‘exemplo de infra estrutura de transportes e obras públicas’. “Só a esquerda tradicional é que imagina que se pode conseguir desenvolvimento social sem desenvolvimento econômico”, afirmaria César Maia (OESP: 18.02.93: 1-3). O papel do Rio de Janeiro e São Paulo como cidades mundiais já aparecia bastante claro para os dois prefeitos, que “(...)com base neste raciocínio inicial (...) planejaram suas administrações. (...) Maluf aposta

em investimentos no setor de

transporte e obras e em ações conjuntas com o Rio no setor cultural, certo de que no futuro, São Paulo, Vale do Paraíba, Baixada Fluminense e Rio serão uma coisa só” (OESP: 18.02.93: 1-3). Segundo Maia, o mundo se globalizaria tendo como base as grandes cidades, não os países, e esta “rede” de cidades mundiais seria “finita”, obrigando a uma competição entre as candidatas. No Rio e em São Paulo se estariam construindo “teleportos”, criando, segundo Maia, “condições materiais” para a internacionalização das cidades. Isto não seria o suficiente, pois a chamada cidade global teria de ser também um “centro de talentos, ‘locus’ de serviços avançados do terciário superior e com propensão à internacionalização”, exigindo mais que a “instalação de circuitos eletrônicos”. “[A metrópole] só se internacionaliza quando é espaço preferencial de deslocamento dos atores relevantes, atores econômicos, atores sociais, atores políticos e atores culturais. E ela só se transforma num espaço preferencial de deslocamento em função da oferta de bens culturais” (OESP: 18.02.93: 1-3). Aqui identificamos o fenômeno descrito por Santos (1993), que identifica o espaço e o “meio técnico científico”, fazendo que o primeiro se apresente com um conteúdo de racionalidade, graças à “intencionalidade na escolha dos seus objetos, cuja localização mais do que antes, é funcional aos desígnios dos atores sociais capazes de

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uma ação racional” (Santos, 1993:17). Esta instrumentalização do espaço, facilmente identificada na fala dos prefeitos carioca e paulistano, propiciaria o surgimento de construções ideológicas que mediariam a vida social de forma “matematizada”, sempre conforme os interesses que Santos chama de “hegemônicos”. Assim se instalariam “não só as condições de maior lucro possível para os mais fortes, mas também as condições para maior alienação possível para todos” (Santos, 1993:18). É lícito concluir que as estratégias adotadas pelos prefeitos das duas cidades mundiais brasileiras inserem-se na análise desenvolvida por Santos (1993), onde a racionalização dos meios de reprodução material dá margem a análises “matematizadas” da vida social, que passa a existir em função daquela reprodução. Nos espaços de racionalidade criados, o mercado, segundo Santos (1993), torna-se “tirânico” e o Estado tende a ser impotente. Entretanto, vimos como, no caso paulistano e carioca, as últimas administrações, longe da impotência, vêm aliando-se ao Capital, ajudando a criar os espaços onde este habitará sem constrangimentos. Ao mesmo tempo, a espetacularização e extrema visibilidade das ações municipais ao fazêlo contribui para a permanência desta ou daquela corrente política no poder118. Para a Secretaria Muncipal do Planejamento do município de São Paulo (SEMPLA: 2000), diante do processo de globalização da economia brasileira, que teria imposto transformações importantes nas estruturas sociais, urbanísticas e econômicas do município de São Paulo, os “(...) instrumentos tradicionais de gestão e ordenação do desenvolvimento urbano parecem cada vez mais impotentes diante da realidade construída” (SEMPLA, 2000: 3), obrigando a administração pública a assumir “(...) como ponto de partida a cidade real, concreta, com sua dinâmica (...), evitando assim que a discussão_ que vem se colocando em falsas bases há mais de 20 anos_ se perpetue, inviabilizando o correto equacionamento que São Paulo merece” (SEMPLA, 2000: 3). Para o órgão, a falência dos instrumentos tradicionais de planejamento está explícita na enorme parcela de cidade considerada “ilegal”, “clandestina” ou “informal” (SEMPLA, 2000: 3). Esse documento (publicado no último ano de governo de Celso Pitta, então aliado político e eventual sucessor de Paulo Maluf) reflete a crença na inserção da 118 Lembremo-nos que tanto Paulo Maluf como César Maia elegeram seus sucessores nas eleições de 1996 através de estratégias de convencimento da opinião pública que incluíam obras de grande visibilidade e a justificativa do progresso e, antes de mais nada, da “competitividade”.

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economia brasileira na globalização e o papel fundamental da cidade de São Paulo na coordenação dessa inserção. Nesse documento, a SEMPLA procura justificar as “novas parcerias” entre poder público e capital, apontando para a falência dos planos de caráter globalizante e do planejamento tradicional e na sua incompetência para lidar com os problemas da cidade real, que deveriam ser endereçados a partir de uma abordagem pragmática e realista. Firma-se a opção por uma “gestão pública estratégica” que se baseia num “processo mais amplo de planejamento” calcado na “objetivação de procedimentos de articulação entre o Poder Público e os diversos segmentos da sociedade civil”, onde haveria “a maior participação dos construtores e usuários do espaço urbano através da fixação de critérios e parâmetros claros que orientassem as opções a serem feitas e que serviriam como parâmetros para a atuação desses agentes na cidade”, o que evitaria assim a “imposição de um modelo ideal de cidade”. A opção agora seria por “organizar, gerenciar, optar, estabelecendo um elenco de opções estratégicas acordado entre os agentes sociais (...) através do diálogo entre os que produzem e os que se utilizam do espaço urbano” (SEMPLA, 2000: 3). Em suma, a SEMPLA pautava sua atuação pelo esforço em “consolidar” a posição de São Paulo como cidade mundial, concentrando esforços e recursos no desenvolvimentos de projetos que partiriam das seguintes premissas: – “o reconhecimento da vocação clara da metrópole como cidade terciária [centro de serviços] (...); – (...) a articulação dos poderes públicos com a sociedade civil [incorporando] (...) as contribuições dos numerosos agentes sociais e [valorizando] (...) a cidadania; – o estabelecimento de um plano estratégico de gestão entre as forças que atuam na cidade, buscando um ambiente urbano que consiga balancear a esfera pública e a privada; – (...) [a ampliação] do rol de instrumentos de gestão, com o estabelecimento de parcerias várias, mecanismos de atração de capitais, estreitamento da colaboração dos setores público/privado (...); – a construção de uma nova base legal mais flexível, que vise a recuperação, expansão e sustentabilidade da área urbana etc.” (SEMPLA, 2000: 4)

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As referências ao planejamento estratégico, tal como abordado no capítulo 1, são claras. A crítica estabelecida a este planejamento e à razão comunicativa habermasiana que o permeia deve ser aqui relembrada. A opção pela “gerência”, “organização” e “diálogo entre os que produzem e os que se utilizam” do espaço urbano implica a renúncia a uma compreensão global dos fins e consequências de uma inserção subordinada na ordem produtiva mundial. Porém, a idéia da parceria entre público e privado na administração municipal paulistana é bem mais antiga e não pode ser atribuída às condições criadas pela globalização e pela prevalência da lógica de mercado nas administrações públicas. No capítulo 4, analisaremos como ações urbanísticas cruciais para o desenvolvimento da metrópole (como a retificação dos rios Pinheiros e Tietê), deram-se em função desta parceria e de uma comunhão mais ou menos explícita de interesses. Contudo, assim como nos processos relativos à globalização das economias, podemos apontar a intensificação e a progressiva racionalização destas parcerias. Piccini (1997), identifica já no PDDI de 1971 um passo em direção às parcerias entre o poder público e a iniciativa privada. Na lei n.º 7.688 de 30 de Dezembro de 1971, capítulo I, item II, alínea “C”: “o Município estimulará a participação da iniciativa privada nos programas de desenvolvimento social, mediante assistência técnica, incentivos e convênios, assegurando os padrões mínimos estabelecidos nesta lei”. Para Piccini (1997), isso permitiu “o início da participação da iniciativa privada na esfera da administração pública, através da área social e em específico através de convênios onde entidades privadas assumiam funções destinadas ao setor público como o atendimento de creches” (Piccini, 1997). Piccini destaca exemplos onde o setor público teria desempenhado funções que seriam prerrogativas da esfera privada, como os “Planos de Urbanização” promovidos pela EMURB (Lei no. 8.328/75) nos bairros de Liberdade, Santana e Jabaquara (Estação Conceição). Segundo Piccini, o projeto de reurbanização de Jabaquara foi o único a ser completado com a participação da iniciativa privada, mas não foi totalmente auto-financiável como previsto no programa. Para Piccini (1997), a diretriz da participação do setor privado seria auspiciada também em outros setores da administração municipal como previsto na Lei no. 10.676 de 7 de novembro de 1988, que instituía o Plano Diretor. As “Diretrizes” (Seção II, Artigo 24, Inciso I), ressaltam como objetivo estratégico “transferir para o setor privado

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da economia, quando conveniente ao interesse público, a operação de determinados serviços municipais, ressalvado seu controle pela Prefeitura”. Nessa lei se estabelecia ainda que: Art.27 “As diretrizes para ampliar e agilizar as formas de participação da iniciativa privada em empreendimentos de interesse público, de acordo com o artigo 5º, item VI, são: I – Aprimorar o instrumental que estabelece mecanismo de troca, objetivando compensar, com direitos suplementares de uso e ocupação do solo, a quem assumir encargos, tais como o da preservação do patrimônio cultural e ambiental, o da produção de HIS (habitação de interesse social), e o de produção complementar de infra-estrutura, equipamentos e serviços públicos”. Para Piccini (1997), a Administração Luiza Erundina (1989-1992) foi caracterizada por uma orientação de não privatização de serviços públicos considerados essenciais, pela descentralização administrativa, pelo fortalecimento da subcontratação de atividades de construção, pela municipalização do transporte urbano, fatores que mostrariam um posicionamento diverso em relação ao papel da administração pública na condução dos negócios administrativos. A ação da iniciativa privada não seria de todo descartada, porém “o poder público se colocava fortemente presente no controle das políticas públicas voltadas à gestão urbana e naquelas que privilegiavam objetivos sociais” (Piccini, 1997). Do ponto de vista dos instrumentos urbanísticos a concepção das ZEIS permitia a criação de mecanismos e vantagens para incentivar os investidores privados. Houve também interesse em criar fundos municipais para poder receber recursos do setor privado e destiná-los a investimentos no setor social como no caso os de habitação de interesse social, HIS. Para estas implementaram-se instrumentos urbanísticos como a Operação Interligada. Piccini (1997) destaca também a inclusão, no Plano Diretor de 1991, de um instrumento tributário baseado no imposto territorial progressivo sobre a propriedade predial e territorial urbana. O imposto territorial progressivo teria como objetivo a indução da ocupação de terrenos vazios e vazios urbanos, promovendo a melhor ocupação de áreas já bem servidas de infra-estrutura. O IPTU progressivo colocava “num sentido mais amplo a concepção da função social da propriedade urbana, ligada a uma visão mais democrática de reforma urbana” (Piccini, 1997). O mecanismo

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foi alvo de uma das maiores batalhas publicitárias travadas na imprensa sobre questões tributárias no município. Questionava-se sua constitucionalidade e sua repercussão na valorização imobiliária, o que teria grande impacto sobre a economia do município. Após grande celeuma na imprensa, que se arrastou por meses, acabou não sendo aprovado119. Ainda segundo Piccini (1997), na esfera das regulamentações instituídas durante a gestão Luiza Erundina, verificariam-se alguns instrumentos de relevância para facilitar a atuação de empresas privadas e também de proprietários de lotes individuais, tais como: a)

A aprovação do Novo Código de Obras e Edificações (lei n.º

11.228/06/92) e do Decreto no. 32.329 de 23/09/1992, que, apoiando-se em normas técnicas da ABNT, flexibilizariam as regulamentações sobre as edificações, visando a agilização dos processos e atribuindo maiores responsabilidades e competências aos técnicos dos projetos e obras; b)

A aprovação do Decreto n.º 31.601/92 sobre HIS (habitações de

interesse social), onde, já no Artigo 1º do Capítulo I, tentava-se aumentar o leque de aplicabilidade dos Agentes Promotores, além do estabelecimento de critérios urbanísticos e de edificação para elaboração e implementação de projetos de empreendimentos habitacionais de interesse social, que poderiam ser promovidos pelos órgãos da administração direta do poder público, empresas de controle acionário público, entidades conveniadas com a Superintendência de Habitação Popular (HABI), entidades conveniadas com o FUNAPS, com o IPREM (Instituto de Previdência Municipal), o IPESP (Instituto de Previdência do Estado de São Paulo) e qualquer agente promotor, desde que em terrenos de propriedade pública, mas também por promotores privados quando as unidades fossem destinadas à contrapartida de 119 Segundo Piccini (1997), esse instrumento estaria ligado a um conceito-chave expresso na Constituição Federal de 1988 (Parágrafo 4º do Artigo 182), que menciona que o Poder Público Municipal, poderá penalizar o proprietário do solo urbano não edificado, subutilizado ou não utilizado, segundo as diretrizes definidas no Plano Diretor. “Esse artigo estabelece uma série de penalizações progressivas que vão do imposto predial e territorial progressivo ao longo dos anos, ao parcelamento e a edificação compulsórios e até desapropriação mediante pagamento com títulos da dívida pública com prazo de resgate de até 10 anos. Na prática, essa série de penalizações, expressa na Constituição, restringe o uso da propriedade quando introduz a concepção de sua função social” (Piccini, 1997: cap.4).

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Operações Interligadas. Esse Decreto aplicava-se exclusivamente à execução de projetos de edificações, não incluindo o parcelamento do solo nos empreendimentos habitacionais de interesse social promovidos pelos INOCOOPS e cooperativas habitacionais por estes assessoradas, cooperativas habitacionais de entidades vinculadas a sindicatos de trabalhadores, que operassem com recursos vinculados ao SFH (Sistema Financeiro da Habitação) ou entidades privadas que operassem com recursos vinculados ao SFH. Assim, Piccini (1997) destaca que “vários instrumentos permitem e auspiciam o envolvimento da iniciativa privada na participação da construção da cidade e na colaboração com a esfera pública. A Lei Orgânica do Município de São Paulo de 1990 (Capítulo III, Art. 167, item IV, referente à habitação), destina ao Estado o papel de promover a captação e o gerenciamento de recursos provenientes de fontes externas ao Município, privadas ou governamentais” (Piccini, 1997). Além destes, foram desenvolvidos programas de terceirização de serviços, de desenvolvimento econômico, de projetos urbanos e de operações urbanas, que foram depois utilizados na administração Paulo Maluf. A linha condutora da Administração Paulo Maluf (1993-1996), segundo Piccini (1997), contemplava a privatização de empresas públicas, de serviço de abastecimento e o fortalecimento do setor de obras públicas que se apoiaria em operações urbanas, incluindo diretamente a participação privada na gestão. A passagem da administração Luiza Erundina (1989-1992) à administração Paulo Maluf (19931996), ocasionou mudanças na organização administrativa municipal em relação à gestão das operações urbanas. As diretrizes urbanísticas e a aprovação destes projetos estariam a cargo da Coordenadoria de Projetos Especiais do DEPLANO e da CNLU da SEMPLA. A EMURB, através do Departamento de Projetos Urbanos e Operações Urbanas, passou a organizar a elaboração dos projetos de privatização, parceria público/privado e desenvolvimento econômico da nova administração. A EMURB, neste

âmbito,

desempenharia

importante

papel

responsabilizando-se

pelo

estabelecimento de parcerias entre o público e o privado nas intervenções urbanas. Criou-se, na adm. Maluf, um embrião de Secretaria da Privatização e Parceria, junto à Secretaria de Planejamento. Como vimos, a maioria das iniciativas urbanas de grande

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porte tiveram lugar nas áreas mais valorizadas do ponto de vista imobiliário e já servidas de infra-estrutura (o setor Sudoeste da metrópole), através de construção de grandes obras viárias que permitiram a abertura de espaços para intervenções imobiliárias de amplo alcance e grandemente valorizadas pelos promotores imobiliários privados (como por exemplo a Operação Urbana Faria Lima). Paralelamente, as intervenções em outros setores imobiliários, como o de favelas (através do programa “Cingapura”), na reabilitação de cortiços e na produção de novas moradias foi, como observa Piccini, praticamente nulo. A concentração de ações urbanísticas de grande envergadura no quadrante Sudoeste da cidade, também objeto de grande investimento privado, permitiu que tais ações públicas adquirissem um caráter francamente “publicitário”. As 15 maiores obras viárias da administração Paulo Maluf (1993-1996) consumiram 53% do orçamento municipal total da Prefeitura até julho de 1996. Destas obras, 10 localizam-se no quadrante sudoeste da cidade. A visibilidade das obras em áreas onde supostamente a população seria “formadora de opinião” teve papel importante na estratégia política de Maluf. “Indicativo desta preocupação [de visibilidade] do Prefeito é o casamento das obras com o calendário eleitoral. Em 1994, ele investiu R$ 1,018 bilhão. Só até julho deste ano eleitoral [1996], a Prefeitura já havia dobrado seus investimentos: R$ 2,023 bilhões” (FSP:30.08.96, p.1-8)120. Piccini (1997) lista ainda algumas propostas de parceria e privatização lançadas pela administração Paulo Maluf, como a privatização de três mercados municipais (Mercado de Pinheiros, Mercado da

Lapa e Mercado Central), a

privatização do CEDEC (fábrica de equipamentos urbanos através de elementos préfabricados em argamassa armada), a privatização da companhia Anhembi Turismo e a implantação de 20 corredores de ônibus (com projetos feitos por consórcios privados com concessão da operação por 8 anos). Além desses exemplos, destaca-se também a criação do Pólo Econômico de Modernização Tecnológica da Zona Leste (PEZL), que 120 Segundo reportagem sobre denúncia apresentada à Câmara em 1995 por Odilon Guedes, vereador pelo Partido dos Trabalhadores (FT: 10.03.95, p?), uma única obra do sistema viário de São Paulo, o túnel sob o parque Ibirapuera, teria consumido, nos dois primeiros meses do ano de 1995, 155,24% a mais daquilo que foi gasto com as Secretarias Municipais de Saúde e Educação somadas. Dados do Sistema de Execução Orçamentária, programa ligado à Empresa de Processamento de Dados do Município (PRODAM)

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consistia em incentivos fiscais e melhorias de acessibilidade à área, incluindo propostas de mecanismos para captar recursos a serem investidos no sistema viário da área. O objetivo último da PEZL seria gerar empregos na região, que abriga uma das maiores massas trabalhadoras urbanas do planeta. A proposta compreendia projetos tão diversos como o da Universidade Livre, o centro para empresas em fase de formação (áreas comuns para serviços administrativos, salas de reuniões, restaurantes), laboratório de pesquisa e desenvolvimento específico para a área do pólo, centro de qualidade e produtividade, centro de divulgação de informações tecnológicas, projetos de renovação de áreas em processo de deterioração (através investimentos provenientes do setor privado que a EMURB desenvolvia através dos Projetos Urbanos). Buscava-se também a reativação de antigas parcerias, como Plano de Pavimentação Municipal (PPM) da administração Mário Covas (que, sob Jânio Quadros, transformou-se em Plano de Pavimentação Comunitária _PPUC_, com a Lei no. 10.212/86, sofrendo alterações com as leis no. 10.558/88, 10.803/89 e 10.820/89). Piccini (1997), destaca também o projeto dos Distritos de Melhoramento Comercial (originalmente BID: Business Improvement Districts), proposto e gerido pela EMURB (1993). Esse projeto de Lei criaria um instrumento regulado por um sistema tributário, cuja receita seria repassada na forma de investimentos dentro do perímetro de intervenção dos distritos comerciais e industriais atingidos. Esse programa baseava-se na delegação aos proprietários e comerciantes da futura área de intervenção uma maior participação na definição das prioridades de ação (como a definição do perímetro da intervenção, serviços, reformas, orçamento entre outras) e a administração de cada distrito através de um grupo direcional composto de representantes de proprietários, locatários e da administração pública. Como exemplo de projetos propostos pela administração Maluf onde se aliariam poder público e iniciativa privada, Piccini (1997) cita ainda o projeto para as Avenidas 23 de Maio e Rubem Berta. Este projeto teria sido encomendado à firma CODEMP (Comunicação, Marketing e Empreendimentos), em julho de 1995, e previa parceria entre a Prefeitura de São Paulo e as empresas privadas (comerciantes das regiões incluídas no programa). Piccini (1997) explica que o projeto não representaria a privatização da Av. 23 de Maio, mas um “termo de cooperação”, com renovação anual por até 5 anos, onde a Prefeitura só se encarregaria da manutenção da pavimentação da

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avenida. As empresas privadas se ocupariam da manutenção e renovação da iluminação, da pintura geral, do paisagismo, da manutenção das calçadas e dos viadutos. Em troca, as mesmas empresas poderiam instalar elementos publicitários em painéis, em totens e nos elementos decorativos (como a rede MacDonald’s, que plantou árvores ao longo da avenida, estampando publicidade nos elementos de proteção estampou publicidade). Piccini (1997) considera, por fim, que “das várias formas de parceria entre o setor público e o privado que pudessem provocar um início de reestruturação urbana, as operações interligadas e operações urbanas, que ganham uma nova magnitude e incentivadas na Administração Paulo Maluf, são aquelas que demonstraram-se mais atrativas para os empreendedores privados” (Piccini, 1997).

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Capítulo 4: Políticas públicas e ideologia na configuração da cidade mundial brasileira 4.1- Políticas Viárias: Um caso de associação entre Estado e capital na produção do espaço urbano Neste ítem, pretendemos explorar a hipótese de que as políticas que privilegiam o transporte automotivo individual representam uma modalidade de parceria entre Estado e capital na geração do lucro e na manutenção do status quo da dominação política e econômica na metrópole. Essas políticas formam, além disso, a base para outras ações no campo da produção urbana, em sintonia com a idéia de que a cidade se adapta às novas condições produtivas da atual fase do capitalismo (a assim chamada globalização), visando adaptá-la a essas novas condições. Em conformidade com essa hipótese, acreditamos que as ações urbanísticas adotadas nas últimas décadas na cidade de São Paulo se definiram pelo privilégio às obras viárias em detrimento de outras questões da metrópole, abrigando interesses de valorização comercial e imobiliário, o favorecimento de certos setores da economia, de grupos ou indivíduos e determinando, entre outras coisas, as áreas de valorização e desvalorização imobiliária e as áreas de investimento em infra-estrutura. As políticas viárias operariam, em conjunto com outros instrumentos e práticas, como ferramentas de uma operação ideológica que tornaria essas obras aparentemente “indispensáveis” para o conjunto dos habitantes, quando de fato beneficiariam grupos sociais muito específicos. Essa problemática insere-se num quadro mais amplo, onde a metrópole paulista adapta-se às novas condições de produção e reprodução do capital numa economia cada vez mais internacionalizada, conforme analisado no capítulo 3. Em síntese, a aceleração da internacionalização da economia nas duas últimas décadas do século XX exigiu que as empresas abrissem, ampliassem ou reestruturassem

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seus escritórios e seu pessoal em algumas cidades selecionadas. Tais cidades, verdadeiros “nós” para os negócios em escala mundial, seriam as chamadas cidades globais. “O crescimento do investimento estrangeiro direto, desde 1991, fortaleceu ainda mais o papel dos grandes centros comerciais latino-americanos, sobretudo a Cidade do México, São Paulo e Buenos Aires. (...) Vemos nessas cidades o surgimento de condições que reúnem padrões evidentes nas grandes cidades ocidentais: mercados financeiros dinâmicos e setores de serviços especializados; supervalorização do produto; das empresas e dos trabalhadores desses setores; e desvalorização do resto do sistema econômico. (...) Em resumo, a globalização econômica tem exercido inúmeros impactos sobre as cidades e sistemas urbanos da América Latina e do Caribe” (Sassen, 1998: 55-56). Em suma, a progressiva mudança na ênfase sobre a produção industrial para uma economia cujos setores dinâmicos podem cada vez mais ser identificados com o setor de serviços tem diversas consequências sobre a organização espacial e social das metrópoles. Isso gerou um grande impacto na organização da metrópole paulista como um todo e na estruturação de alguns distritos da cidade em particular, principalmente no que tange a construção de novas áreas para a instalação de escritórios com plantas flexíveis e conectados às redes digitais e de edifícios residenciais de luxo, além de todo o aparato material e de serviços necessário à vida e ao trabalho dos indivíduos ligados à nova economia. Essas mudanças foram conseguidas em parte com a flexibilização da legislação urbanística existente e com várias modalidades de parceria entre poder público e capital, abrindo caminho para grandes investimentos em infra-estrutura, principalmente de caráter viário que beneficiaram áreas especificas da cidade. É necessário qualificar o “tipo” de capital a que nos referiremos aqui. A chamada “nova economia” ligada à globalização não opera, no território nacional, necessariamente somente com capitais estrangeiros. Os agentes mais atuantes no setor imobiliário no caso paulistano não são necessariamente estrangeiros ou mesmo diretamente ligados ao capital estrangeiro. Veremos, por exemplo, que os principais investidores em novos imóveis comerciais na cidade de São Paulo durante a década de 90 são os fundos de pensão brasileiros. Por outro lado, o capital, nacional ou internacional, ligado às novas atividades econômicas que caracterizam aquela nova economia não determina os lugares de investimento imobiliário a seu bel-prazer, mas obedece a várias restrições e condições oferecidas pelo local, como fatores do

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conjuntura política, determinantes históricos de crescimento e ocupação, assim como a quadro institucional-legal vigente. Do ponto de vista da indústria imobiliária paulistana, o zoneamento sempre representou um empecilho para os investimentos em determinadas regiões da metrópole, geralmente bem servidas de infra-estrutura e habitadas por uma população de alta renda, ou em áreas contíguas ou próximas a essas regiões passíveis de valorização imobiliária no curto ou médio prazo. Por outro lado, o zoneamento restritivo foi motivado muitas vezes pela preservação de qualidades ambientais ou paisagísticas, além da preservação ou incentivo a tipologias construtivas específicas, fatores que contribuíram para a valorização de certas áreas da metrópole. No caso paulistano, a combinação dos fatores apresentados nos capítulos anteriores, como a concentração da renda e o crescimento do setor terciário, gerou um descompasso entre, de um lado, um mercado imobiliário dinâmico, de alta rentabilidade e principalmente voltado para a construção de escritórios “inteligentes” de alto padrão ou ainda moradias de luxo e, de outro, o menor poder aquisitivo de uma parcela crescente da população, que viu seus rendimentos diminuírem na última década. Esse fenômeno determinou a expansão populacional da metrópole paulista em direção às suas periferias menos bem servidas de infra-estrutura, onde o preço de venda dos terrenos é mais acessível àquelas parcelas, o que ocasionou um esvaziamento populacional das áreas centrais e do centro expandido da metrópole (tratamos aqui de população residente). Tal fenômeno contrasta com a valorização excessiva de algumas regiões mais dinamicamente ligadas à nova economia, localizadas principalmente na zona Sudoeste do município paulistano (IBGE, 2001). O poder público não acompanhou tal tendência durante a década de 90 e aplicou a maior parte de seus investimentos em infra-estrutura na região que aparecia como a mais dinâmica economicamente. Não por acaso, aquelas regiões também apresentam os maiores índices de rentabilidade nos negócios imobiliários, que se multiplicam não somente na forma de torres de escritório e moradias de luxo mas também em condomínios fechados, shopping centers, teatros etc. Isso se deu, segundo nossa hipótese de análise, num clima amplamente apoiado em construções ideológicas que pregavam a necessidade de modernização e progresso da metrópole.

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Portanto, as regiões da cidade mais intimamente ligadas à nova economia são naturalmente aquelas onde a valorização imobiliária justificou uma grande inversão de capital privado e também aquelas que tiveram de fato maior inversão de investimentos públicos em infra-estrutura. A isso nos referimos quando discutimos a “adaptação” da metrópole às exigências da globalização. Entre as numerosas modalidades de investimentos em infra-estrutura, os investimentos na malha viária são, sem dúvida, os mais onerosos (devido principalmente aos custos de desapropriação de áreas já consolidadas da cidade) e um dos mais determinantes para o crescimento futuro da metrópole, induzindo e conformando sua estrutura física e de circulação e ajudando a circunscrever no espaço os investimentos em infra-estrutura e construção. O privilégio aos investimentos em malha viária insere-se num contexto complexo que mistura uma mentalidade historicamente arraigada de vantagens ao transporte individual em detrimento dos investimentos em transporte coletivo, acentuada agora pela lógica de uma economia globalizada e pela dinâmica dos investimentos imobiliários ligadas a ela. Estes só podem realizar-se, naturalmente, em regiões de infra-estrutura privilegiada, o que inclui a boa acessibilidade por automóveis particulares. Porém, como gostaríamos de enfatizar aqui, o fator ideológico teria papel preponderante nessa dinâmica. Históricamente associou-se a abertura de vias e a utilização de automóveis ao “progresso”, desejável a qualquer custo. É sabido que, ainda que apenas uma parte da população possua automóveis, sua importância basta para engendrar políticas, estabelecer prioridades para o conjunto da cidade e definir uma lógica de apropriação do espaço urbano. Em 2000, segundo o DETRAN, das 13.000.000 de viagens realizadas por dia dentro da cidade de São Paulo, apenas 50% eram feitas utilizando o sistema público de transporte (enquanto a taxa de ocupação dos carros é de aproximadamente 1,2 a 1,3 passageiros por veículo.), demonstrando a urgência de uma política de investimento no sistema de transporte público. Naquele ano, haveria no Brasil 28.200.000 veículos registrados, sendo que o Estado de São Paulo contaria com um total de 12.300.000

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veículos (43,62 % da frota nacional). A capital contaria com 5.040.973 veículos registrados (17,88 % do total nacional) 121.

4.2- Políticas Viárias e Valorização Imobiliária O reflexo das obras viárias na valorização dos terrenos e na verticalização residencial já se havia feito sentir no período 1940-1957, quando o conjunto de obras realizadas nas gestões de Fábio Prado e Prestes Maia possibilitaram a verticalização primeiro do centro e em seguida de alguns bairros adjacentes, beneficiados com as novas ligações com a área central (Leme, 1990: 167). Exemplos de novas ligações entre bairros e com o centro, construídas naquele período: a extensão da avenida Rebouças nos dois extremos (além do rio Pinheiros através da ponte construída em associação da Prefeitura com a Light e, no outro extremo, até a avenida Dr. Arnaldo); a avenida Pacaembú, prolongada até o rio Tietê; a avenida Paulista ligando a praça Oswaldo Cruz à Rodrigues de Abreu; a Nove de Julho, prolongada através do Jardim América e do Jardim Europa. “Sem dúvida, muitas dessas obras tiveram relação com os loteamentos de classe alta que se abriam nessa época em São Paulo. Da Cia. City foram beneficiados diretamente com as novas avenidas: o loteamento do Jardim América atravessado pela avenida Nove de Julho, o loteamento do Alto de Pinheiros pela abertura da avenida Rebouças e avenida Pedroso de Moraes, os loteamentos do Butantã e Jardim Guedalla pelo prolongamento da avenida Rebouças além do rio Pinheiros e o loteamento do Pacaembú. Ainda da Cia City tornaram-se mais acessíveis a Vila Romana, o Alto da Lapa e Bela Aliança, pela abertura da avenida Dr. Arnaldo e a ligação com a rua Cerro Corá. Outros loteamentos de classe alta são também beneficiados por essas ligações viárias, como por exemplo: o Jardim Europa, a Cidade Jardim, o Sumaré e Perdizes” (Leme, 1990: 170). Segundo Leme (1990), o tema do transporte urbano nessa época também apresentaria evidentes vinculações com a promoção imobiliária. Segundo a autora, o transporte urbano no início do século era realizado principalmente por bondes (primeiro 121 DETRAN SP: www.detransp.gov.br (27.11.2001).

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a tração animal e depois elétricos). Os bondes serviam principalmente a dois seguimentos sociais específicos, às classes altas e aos trabalhadores do comércio e serviços. Ao determinar o seguimento social a que serviria, o bonde passou também a atrelar-se aos novos empreendimentos imobiliários para essas classes, que dependiam das decisões da Light em ligá-los ao centro para que pudessem prosperar. Assim, para além de sua função social (ainda que restrita), o bonde servia a interesses comerciais bastante específicos122. Assistimos desde então a ascensão do automóvel como meio de transporte urbano por excelência para as classes médias e altas, culminando com a instalação de várias fábricas de automóveis no Brasil já na década de 60. Baseados nesse fenômeno, critérios técnicos, pretensamente isentos, terão um papel fundamental na elaboração do discurso oficial que procurará impor as políticas viárias como solução para os problemas da cidade e como motor do progresso. Num texto de 1971, o então Secretário dos Transportes da Prefeitura de São Paulo, Ion de Freitas, desenvolveria teses sobre a solução do problema viário paulistano. É notável a afinidade de suas idéias com as propostas do engenheiro norte-americano Robert Moses, contratado pela prefeitura de São Paulo para elaborar um novo plano viário para a cidade na década de 50. Ao mesmo tempo, não há qualquer consideração sobre o impacto social das obras: “Torna-se evidente a necessidade da implantação em área metropolitana de soluções que possibilitem o mais alto rendimento ao longo dos principais corredores de circulação.(...) Sempre entenderam os engenheiros rodoviários que as rodovias deveriam evitar as cidades. Sempre entenderam os urbanistas que as cidades deveriam evitar as rodovias. Eis que a prática moderna recomenda a implantação das Vias Expressas, isto é, verdadeiras rodovias urbanas nas quais é dado o atendimento à circulação de longa distância e alta velocidade e à circulação local de baixa velocidade, ambas se completando” (Freitas, 1971: 92).

122 Encontramos evidências da vinculação de interesses entre transporte público e valorização imobiliária na sobreposição de cargos: Lord Balfour of Burleigh e Sir Gerald Smith eram, simultaneamente, presidente e diretor da Cia. City de urbanização e também da São Paulo Railway Company, responsável pelos bondes paulistanos (Leme, 1990: 190).

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Durante os anos 90 teremos em São Paulo administrações particularmente sintonizadas com as demandas mas também com as oportunidades proporcionadas às elites econômicas paulistanas pela globalização. As tendências históricas de associação entre as obras viárias na metrópole paulista e o capital ligado à indústria automobilística, à indústria da construção civil e aos movimentos de valorização imobiliária encontraram na administração de Paulo Salim Maluf frente à Prefeitura do Município de São Paulo (1993 a 1996) uma poderosa aliada em tempos mais recentes. Reportagem de janeiro de 1993, logo após a posse do prefeito Paulo Maluf, alertava: “O mercado imobiliário em São Paulo deve considerar nos próximos quatro anos uma nova variável no cálculo da valorização e desvalorização: se a Prefeitura

cumprir as promessas feitas no início da nova

administração, haverá pelo menos sete grandes obras na cidade, que devem mexer com o quadro dos imóveis” (FSP: 17.01.93: 8-1). Entre outros bairros, o Morumbi, a Vila Olímpia o Butantã e a região da Vila Mariana sofreram um grande impulso imobiliário com as obras viárias da gestão Maluf. Conforme artigo publicado pelo jornal O Estado de São Paulo, “(...) o bairro do Butantã ocupava

posição de destaque no ranking [dos bairros que mais haviam sofrido

valorização] ainda em 1996.(...) ‘Uma série de melhorias na região, nos últimos anos, explica facilmente a ação do mercado imobiliário e a grande procura de apartamentos na localidade,(...)”. Entre os benefícios recebidos pelo bairro e áreas vizinhas podem ser alinhados a nova ponte do Morumbi, que reduziu o problema do tráfego pesado na avenida professor Francisco Morato e as obras concluídas em torno do córrego Pirajussara. ‘Isto sem falar nos vários túneis, pontes e as obras da Avenida Politécnica’” (OESP: 10.10.96: I4). Neste mesmo artigo, Luiz Antônio Pompéia, da Embraesp (Empresa Brasileira de Estudos de Patrimônio), destacava que “ampliar e melhorar vias de acesso na cidade é ponto-chave para definir o crescimento imobiliário” (OESP: 10.10.96: I4). Entretanto, ainda em maio de 1996, aquela administração foi acusada de descumprir a lei de Diretrizes Orçamentárias do Município, com base nos demonstrativos de despesas que a Prefeitura apresenta mensalmente à Comissão de Finanças da Câmara Municipal. Tais demonstrativos provavam que, nos exercícios de 1994, 95 e 96, muitos projetos de construção de escolas e creches apontados no texto da lei como “prioritários” teriam sido ignorados em benefício das obras viárias da

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municipalidade. Estas teriam captado a maior parte das receitas do município e dos recursos captados em financiamentos (OESP: 17.11.96: A6) A suplementação de verba123 para o setor viário teria atingido 737,97% em 1994 e 378% em 1995124. “As leis que estabeleceram as diretrizes orçamentárias da gestão Maluf para os exercícios de 1994, 95 e 96 davam prioridade aos investimentos para a área social. Nos três orçamentos o texto é praticamente o mesmo. Na prática, isso não ocorreu (...)” (OESP: 17.11.96: A6). Entre as principais obras da gestão Paulo Maluf estão a Nova Faria Lima, a avenida Jacú-Pêssego, a avenida Águas Espraiadas, o complexo viário Maria Maluf, o complexo viário Eusébio Matoso, a ponte Transamérica, o viaduto sobre a avenida Bandeirantes, que facilita a ligação entre a Nova Faria Lima e a Luís Carlos Berrini, além dos vários túneis sob o parque do Ibirapuera, etc. Essas obras indicam o caráter eminentemente viário da administração impressa por Maluf. As quinze maiores obras viárias da adm. Paulo Maluf consumiram 53% do orçamento municipal total da Prefeitura até julho de 1996. Dessas obras, 10 localizam-se no quadrante Sudoeste da cidade, mostrando a importância de obras em áreas ligadas a setores dinâmicos da economia, além de serem bairros onde a população residente, de maior poder aquisitivo, é “formadora de opinião” (Quadro 4-1).

123 Remanejamento da verba permitido de uma secretaria para outra. Pela legislação atual do Município de São Paulo, o percentual total de verbas remanejadas não deve ultrapassar 15% do total ou 30% se incluir gastos com reajustes de salários, dívidas e desapropriações. 124A passagem subterrânea Tom Jobim, no centro da cidade, teria orçamento previsto de US$ 8 milhões. Os registros oficiais apontariam gastos totais de US$ 42,3 milhões, um salto de 529% (Tribunal de Contas do Município).

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Quadro 4-1: 15 Principais obras da gestão Paulo Maluf entre 1993 e 1996, por investimento. Fonte: FSP: 30.08.1996: 1-8.

Obra

Região da cidade

Túnel sob o Parque Ibirapuera

SUDOESTE

Túnel sob o Rio Pinheiros

SUDOESTE

Canalização do Córrego Águas Espraiadas

SUDOESTE

Pavimentação Avenida Águas Espraiadas

SUDOESTE

Sistema Viário Jacú-Pêssego

LESTE

Sistema mini anel viário

SUDESTE

Pavimentação de ruas e avenidas

Vários

Canalização do Córrego Jacú-Pêssego

LESTE

Trevo Sacomã/Anchieta/Tancredo Neves

SUDESTE

Transposição do cruzamento da Av. Senador Queiróz

CENTRO

Sistema viário Anhangabaú/São João

CENTRO

Passagem em nível das avenidas Santo Amaro e JK

SUDOESTE

Pavimentação da estrada Embu-Mirim

SUL

Cebolinha Sena Madureira

SUDOESTE

Melhorias do sistema viário

Vários

“Indicativo desta preocupação do Prefeito [a visibilidade] é o casamento das obras com o calendário eleitoral. Em 1994, ele investiu R$ 1,018 bilhão. Só até julho deste ano eleitoral, a Prefeitura já havia dobrado seus investimentos: R$ 2,023 bilhões” (FSP: 30.08.96: 1-8). Segundo denúncia apresentada à Câmara por Odilon Guedes, vereador eleito pelo Partido dos Trabalhadores, uma única obra do sistema viário de São Paulo, o túnel sob o parque Ibirapuera, teria consumido, nos dois primeiros meses do ano de 1995, 155,24% a mais daquilo que foi gasto com as secretarias municipais de Saúde e Educação somadas, segundo dados do Sistema de Execução Orçamentária, programa ligado à Empresa de Processamento de Dados do Município (PRODAM) (FT: 10.03.95).

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Os avanços no campo urbanístico e na qualidade de vida dos moradores, para não falar dos próprios problemas do trânsito, foram em alguns casos considerados inócuos ou nulos. Até mesmo os moradores das áreas mais privilegiadas mostravam-se descontentes. Pesquisa conduzida pelo Datafolha (FSP: 02.09.96: 1-6) dá conta da insatisfação dos moradores dos bairros de Moema, Itaim-Bibi e Jardim Paulista com o trânsito da região. Nessa área de São Paulo foram construídos os túneis sob o parque do Ibirapuera, sob o rio Pinheiros e a passagem de nível sob a avenida Santo Amaro, que consumiram mais de 20% (US$ 1,2 bilhão) dos gastos municipais totais até julho de 1996. Segundo essa pesquisa, os moradores da região eram os mais insatisfeitos da cidade com o trânsito, apontando-o como o segundo maior problema, após a violência. De fato, se a velocidade média das vias expressas paulistanas era de 52,04 km/h em 1992, em 1996 teria caído para 44 km/h (FSP: 30.08.96: 1-8). A Companhia de Engenharia de Tráfego aponta que os congestionamentos, apesar de todas as obras viárias, aumentaram 19,3% entre 95 e 96. (FSP: 26.10.96: 3-5). Em 1993, 45% dos moradores da Grande São Paulo gastavam mais de duas horas por dia no trânsito e 21% mais de três horas. (FSP: 05.08.96: 1-6) As ações descritas se inserem num quadro maior de decisões, que incluem o incentivo ao automóvel e o desmonte dos órgãos de fiscalização e de planejamento urbano, visando sobretudo a beneficiar as indústrias automobilística e de construção civil, abrindo caminho para o incremento da especulação imobiliária na cidade. Nunca havia se construído tanto125, nem se haviam vendido tantos carros na cidade de São Paulo. O número de lançamentos imobiliários na Região Metropolitana de São Paulo em 1996 foi o maior em 20 anos, de acordo com o diretor da Embraesp (OESP: 06.10.96: I-2). Em 1996, foram vendidas 1.245.972 unidades de veículos de passeio, e 1.361.106 em 1997. Se considerarmos que São Paulo possuía em média 17,8 % da frota nacional de veículos particulares em 2000 (DETRAN) _e admitindo que essa 125 “A velocidade do mercado imobiliário prossegue em ascensão contínua e, contra o recorde de 90 apartamentos entregues a cada dia na região metropolitana de São Paulo, em 1995, 1996 apresenta um prognóstico ainda mais surpreendente: média superior a 130 apartamentos prontos a cada 24 horas. O mapeamento das novas moradias indica uma concentração expressiva no bairro do Morumbi (na verdade, o campeão dos lançamentos dos últimos anos), seguido do Tatuapé, Butantã, Penha e Santana” (OESP: 10.10.96: I1).

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média não tenha se modificado acentuadamente entre 1996 e 2000,_ teremos aproximadamente 221.783 novos veículos circulando pelas ruas da capital em 1996 e 242.276 em 1997.

4.3- Construção civil, mercado imobiliário e estratégia política As empreiteiras e empresas de engenharia e construção civil tiveram, durante a década de 70, um papel de grande importância nos jogos de poder e nas estratégias do regime militar para dotar o país de infra-estrutura pesada, tendo seu ponto alto em obras como Brasília, ainda durante o governo democrático de Juscelino Kubitschek (1956 a 1960), ou a hidroelétrica de Itaipú e a ponte Rio-Niterói, durante o regime militar. Essas grandes obras poderiam ser entendidas como símbolos de uma era de prosperidade e materialização do espírito de grandeza com que a ideologia militar representava o Brasil _ “país do futuro”_ para os brasileiros nos anos 60-70. A extraordinária influência daquelas empresas na política brasileira é notória. Várias seriam as razões para tanto: o Estado, único cliente capaz de arcar com os megaprojetos até pouco tempo, também seria permeável às negociatas e estratégias das empreiteiras e grandes construtoras, principalmente através de ação direta em lobbies políticos e financiamento de campanhas. No caso paulistano, podemos afirmar que as obras do metrô significaram a parte mais cobiçada das obras públicas durante muito tempo, mas outras obras, especialmente as viárias, também despertaram o interesse das construtoras. De fato, é notável a extrema dependência das grandes empreiteiras em relação aos órgãos públicos, que são seus maiores contratantes. Apenas na década de 90 os fundos de pensão privada e grandes corporações passaram a ser importantes clientes das empreiteiras, especialmente na construção de complexos comerciais e de apartamentos para a classe média alta. Entretanto, mesmos estes novos agentes não podem competir com o Estado nos contratos para as megaobras viárias ou de natureza infra-estrutural. Somente o poder público teria, no Brasil de hoje, possibilidade de mobilizar os maciços recursos necessários às mega-obras, o que

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justificaria a existência mesma deste tipo de empresa, configurando um quadro propício ao favorecimento e à corrupção. Porém, com a estabilização da moeda e a grande procura por novos imóveis residenciais, a construção e o financiamento de habitações também passou ser atraente para as empreiteiras, instituições financeiras e fundos de pensão. Tal quadro foi facilitado pelo Sistema Imobiliário Municipal, lançado na gestão Paulo Maluf. Este sistema estende a companhias privadas o direito de construir uma vez e meia nas áreas classificadas como Z-2 e Z-9, e de fazer conjuntos residenciais nas Z-8/CR100. Nestas, a lei só permitia antes loteamentos de 5 mil m2 e a construção de casas. Tais medidas visariam a favorecer a construção de apartamentos de até 55 m2 , com preço de até US$ 36 mil, destinados a compradores com renda mensal entre 6 e 12 salários mínimos. As construtoras não teriam gastos com propaganda, pois lhes seria fornecida a lista com 450 mil inscritos na COHAB (OESP: 01.02.96: C2). “Os empresários estão percebendo que há um mercado concreto nesse segmento”, segundo o presidente do Conselho Regional de Imóveis (Creci), Roberto Capuano”. Curiosamente, Capuano tinha dúvidas sobre a “necessidade de tantas vantagens” (OESP: 01.02.96: C2). José Eduardo Cardozo, então vereador (PT), indicava que os lucros poderiam advir mais da valorização dos terrenos a curto prazo, provocada pelas mudanças de zoneamento, que da venda das unidades propriamente ditas (OESP: 01.02.96: C2). Apesar desse cenário aparentemente favorável, Newton Cavalieri, engenheiro e presidente do Sindicato da Indústria da Construção Pesada do Estado de São Paulo, alertava: “É impossível a determinado segmento da economia procurar expansão (...) quando depende apenas da boa vontade política deste ou daquele governante para que medições referentes a obras e serviços executados se realizem e sejam pagas em dia” (FSP: 14.09.96: 2-2.). Ainda assim, na década de 90, algumas grandes construtoras se especializaram em grandes obras para a iniciativa privada (shopping centers, clubes esportivos, etc.) , como é o caso da Racional. (OESP: 18.11.96: B8). Recentemente, as grandes empreiteiras vêm se associando à instituições financeiras e fundos de pensão privados, caso dos acordos da Encol com o Banco Itaú (OESP: 07.11.96: A29). Porém, não houve um consenso entre as empreiteiras, especialmente quanto à parte do bolo que caberia a cada uma delas. As grandes empreiteiras monopolizaram os contratos públicos, provocando o descontentamento de empresas menores. Em 1995, três entidades do setor da construção civil foram à Justiça contra a administração Maluf,

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o Sinduscon (Sindicato da Indústria da Construção Civil), Sinicesp (Sindicato da Indústria da Construção Pesada) e a Apeop (Associação Paulista de Empresas de Obras Públicas). O objeto do litígio seria a licitação para a reforma das marginais Tietê e Pinheiros, com valores envolvendo cerca de US$ 142 milhões . (FSP: 07.03.95: 3-1). Segundo as entidades, o edital da licitação teria sido preparado de forma a beneficiar apenas as megaempresas, as mesmas que já trabalhavam para a administração Maluf na época. Tais empresas incluiriam a Camargo Corrêa, Andrade Gutierrez, CBPO, Constran e Mendes Júnior. “Existem regras mínimas de convivência entre os empresários do setor público que devem ser respeitadas. Queremos acabar com o dirigismo, com o lobby político em obras públicas. Essa concentração de obras quebra as regras do mercado”, afirmou Eduardo Capobianco, presidente do Sinduscon, ao justificar os motivos que teriam levado as entidades a entrar com a liminar (FSP: 07.03.95: 3-1). De acordo com Capobianco, se as regras fossem mudadas na ocasião, mais de 100 empresas estariam habilitadas a participar, e não somente cinco. Reynaldo de Barros teria atribuído a denúncia à perseguição política que sofreria o então prefeito Paulo Maluf (OESP: 07.03.95: C-1). As grandes empreiteiras foram as maiores financiadoras da campanha para a Prefeitura de São Paulo em 1996. Do total de valores declarados pelos cinco principais candidatos, 22,74% vieram da construção civil (a maior porcentagem entre os diversos ramos de atividade)126 (Gráfico 4-2). As maiores doações foram realizadas pela CBPO e Grupo Odebrecht, para a campanha de Celso Pitta (PPB). Entre todos os candidatos, José Serra teria sido o mais favorecido: 20 das 43 empresas da área da construção civil que contribuíram para as campanhas o escolheram (25% do total de contribuições para sua campanha, FSP: 16.12.96: 1-6).

126Outros financiadores: Bancos: 8,53%, Papel: 7,76%, Transporte: 6,87%, Alimentação: 5,72%, Outros: 48,38% (FSP: 16.12.96: 9-6).

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Gráfico 4-2: Financiamento da campanha eleitoral para prefeito da cidade de São Paulo em 1996, em %. Construção civil e afins: 22,74

22,74

Bancos: 8,53 Papel: 7,76

48,38

8,53

Transporte: 6,87

7,76 5,72

Alim entação: 5,72

6,87

Outros: 48,38

*A rubrica “outros” inclui empresas que não puderam ser enquadradas em nenhum setor e firmas de áreas diversas. Fonte: Tribunal Regional Eleitoral.

No caso de Celso Pitta, a segunda maior contribuinte para sua campanha, a CBPO, também teria sido responsável pela obra mais cara da administração Paulo Maluf. A empresa foi encarregada de mais da metade do projeto do túnel Ayrton Senna, pelo que recebeu US$ 400,4 milhões do total de 728 milhões gastos na obra (FSP: 16.12.96: 1-6). Na época, o Partido dos Trabalhadores afirmou que o complexo Ayrton Senna teria sido superfaturado, gerando um prejuízo para os cofres públicos de cerca de US$ 38 milhões (OESP: 14.11.96: A7)127. O papel protagonístico da administração municipal da cidade de São Paulo no jogo de interesses envolvendo obras viárias na década de 90 teria sido bastante dificultado sem os grandes volumes financeiros injetados nas administrações municipais após a Constituição de 1988, que transferiu para os municípios parte importante da arrecadação que antes era recolhida pelo Estado ou pela Federação. Esse fenômeno (de aumento da arrecadação permitindo grandes intervenções), já havia ocorrido na gestão Fábio Prado à frente da prefeitura da cidade (1934-38), quando o recolhimento do imposto predial passa para a administração municipal, cujo orçamento apresenta então um superávit, o primeiro desde 1930. Entre outros fatores, isto contribuiu para que

127 Estas suspeitas teriam se confirmado em parte em 2001, com a descoberta de depósitos da família Maluf (cerca de US$ 200 milhões), pelas autoridades do paraíso fiscal offshore de Jersey, ilha pertencente ao Reino Unido.

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Prestes Maia, em sua primeira gestão frente à prefeitura (1938-1945), realizasse grandes obras viárias. A Constituição de 1988 introduziu também um controvertido mecanismo de emissão de títulos públicos (conhecidos como precatórios) para o pagamento de dívidas judiciais. Este mecanismo estaria sendo usado para a captação descontrolada de recursos, motivando a instauração de uma CPI no Senado Federal. As

mudanças

orçamentárias

introduzidas

gradualmente

a

partir

da

Constituição de 1988 atingiram seu “ápice” entre 1993-1996, durante a administração Maluf. De fato, houve um salto orçamental com a introdução do Plano Real: de US$ 4,85 bilhões em 1994, os fundos municipais paulistanos atingiram US$ 6,47 bilhões em 1995 e finalmente US$ 7,6 bilhões em 1997. No caso da administração Paulo Maluf, fundos extras foram conseguidos com a privatização da CMTC e o fim da municipalização dos transportes. Tais verbas teriam sido usadas principalmente na consecução de obras viárias, segundo o próprio prefeito (FSP: 13.09.96: 1-8). Além disso, durante aquela administração, foram retirados recursos das áreas sociais para o pagamento de dívidas e a realização de obras viárias. Entre o início do mandato e junho de 1996, aproximadamente US$ 1,7 bilhão foi transferido das secretarias da Educação, Habitação e Bem-Estar Social em benefício da Secretaria de Vias Públicas (US$ 868 milhões) e do pagamento de dívidas e aposentadorias (US$ 912,8 milhões, FSP: 13.09.96: 1-8). Os valores do Orçamento Municipal (aprovado no ano anterior à sua execução), podem ser remanejados em 15%. O percentual pode chegar até 30% ao incluírem-se nesse teto os gastos com reajustes de salários, dívidas e desapropriações (US$ 100 milhões somente na Operação Urbana Faria Lima). A Secretaria da Habitação perdeu, na administração Maluf, 67,2% de seu orçamento original. Com a Secretaria de Vias Públicas, deu-se o contrário. Os gastos previstos eram de US$ 997,2 milhões em 1995, mas foram complementados em US$ 309,7 milhões. A suplementação orçamentária a essa secretaria chegou a US$ 868,1 milhões em três anos e meio de administração Maluf128 (FSP: 13.09.96: 1-8). 128A administração Luíza Erundina tomou o rumo contrário. O orçamento deixado pela administração Jânio Quadros previa gastos de US$ 1,18 bilhão na Secretaria de Obras Públicas. 65% desse montante foi remanejado para outras áreas, indo principalmente para a Secretaria de Transportes e para o pagamento de dívidas e aposentadorias. Os Transportes, com Erundina, passaram de 2,43% do orçamento total (Jânio Quadros) para 11,3% no final de sua administração (FSP: 13.09.96: 1-8). De fato,

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4.4- A “ideologia das obras” no imaginário da cidade e na condução de sua administração Os novos processos de reprodução material, que se expressam no fenômeno da globalização, resultam num novo paradigma de desenvolvimento urbano e em grandes mudanças no perfil da administração da cidade, conforme discutido anteriormente. Esse novo paradigma reveste-se, entretanto, de uma indissimulável veia ideológica ao tentar encobrir e justificar as associações e apropriações do poder constituído associado ao capital. “O governo local passa, cada vez mais, a investir-se do papel de empresário, não se restringindo, portanto, à mera função de gerenciamento dos serviços. Tais percalços de autonomia se apoiam igualmente nas possibilidades de manter conexões diretas com circuitos financeiros e econômicos mundiais, sinalizando, deste modo, a fragmentação em curso do Estado central” (Davidovich, 1993: 314). Esse esforço pela manutenção das “conexões diretas” toma forma em ações dos poderes municipais que pretensamente visam a adequar a metrópole às “novas condições”. Nesse campo, como vimos afirmando neste trabalho, as obras viárias têm papel principal. Chauí (1993) define a ideologia como sendo não apenas a “representação imaginária do real para servir ao exercício da dominação em uma sociedade fundada na luta de classes”, nem tampouco a “inversão imaginária do processo histórico na qual as idéias ocupariam o lugar dos agentes históricos reais” (Chauí, 1993: 19). A ideologia, definida pela pensadora como “forma específica do imaginário social moderno”, seria a maneira necessária pela qual os agentes sociais representam para si mesmos o aparecer social, econômico e político. Essa aparência não deve ser confundida com ilusão ou falsidade. É antes o modo pelo qual sistematizamos as representações e normas sociais que nos “ensinam” a agir, “(...) o conjunto coerente e sistemático de imagens ou

os gastos da Secretaria de vias Públicas foram então maiores que os do próprio Ministério Federal dos Transportes. Enquanto em 1995 o Ministério investiu US$ 1,1 bilhão nas estradas, ferrovias, hidrovias e portos no país inteiro, a Secretaria das Vias Públicas investiu US$ 1,3 bilhão em obras como o túnel sob o Parque do Ibirapuera (US$ 746,5 + US$ 30,8 milhões para ligar o complexo à avenida Sena Madureira). Em 1996, as despesas do Ministério dos Transportes foram em média 30% menores que os da Secretaria (FSP: 09.09.96: 1-10).

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representações tidas como capazes de explicar e justificar a realidade concreta. Em suma: o aparecer social é tomado como o ser do social” (Chauí, 1993: 19). Essa construção coerente e lógica nasce de uma determinação “muito precisa”: a pretensa coincidência com as coisas que o discurso ideológico busca, anulando as diferenças entre o pensar, o dizer e o ser, engendrando assim uma lógica que unifica pensamento, linguagem e realidade para, “através desta lógica, obter a identificação de todos os sujeitos sociais com uma imagem universalizada, isto é, a imagem da classe dominante129. Em outras palavras, a coerência ideológica não é obtida malgrado as lacunas, mas, pelo contrário, graças a elas” (Chauí, 1993: 3 e 21). Tal operação sinalaria o “esvaziamento” de qualquer conteúdo político dos programas de governo, conforme pode ser constatado pelas palavras de Paulo Conde, então candidato à Prefeitura do Rio de Janeiro: “Existe ideologia, mas a ideologia hoje é da própria obra, é a realização. Não existe o discurso ideológico abstrato. Antes havia muita abstração.(...) Acho que hoje ocorre, nas eleições para Prefeito, que as pessoas estão percebendo as boas administrações. Nós estamos fazendo um governo em que a cidade é tingida de obras. Então, todo discurso que vai contra isso não tem sentido”130. Pinheiro (1996), criticando a ideologia que revestia a realização das obras da administração malufista, citava especificamente os túneis da Zona Sudoeste da cidade de São Paulo, “pelos quais a esmagadora maioria dos eleitores das zonas Leste e Sul jamais vai passar, pois não tem carro” (FSP: 27.10.96: 1-3). As imagens televisuais, a propaganda e a realização de obras de grande visibilidade (que dão a base para as duas primeiras) confunde-se com eficiência administrativa. Esta, por sua vez, traduz-se, para o eleitorado, em realizações “concretas”, cuja visibilidade tem um alcance publicitário marcante. Esse é ocaso das obras viárias levadas a cabo durante a administração Maluf (1993-1996). 129Ainda que aqui Chauí fale em classe dominante, no singular, Francisco de Oliveira aponta que os grupos dominantes hoje no Brasil representam um conjunto diversificado, que precisa ser articulado: burguesia industrial, burguesia financeira, setores da classe média, empresas multinacionais, ambiente internacional, etc. 130 Entrevista do então candidato do PFL à Prefeitura do Rio de Janeiro em 1996 ao repórter Wilson Tosta, FSP: 02.09.96: 1-9.

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A “despolitização” do pleito municipal paulistano refletiu-se na análise do então diretor do Ibope, Carlos Augusto Montenegro, para quem o “eleitor brasileiro votou para Prefeito como se estivesse escolhendo o síndico do prédio” (OESP: 06.10.96: A6), ao avaliar a ausência de questões nacionais nas escolhas municipais. Nesse mesmo contexto, o cientista social e professor de Cambridge, David Lehmann declara-se preocupado com o “esvaziamento dos discursos políticos bem diferenciados da realidade brasileira” (OESP: 23.09.96: A6). De maneira geral, David Lehmann identifica no sujeito político brasileiro uma atitude pragmática, que procuraria no poder público o atendimento às reivindicações do momento, e que moveria suas escolhas. Esse pragmatismo e o suposto esvaziamento do antagonismo entre esquerda e direita forçaria os diferentes partidos a buscarem uma posição de “centro” dentro do espectro ideológico, tornando ainda mais opacas as discussões131. A “ideologia das obras”, resultante da combinação desses fatores, não é um fenômeno novo, mas numa sociedade espetacularizada os dividendos políticos de inaugurações festivas e visíveis na mídia parece ter ganho proporções inéditas. Tal fenômeno acabou adquirindo status de estratégia essencial de campanha, além de determinar o próprio cronograma das obras e, em última instância, condicionar investimentos a um cronograma de inaugurações favorável, como fica evidente no trecho de reportagem reproduzido abaixo: “Com o evento de hoje, Maluf já contabiliza quatro inaugurações de obras viárias em apenas 5 dias. As inaugurações começaram na quinta-feira, com a liberação do Complexo Viário Escola de Engenharia Mackenzie, no Sacomã. (...)Ontem a Prefeitura entregou a avenida Nova Trabalhadores e a canalização do córrego JacúPêssego, na zona Leste (...) Segundo o major da PM, Nelson Capeline, cerca de 80 mil pessoas estiveram presentes na inauguração (...). A apresentação dos grupos Katinguelê e Negritude Júnior e da dupla sertaneja Chitãozinho e Xororó durou cerca de quatro horas. (...) O cachê dos artistas foi pago pelas construtoras responsáveis pela obra: CR Almeida S/A e Cowan. (...) cada empresa gastou cerca de R$60 mil no evento” (FSP: 09.03.96: 3-11).

131Luíza Erundina admitiu, em reportagem de Luís Henrique Amaral (FSP: 26.08.96: 1-7), que a radicalização de seu discurso na época faria parte da estratégia de campanha, a fim de mobilizar os militantes do partido.

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Entretanto, o caráter publicitário de algumas obras fica evidenciado em episódios como a inauguração da avenida Nova Faria Lima, relatado abaixo: “A Faria Lima foi inaugurada em clima de programa de auditório. “Bom dia, meus amigos!”, gritou o Prefeito, microfone em punho, para uma claque de aproximadamente cem mulheres que não paravam de agitar bandeirinhas verdes e amarelas (...) As cem mulheres (...) são as mesmas que acompanham quase todas as inaugurações do Prefeito.(...) São convidadas pela assessoria política do Prefeito. Dizem que não recebem nada da Prefeitura, que querem apenas “benfeitorias” para os bairros. “Nós queremos que São Paulo seja a Nova York do Brasil. Para isso tem de ter Faria Lima”, disse Dagmar Ribeiro [pres. do Clube de Mães de Vila Nova Curuçá], para tentar explicar por que mulheres da zona Leste, que não têm carros e que não usam a Faria Lima, foram a Pinheiros, na zona Oeste, aplaudir a inauguração da Avenida” (FSP: 24.10.95: 3-6). Buscamos, neste trabalho, situar a administração Maluf num quadro mais amplo de análise, onde suas ações adquirem significado num processo histórico de longa duração e em sintonia com um devir econômico nacional e global.

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Capítulo 5: A Operação Urbana Faria Lima 5.1- Fundamentos dos mecanismos de Operação Interligada e Operação Urbana Os fundamentos dos mecanismos legais de parceria entre o poder público e a iniciativa privada para a consecução de grandes intervenções no território urbano repousam, grosso modo, na idéia de que “a escassez de recursos públicos para viabilizar obras urbanas” teria levado o Poder Municipal a buscar “novas formas de gestão, mais indutoras e incentivadoras” (SEMPLA, 2000: 5), baseadas no conceito de solo criado (ou na separação entre o direito de propriedade do solo e o direito de construir), visando o incremento na arrecadação de recursos e também o “ressarcimento” por parte da iniciativa privada dos benefícios conseguidos por ela através dos investimentos públicos em infra-estrutura. Devido à profundidade e síntese do estudo conduzido pela Comissão Parlamentar de Inquérito das Operações Interligadas (CMSP- CPI Interligadas, 2002132) na explicação deste fenômeno, julgamos útil utilizá-lo aqui, seguindo-o de perto, comentando-o e complementando-o quando nos parecesse apropriado. Nesse texto traça-se um histórico bastante completo dos princípios que fundamentam os mecanismos da Operação Interligada e também da Operação Urbana. Segundo o texto do relatório final da CPI Interligadas (2002), seriam fundamentalmente dois os princípios que justificariam a venda ou transferência do “direito de construir”: o “direito de superfície” (ou separação do direito de propriedade

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Relatório Final da Comissão Parlamentar de Inquérito para apurar as Operação Interligadas

(leis n.º 10.209/86 e n.º 11.426/93), realizadas no Município de São Paulo desde a promulgação da Lei n.º 10.209/86. Comissão constituída a partir do requerimento n.º 08-0111/2001 do Vereador Antônio Goulart. Membros da comissão: Antônio Goulart (PMDB)- Presidente, João Antônio (PT)- Relator, Alcides Amazonas (PC do B)-Membro, Arselino Tatto (PT)- Membro, José Viviani Ferraz (PL)-Membro, Paulo Frange (PTB)-Membro, Wadih Mutran (PPB)-Membro. Câmara Municipal de São Paulo, 2002.

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do direito de construir) e a “função social da propriedade”. O “Estatuto da Cidade” (Lei Federal n.º 10.257 de 10.07.2001) menciona em seu texto a noção de “função social” da propriedade, também encontrada na Constituição Brasileira. Nesta, o inciso XXIII do Artigo 5º define que “a propriedade atenderá a sua função social” sendo que no Capítulo 2 (“Da política Urbana”), Artigo 182, § 2º, defini-se que “a propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no Plano Diretor”, colocando esse como o principal instrumento para o ordenamento do solo urbano. Parte-se do princípio de que propriedade de um terreno não significa um poder ilimitado sobre ele, pois o mesmo encontra-se inserido num contexto urbano complexo que impõe limitações, deveres e obrigações ao proprietário. Segundo a CPI Interligadas, “a própria existência de normas urbanísticas (códigos de obras, leis de parcelamento, leis de uso e ocupação do solo, normas ambientais), já representa um limitador, que impede que o proprietário ocupe o terreno da forma que desejar” (CMSP- CPI Interligadas, 2002: 5). Para os relatores do relatório da CPI Interligadas (2002), a inspiração para o modelo proposto em São Paulo seria o plafond légal de densitè, que em 1975 era instituído na França e a experiência da transferência de potencial construtivo (development right transfer) instituída pelo Plano de Chicago em 1973. Na França, a legislação proposta pelo Ministério do Equipamento, visava corrigir a enorme distorção de preços existente entre terrenos onde havia limitações muito rígidas de construção em altura e outros onde estas limitações não eram tão importantes. A Lei francesa definiu então os coeficientes de ocupação 1 para Paris e 1,5 para o resto da França, acima dos quais haveria outorga onerosa do direito de construir e estudos caso a caso dos projetos apresentados. No caso de Chicago, o solo criado foi motivado pelos conflitos decorrentes da aplicação da legislação de tombamento de bens com valor histórico, já que quando um edifício histórico era tombado, seu proprietário ficava impedido de exercer plenamente sobre seu terreno o potencial virtual de construção que lhe era concedido pela legislação. Para que isso não ocorresse, criou-se uma Lei que permitia ao proprietário transferir seu direito de construir para terceiros, em outra área da cidade. Desta forma, os terrenos atingidos por restrições de preservação histórica não perderiam totalmente seu valor em relação a seus vizinhos.

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A CPI Interligadas nota que, embora as duas versões, a norte americana e a francesa, partissem do mesmo princípio (a separação entre direito de propriedade e direito de construir e o reconhecimento do valor específico do direito de construir), no caso norte-americano o direito de construir poderia ser transacionado entre particulares. No caso francês a concessão do direito de construir acima de uma densidade construtiva básica só poderia ser obtida por meio da compra, e somente o Estado poderia efetuá-la. As primeiras propostas que começaram a circular no Brasil incorporavam as duas dimensões de utilização do instrumento dos exemplos internacionais: a viabilização de uma política de controle de densidades e a separação do direito de construir, do preço do terreno e a necessidade de viabilizar instrumentos de preservação histórica. A idéia de que o direito de construir deveria ser separado da propriedade do terreno urbano teria sido defendida pela primeira vez em São Paulo em 1976, quando o então prefeito Olavo Setúbal (16.04.1975 a 12.07.1979) lançou a idéia de estabelecer um sistema que assegurasse a todos os proprietários de terrenos urbanos o direito de construir uma área proporcional à área do terreno (coeficiente de aproveitamento do terreno). O interessado em construir além da área de seu terreno adquiriria do Poder Público o direito de construção da área excedente. O preço pago por esse direito serviria para dotar a região do empreendimento dos equipamentos urbanos exigidos pelo adensamento provocado pelas novas construções. O objetivo deste dispositivo, seria “eliminar o valor diferenciado dos terrenos em função de dispositivos legais, preservar áreas verdes e de proteção aos mananciais e ao meio ambiente, preservar edificações de valor histórico e obter recursos para a manutenção da cidade, que seriam gerados pelo dinamismo de sua própria economia interna” (apud Coleção Dossiês: Plano Diretor do Município de São Paulo. Vol. IX. FAUUSP-CESAD, outubro 1991). Às proposições francesa e americana, o discurso de Setúbal acrescia uma terceira: a obtenção de recursos para o financiamento de equipamentos e infra-estrutura. Já em 1977, uma primeira formulação do instrumento em âmbito nacional foi feita pela Comissão Nacional de Regiões Metropolitanas e Política Urbana da Secretaria de Planejamento da Presidência da República (CNPU), incluído o anteprojeto da Lei de Desfavelamento Urbano. Segundo o texto da CPI Interligadas, a proposta de institucionalização do solo criado nos anos 70 causou enorme controvérsia e foi finalmente abortada, a partir de

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uma sinalização francamente desfavorável por parte do governo Federal. Desde então, vários anteprojetos de Lei Federal foram redigidos, incluindo o mecanismo de solo criado, em várias versões. Entretanto, desde o final dos anos 70, em várias cidades brasileiras já existiam anteprojetos de Lei de solo criado em tramitação. Uma das dimensões fundamentais da controvérsia era a natureza jurídica da cobrança e sua constitucionalidade. Com o objetivo de dar suporte para as propostas de discussão no país, o CEPAM (Centro de Estudo e Pesquisa em Administração Municipal), organizou um congresso sobre o solo criado na cidade de Embu, reunindo urbanistas e juristas, do qual resultou “Carta do Embu” (CEPAM, 1977). A Carta explicitava que “assim como o loteador é obrigado a entregar ao poder público áreas destinadas ao sistema viário, equipamentos públicos e lazer, igualmente o criador de solo deverá oferecer à coletividade as compensações necessárias ao reequilíbrio urbano reclamado por solo adicional” (CEPAM, 1977). De acordo com a Carta, “a moderna tecnologia da construção civil permite intensificar a utilização dos terrenos, multiplicando o número de pavimentos pela ocupação do espaço aéreo ou do subsolo, e esta intensificação sobrecarrega toda a infraestrutura urbana, a saber, a capacidade das vias, das redes de água, esgoto e energia elétrica, bem assim a dos equipamentos sociais, tais como, escolas, áreas verdes etc.” (CEPAM, 1977: s.p.). Para a CPI de Interligadas (2002), “ao comparar o criador do solo com o loteador e ao definir a contrapartida a ser paga pelo criador de solo, como espaços públicos e equipamentos ou seu equivalente monetário, a Carta de Embu enquadra claramente a outorga onerosa do direito de construir como ônus e não como tributo” (CMSP_ CPI Interligadas, 2002: 8). No início dos anos 80, o debate em torno da institucionalização do solo criado volta a emergir em algumas cidades, desta vez vinculado à preservação do patrimônio histórico. Em 1982, um anteprojeto de Lei de Transparência do Direito de Construir, para imóveis históricos é apresentado como reação a sucessivas demolições de construções históricas tombadas e situadas em áreas de grande valor imobiliário. No mesmo ano, em Curitiba, é instituído o “incentivo construtivo” para imóveis tombados. Segundo Piccini (1997), sob a administração Mário Covas (1983 a 1985), a Lei no. 9.725/84 antecipava o uso do mecanismo de transferência onerosa de direito de construir apenas para o caso específico de preservação de imóveis de interesse histórico

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ou de excepcional valor artístico, cultural ou paisagístico, preservados por Lei municipal. Dispunha-se sobre a transferência de potencial construtivo de imóveis preservados, estabelecendo incentivos, obrigações e sanções relativas à sua preservação e definia-se como potencial construtivo o produto da área do lote pelo coeficiente de aproveitamento da zona de uso onde o imóvel estivesse localizado. Permitia-se a transferência em 60% do potencial construtivo do imóvel preservado e em 100% do potencial construtivo quando o imóvel preservado fosse destinado a uso público, com a instalação de atividades públicas permitidas pela Comissão de Zoneamento (a predecessora da atual Comissão Normativa de Legislação Urbanística, CNLU). Piccini (1997) aponta que, nessa Lei, a transferência do potencial construtivo era permitida só para imóveis situados dentro do perímetro de uma “zona de uso”, que corresponderia a uma área determinada em redor do imóvel preservado, atendendo às seguintes disposições: – O potencial construtivo podia ser transferido integralmente ou em parcelas para um ou mais lotes; – O potencial construtivo ficava vinculado ao imóvel para o qual utilizava-se só uma transferência; – Para o lote que receberia a transferência do potencial construtivo, a Lei permitia um acréscimo de até 25 % do coeficiente de aproveitamento máximo permitido pela Lei de parcelamento, sem a diminuição da taxa de ocupação (Piccini, 1997). Piccini (1997) considera essa Lei “ (...) como precursora à das Operações Interligadas, mesmo que utilizada para o caso específico de restauração de imóveis (...) (Piccini, 1997: cap. 4). Porém, sob sua forma original, não foi posta em prática. Naquele momento, os críticos da Lei reclamavam uma aplicação mais ampla do conceito, incluindo não apenas o patrimônio arquitetônico, mas também todo patrimônio ambiental” (CMSP_ CPI Interligadas, 2002: 9). Na administração Mário Covas frente à Prefeitura de São Paulo (1983 a 1985), foi introduzido o conceito de Operação Urbana na proposta de Plano Diretor 1985-2000. Estas operações eram então definidas como sendo “inversões conjuntas dos setores privado e público, por iniciativa deste, destinadas a produzir transformações urbanas localizadas”. Para operacionalizar o instrumento seria necessária a elaboração prévia de

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projeto urbano, a definição dos procedimentos econômicos e administrativos e a distribuição dos benefícios futuros, custos e encargos envolvidos. O chamado “Estatuto da Cidade” (Lei Federal n.º 10.257 de 10.07.2001) apresenta um aperfeiçoamento do conceito, além de um aprofundamento na separação do direito de construir e a propriedade. O Estatuto estabelece que o direito de construir na superfície, espaço aéreo ou subsolo do terreno, independe do direito de propriedade. Assim, o artigo 21 da Seção VII (“Do direito de superfície”) reza que: “O proprietário urbano poderá conceder a outrem o direito de superfície do seu terreno, por tempo determinado ou indeterminado, mediante escritura pública registrada no cartório de registro de imóveis”, sendo que os parágrafos subsequentes definem que: – § 1º O direito de superfície abrange o direito de utilizar o solo, o subsolo ou o espaço aéreo relativo ao terreno, na forma estabelecida no contrato respectivo, atendida a legislação urbanística; – § 2º A concessão do direito de superfície poderá ser gratuita ou onerosa; – § 3º O superficiário responderá integralmente pelos encargos e tributos que incidirem sobre a propriedade superficiária, arcando, ainda, proporcionalmente à sua parcela de ocupação efetiva, com os encargos e tributos sobre a área objeto da concessão do direito de superfície, salvo disposição em contrário do contrato respectivo; – § 4º O direito de superfície pode ser transferido a terceiros, obedecidos os termos do contrato respectivo; – § 5º Por morte do superficiário, os seus direitos transmitem-se a seus herdeiros. Além disso, em seu Artigo 2º, o “Estatuto da Cidade” fornece subsídios para a legitimação de mecanismos como os da Operação interligada ou da Operação Urbana ao definir: – “IX: [a] justa distribuição dos benefícios e ônus decorrentes do processo de urbanização; – X : [a] adequação dos instrumentos de política econômica, tributária e financeira e dos gastos públicos aos objetivos do desenvolvimento

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urbano, de modo a privilegiar os investimentos geradores de bem-estar geral e a fruição dos bens pelos diferentes segmentos sociais; – XI: [a] recuperação dos investimentos do Poder Público de que tenha resultado a valorização de imóveis urbanos (...)”; Estas disposições se adequam perfeitamente à justificação dos mecanismos em discussão, pois estes se apóiam justamente nesse tripé para se legitimarem. Cumpre lembrar que o “Estatuto da Cidade” (10.06.2001) aborda a função social da propriedade de maneira tangencial, condicionando o cumprimento dessa função social a conceitos bastante amplos: “a propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no Plano Diretor, assegurando o atendimento das necessidades dos cidadãos quanto à qualidade de vida, à justiça social e ao desenvolvimento das atividades econômicas, respeitadas as diretrizes previstas no art. 2º desta Lei” (Estatuto da Cidade, Artigo n.º 39). O conceito de “função social da propriedade” gera ainda profundas divergências quanto à sua interpretação. No caso dos terrenos urbanos, uma das acepções mais generalizadas seria a de que a “função social” destes estaria ligada à sua ocupação e uso, definidos em função de sua “utilidade social”. Os terrenos desocupados ou subutilizados veriam prejudicada sua “função social”, pois não teriam “uso” que contribuísse para o desenvolvimento e o bem estar dos cidadãos, mas estariam, no mais das vezes, beneficiando-se da valorização trazida por obras públicas de infra-estrutura e outros fatores de valorização imobiliária. Já para os proprietários e incorporadores, a noção de “função social” confunde-se com a própria idéia de “propriedade”, onde a reprodução do capital (a realização de lucro) seria per se um componente de utilidade social. A partir desta dicotomia desenvolveram-se inúmeros debates em torno da função social da propriedade urbana, principalmente em torno da questão da progressividade dos impostos territoriais urbanos como forma de evitar a especulação imobiliária com terrenos sub-utilizados. Este tema foi grandemente debatido durante a administração Luiza Erundina (1989 a 1992), gerando polêmicas apaixonadas na imprensa paulistana. Finalmente aprovada durante a gestão Marta Suplicy (2001-2004), após importantes concessões, a progressividade no IPTU gerou descontentamento entre proprietários e incorporadores.

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No caso da separação do direito de propriedade e do direito de construir, que embasam mecanismos como a Operação Interligada e a Operação Urbana, fica evidente a filiação de uma e de outra a uma suposta função social da propriedade, inserida num contexto complexo, e que só poderia ser regulado por um Plano Diretor (como expresso na Constituição Brasileira e no “Estatuto da Cidade”).

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5.2- Um antecedente à Operação Urbana: a Operação Interligada Já abordamos algumas modalidades anteriores de parceria institucional entre o Estado e a iniciativa privada nos capítulos 3 e 4. Entretanto, podemos considerar as Operações Interligadas como as precursoras diretas das Operações Urbanas, pois inserem-se num quadro político-ideológico específico, o do liberalismo econômico, onde estas parcerias são justificadas através de discursos que privilegiam a idéia de um Estado “mínimo”, incapaz, devido à falta de fundos e seu alto grau de endividamento, de conduzir grandes “operações” de redesenho ou redesenvolvimento no território urbano. A defesa aberta dos interesses do capital passaram a permear os discursos públicos, baseando-se numa obscura noção de função social do lucro e buscando, como vimos, legitimar-se através de várias elaborações de cunho ideológico, onde o Estado buscaria a parceria da iniciativa privada para a condução da administração e gerência dos negócios públicos (o Estado “gerencialista”). Esta “nova” concepção do Estado encontrava sua base na ênfase na mediação do mercado em todas as trocas sociais. Fajersztajn (EMURB) e Rolim (SEMPLA) concordam que o mecanismo de Operação Interligada seria o antecedente direto da Operação Urbana. A Lei 10.209/86 (chamada “Lei do Desfavelamento”), estabeleceu o mecanismo de Operação Interligada durante a administração Jânio Quadros (1986 a 1988) e visava, grosso modo, a outorga onerosa de direito construtivo em troca de fundos ou a construção de equipamentos sociais ou habitações populares, não necessariamente na área ou nas proximidades do empreendimento incluído na Operação. Rolim (SEMPLA) e Gonçalves (EMURB) afirmam que a Operação Interligada visava principalmente a erradicação das favelas no município, principalmente nas áreas mais valorizadas da capital. À época, o então Prefeito Jânio Quadros fez publicar a seguinte declaração em relação às Operações Interligadas: “O objetivo básico da Lei é aproveitar o dinamismo da iniciativa privada para ajudar a resolver o problema das habitações subnormais, o das favelas. A idéia central é promover a construção de habitações populares, mediante a possibilidade de aumentar o potencial construtivo de determinados terrenos” (DOM, 30.12.88: 2).

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A Lei de Operações Interligadas permitia aos proprietários de terrenos requerer à Prefeitura a modificação dos índices e características de uso e ocupação do solo, desde que construíssem e doassem à Prefeitura determinado número de Habitações de Interesse Social (HIS). A Operação Interligada seria uma intervenção pontual, restrita ao lote objeto de intervenção. A concessão de potencial construtivo adicional estava limitada a quatro vezes a área do terreno. O impacto da concessão desse e de outros benefícios eventualmente solicitados seria avaliado por um grupo de trabalho que procederia a uma análise urbanística da proposta. Cabia à Comissão de Zoneamento, instruída pela análise de um grupo de trabalho, a aprovação de cada uma das propostas. Em seu artigo 1º, a Lei determinava que os proprietários de terrenos ocupados por favelas ou núcleos de habitação precária poderiam requerer à Prefeitura do Município de São Paulo a modificação dos índices e características de uso e ocupação do solo do próprio terreno ocupado, ou de outro terreno de sua propriedade, desde que se obrigassem a construir e a doar ao poder público habitações de interesse social para a população favelada, considerando como núcleos e favelas aqueles definidos e cadastrados pelo IBGE no censo de 1980. Piccini (1997) ressalta que a concessão de benefícios com modificação de índices e das características de uso e ocupação do solo só seriam admitida em Operações Interligadas que oferecessem respostas para a totalidade dos moradores da favela ou do núcleo objetos da operação. Para esse fim, a Lei permitia o consórcio ou associação de proprietários (solução que, como aponta Piccini _1997_, apareceria novamente sob o nome de “consórcio imobiliário”, no projeto do Plano Diretor da administração Luiza Erundina). Em 1988, um primeiro decreto regulamentador (n.º 26.913/88), autorizava os proprietários interessados no mecanismo das Operações Interligadas a contratar o FUNAPS para a construção das unidades habitacionais e obras de infra-estrutura necessárias, devendo os interessados arcar com os custos das moradias, das obras de infra-estrutura e do terreno. Um segundo decreto, também de 1988, autorizava o FUNAPS a receber diretamente dos empreendedores habitações destinadas à população moradora de favelas como compensação resultante de uma Operação Interligada, e transferir tais habitações para os usuários mediante venda, concessão de uso e locação, sendo vedada a doação.

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Segundo Piccini (1997), um terceiro decreto do mesmo ano autorizava a Comissão de Zoneamento (atual CNLU) a fixar critérios para modificação de índices e características de uso e ocupação do solo como contrapartida às habitações de interesse social (terreno, habitações e infraestrutura) resultantes de uma Operação Interligada, num valor nunca inferior à 50% do valor atribuído ao benefício concedido. A partir de 1989, a administração Luiza Erundina (1989 a 1992) fortaleceu a importância do FUNAPS, tornando-o o principal agente financeiro da política municipal de habitação popular. Formalizou a orientação de incentivar as Operações Interligadas, sem modificar a Lei original, não utilizando-a como instrumento de desfavelamento, mas como uma forma de transferir famílias moradoras em favelas situadas em áreas de risco para conjuntos habitacionais, sem custos para o poder público. Como sabemos, Erundina privilegiou os mutirões comunitários como solução para a carência de moradias populares na capital. Segundo Piccini (1997), o programa de operações interligadas formalizou, até 1992, 35 contratos com o FUNAPS, resultando num total de 3.672 HIS, como contrapartida a um total de 257.066 m² de área construída adicional (Piccini, 1997 apud Abiko, 1993). Para Piccini (1997), o fato de a administração Erundina utilizar o instrumento e os recursos das Operações Interligadas, ampliando seu alcance, no projeto do Plano Diretor (projeto de Lei n.º 200/89), demonstrava o interesse daquela gestão em utilizar esse instrumento de maneira sistemática e global. Além disso, naquela gestão enfatizou-se a participação popular, sendo que o processo de análise urbanística deveria ser efetuado com a prática da participação de todos os interessados (os proponentes das Operações Interligadas e aqueles que seriam diretamente afetados por elas como, por exemplo, os moradores vizinhos ao lote onde seriam alterados os índices urbanísticos e os moradores da favela objeto da operação), instituindo o conceito de “aprovação comunitária”. Outra alteração importante, segundo Piccini, se daria no aumento no cálculo da contrapartida, que não poderia ser inferior à 60% do valor atribuído ao beneficio econômico obtido. “Essa revisão trouxe resultados favoráveis para a administração pública ao ampliar a contrapartida devida pelas empresas como ocorreu com a operação envolvendo o shopping center West Plaza, que trouxe em troca a construção de 810 HIS, equivalentes a um valor de US$ 7,3 milhões” (Piccini, 1997).

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Como sabemos, o projeto de Plano Diretor daquela administração terminou por não ser aprovado, mas alguns dos mecanismos propostos foram colocados em prática, de maneira isolada. Piccini conclui que “a orientação política de cada administração gerou usos diferenciados dos mesmos instrumentos urbanísticos aproveitados de forma diferente: enquanto na administração Jânio Quadros, um instrumento como de Operações Interligadas era associado à idéia de desfavelamento de áreas nobres e consolidadas de São Paulo, liberando espaços para o mercado imobiliário, na administração Luiza Erundina o uso do mesmo instrumento se baseava na preocupação com as situações contingentes de perigo imediato de vida da população moradora de habitações subnormais, favelas e cortiços” (Piccini, 1997). Durante a administração Paulo Maluf (1993 a 1996), uma emenda à Lei que instituiu a Secretaria do Verde e Meio Ambiente, proposta pelo vereador Arnaldo Madeira (Lei no. 11.426 de 18.10.1993), fazia com que todas as propostas de Operações Interligadas fossem analisadas e aprovadas pela Câmara Municipal, que adquiria assim o controle direto das alterações de uso e ocupação do solo, esvaziando o papel da CNLU. Esta emenda gerou acusações de “controle político” da urbanização da cidade e de “abusos” na utilização dos instrumentos das Operações Interligadas, como a construção de equipamentos comerciais em bairros exclusivamente residenciais (caso de projeto de shopping center e torre de escritórios em terreno ao lado do Parque VillaLobos, no Alto de Pinheiros). Mais tarde, a administração Maluf aprovou nova Lei (Lei n.º 11.773, de 19.05.95), em que também se dispunha sobre as Operações Interligadas, destinando-as a moradores de habitações “sub-normais”. Em seu artigo 1º, a nova Lei alterava substancialmente a Lei anterior ao vincular o valor da contrapartida ao Fundo Municipal da Habitação (FMH). Com isso ampliou-se a liberdade de interferência do Poder Executivo quanto à destinação dos recursos gerados pelas Operações. Assim, reza o artigo 1º da Lei: “Os interessados em apresentar propostas de modificações de índices urbanísticos e de características de uso e ocupação do solo, com base na Lei n.º 10.209, de 9 de dezembro de 1986, deverão destinar ao Fundo Municipal de Habitação - FMH-, criado pela Lei n o .11.632, de 22 de julho de 1994, a importância relativa à totalidade dos valores estipulados como contrapartida para construção de Habitações de Interesse Social -HIS- para atendimento de moradores de habitação sub-normal”.

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Para Piccini (1997), o processo de aprovação dessa Lei demonstrava que, devido à negociação de interesses políticos, não teria havido a manutenção do objetivo original da Lei de Quadros, de 1986, qual seja, o desfavelamento. Áreas de caráter exclusivamente residencial e áreas de preservação foram excluídas da área onde seriam permitidas as Operações Interligadas. A totalidade da importância dos valores estipulados como contrapartida às propostas de modificação de índices urbanísticos e características de uso e ocupação do solo para construção de HIS deveria agora ser destinado ao FMH. Tratava-se, portanto, de uma revisão da Lei de Operações Interligadas, onde o controle sobre sua aprovação passava ao Poder Executivo, competindo à CNLU somente a aprovação indicativa das modificações referidas e a aprovação do valor da contrapartida em HIS correspondentes. O valor da contrapartida a ser repassado à Prefeitura não poderia ser inferior a 60 % ao valor atribuído ao “benefício econômico obtido”. A Lei não especificava como beneficiários as famílias dos núcleos e favelas, como ocorria na Lei anterior, mas coloca como beneficiários, de forma genérica, todos os moradores de “habitações sub-normais”. Também estabelecia que o pagamento da contrapartida nas Operações Interligadas seria executado em dinheiro e em unidades habitacionais de HIS, como na Lei original, mas vinculando esses recursos ao Fundo Municipal de Habitação, o que teoricamente evitaria seu desvio para outros fins que não aqueles da habitação. Neste sentido dispõe o art. 4º, que “as importâncias arrecadadas na forma do art.1º desta Lei, integrarão, como recursos do Fundo Municipal de Habitação - FMH, uma conta específica destinada ao registro contábil autônomo das Operações Interligadas. § 1º - Os recursos a que se refere o ‘caput’ deste artigo deverão ser utilizados exclusivamente na construção de Habitações de Interesse Social - HIS, conforme objetivos da Lei n.º 10.209, de 9 de dezembro de 1986, e para atendimento de moradores de habitações sub-normal, vedada sua utilização para quaisquer outros fins, sejam de que natureza forem, inclusive despesas administrativas”. Porém, as Operações Interligadas e o FMH foram eclipsados por uma política de desfavelamento manifestamente ligada a interesses de grandes empreiteiras e imbuídas de um forte apelo publicitário. O projeto Cingapura, principal programa da administração Paulo Maluf na área habitacional, não foi desenvolvido com os recursos financeiros do FMH, mas com recursos do orçamento municipal, do BID e também com recursos da Caixa Econômica Federal. Críticas ao programa incluíam o alto custo por

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unidade habitacional, o superfaturamento de obras por parte de empreiteiras contratadas, a ausência de participação comunitária, configurando uma política de caráter clientelista, além da ausência de um planejamento urbanístico para os conjuntos, construídos geralmente em vias de grande circulação e grande visibilidade, mas de baixa qualidade ambiental. A opção da administração anterior, de privilegiar as obras de mutirão comunitário, foi quase totalmente abandonada durante a administração Maluf. Veremos adiante que, ao privilegiar a construção de conjuntos habitacionais através de fundos não vinculados ao Fundo Municipal de Habitação, as administrações de Maluf e Pitta na verdade criaram a aparência de que os recursos gerados pelas Operações Interligadas estariam produzindo Habitações de Interesse Social, quando na verdade os recursos eram desviados para outras áreas. A partir de 1985, com o advento de um instrumento chamado Ação Civil Pública, o Ministério Público (MP) ampliou suas funções. Um dos setores em que passou a atuar foi a defesa dos interesses difusos e coletivos nas questões relacionadas ao urbanismo. Essa atribuição possibilitou que a Promotoria de Justiça de Habitação e Urbanismo questionasse a validade da Lei das Operações Interligadas (Lei n.º 11.773/1995). Em novembro de 1997, o Ministério Público entrou no Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo com uma ação direta de inconstitucionalidade contra a Lei 11.773/95 (gestão Paulo Maluf), que regia as Operações Interligadas, criadas pela Lei 10.209/86 (gestão Jânio Quadros), solicitando liminar que interrompesse imediatamente sua aplicação. Em 20 de novembro de 1997, a liminar foi negada, tendo o Ministério Público recorrido da decisão aproximadamente uma semana depois. A Lei foi suspensa por liminar concedida pelo órgão especial do Tribunal de Justiça em 1º de abril de 1998 e sua aplicação da foi embargada numa ação direta de inconstitucionalidade ajuizada pelo MP. Segundo o promotor público João Lopes Guimarães Jr., do Ministério Público, haveria na Lei “o vício de inconstitucionalidade por desrespeito ao princípio de reserva legal que deve vigorar para uso e ocupação do solo e zoneamento” (Guimarães, 1999). A Constituição do Estado determinaria que qualquer alteração nesses assuntos deveria ser feita através de Lei específica. Entretanto, segundo Guimarães, as Operações Interligadas permitiam que essas mudanças fossem realizadas por um órgão do executivo. Ainda que este se utilizasse de Lei em vigor, esta Lei tinha um caráter “generalista”, isto é, criava uma competência

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inconstitucional ao delegar funções ao executivo municipal e não tratava cada caso de modificação do zoneamento especificamente. Ainda segundo Guimarães (1999), as Operações Interligadas não poderiam ser “apenas instrumentos de arrecadação de recursos pela administração”, mas deveriam se constituir em “mecanismos para o trabalho das opções urbanísticas dentro da cidade”. Para o MP, o instrumento básico de planejamento de uma cidade deveria ser o Plano Diretor. A Operação Interligada deveria ser mais um instrumento de um conjunto coerente de instrumentos, leis e disposições que enxergassem a cidade na sua globalidade. Sem a existência de um Plano Diretor que tivesse “amadurecido as opções de política urbanística”, seria “pouco sensato falar em Operação Interligada” (Guimarães, 1999), pois, na opinião do promotor, a falta de um plano global para a cidade levaria ao “casuísmo” na condução das Operações Interligadas e ao risco de um adensamento aleatório. Tal era a opinião do procurador-geral da Justiça José Geraldo Brito Filomeno (OESP: 20.11.2000, “Justiça julga Operação Interligada”), que sustentava que a Lei n.º 11.773/95 afrontava o artigo 182 da Constituição, que expõe que “a política de desenvolvimento urbano, executado pelo Poder Público Municipal conforme diretrizes gerais fixadas em Lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes”. Para Filomeno, o Plano Diretor (obrigatório pela Constituição Brasileira para cidades com mais de 20 mil habitantes) é o instrumento básico da expansão urbana. A Lei de Operações Interligadas “anularia” a possibilidade de seguir um Plano Diretor de forma coerente, pois instituiria a “decisão casuística”, que desfaria a capacidade de a Lei de Zoneamento regular o uso do solo. Segundo Filomeno, a mudança de zoneamento e as medidas que abriam exceções nesse campo beneficiariam o empreendedor, mas prejudicariam a coletividade, provocando “alteração do caráter de vizinhança, lustrando sua expectativa de manutenção do caráter garantido por Lei” (OESP: 20.11.2000: s.p.). Tal avaliação era apoiada por nomes representativos, como o urbanista Cândido Malta Campos Filho e por Roberto Saruê, então presidente do Movimento Defenda São Paulo, que representava 250 associações de bairros. Para Saruê, as Operações Interligadas conduziriam ao “desplanejamento” da cidade. “A Prefeitura está se transformando num banco imobiliário, vendendo o zoneamento de São Paulo”, diria Saruê, a respeito das Operações Interligadas (JT, 03.04.1998: 4).

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Guimarães (1999) resumia a posição do MP da seguinte maneira: “qualquer mecanismo de Operação Interligada deve respeitar princípios da administração pública, ser transparente e garantir igualdade entre as partes. Cada proprietário deve saber quanto vai pagar por m2 de potencial construtivo adicional. Não é possível que um proprietário pague determinado valor ao passo que outro tenha de pagar mais. É preciso também que a clareza de regras funcione não só para o proprietário, mas para o resto da cidade. O morador de cada bairro deve saber com antecedência o que pode acontecer em cada zona da cidade. Não é possível que a Operação Interligada exista para criar a imprevisibilidade” (Guimarães, 1999). A Prefeitura da cidade de São Paulo entrou com vários embargos na ação e respectiva liminar, mas somente em maio de 1999 foi aceita pelo Tribunal como parte interessada na ação. Em novembro de 2000, quando foi julgada a ação direta de inconstitucionalidade, o Tribunal de Justiça estava dividido em torno da questão. O julgamento prolongou-se por várias sessões com sucessivos pedidos de adiamento, “sempre sob o acompanhamento atento de uma platéia composta por representantes de grandes construtoras” (OESP: 20.11.2000: s.p.). Finalmente, em fevereiro de 2001, a Lei foi considerada inconstitucional pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Esta decisão gerou incertezas entre empresários da indústria imobiliária, que haviam se valido da Lei para construir grandes empreendimentos. Para tanto, haviam firmado um termo de compromisso com a Secretaria Municipal de Planejamento, onde constavam os direitos e obrigações referentes à aprovação dos projetos de Operação Interligada. Para o empreendedores, o acórdão do Tribunal de Justiça contrário à Lei não teria definido, em termos temporais, o alcance da declaração de sua inconstitucionalidade, não estabelecendo portanto se os efeitos do julgamento atingiam apenas futuros empreendimentos ou a todos os processados nos termos da legislação enfocada. Diante desse quadro, o SECOVI, alegando razões “plausíveis” (como o direito adquirido por parte daqueles que se conduziram à luz da legislação então vigente), fez gestões junto à Prefeitura de São Paulo, para que esta oferecesse “embargos de declaração”, minimizando os efeitos da decisão judicial. A administração municipal interpôs então os ditos embargos à sentença do TJ. Mais tarde, em sessão realizada em 19 de dezembro de 2001, o Órgão Especial do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, acolheu em parte tais embargos, explicitando que os efeitos da declaração de

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inconstitucionalidade da Lei n.º 11.773/95 não atingiriam os processos e projetos que resultaram em “Termos de Compromisso” firmados entre proprietários de imóveis e a Secretaria Municipal de Planejamento, em conformidade com o § 2.º do artigo 3.º da Lei de Operações Interligadas, antes da publicação do acórdão que declarou a sua inconstitucionalidade (Informativo “Planeta Imóvel”, seção SECOVI, “Acórdão define ‘linha de corte’ para Operações Interligadas”, 20.02.02). Em 23 de outubro de 2001, foi instituída na Câmara de Vereadores da cidade de São Paulo, a partir do requerimento n.º 08-0111/2001, apresentado pelo então vereador Antônio Goulart (PMDB), a Comissão Parlamentar de Inquérito sobre as Operações Interligadas. A CPI encerrou suas atividades em 07 de junho de 2002. As conclusões da CPI basearam-se, entre outras fontes, nos trabalhos de um Grupo de Trabalho Intersecretarial SEMPLA/SEHAB, especialmente criado para estudar as Operações Interligadas. Este grupo tinha como objetivos: “a) levantar e propor medidas operacionalizadoras, bem como solução para os casos pendentes de Operações Interligadas protocoladas com base na Lei nº 10.209/86 e b) levantar a situação dos recursos do Fundo Municipal de habitação – FMH, advindos das Operações Interligadas aprovadas com base na Lei nº 11.773/95”. Os estudos do Grupo de Trabalho foram concluídos em meados de 1998 e seus resultados mostraram que pouquíssimo dos valores arrecadados através das Operações Interligadas havia sido efetivamente utilizado para a construção de HIS, sendo que a maior parte dos fundos teria sido ilegalmente desviada para outros fins. O estudo do Grupo de Trabalho Intersecretarial SEMPLA/SEHAB mostrava que, do ano de 1986 até o ano de 1998, teriam sido requeridas 843 Operações Interligadas, sendo que 313 propostas tiveram o Termo de Compromisso firmados. Dos 313 Termos de Compromisso firmados, 126 (41%) obedeciam ao parâmetros da Lei n.º 10.209/86 (gestão Jânio Quadros) e 187 (59%) fundamentavam-se na Lei n.º 11.773/95 (gestão Paulo Maluf).

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[Quadro 5-1: Operações Interligadas: 1986 a 1998] Propostas requeridas

843

Termos de compromisso assinados (propostas deferidas) 313 Operações incluídas na Lei 10.209/86

126

Operações incluídas na Lei 11.773/95

187

Fonte: CPI Interligadas, CMSP, 2002

Dos 126 Termos de Compromissos firmados sob a égide da Lei n.º 10.209/86, 76 eram correspondentes à contrapartidas quitadas na forma de construção, pelo próprio proprietário, das Habitações de Interesse Social. Segundo o estudo conduzido pelo GTI, estes 76 termos deveriam gerar 4.927 Habitações de Interesse Social, das quais até a finalização dos trabalhos 3.448 tinham sido efetivamente concluídas, restando 1.575 em fase de conclusão. Os 187 Termos de Compromisso fundados na Lei n.º 11.773/95 teriam gerado uma receita de US$ 78.988.810,21, quantia suficiente para construir 5.811 HIS133. Porém, até meados de 1998, ano em que foi concluído o estudo, estes fundos não haviam gerado a construção de uma única moradia. O relatório do GTI mostrava que, durante as gestões dos anos de 1995 (Paulo Maluf), 1996, 1997 e 1998 (Celso Pitta), a receita oriunda das contrapartidas pagas nos termos da Lei n.º 11.773/95, que instituiu também o chamado Programa de Direito à Moradia, não foi aplicada na construção de Habitações de Interesse Social, não tendo nem mesmo sido depositada na conta vinculada do Fundo Municipal de Habitação, conforme rezava a Lei. O relatório do GTI concluía que, dos US$ 122.498.608,84 arrecadados durante os doze anos de vigência das leis n.º. 10.2109/86 e n.º 11.773/95 (1986 a 1998), apenas a quantia aproximada de 22 milhões de dólares teria sido efetivamente aplicada na construção de Habitações de Interesse Social, sendo que maior parte da receita gerada, não teria sido aplicada na atividade específica que a Lei determinava, ou seja, construção de moradias populares. A quantia arrecadada teria sido suficiente para a 133

A este total somavam-se ainda, 10 Termos de Compromisso que na época não haviam ainda

sido quitados, cujas contrapartidas correspondiam ao valor de US$ 4.759.678,96, montante suficiente para construção de 367 Habitações de Interesse Social.

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construção de 11.103 HIS (considerando-se o valor de cada unidade em aproximadamente US$ 11.033,00), mas foram construídas apenas 4.927 unidades (incluindo aquelas em fase de construção ao final do relatório). Há falta de clareza nos números apresentados pela CPI das Interligadas. 4.927 unidades (número estabelecido pelo GTI para as unidades de HIS construídas sob a Lei 10.209/86) equivalem a US$ 54.359.591,00, segundo a metodologia adotada pelo Grupo de Trabalho Intersecretarial SEMPLA/SEHAB. Piccini (1997), sem mencionar explicitamente à vigência de qual Lei se referem seus cálculos, fala em 5.648 unidades efetivamente construídas entre 1986 e 1995, que equivaleriam a US$ 46.897.648,38 (US$ 8.303,41 por unidade de HIS) em contrapartida financeira pelos Termos de Compromisso firmados no período. Atribuímos estas discrepâncias à falta de clareza com que foi redigido o relatório final da CPI, sem que com isso ficassem invalidados seus resultados finais. Estes resultados demonstravam que as Operações Interligadas teriam servido basicamente

como

instrumento

arrecadatório

desenvolvimento e ordenamento urbano.

e

não

como

mecanismo

de

Os recursos oriundos dessas operações

acabaram sendo desviados do seu propósito original e legal e pouco do montante arrecadado foi utilizado para os objetivos estabelecidos na legislação então vigente.

174


5.3- A Operação Urbana Tanto quanto as Operações Interligadas, o instrumento urbanístico conhecido como Operação Urbana já podia ser encontrado no “Plano Habitacional do Município de São Paulo: 1983/1987”134 (Piccini, 1997), da administração municipal de Mário Covas (1983 a 1985). Nesse plano, recomendava-se a utilização do instrumento das Operações Urbanas como forma para a obtenção de terras para o desenvolvimento de programas de habitação de interesse social, paralelamente ao desenvolvimento de um programa de urbanização de certas regiões deterioradas da cidade. Isso poderia se dar a partir de uma articulação entre agentes públicos e privados, através de diferentes formas de incentivos fiscais, incentivos de crédito e definição de normas urbanísticas especiais. Mais tarde, ao final da Administração Jânio Quadros (1986 a 1988) essa modalidade de Operação Urbana foi definida na Lei n.º 10.676 de 1988 (item II, art. 27)135. As Operações Urbanas, segundo a Lei de 1988, visavam promover alterações coordenadas dentro de um determinado perímetro, através dos seguintes ações: -

Renovação de áreas deterioradas;

-

Incentivo à ocupação de áreas com potencial de desenvolvimento urbano;

-

Melhoria de padrões urbanísticos através da preservação de imóveis de

valor histórico e sua recuperação; -

Melhoria do sistema viário de uma região, com a construção de avenidas, o

alargamento de ruas e a adequação paisagística. -

A criação de áreas verdes significativas;

-

A drenagem das águas pluviais;

-

Os programas de habitação de interesse social;

-

O facilitamento da operacionalização de grandes intervenções através da

utilização de áreas de propriedade do poder público, terrenos vazios, provocando alterações na estrutura fundiária da região-alvo, incentivando o interesse imobiliário e a

134

Capítulo de Políticas, item “Política de Participação da Iniciativa Privada”, apud Piccini,

1997. 135

Lei contida no Plano Diretor (aprovado por decurso de prazo).

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viabilidade econômica dos projetos, sem necessidade de aplicação de grande recursos públicos. A Operação Urbana também é prevista pela Lei Orgânica do Município de São Paulo, de 1990 (administração Erundina), onde o artigo 152 define que “o Município poderá, na forma da Lei, obter recursos junto à iniciativa privada para a construção de obras e equipamentos, através de Operações Urbanas” (Título V, “Do Desenvolvimento do Município”, Capítulo I, “Da Política Urbana”). No Projeto de Lei do Plano Diretor de 1991 (Luiza Erundina), as Operações Urbanas era descritas no capítulo V (“Das Operações Urbanas”, Art. 54). O parágrafo 2º do Art. 54 definia que: “A Lei específica de Operação Urbana estabelecerá um ‘estoque de área edificável’ independente dos estoques da zona adensável em que estiver situada, em função da organização espacial dos usos pretendidos e um programa de obras públicas previstas e necessárias, devendo esse estoque ser adquirido onerosamente pelos proprietários e empreendedores interessados em participar da operação”. O parágrafo 4º definia que: “O programa de obras públicas, a que se refere o parágrafo 2º desse artigo, deverá demarcar área para implantação de habitação de HIS contida no perímetro da operação [grifo nosso], destinada à população de baixa renda, moradora no local, cabendo ao Poder Público a gestão e o repasse dessa habitações”. Esse projeto demostrava claramente que as habitações de interesse social deveriam ser construídas dentro do perímetro da operação em questão, e se constitui na primeira tentativa de atrelar recursos gerados pela outorga onerosa de direito de construção advindos de uma operação a melhorias promovidas pelo poder público dentro do perímetro proposto. Aqui, a Operação Urbana é o conjunto integrado de intervenções e medidas em que se define uma legislação específica de parcelamento, de uso e ocupação do solo em um perímetro estabelecido na cidade. Nele se estabelece um estoque de área edificável a ser adquirido onerosamente pelos proprietários e empreendedores interessados em participar da operação. Os recursos gerados iriam para um Fundo de Urbanização, vinculado àquela operação (DOM, de 24.12.92). Cada uma das Operações Urbanas deveria ser aprovada por Lei específica, já que alteraria o zoneamento e permitiria modificações de índices urbanísticos estabelecidos anteriormente.

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Em contrapartida, a Prefeitura poderia receber terras ou imóveis, obras de infra-estrutura ou de sistema viário, unidades de habitação de interesse social (HIS), áreas verdes ou valores em dinheiro, segundo definido para cada operação específica. A contrapartida nunca poderia ser inferior a 60% do valor econômico de benefício concedido. As Operações Urbanas tinham, desde suas primeiras versões, um grande potencial de impacto espacial, que as colocava entre os instrumentos urbanísticos mais importantes postos em prática na cidade de São Paulo na última década do século XX. As Operações Urbanas seriam instrumentos de ação mais ampla quanto à área territorial de intervenção, enquanto as intervenções da Operações Interligadas caracterizavam-se por serem pontuais. Os processos decisórios envolvidos na aprovações e na condução de uma Operação Urbana envolviam mais agentes do que aqueles envolvidos nas Operações Interligadas. Estas se estabeleciam entre empresários e a CNLU, enquanto as Operações Urbanas necessitam de um projeto global de intervenção que é submetido à CNLU e depois, na forma de projeto de Lei, devem passar pela aprovação do legislativo. Em suma, a Operação Urbana, tal como era entendida até o final do mandato de Celso Roberto Pitta (dezembro de 2000), consistia numa parceria entre o poder público e os investidores privados no campo da produção do espaço urbano, do redesenho da cidade e da construção de infra-estruturas urbanas de grande envergadura. Tratava-se portanto de disposições procedurais, legais e regulamentares sobre esta parceria. A Operação Urbana baseava-se na noção de que o poder público (a Prefeitura) é um ator legítimo e reconhecido para a proposição e a realização de ações de grande envergadura no campo da produção e rearranjo do espaço urbano, mas que era incapaz, nas condições vigentes, de financiar sozinho estas intervenções. O poder público faria assim apelo aos investidores privados, que se beneficiariam de um programa coerente de intervenção numa área delimitada da metrópole e de uma oportunidade real de investimento, notadamente no setor imobiliário. Além disso, baseando-se na constatação de que os empresários privados são quase sempre grandes beneficiários das grandes ações de reurbanização e de construção de infra-estrutura, o mecanismo da operação legitimava a cessão onerosa do direito de uso desses benefícios.

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Assim, a Operação Urbana era vista como uma oportunidade de organizar, compartilhar e de dirigir os investimentos numa área determinada da metrópole, mas não contemplava uma estratégia global de intervenções, como aquela contida num Plano Diretor. Em sua essência, consistia basicamente num instrumento que legitimava a flexibilização das regras de uso de solo (zoneamento) dentro de um perímetro onde ocorreria uma intervenção importante no desenho e na infra-estrutura urbana. Numa Operação Urbana, as regras de zoneamento de um setor da cidade eram mantidas, mas tornava-se possível construir para além dos limites até então estabelecidos através da outorga onerosa do direito de construir, permitindo também, conforme o caso, a modificação do uso. Este adensamento só seria permitido, em algumas versões da operação, após uma avaliação da “capacidade construtiva” da área, isto é, após avaliação de sua capacidade infra-estrutural em suportar novas construções, serviços e circulação de automóveis e pessoas. Essa flexibilização geralmente tornava a área mais atraente para os investidores imobiliários, que então pagariam para construir além do estabelecido pelo zoneamento anterior (a cessão onerosa do direito de construir), financiando as melhorias das quais, em última instância, se beneficiavam Segundo seus defensores, este mecanismo dinamizaria, modificando e corrigindo a ocupação de uma área específica da metrópole, gerando uma contrapartida financeira para a administração municipal e permitindo o auto-financiamento das obras infra-estruturais necessárias. Segundo seus críticos, a Operação Urbana, sem estar inserida num plano global de regulação e planejamento da metrópole, acabaria por tornar-se um instrumento casuístico, que poderia minar os esforços de ordenação urbanística anteriores (principalmente no tocante ao zoneamento), impondo incertezas aos habitantes das áreas afetadas e servindo como instrumento de especulação imobiliária. Seu caráter aleatório, fora do contexto de um Plano Diretor, seria acentuado pelo fato de que as Operações Urbanas podem ser propostas pelas agências governamentais ligadas ao desenvolvimento da cidade ou por atores privados e inclusive pelos próprios investidores. Sobre uma possível semelhança entre os mecanismos da Operação Urbana e do chamado “Solo Criado”, definido na Proposta de Plano Diretor de 1991, Gonçalves (EMURB) afirmou que as idéias, embora semelhantes, não são idênticas. Na verdade, o “Solo Criado” pretendia fazer um inventário do “estoque” de potencial construtivo dentro de uma região dada, para em seguida vendê-lo à iniciativa privada em troca de

178


verbas para a construção de moradias ou melhoria da infra-estrutura urbana. A cidade veria seu coeficiente de aproveitamento do solo nivelado ao fator 1 de aproveitamento do solo136 (o zoneamento prévio cessaria), e todo excedente seria de propriedade do poder público. Segundo Campanário (1994), “o solo criado surge da separação do direito de propriedade do solo do direito de construir (ou criar solo). Como o potencial construtivo (e de mercado) de um terreno está diretamente ligado aos investimentos públicos, a apropriação total ou parcial do direito de construir pelo poder público poderia propiciar uma importante fonte de recursos e em poderoso instrumento urbanístico”. Mesmo restritas a um perímetro determinado, as Operações Urbanas tinham um caráter mais abrangente que suas antecessoras diretas, as Operações Interligadas. Para Fix (2000), mesmo beneficiando o mercado imobiliário (do ponto de vista do setor privado) as Operações Interligadas tinham limitações, pois seu alcance restrito ao lote não era suficiente para criar novas zonas de investimento na metrópole (a chamada “renovação urbana”). Nesse sentido, segundo Fix (2000), a Operação Urbana teria expandido as possibilidades de venda de exceção à Lei do zoneamento. O poder público justificou as intervenções propostas na década de 90 (Anhangabaú, Água Branca, Águas Espraiadas137, Faria Lima e Centro), alegando necessidades estruturais (fictícias ou não) da metrópole, especialmente no tocante à sua malha viária138. Assim, os discursos que viam na construção e na continua expansão da malha viária a solução para os problemas de trânsito da metrópole e uma condição para seu “progresso” serviram mais uma vez para justificar e legitimar a associação entre Estado e capital. Houve, desde o início, uma coalizão de interesses entre os atores privados e a instituição pública, como trataremos de demonstrar. A primeira Operação Urbana propriamente caracterizada foi a Operação Urbana Anhangabaú (Lei n.º 11.090, de 16.09.91), implementada em 1993.

136

Coeficiente que permite a construção de área equivalente à metragem do terreno.

137

Embora o projeto de Lei que criava a Operação Urbana Águas Espraiadas nunca tenha sido

votado na Câmara Municipal, a construção da avenida beneficiou-se da Lei de Operações Urbanas contida na Lei Orgânica do Município de São Paulo, de 1990, artigo 152. 138

Característica menos marcante nas operações Anhangabaú e Centro.

179


Foto 5-2: Operação Urbana Anhangabaú. Reurbanização do Vale do Anhangabaú com construção de laje sobre a Avenida Prestes Maia. Foto do autor (2002).

As obras executadas no Vale do Anhangabaú compreendiam um conjunto integrado de ações coordenadas pela Prefeitura, através da EMURB, com a participação dos proprietários, moradores, usuários permanentes e investidores privados, visando a melhoria e valorização ambiental da área de influência imediata do Vale do Anhangabaú. Segundo Piccini (1997), essa primeira Operação Urbana definia quatro mecanismos que deveriam incentivar a colaboração entre iniciativa privada e pública: “O primeiro mecanismo permitiria exceções à legislação de parcelamento, uso e ocupação do solo, bem como às normas de edificação. Nele estabelecia-se também um estoque adicional de 150.000 m² de área construída a ser utilizado pela iniciativa privada no espaço de 3 anos. A contrapartida financeira paga pelo excedente construtivo nunca seria inferior a 60% do valor econômico atribuído ao benefício concedido.

180


Um segundo mecanismo permitiria a regularização das construções, reformas ou ampliações, executadas em desacordo com a legislação vigente e concluídas até a data de publicação da Lei. Neste caso específico, a contrapartida foi fixada em 200 %, ou seja, o dobro do valor econômico do benefício concedido. O terceiro mecanismo relacionava-se à transferência de potencial construtivo não utilizado dos prédios de valor histórico ou arquitetônico que se encontram dentro do perímetro da Operação Urbana, utilizando, nesse caso, o coeficiente de aproveitamento máximo igual a 6 vezes a área do terreno da edificação preservada. A transferência só poderia ser feita para imóveis localizados fora do perímetro da Operação Urbana. O quarto mecanismo referia-se à reorganização e o aumento do espaço de uso comum público, aéreo e subterrâneo” (Piccini, 1997). Segundo Piccini (1997), no período em que vigorou esse instrumento, até 1996, foram autorizados os seguintes processos: -

A outorga onerosa de 19.673,45 m2 para área construída adicional ao

permitido pela Lei de Zoneamento em vigor, de 5 terrenos com 11.173 m2, o que representou só 13,12% do estoque de área construída adicional permitido pela Lei; -

A regularização de 9.588,18 m² de construção existente em 2 terrenos com

2.291,78 m², sendo que a área regularizada não poderia ser deduzida do estoque por não estar conforme com o Código de Obras vigente. -

Foram assinados 7 termos de compromisso, com arrecadação total de

R$7.293.819,93 destinados genericamente para obras programadas na operação urbana (Piccini, 1997 apud “Dossiê São Paulo”, 1996). Do pequeno estoque previsto de área edificável adicional (150.000 m²), apenas 10% foram utilizados. Esses números demonstravam uma participação aquém das expectativas da administração municipal. Os incentivos promovidos com esse instrumento não foram de fato um estímulo suficiente para envolver uma parcela maior do investimento privado no setor imobiliário do centro da cidade. Uma vez expirado o tempo determinado para a Operação Urbana Anhangabaú (3 anos), foi elaborado, já na administração Paulo Maluf, o projeto de Lei da Operação Urbana Centro (projeto de Lei n.º 901/95) que ampliava o perímetro da operação anterior, de 60 para 400 hectares, estendendo-o para uma vasta área que incluia a Sé, além de parte dos bairros do Brás, Bom Retiro e Glicério.

181


A Operação Urbana Centro, primeiro projeto de Operação Urbana apresentado pela

administração

Maluf,

propunha

fundamentalmente

a

“revitalização”

e

“requalificação” urbana do centro da cidade através de mecanismos de parceria entre o setor público e o setor privado. Estes mecanismos se constituíam basicamente na concessão de benefícios isentos de contrapartida financeira, como forma de forçar e estimular a renovação e o adensamento do Centro através de construção de novos edifícios e a reforma dos existentes. Mapa 5-3: Perímetro da Operação Urbana Centro. Fonte: EMURB, “A Cartilha da Área Central”, São Paulo: EMURB, 2000: 2.

A Operação Urbana Centro, seguindo uma tendência internacional de “revitalização” ou “redesenvolvimento” de centros urbanos (downtown redevelopment) e a preservação dos patrimônios históricos, buscou reverter a situação de degradação da área por ela abrangida e elencou uma série de regulamentações visando agilizar este processo de retomada das atividades na área central e incentivar os investimentos na

182


região. A Operação fixava uma “Área de Especial Interesse” dentro do perímetro definido pelo Parque Dom Pedro II, Avenida Senador Queiróz, Avenida Ipiranga, Consolação, Maria Paula, Praça da Sé e Rangel Pestana. Entre os principais objetivos da Operação Urbana Centro, contavam-se: -

A melhoria da qualidade de vida dos moradores e usuários permanentes da

-

O incentivo à fixação de residentes na área central, otimizando a utilização

área, da

infra-estrutura já instalada e proporcionando um maior equilíbrio de uso diurno e

noturno entre moradias e serviços, -

O incentivo à construção de edifícios de uso residencial, ampliando o

coeficiente de aproveitamento até um máximo de 6, sem a necessidade do pagamento de contrapartida pelos interessados; -

O incentivo à construção de edifícios de garagens com um coeficiente de

aproveitamento máximo de 8, sem a necessidade do pagamento de contrapartida pelos interessados; -

O incentivo ao remembramento de lotes;

-

O incentivo à preservação dos imóveis de interesse histórico, ao patrimônio

cultural e ambiental urbano; -

O incentivo à construção de novos hotéis, que pudessem estimular o uso do

centro através de turismo, negócios, cultura e lazer. Neste caso, as áreas de auditórios não seriam consideradas no cálculo do coeficiente de aproveitamento; -

O início de um amplo programa de melhoria de qualidade de vida das áreas

centrais, inclusive para os moradores de habitações sub-normais; -

A modificação de índices de uso e ocupação do solo, do subsolo e do código

de obras e edificações; -

A cessão onerosa do espaço público aéreo e subterrâneo resguardando o

interesse público. Piccini (1997), considera que o estoque residencial proporcionado no caso da efetivação desse projeto de Operação Urbana seria inevitavelmente dirigido à classe média, “pela importância de infra-estrutura e de serviços já existentes nessa região”, sendo que “o aumento dos índices construtivos permitidos levará a área central da cidade a ter um novo perfil. Ocorrendo esse processo de renovação, será difícil manter a

183


população moradora de baixa renda nessa região, visto que também esse projeto não coloca nenhuma preocupação em relação a esse assunto” (Piccini, 1997). O projeto não previa, por exemplo, áreas específicas para construção de HIS. Na comparação dos projetos das duas Operações Urbanas, desenvolvidos por administrações diferentes, Piccini (1997) diferencia as seguintes características básicas: a Operação Urbana Anhangabaú seria um instrumento urbanístico que visaria incentivar um programa coordenado de melhorias na área central, criando relações de parceria entre o poder público e a iniciativa privada, basicamente através da cessão onerosa, isto é, os benefícios concedidos à iniciativa privada não eram isentos de contrapartida financeira. Já a Operação Urbana Centro seria na prática uma mudança de índices e coeficientes para alterar a Lei de zoneamento da área central, sem as contrapartidas características de uma parceria entre o público e o privado. Nessa Operação Urbana propunham-se mudanças de adensamento sem a fixação de contrapartidas, o que se justificaria pela necessidade de requalificação de uma área pouco atraente para os incorporadores imobiliários. A Lei que regulamentou esta operação (Lei n.º 12.349/1997), foi aprovada somente em 1997, já sob administração Pitta. Em sua forma final, a Lei estabelece que Operação Urbana Centro seria gerida por uma comissão executiva mista. Possibilitavase a superação do coeficiente de aproveitamento dos terrenos na região (estabelecido anteriormente em 4), para o coeficiente 6 de aproveitamento máximo para edifícios residenciais e edifícios-garagem. As duas tipologias poderiam sobrepor-se, gerando edifícios de uso misto com coeficiente de até 12 vezes a área do lote, desde que a garagem tivesse acesso independente. Os recursos provenientes das contrapartidas financeiras seriam aplicados em obras de melhoria urbana, na recuperação e reciclagem de edifícios públicos em geral, no pagamento de desapropriações e na restauração de imóveis tombados, com posterior ressarcimento, como ocorreu na estação Júlio Prestes, que passou a abrigar a Sala São Paulo. Em janeiro de 1998, como parte da Operação Urbana Centro, o prefeito Celso Pitta regulamentou Lei que concedia isenção de IPTU (Imposto Predial e Territorial Urbano) para os proprietários que recuperassem a fachada de seus imóveis no centro de São Paulo. Além de oferecer benefícios como a isenção de IPTU por 10 anos, a Prefeitura permitiu a inclusão de projetos no mecanismo de Operação Interligada, com a

184


venda de potencial construtivo, em troca de uma contrapartida financeira paga ao município. Entre as várias propostas (ou intenções) da Prefeitura, estava a de aumentar a população fixa do região (de algo em torno de 80 mil habitantes à época, para 1 milhão de pessoas), a implantação de um mini anel viário na região (chamado de “coroa envoltória”), a introdução de uma linha circular de tróleibus e a permissão do acesso de carros particulares à região, com a construção de garagens em áreas públicas, implantando uma taxa para os usuários de automóveis no centro (FSP: 29.01.98: 3-8). Nenhuma destas propostas foi efetivada. Entre as muitas razões, contou-se a falta de apoio popular às medidas e a virtual paralisação de praticamente todas as obras de vulto devido à crise orçamentária municipal na gestão Pitta, ocasionada pelo excessivo endividamento da gestão anterior, como veremos adiante. Até agosto de 1998, um ano após sua criação, a Operação Urbana Centro ainda não havia atraído grandes investimentos. Apenas duas empresas haviam participado da operação até então: a Bolsa de Mercadorias e Futuros (BM&F), que reformou o prédio vizinho, que tinha sua fachada tombada, para ampliar a instituição e os Correios, que visavam ampliar a área de sua sede para criar um centro cultural (FSP: 02.08.98: 3-8), sem que o projeto tenha no entanto saído do papel. A Operação Urbana Água Branca, elaborada e aprovada pela CNLU ainda durante a Administração Luiza Erundina sofreu apenas algumas modificações com a Lei n.º 11.774, de 18.05.1995 (administração Maluf). Nessa operação, aparecem os mesmos quatro mecanismos da Operação Urbana Anhangabaú, visando a otimização da utilização da infra-estrutura da região da Barra Funda. A região caracteriza-se pela existência de muitas áreas ociosas, especialmente aquelas pertencentes à

rede

ferroviária. Segundo a EMURB, a Água Branca é uma das regiões da cidade com a maior quantidade de áreas livres: 500 mil m². Numa comparação com o pólo comercial da avenida Engenheiro Luís Carlos Berrini, a Água Branca teria a vantagem de ser mais próxima do centro e ser atendida pelo metrô. A região apresenta entretanto grandes problemas de drenagem. As obras previstas consistem na implantação de um sistema de drenagem eficiente e em algumas ligações viárias importantes para a estruturação do sistema de circulação, já que a Marginal Tietê e avenida Francisco Matarazzo encontravam sobrecarregadas. Seu custo foi estimado em R$ 142 milhões, a serem obtidos com a venda de um potencial construtivo de 1,2 milhão m².

185


Foto 5-4: Edifícios Comerciais construídos no perímetro da Operação Urbana Água Branca. Fonte: EMURB.

A Operação prevê ainda outros mecanismos, como o reparcelamento do solo, a regularização de construções e a cessão onerosa do espaço público aéreo e subterrâneo para facilitar a transposição da via férrea que secciona a área. Essa Operação Urbana é gerenciada por uma comissão intersecretarial sob coordenação da EMURB, e já teve apenas duas propostas analisadas e aprovadas pela CNLU (Comissão Normativa de Legislação Urbanística) até 2001. A maior proposta apresentada refere-se à área de mais de 70.000 m² nos terrenos da antiga Indústria Matarazzo entre a ferrovia e a Av. Francisco Matarazzo. O valor da contrapartida aprovada foi de R$ 18,5 milhões, pagos em obras públicas que seriam executadas pelo proponente vencedor. Em outubro de 2000, a inauguração de dois prédios comerciais (parte de um complexo empresarial de 14 torres) representava os primeiros resultados da nova

186


operação. O então coordenador de operações da EMURB, Vladir Bertalini, apontava para o fato que “pela primeira vez a iniciativa privada aponta uma outra direção da cidade fora do circuito Faria Lima-Berrini” (FSP: 30.10.2000: C-3). O “Centro Empresarial Água Branca”, administrado pela Ricci Engenharia, contaria ainda, num prazo estimado em 5 anos, com uma avenida, uma praça e dois centros culturais, atraindo cerca de 35 mil pessoas diariamente. A contrapartida da Ricci são obras de drenagem e a extensão da avenida Auro de Moura Andrade até a avenida Santa Marina. As obras custaram R$ 20 milhões e o centro comercial tinha orçamento de R$ 600 milhões. A Operação Urbana Água Espraiada (ou Águas Espraiadas139, projeto de Lei n.º 296/91), proporcionava uma série de melhorias através de obras de drenagem e canalização do córrego Água Espraiada e a construção de uma nova avenida que reformularia o desenho urbano ao longo do córrego, reorganizando a região. Segundo Fix (2001), no início dos anos 70, inúmeros imóveis teriam sido desapropriados na região do córrego das Águas Espraiadas para a construção do que seria um mini anel viário. Graças à modificação no traçado do projeto e seu posterior abandono, inúmeros imóveis vazios teriam sido invadidos e núcleos de habitações subnormais teriam surgido ao longo do córrego, formando uma extensa favela linear, que em 1995 contaria aproximadamente com 50 mil habitantes (Fix, 2001: 37). A Operação Urbana pretendia realocar as famílias faveladas e encortiçadas das áreas lindeiras ao córrego para outros locais dentro do perímetro da operação, porém Fix (2001) constatou que, na prática, a PMSP oferecia as seguintes opções às famílias cadastradas antes de sua remoção e imediata demolição de seus barracos: -

a compra de uma moradia financiada e construída pela Prefeitura, em área distante da região140

-

ressarcimento em dinheiro (Aproximadamente US$ 15 mil. Os valores seriam negociados. Fix verificou que as famílias que contavam com a advogados conseguiram valores consideravelmente mais altos) ou

-

passagem de volta à “terra natal” (Fix, 2001: 38) .

139

Foram encontradas as duas grafias em documentos oficiais.

140

Cidade Tiradentes, Zona Leste, a 50 km da área de intervenção (Fix, 2001: 38).

187


Planta 5-5: Projeto EMURB Operação Urbana Águas Espraiadas. Perímetro e localização das favelas. Fonte: FIX (2001): 86

A área total da Operação prevista era de 1.340 ha numa faixa de 2 km por 8 km ao longo do córrego. A área construída era de 6.000.000 m², sendo a área comercializável prevista 3.200.000 m² e a área edificável prevista 12.000.000 de m². O custo original da obra estava avaliado em US$ 370 milhões distribuídos em 21% para o sistema viário, 4% para o saneamento, 30% para obras de drenagem, 11% para desapropriações, 33% para HIS e 1% em reurbanização (Documento “Participação da iniciativa privada na construção da cidade”, DOM, 24.12.92 ). Embora ao projeto de Lei nunca tenha sido efetivamente aprovado na Câmara de São Paulo, a construção da avenida contou com mecanismos previstos na Lei de Operações Urbanas contidos na Lei Orgânica do Município de São Paulo, de 1990, artigo 152, que dizia o que o Município poderia, “na forma da Lei, obter recursos junto à iniciativa privada para a construção de obras e equipamentos, através de Operações Urbanas”. Um grupo de empresários havia se reunido para apoiar a remoção completa da favela Jardim Edith (um dos núcleos da favela linear), que ocupava terreno vizinho a alguns dos empreendimentos mais arrojados do chamado “eixo corporativo” Faria Lima/ Berrini/ Nações Unidas: o centro empresarial Nações Unidas e o então recéminaugurado World Trade Center, parte da rede mundial de empreendimentos com a

188


marca WTC e que contava ainda com empreendimento hoteleiro associado (Meliá) e um centro de compras de alto-padrão dedicado ao design e à decoração (o Shopping D&D), encravados entre a Avenida Nações Unidas (Marginal Pinheiros) e avenida Engenheiro Luiz Carlos Berrini. Foto 5-6: Região Avenida Nações Unidas com empreendimentos. Fonte: Bolsa de Imóveis do Estado de São Paulo.

Entre estes empresários, contavam-se os proprietários do Hotel Meliá e da Bolsa de Imóveis do Estado de São Paulo, dentre um grupo de 60 doadores “potenciais”, cuja cota de participação financeira no grupo de apoio à Operação Urbana Águas Espraiadas seria determinada pela consultoria Arthur Andersen, baseada num estudo para a quantificação do benefício individual que a remoção da favela traria a cada um dos investidores (Veja São Paulo, 05.07.95). O grupo de empresários havia comprado um terreno no Jardim Educandário, próximo à divisa de Taboão da Serra (a cerca de 15 km da área de intervenção), que seria destinado aos moradores do Jardim Edith (12 mil pessoas). Fix (2001) salienta que o terreno não seria extenso o suficiente para abrigar a população deslocada. Porém, para os moradores dos demais núcleos de Águas Espraiadas (aproximadamente 38 mil pessoas), a PMSP havia oferecido apenas

189


638 moradias a 50 km da área de intervenção, o que fazia dos moradores do Jardim Edith verdadeiros privilegiados (Fix, 2001: 40). As condições em que foram removidos 50 mil moradores dos vários núcleos de moradia sub-normal da área de intervenção da Operação Urbana Águas Espraiadas, narradas por Fix (2001), denotam uma total coesão de interesses entre o poder público e o empresariado interessado na área, para quem a favela não era mais que um “cancro na cidade”141, que atrapalhava a valorização do eixo corporativo e desvalorizava seus empreendimentos. Segundo Fix (2001), os métodos utilizados para a remoção dos moradores pela PMSP em “parceria” com agentes da iniciativa privada denotam até que ponto a administração pública pode se utilizar de um mecanismo urbanístico para a consecução de objetivos privados. Esses métodos incluíram pressão psicológica, violência, coação, pagamentos acima ou abaixo dos valores anunciados publicamente, entre outras estratégias. Havia uma confusão permanente entre os agentes responsáveis pela remoção (ou expulsão) das populações, sendo que agentes públicos (oficiais, assistentes sociais e outros funcionários da Prefeitura etc.), cediam constantemente lugar a agentes a serviço da iniciativa privada, muitas vezes não identificados como tais. Essas estratégias resultaram na transferência de uma imensa população para áreas remotas do município, incluindo áreas de mananciais, teoricamente protegidas contra a ocupação por Lei (ver Fix, 2001). A Operação Urbana Águas Espraiadas tem especial interesse, pois integra um conjunto de ações coordenadas levadas a cabo durante a administração Maluf para a consolidação do um novo “eixo corporativo” (conhecido também na imprensa como a “Nova Cidade”), região da metrópole que concentra os investimentos em infra-estrutura física que permitiram a consolidação de São Paulo como cidade mundial. As características desse “eixo corporativo” serão estudadas em ítem posterior.

141

Na opinião de Gilberto Bohemy, então presidente do WTC, Veja São Paulo: 05.07.95.

190


5.4- A Operação Urbana Faria Lima: gênese e primórdios da Operação Durante a administração Jânio da Silva Quadros frente à Prefeitura de São Paulo (1986 a 1988), o arquiteto Júlio Neves já havia idealizado um projeto de ligação entre a avenida Faria Lima e a avenida Engenheiro Luís Carlos Berrini, no Brooklin. Esta já então se consolidava como novo núcleo corporativo na zona Sul. O projeto de Neves seria o chamado “Bulevar Sul”, um eixo viário que abrigaria negócios e empreendimentos imobiliários de alto nível. Já nessa época, o número de desapropriações na Vila Olímpia colocava em cheque a realização da obra, causando grande comoção na imprensa. Os moradores do então pacato bairro paulistano eram em sua maioria contrários à avenida, que descaracterizaria totalmente a região. O governo de Quadros investiu US$ 38,6 milhões no projeto de prolongamento e ampliação da Avenida Juscelino Kubitschek, privilegiando a ligação da região do Morumbi com o restante da cidade e prevendo a construção do Bulevar Sul, obras que foram paralisadas pela administração de Luíza Erundina (1989 a 1992). Erundina considerou o projeto do Bulevar Sul como não prioritário. Em 1991, a gestão Erundina considerou o prolongamento da Avenida Faria Lima até a rua Tabapuã, numa extensão de apenas 400 metros, a um custo total de US$ 10,7 milhões. O projeto, incluído dentro das propostas do Plano Diretor, era considerado “barato”, mas ainda não prioritário, e não havia previsão para sua realização142. Ao eleger-se, Paulo Maluf escolheu a Avenida Nova Faria Lima como prioridade absoluta de sua administração. A avenida foi anunciada como a grande obra de sua gestão frente à Prefeitura de São Paulo. Obra de grande impacto para a cidade, já que interviria numa de suas áreas mais valorizadas, seria como um “cartão postal” ou uma “vitrine” daquela administração (além de alavancar, como se veria, a candidatura do economista Celso Roberto Pitta como seu sucessor frente à administração 142

Para aquela administração, as prioridades seriam a duplicação da Ponte Eusébio Matoso e a

canalização do córrego Águas Espraiadas, com a construção de uma avenida (o que seria finalmente concretizado durante a administração de Paulo Maluf). A duplicação da ponte já estaria licitada desde a gestão Jânio Quadros. Era considerada emergencial para o trânsito da região Sudoeste. Foi concluída com a construção da Ponte Bernardo Goldfaber.

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municipal). Outros argumentos utilizados para justificar o projeto incluíam sua vinculação à adequação da área à futura 4ª linha do metropolitano, a construção de uma estação intermodal no Largo da Batata e a transferência do tráfego de automóveis de passeio da Marginal Pinheiros para o interior da trama urbana, entre outros fatores143. Mais tarde, o arquiteto Paulo Bastos consideraria a justificativa oficial totalmente improcedente, já que estudos mostravam que o trânsito não vinha se deslocando para a Faria Lima, que permanecia ociosa (Seminário Pinheiros e a Qualidade de Vida, 1996). Entretanto, o então presidente da CET, Gilberto Lehfeld, considerava a Avenida uma alternativa de ligação entre zonas oeste e sul, já que a nova via, em conjunto com a malha viária pré-existente, significaria 13 km de vias paralelas à Marginal. Segundo pesquisas da CET, os motoristas utilizam a Marginal para viagens de, em média, 6 km de extensão. Os que a utilizam para viagens curtas estariam tirando “espaço” daqueles que a utilizam para viagens mais longas. A Consultoria de Imóveis Richard Ellis, considerava que a Faria Lima estaria sujeita a uma grande concorrência imobiliária, mas considerava que o impacto nas suas duas “pontas” seria bastante diverso, já que o zoneamento na região da avenida Pedroso de Moraes continuaria bastante restritivo. Mudanças, em menor escala, poderiam ocorrer nas ruas Butantã e outras de grande tradição comercial. As grandes mudanças, do ponto de vista imobiliário, ocorreriam no extremo oposto da nova Avenida, do lado da Vila Olímpia, em direção à Avenida Engenheiro Luís Carlos Berrini, como de fato se verificou. Em janeiro de 1993, pouco após sua posse, o prefeito Paulo Maluf anunciou oficialmente sua intenção de retomar o projeto de prolongar a Avenida Faria Lima até a avenida Engenherio Luiz Carlos Berrini, em uma ponta, e até a Avenida Pedroso de Moraes, de outra, ressuscitando o projeto do Bulevar Sul, de Júlio Neves, amigo pessoal do prefeito. “O tráfego na região está saturado. Se não houver novos meios e escoamentos, a tendência é que o trânsito na área fique impraticável”, justificava Neves mais uma vez (Exame: 04.08.93). A perspectiva do prolongamento da avenida gerou movimentos especulativos desde o seu anúncio, gerando grande expectativa entre os investidores e incorporadoras. “O mercado imobiliário em São Paulo deve considerar nos próximos quatro anos uma 143

Ver, entre outros, “Faria Lima deve desafogar Marginal”, FSP: 23.10.95: A-1.

192


nova variável no cálculo de valorização e desvalorização: se a Prefeitura cumprir as promessas feitas no início da nova administração, haverá pelo menos sete grandes obras na cidade, que devem mexer com o valor dos imóveis” (FSP: 17.01.93, p.8-1). Segundo Cândido Malta (FSP: 02.06.94: 2-2), “ao propor tal Operação Urbana o arquiteto Júlio Neves, através de empresas de consultoria imobiliária de grande experiência, estimou o retorno a ser obtido na forma de recursos públicos, na venda de potencial construtivo, na ordem de US$ 200 milhões, se bem que a médio prazo”. A folga de recursos advinda da diferença entre previsão de gastos e capital gerado pela operação144 poderiam ser utilizados, segundo Neves, na abertura de outras vias para a própria classe média que “daria origem aos recursos”, ou como “ressarcimento dos investimentos públicos historicamente beneficiadores das [classes] mais ricas” (FSP: 02.06.94: 2-2). O prolongamento da Avenida Faria Lima defendido pela administração Paulo Maluf era muito mais extenso que o projeto original, de 1968 (Lei n.º 7.104/ 1968), quando era prefeito indicado pelo governador do Estado o Brigadeiro José Vicente de Faria Lima (1965 a 1968). No projeto de 1968 previa-se somente a ligação entre a Faria Lima e a avenida dos Bandeirantes, pois ainda não existia a valorizada avenida Engenheiro Luiz Carlos Berrini.

144

Diferença avaliada em aproximadamente US$ 50 milhões (FSP: 02.06.94: 2-2).

193


Mapa 5-7: Projeto Faria Lima 1968. Fonte: Proj 004 Secretaria de InfraEstrutura Urbana. Mapa autor.

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Diante da estimativa de que um grande número de imóveis deveria ser desapropriado (300, somente na Vila Olímpia), os moradores das áreas afetadas fundaram as associações Vila Olímpia Viva e Pinheiros Vivo, com o objetivo de barrar o projeto na Câmara Municipal. Teve início um grande celeuma que envolveu estas e outras entidades civis e ONGs (o Movimento Defenda São Paulo, o Greenpeace, a OAB, o IAB, entre outras), urbanistas, empresários e membros do governo, repercutindo de forma estrondosa na imprensa, o que dificultou a provação da Lei que regulamentaria a Operação Urbana Faria Lima na Câmara. Entretanto, a Lei de 1968 foi evocada, dando respaldo legal para as primeiras ações de desapropriação da Prefeitura para o prolongamento da avenida. Identificou-se na apressada utilização da Lei de 1968 parte da estratégia da administração Paulo Maluf de acelerar os procedimentos e fazer da obra um “fato consumado”, tornado “inevitável” sua realização (OESP: 11.03.94: C-1). O ano de 1994 foi dominado por debates e negociações na Câmara dos Vereadores, que enfrentava uma certa “paralisia” com a resistência dos vereadores da oposição em aprovar qualquer projeto do executivo ou dos vereadores da situação, gerando acúmulo de projetos não-aprovados (FSP: 01.10.94: 3-3). Em meio aos debates e a resistência das associações de moradores dos bairros de Vila Olímpia, Alto de Pinheiros e Pinheiros, foi iniciada a construção da avenida naquele mesmo ano, tendo como pano de fundo a política de “fato-consumado”, que terminaria por forçar a aprovação do projeto na Câmara Municipal, como veremos. Em março, o prefeito Paulo Maluf declarou de utilidade pública uma área de 43.380 m² no bairro do Itaim Bibi (decreto n.º 34.001), amparando-se na Lei 7.104/68, que havia criado o traçado original da avenida. O Departamento de Desapropriações da Prefeitura declarava que 167 imóveis deveriam ser desapropriados naquela região, juntamente com outros 105 imóveis no bairro de Pinheiros, objeto de um decreto baixado ainda em janeiro daquele ano. Entretanto, o decreto não relacionava a área específica nem as casas a serem desapropriadas. A medida permitia à Prefeitura entrar nos imóveis para avaliá-los com o objetivo de propor um valor para a indenização. O Ministério Público impetrou um pedido de liminar que solicitava a suspensão imediata de todos os atos relacionados com a obra de extensão da avenida Faria Lima, incluindo as medidas que estavam em andamento para a desapropriação dos imóveis. O pedido de liminar integrava uma ação cautelar encaminhada pelos

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promotores Fernando Capez, da Promotoria de Justiça da Cidadania, e Motauri Ciochetti de Souza, da Promotoria de Justiça do Meio Ambiente. Eles haviam fundamentado a ação no fato de o Eia/Rima da Operação Urbana Faria Lima não ter sido submetido ao Consema (Conselho Estadual do Meio Ambiente), mas teria sido encaminhado “de forma surpreendente” à apreciação do recém criado Conselho Municipal do Meio Ambiente. Os promotores sustentavam que o órgão competente era o Consema, de acordo com o artigo 225 da Constituição, e que aquele órgão teria chamado apreciação do Eia/Rima para o âmbito estadual por considerar que a operação Faria Lima afetava a Casa Bandeirista do Itaim e o Parque do Povo, imóveis que estavam sob a proteção do Condephaat, além de interferir no sistema viário metropolitano (FSP: 23.03.94: 3-2). Entretanto, a competência municipal nos atos de defesa do meio ambiente estava assegurada desde 81 (Lei Federal 6.938/81), e havia sido reforçada pela Constituição Federal de 88. Dentro desta ótica, haviam sido criadas em 18 de outubro de 1993 (Lei Municipal 11.426) a Secretaria do Verde e do Meio Ambiente (SVMA) e o Cades, institucionalizando a ação de defesa e gestão ambiental em São Paulo. A análise do Eia/Rima (Estudo de Impacto Ambiental/Relatório de Impacto de Meio Ambiente) da Operação Urbana Faria Lima foi um dos primeiros atos do novo órgão municipal, ocasionando o primeiro licenciamento ambiental em um empreendimento de vulto pela nova secretaria. Isso teria ocorrido após ampla discussão do estudo em uma audiência pública, por um corpo de especialistas independentes, no Cades e na Assessoria Técnica da Secretaria Municipal do Verde e do Meio Ambiente. No mesmo mês, a administração Maluf depositou em juízo as quantias para a desapropriação de 41 imóveis em Pinheiros, sem esperar que a pendência sobre o EIA/RIMA fosse solucionada. O depósito em juízo, em Varas da Fazenda Pública, tinha caráter prévio e baseava-se nos valores venais dos imóveis, calculado acordo com o IPTU e defasados com relação aos preços de mercado. Os processos de desapropriação seguiriam com a designação pela Justiça de um perito que faria a avaliação provisória do valor do imóvel. Caso esse fosse maior do que o valor depositado, a Prefeitura deveria pagar o restante. Com a imissão de posse, a Prefeitura poderia dispor do imóvel e o proprietário poderia movimentar até 80% do valor depositado, sendo que o restante seria corrigido e poderia ser retirado ao final do processo. Após a avaliação provisória, as partes poderiam questionar o valor apontado pelo perito através de estudos realizados

196


por assistentes técnicos. O juiz analisaria os recursos e determinaria o valor definitivo. Os moradores teriam direito a juros compensatórios de 12% ao ano por terem saído dos imóveis antes do fim da ação e a uma indenização além do valor do imóvel. Haveria também honorários (pagamento a advogados) de 7% sobre a diferença entre o valor arbitrado na imissão na posse e o valor final do imóvel. Em abril de 94, o juiz José Roberto Peiretti de Godoy, apreciando a petição apresentada, bem como a resposta da Prefeitura, não concedeu a liminar solicitada e julgou extinto o processo, deixando o caminho livre para o início das obras. O então secretário de Vias Públicas, Reynaldo de Barros, justificava as primeiras desapropriações dizendo que se baseavam na Lei de 1968, onde constava o traçado original da avenida. Segundo Barros, caso a Operação Urbana Faria Lima não fosse aprovada, a extensão da avenida nos bairros de Pinheiros e Itaim sairia “de qualquer jeito” (FSP:16.03.1994: 3-8). Assim, a política da administração municipal na ocasião consistiu na remoção dos moradores menos recalcitrantes das áreas definidas pela Lei de 1968 (Lei 7.104/68), com base em decisões da Justiça (que na prática seriam irreversíveis) e na imediata demolição dos imóveis antes ocupados por esses moradores145. O executivo assumia os custos iniciais da obra, contando com sua irreversibilidade. Tal política contou com a forte oposição de vários setores da sociedade. Na Câmara, as bancadas oposicionistas (PT e PSDB), entendiam que a desapropriação só seriam legais após a aprovação da Operação Urbana, o que só viria a ocorrer muito mais tarde. O então presidente do Sindicato dos Arquitetos, Ives de Freitas, classificou de “estelionato público” o fato de a Prefeitura “preparar seus tratores enquanto há discussão no âmbito da Câmara” (FSP: 16.03.94: 3-8). Marcos Cintra, então professor da Fundação Getúlio Vargas e vereador paulistano (PL), no importante artigo “A Avenida da Modernidade” (JT: 15.06.94:2) combatia as críticas ao prolongamento da Faria Lima, que atribuía aos “interesses grupais”. Segundo o vereador, os critérios técnicos seriam evidentes em demonstrar a necessidade da nova avenida, vinculando sua construção à adequação da área à futura 4ª

145

Tal “estratégia” teria também sido usada na remoção das favelas ao longo do córrego das

Águas Espraiadas, conforme documentado por Fix (2001).

197


linha do metropolitano. “Trata-se de permitir a construção de uma grande estação intermodal na área de influência da Faria Lima e melhores condições de transbordo de ônibus na região congestionada do Largo da Batata, em Pinheiros”. O vereador indicava que os custos da obra seriam “totalmente” bancados pela iniciativa privada, “desde que a Câmara Municipal aprove a emissão e a venda dos CEPACs”. Respondendo às numerosas críticas quando à prioridade dos investimentos na administração malufista, Cintra afirmava que o simples ordenamento de prioridades não implicaria alocar os recursos disponíveis integralmente ao primeiro colocado. “Em realidade, recursos escassos devem ser distribuídos entre as várias prioridades, de forma que o último cruzeiro alocado em cada uma delas seja igual para todas as atividades públicas”. O então vereador Marcos Cintra já havia defendido o projeto em artigo jornalístico, afirmando que, para além de toda a pressão oposicionista, a obra seria “fundamental para a modernização da cidade”. “E mais, se aprovada a Operação Urbana em torno da Avenida Faria Lima, São Paulo estará dando um exemplo internacional de modernidade urbanística” (FT: 12.02.94: 2). Reynaldo de Barros, engenheiro, ex-prefeito de São Paulo (1979-1982), então secretário municipal do Desenvolvimento Urbano e presidente da EMURB, escreve, em abril de 1994, o artigo “Karlmarxstrasse” (FSP: 20.04.94:1-3). Nesse texto, Barros dava conta da “enxurrada” de representações, ações populares, ações cautelares e de inconstitucionalidade, protestos e passeatas patrocinados ou com o apoio da OAB, CUT, Greenpeace, PC do B e PT contra o projeto da administração municipal. Passando por cima da representatividade destas instituições, afirmava que “poucas vezes na história de São Paulo uma questão urbana foi tão ideologizada e mistificada” (FSP: 20.04.94:13). Barros considerava “elitistas” os argumentos de que a obra seria cara, anti-ecológica, não-prioritária e “perturbadora da paz da pacata Vila Olímpia”, atribuindo à dinâmica econômica da cidade, e não à ação do prefeito, a determinação das mudanças nos bairros residenciais da cidade, dando um caráter quase isento à ação política. A necessidade de racionalizar o desenvolvimento, cuja dinâmica seria “caótica em si mesma”, teria levado ao projeto Faria Lima. Sob esta ótica, a pressão imobiliária seria a responsável pela verticalização no Itaim e Vila Olímpia, aparentemente inelutável e, segundo Barros, condicionada a um só fator: “dinheiro”. “(...) porque o compromisso desta administração não é com ideologias, e sim com o povo, com o desenvolvimento e com o futuro de nossa cidade” dizia Barros (FSP: 20.04.94: 1-3). Barros classifica assim

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a avenida como obra prioritária, pois geraria “20 mil empregos” e “beneficiaria 2 milhões de usuários de ônibus no eixo do CEAGESP (zona oeste) até a avenida dos Bandeirantes (zona sul)”, eliminando a poluição sonora e atmosférica que os congestionamentos causariam. Em defesa da operação, o então diretor da EMURB para Operações Urbanas, José de Assis Lefèvre, lembrava que a obra teria sido proposta por Luíza Erundina, em seu mandato, com o apoio de Paul Singer, então secretário municipal do Planejamento. Lefèvre alegava ainda que os custos seriam zerados através do mecanismo do CEPAC. Miguel Colasuonno, economista, ex-prefeito de São Paulo e então presidente da Câmara de vereadores, escreve o artigo “A verdade sobre o projeto da nova Av. Faria Lima” (OESP: 06.07.94: C-4), onde identificava a “confusão” entre “técnica, política e ideologia”, em detrimento das “evidentes vantagens econômicas” da Operação Urbana. “Afinal, uma questão técnica precisa de uma solução técnica. Parece-me muito simples, nítido, transparente. Depende do bom senso, equilíbrio, isenção político-partidária, boafé e amor à cidade” (...) “E o curioso é que, nesta confusão de valores, até a mídia é levada em sua boa fé e, conseqüentemente a opinião pública” (OESP: 06.07.94: C-4). Em direção contrária, o então deputado estadual pelo PMDB, João Oswaldo Leiva, no artigo “O Falso Dilema” (FSP: 23.06.94: 3-2), argumentava que a discussão que então se travava em torno da prioridade do prolongamento da Avenida Faria Lima se constituiria num “falso dilema”: o prolongamento, visto como a “única” opção face a um trânsito de automóveis cada vez mais caótico, esconderia um problema mais amplo, ligado à falta de um planejamento global da cidade e a investimentos na área do transporte público. “Se desde a gestão Reynaldo de Barros a cidade tivesse ao menos um esboço de Plano Diretor, hoje a questão da Faria Lima seria discutida dentro de um quadro racional e mais amplo de desenvolvimento” (FSP: 23.06.94: 3-2). Leiva apontava um outro caminho na distribuição de benefícios e ônus de obras públicas: “Com planejamento antecipado, analisamos alternativas e definimos prioridades. Antecipando decisões todos lucram. O dono do imóvel evita construir num local que será desapropriado e mesmo fazer reformas dispendiosas. A Prefeitura prepara processos desapropriatórios sem malabarismos, com tempo para buscar acordos que não prejudiquem os expropriados e as batalhas judiciárias são evitadas” (FSP: 23.06.94: 32). Leiva adiantava-se assim ao debate que envolveria a condução de uma Operação

199


Urbana de grande porte fora do contexto de um Plano Diretor, o que permitiria um planejamento global da cidade. Siegbert Zanettini, arquiteto e urbanista, professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo e então presidente da Associação Vila Olímpia Viva escreve o artigo “Porque somos contra o projeto Faria Lima” (FSP: 20.02.94: 10-2), onde defendia que o projeto de extensão da avenida consolidava a “anacrônica visão urbanística da cidade como empreendimento”. Para Zanettini, o projeto, embora se colocasse como um programa de melhorias e como continuidade viária, na realidade abrangeria cerce de 4,5 milhões de m², numa extensão de área que iria do Alto de Pinheiros ao Brooklin e do rio Pinheiros até o contorno da av. Faria Lima e circunvizinhanças da Av. Santo Amaro e Av. Hélio Pellegrino. “Portanto”, argumentava Zanettini, “este projeto com tal magnitude e dimensões está sendo proposto sem se integrar a qualquer projeto urbano maior que estude as consequências e os impactos em toda a região sudoeste da cidade” (FSP: 20.02.94: 10-2). Para Zanettini, o projeto de extensão da avenida como proposta isolada, sem nenhum diagnóstico ou análise que o “defendessem na questão do meio ambiente da cidade e da metrópole”, sem nenhuma menção que “colocasse a cidade como um projeto cultural”, se restringiria a consolidar a “anacrônica visão urbanística da cidade como empreendimento, reduzindo-a a condição de cidade-negócio, como qualquer mercadoria que se vende e se compra, e como qualquer aplicação que deve resultar em um retorno satisfatório”. Zanettini insistia na premência de outros problemas da metrópole, clamava por uma descentralização dos investimentos e lembrava que, apesar da carência habitacional e “ironicamente”, o projeto de prolongamento da Faria Lima expulsaria “milhares” de moradores de quatro bairros consolidados146. Um dos pontos altos da “contra-reação” aos protestos gerados pelo anúncio do prolongamento da Avenida Faria Lima foi a publicação, em março de 1994, do Manifesto “Em defesa de São Paulo”, onde personalidades políticas e intelectuais atacavam as ações que visavam a “obstruir a qualquer preço, inclusive com ações violentas (...), as atividades administrativas regulares” e a articulação de “ações e projetos inovadores” (OESP: 25.03.94: A-1). Os signatários do manifesto apoiavam os projetos de “racionalização” e “modernização” que o então prefeito vinha prosseguindo 146

Ver íntegra do texto em “Apêndices”

200


ou iniciando, apelando para a população, “sem prejuízo do saudável pluralismo de suas opções políticas e eleitorais”, para que rejeitasse “ações de confrontação radical e irracional”147. A vinculação do prolongamento da avenida “Nova Faria Lima” (o nome “Bulevar Sul” já havia sido abandonado) às Operações Urbanas teria tido início quando da inclusão do projeto de prolongamento incluído no Plano Diretor de Erundina, porém a utilização do mecanismo da Operação Urbana para justificar a intervenção parece ser obra do então vereador e líder do governo na Câmara, Marcos Cintra, que também já havia sido secretário municipal do Planejamento. Cintra parece ter sido o mentor intelectual da estreita vinculação da nova avenida com os mecanismos da Operação Urbana e depois o CEPAC, conforme demonstram seus inúmeros artigos publicados na imprensa148. Os repórteres Victor Agostinho e Luís Henrique Amaral (FSP: 22.05.94, Especial-1), destacaram o que, de acordo com entrevistas com vários agentes públicos e privados, além de membros da sociedade civil, consideravam “pontos positivos” e “negativos” da Avenida. Os pontos “positivos” seriam: -

Desafogamento do trânsito, principal argumento das autoridades para a

realização da obra. -

Promoção de ‘integração’ viária paralela com a ferrovia e com as futuras

linhas do metrô.

147

O Manifesto foi assinado por: Abreu Sodré, ex-governador e chanceler, Abram Szajman,

então presidente da FCESP, Luís Antônio de Medeiros, sindicalista, Miguel Colasuonno, Lincoln da Cunha Pereira, presidente da Associação Comercial de São Paulo, Marcos Arbaitman, presidente da Associação hebraica, Ricardo Yazbek, presidente do Secovi, Falcão Bauer, presidente do IFBQ, José Roberto Bernasconi, presidente da Unicon, Antônio Soares Amora, presidente da Academia Paulista de Letras, João Scatimburgo, da Academia Brasileira de Letras, Manoel Pires da Costa, presidente da BM&T, Fábio Magalhães, diretor do MASP, Mauro Sales, publicitário, Roberto Dualibi, publicitário, Alfredo Mário Savelli, presidente do Instituto de Engenharia, Enílson Simes, sindicalista, Paulo Queiroz, presidente do Sindicato dos Bancos, Edison Musa, presidente da associação Brasileira de Escritórios de Arquitetura, João Batista Gatti, presidente da Abecip e Luiz Eduardo Pinto Lima, vice-presidente do Unibanco. 148

“Os bônus da avenida Faria Lima” (FSP:04.06.93: 2-2), “Os Cepacs da avenida Faria Lima”

(JT:12.02.94: 2), “A avenida da modernidade” (JT:15.06.94: 2), entre outros.

201


-

Reordenação da ocupação do solo, criando um centro de comercial e de

serviços, uma opção à Avenida Paulista. -

Valorização dos imóveis.

-

Inauguração do mecanismo de Operação Urbana.

-

A obra teria custo zero, com o mecanismo do CEPAC.

-

Verticalização de um bairro já dotado de infra-estrutura. Os pontos negativos seriam:

-

A médio prazo, o trânsito na região voltaria a ficar congestionado, pois

haveria maior adensamento. -

Diversas transversais saturadas, como a rua dos Pinheiros e a rua Teodoro

Sampaio, ‘segurariam’ o tráfego da avenida. -

A nova avenida descaracterizaria três bairros (V. Olímpia, Pinheiros e

Itaim), “consolidados e com boa qualidade de vida”. -

A avenida induziria o tráfego, propiciando a maior utilização do transporte

particular. -

As desapropriações seriam muitas e dispendiosas.

-

O sistema de captação de recursos da Prefeitura nunca havia sido testado, e

poderia deixar o município com uma dívida avaliada em US$ 150 milhões. Nesta mesma ocasião, diversas personalidades do mundo acadêmico e político manifestaram suas opiniões sobre a questão, conforme quadro anexo [Ver apêndice. Quadro: “As diferentes opiniões sobre o projeto de prolongamento da Avenida Faria Lima”]. O urbanista Cândido Malta Campos Filho, destacado defensor do mecanismo da Operação Urbana149, escreveria em 1994 o artigo “Faria Lima e o desenvolvimento humanizado” (FSP: 02.06.94: 2-2), em que analisava o mecanismo. Malta defendia que o mecanismo da Operação Urbana reduziria enormemente a especulação imobiliária concentradora de renda, pois reverteria em benefício público o 149

Malta era então vice-presidente do Movimento Defenda São Paulo, membro da Comissão

Justiça e Paz e professor da FAUUSP. Anteriormente, tinha sido secretário do Planejamento do município de São Paulo (1976-81).

202


que antes seria benefício privado. “A classe média, representada pelos proprietários das áreas atingidas (que deixam de ganhar especulativamente todo o montante a que usualmente tem tido acesso), os empreendedores imobiliários (que por isso tenham lucros menores que os usuais) e os compradores finais dos produtos imobiliários (que não receberão mais os subsídios embutidos no não pagamento dos custos infraestruturais urbanos dos edifícios, hoje pagos pelo povo em seu conjunto), dividirão entre si este ônus”. Ainda segundo Malta, o “povo em geral” se veria livre do ônus de pagar por avenidas que interessam mais à classe média, pois estariam nos arredores destas avenidas as melhores chances de sucesso do mecanismo da Operação Urbana (FSP: 02.06.94: 2-2)150. Em suma, Malta advogava uma “conciliação possível” entre o projeto de intervenção da Prefeitura e os interesses dos moradores da área atingida. Malta, influente junto aos movimentos, ajudou a disseminar entre eles a idéia de que era possível e desejável que se apresentasse uma contraproposta ao projeto da Prefeitura, elaborada pelo próprio urbanista Figura 5-8: Projeto alternativo do urbanista Cândido Malta Campos Filhos para a região da Operação Urbana Faria Lima. Fonte: arquivos pessoais do urbanista.

150

Ver íntegra do texto em “apêndices”.

203


Para Fix (1999), a elaboração de um plano alternativo e a possibilidade de conciliação de interesses aberta por ele foram fatores decisivos para que houvesse uma desmobilização do movimento de moradores na Vila Olímpia. No entanto, o plano alternativo desenvolvido pelo urbanista juntamente com os moradores foi severamente criticado pela Prefeitura. Finalmente, com um acordo que incluía algumas modificações no traçado e poupava 59 imóveis na Vila Olímpia, além de uma mudança no zoneamento que supostamente preservaria uma parte do bairro, a Prefeitura conseguiu aprovar em março de 1995 o projeto na Câmara por unanimidade (55 votos à 0, incluindo os da oposição). A Lei de 1968 que havia definido o traçado original da avenida Faria Lima foi então reformada, com a aprovação da Lei n.º 11.732 de 14.03.1995, com posterior detalhamento através do decreto n.º 35.051 de 11.04.1995. Definiam-se os mecanismos da Operação Urbana e instituía-se a figura do CEPAC (Certificados de Potencial Adicional

de

Construção),

estabelecendo

um

perímetro

de

intervenção

de

aproximadamente 450 hectares na região sudoeste do município. Os recursos obtidos com a venda do potencial construtivo (calculado em 2.250.000 m² de estoque de área construída adicional), deveriam ser utilizados, segundo a Lei, no perímetro da própria Operação Urbana. 10 % desse montante seria utilizado em habitação de interesse social. A justificativa técnica oficial era o prolongamento da Avenida Faria Lima, conectando-a de um lado às Avenidas Bandeirantes e Hélio Pellegrino, na Vila Olímpia (a ligação com a primeira não foi concretizada) e de outro lado com a Avenida Pedroso de Morais, no Alto de Pinheiros, visando a criação de uma via paralela à Marginal Pinheiros para o alívio do trânsito na malha viária da região Sudoeste. Os recursos captados através da outorga onerosa do direito de construir, através da venda dos CEPACs, serviriam para financiar as obras, em tese sem ônus para o município. A Lei fixou dois perímetros distintos dentro da Operação Urbana Faria Lima (ver planta 5-9).:

204


Planta 5-9: Operação Urbana Faria Lima. Limites de Áreas Diretamente Beneficiadas e Áreas Indiretamente Beneficiadas. Fonte: SEMPLA, 2000: 14-15

205


1. A Área Diretamente Beneficiada (ADB), lindeira aos prolongamentos da Avenida Faria Lima em direção às Avenida Pedroso de Moraes e Hélio Pellegrino e lindeira à um trecho da própria Avenida Hélio Pellegrino e à rua das Olimpíadas (Vila Funchal, por onde se faria a ligação até a Avenida dos Bandeirantes). A ADB era subdividida em 5 subperímetros: -Pinheiros (ADB 1), -Itaim (ADB 2), -Vila Olímpia (ADB 3), -Vila Funchal (ADB 4) e -Uberaba (ADB 5). Nesses subperímetros as contrapartidas pelo benefícios da Operação Urbana seriam “automáticas”, sendo previamente fixadas para todos os tipos de benefícios prováveis (potencial adicional de construção, mudança de uso etc.), elencados na Lei (ver Apêndice para elenco de solicitações previstas para cada subperímetro e seus condicionantes específicos). 2. A Área Indiretamente Beneficiada (AIB), uma vasta área ao longo das Avenidas Faria Lima e Marginal do Rio Pinheiros, entre as Avenidas Frederico Hermann Jr. (Alto de Pinheiros) e Avenida dos Bandeirantes (limite entre Vila Olímpia e Brooklin Paulista), onde estavam inseridas as ADBs. Era criada uma área de intervenção onde as propostas por parte dos investidores seriam analisadas caso a caso por uma comissão mista. Esta área de intervenção englobava áreas onde o impacto da nova configuração urbana criada pelo prolongamento se faria sentir com mais força e era limitada por bairros residenciais de alto poder aquisitivo (Jardim Europa, Alto de Pinheiros etc.), onde o zoneamento restritivo à construção em altura seria mantido (ver planta 5-9). De certa maneira, criou-se um cluster de desenvolvimento imobiliário limitado por zonas residenciais de alta qualidade urbanística e ambiental, que por sua vez

206


garantiriam a manutenção da valorização nesse cluster. Não se previu a excessiva concentração de investimentos e atividades em algumas áreas desse cluster, causando a congestão da infra-estrutura e deterioração ambiental, como demonstrado adiante. Segundo a SEMPLA (2000: 7), na prática seriam freqüentemente solicitados benefícios adicionais aos pré-elencados para aprovação automática nas ADBs, exigindo a avaliação caso a caso dos projetos, o que tornaria a análise técnica das propostas semelhante nas ADBs e AIB. A área da Operação Urbana Faria Lima descrita acima compreende ainda subperímetros onde os mecanismos da Operação não teriam efeito. Esses subperímetros incluem áreas onde os moradores rejeitaram com mais veemência as modificações no zoneamento decorrentes da Operação, além da área ocupada pelo Clube Pinheiros, áreas que não podem ser verticalizadas151. A Lei n.º 11.732/95 também incentivava o remembramento de lotes. A área remembrada que resultasse num lote de no mínimo 2,500m² receberia, gratuitamente, um adicional de área computável igual a 20% da área do lote. Além disso, em lotes superiores a 2.000m², seriam concedidos 20% de área computável gratuita, se a edificação possuísse no térreo, áreas de circulação e atividades de uso público. Para todos os casos, embora fossem previstas solicitações múltiplas que poderiam ser cumulativas, o limite máximo de coeficiente de aproveitamento era igual a 4 vezes a área do terreno. O total de potencial adicional de construção a ser concedido pela Operação Urbana não poderia ultrapassar 1 milhão e 250 mil m² na área diretamente beneficiada e 1 milhão de m² na área indiretamente beneficiada, totalizando 2,25 milhões de m² de “estoque” de área edificável. O programa de investimentos incluía, além de obras viárias, um novo terminal de ônibus no Largo da Batata e habitações de interesse social destinadas à população favelada existente no perímetro e no entorno da operação. O programa inicial incluía também a construção de habitações multi-familiares destinada à população residente em áreas desapropriadas e que quisessem continuar na região, além da aquisição de terrenos para implantação de praças e outros equipamentos institucionais necessários em decorrência do aumento populacional gerado pela operação. 151

Neste trabalho, essas áreas serão referidas como Áreas Não-Beneficiadas (ANB), descritas no

sub-ítem “Projetos aprovados na Operação Urbana Faria Lima e diagnóstico”.

207


5.4.1- Os CEPACs Os CEPACs foram instituídos na mesma Lei que estabeleceu a Operação Urbana Faria Lima (Lei n.° 11.732, de 14 de março de 1995, regulamentada pelo Decreto do Executivo n.º 35.373 de 9 de agosto de 1995). Constituem-se na sua principal diferenciação em relação às versões anteriores do mecanismo e acabou por determinar a própria operacionalização e encaminhamento institucional da operação. Na Lei que estabeleceu a Operação Urbana Faria Lima, a SEMPLA ficava autorizada a emitir “certificados referentes à outorga de potencial adicional de construção e da alteração de parâmetros de uso e ocupação do solo (art. 7º), denominados “CEPACs” (Certificado de Potencial Adicional de Construção), O então vereador Marcos Cintra (PL), idealizador do mecanismo, definia os CEPACs como direitos adicionais de construção autorizados de forma onerosa pela Prefeitura, dentro do perímetro de uma Operação Urbana e que permitiriam, na prática, a mudança do zoneamento para que se construísse para além do estabelecido anteriormente pelo zoneamento vigente na área. Isso se daria em troca de uma contrapartida financeira (“onerosa”) que seria revertida para a própria Operação Urbana. O que diferenciava os CEPACs, segundo seu próprio idealizador, seria sua “securitização”, termo que define a possibilidade de negociação com terceiros, “como se fossem títulos” (JT: 12.02.94: 2). Os CEPACs seriam convertidos, “na ocasião desejada por seu detentor”, em quantidade de m² de área de construção computável, estabelecida em função de sua aplicação em lote específico, contido no perímetro definido pela Lei da operação. A própria Lei estabelecia que a emissão dos CEPACs deveria ser efetuada até o “limite necessário” ao custeio de todas as despesas referentes à realização do programa de investimentos estabelecido para a região da operação, o que significava que sua emissão estava intrinsecamente ligada ao custeio das obras e das desapropriações necessárias ao projeto, mas não esclarecia se esse “limite necessário” significava um limite à emissão de CEPACs uma vez que o custo da operação tivesse sido coberto.

208


Os CEPACs, de acordo com o texto da Lei, poderiam ser negociados “livremente”, até que os direitos neles embutidos fossem efetivamente vinculados à construção de um projeto num lote específico, projeto que deveria antes ser aprovado pelos “órgãos competentes” da municipalidade. Estabelecia-se também que a EMURB só poderia comercializar os CEPACs “na medida do andamento da implantação do programa de investimentos” estabelecido para a operação. Isso é, vinculava-se originalmente a emissão de CEPACs e a sua venda à realização do programa de investimentos. A EMURB deveria publicar mensalmente um relatório do andamento das obras acompanhado de um balanço da emissão dos CEPACs, da utilização dos recursos e da utilização do potencial adicional de construção para o perímetro da operação. Esse potencial adicional de construção era estabelecido (e limitado) no próprio texto da Lei em 1.250.000 m² nas áreas diretamente beneficiadas (ADB) e 1.000.000 m² nas áreas indiretamente beneficiadas (AIB) (§ 1º e § 2º do art. 6º). Os direitos conferidos pelos CEPACs seriam irrevogáveis durante o período de vigência da Lei (20 anos, a partir se sua publicação, podendo ser revistos a partir do 10º ano) e, na eventualidade de que a legislação Federal ou estadual viesse a coibir o pleno gozo dos seus benefícios dentro do perímetro da Operação Urbana Faria Lima, poderiam ser utilizados para a consecução de projetos em outras Operações Urbanas ou ainda em Operações Interligadas (Lei n.º 10.209/09.12.86), mediante análise e aprovação da CNLU152. A possibilidade de “transferência” do potencial adicional de construção também seria contemplado no caso da paralisação das obras viárias pelas quais a Prefeitura se fazia responsável dentro do âmbito da operação. Sendo assim, esclarecia-se (ainda que implicitamente), que os direitos embutidos no CEPAC só poderiam ser utilizados dentro do perímetro da Operação Urbana, nas áreas direta e indiretamente beneficiadas, para o pagamento de contrapartida financeira em obras que excedessem o coeficiente de ocupação do terreno segundo o zoneamento previamente existente ou estabelecido pela Lei da Operação Urbana. Os CEPACs também serviriam para o pagamento das desapropriações decorrentes da operação, desde que os donos dos imóveis concordassem com isso. Os recursos gerados pela venda dos CEPACs (venda cuja operacionalização a Lei não estabelecia), teriam de ser aplicados “exclusivamente no pagamentos de 152

À época, as Operações Interligadas ainda não haviam sido declaradas inconstitucionais.

209


desapropriações, estudos, projetos, supervisão técnica, remuneração da EMURB e despesas do programa de investimentos”, bem como no reembolso dos custos com ações já ajuizadas pelo Executivo e referentes às desapropriações necessárias. A Lei definia que os recursos ficariam restritos a uma conta vinculada à Operação Urbana Faria Lima, sendo que enquanto não efetivamente utilizados, deveriam ser aplicados em operações financeiras, que teriam como objetivo o aumento das receitas a serem aplicadas na operação. Por não se enquadrarem como “receita corrente”, esses recursos não poderiam ser computados no cálculo que estabelece a porcentagem da receita a ser utilizada para o pagamento dos servidores municipais. Os recursos remanescentes, se houvessem, deveriam ser transferidos para conta vinculada à execução de outras Operações Urbanas aprovadas em leis específicas. Os CEPACs apareciam portanto como forma institucionalizada de capitalização a médio prazo para o poder público. Esses bônus seriam vendidos diretamente aos interessados ou colocados no mercado financeiro (bolsa de commodities), o que garantiria ao título, segundo Marcos Cintra, “grande liquidez e transparência na formação de preços” (JT: 23.03.95: s.p.). Acreditava-se que o valor dos bônus aumentaria ou diminuiria segundo o interesse dos investidores numa zona determinada e segundo a raridade dos bônus no mercado, até que finalmente o “estoque construtivo” da área fosse totalmente utilizado ou os bônus totalmente vendidos. Esse “estoque” poderia ser renovado mediante novos investimentos em infra-estrutura, quando novos bônus seriam colocados no mercado. Entretanto, face aos diversos ataques quanto à sua constitucionalidade, Cintra defendia que Cepac não seria propriamente um “título financeiro”, ao contrário do que havia afirmado antes (JT: 12.02.94: 2), pois não tinha valor de face, data de resgate ou vencimento e não implicava em endividamento monetário para o seu emissor, não necessitando de autorização do Banco Central para ser emitido (FT: 23.03.95: s.p.): A securitização de bônus emitidos pelo poder municipal viria atender a uma demanda do mercado imobiliário, proporcionando ao mesmo tempo um novo modelo de financiamento para as obras públicas. Para Milton Campanário (1994), um dos graves estrangulamentos da economia brasileira seria o modelo de financiamento dos investimentos de infra-estrutura de suporte às atividades econômicas e sociais. Seria desejável, segundo Campanário, redirecionar para este financiamento os recursos da poupança privada circulando como papéis públicos. O mecanismo dos CEPACs

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permitiria esse redirecionamento, através da securitização da dívida pública, com a emissão de títulos com lastro, amparados por sua vez no conceito de “dívida qualificada”. Nessa modalidade de emissão, os recursos provenientes da alienação dos títulos só são gastos no projeto de investimento que lhe deu origem (FSP: 06.02.94: 1022). Em tese, os CEPACs solucionariam dois problemas: a provisão de recursos para o financiamento não-tributário dos gastos públicos e a absorção, para a coletividade, da renda diferencial gerada por investimentos públicos e apropriada por segmentos específicos do setor privado (JT: 12.02.94: 2). Para Cintra, “o governo custeia seus gastos com arrecadação e impostos extraídos de toda a coletividade. Mas os benefícios acabam sendo absorvidos de forma diferenciada por alguns segmentos privados. Todos pagam, mas poucos usufruem. A valorização imobiliária é um exemplo típico. O governo investe em obras urbanas com recursos de toda a comunidade. Mas a valorização beneficia apenas os proprietários localizados na área que recebeu os investimentos do governo” (JT: 23.03.95: s.p.). Ainda segundo Cintra, o CEPAC seria uma forma alternativa de financiamento para investimentos públicos, já que a arrecadação de impostos e os empréstimos, domésticos e internacionais, estariam esgotados como fontes de recursos, pois “a recessão reduz a arrecadação tributária e a inflação impede a continuidade das operações de crédito a longo prazo” (JT: 12.02.94: 2). Os aspectos conjunturais evocados por Cintra para a defesa do CEPAC (a inflação e a redução da arrecadação) acabaram tornando-se obsoletos, graças à estabilização econômica do país a partir de 1994 e o aumento das receitas orçamentárias municipais, com a transferência da arrecadação de impostos para as Prefeituras determinada na Constituição de 1988. Entretanto, mantiveram sua validade dentro do contexto onde a administração da dívida pública tornava-se um dos principais problemas dos governantes e onde prevalecia a ideologia de um “Estado mínimo” (que coíbia a cobrança de impostos diretos, como o IPTU progressivo _no caso municipal_, mas incentiva as “parcerias”). Esta concepção era paradoxalmente associada à visão difundida pela corrente populista da administração municipal, herdeira do “ademarismo”, onde o Estado era fundamentalmente um Estado realizador de grandes obras.

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Em suma, o CEPAC era considerado pelo poder público como um instrumento de “arrecadação voluntária”, em que os recursos captados por sua venda eram vinculados por Lei a determinado plano de investimento público, tendo seu valor atribuído pelo mercado na proporção do fluxo de benefícios privados que os investimentos públicos gerariam. No caso da Operação Urbana Faria Lima, num primeiro momento, 10% da arrecadação seria destinada à construção de Conjuntos do Projeto Cingapura, 10% para a construção de unidades multi-familiares para os desapropriados da própria Faria Lima e 80% para o pagamento das desapropriações necessárias (FSP: 06.11.95: 3-5). Ainda que a administração Maluf tenha pressionado os vereadores e conseguido a aprovação da Câmara para seu uso em outras áreas da cidade, a utilização do mecanismo dos CEPACs fora do âmbito da Operação Urbana Faria Lima ficava proibido por liminar judicial, pois o mecanismo não havia passado pelas duas audiências públicas previstas em Lei. Cada CEPAC equivaleria a um m2 adicional de potencial construtivo, mas esta porcentagem variaria conforme a localização do terreno: na área próxima à avenida Cidade Jardim, um CEPAC equivaleria a 1,5 m2 de construção além do permitido. Já em Pinheiros, ou em bolsões da Vila Madalena, um CEPAC permitiria a construção de até 6 m2 adicionais (FSP: 06.11.95: 3-5).

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Tabela 5-10: Conversão do valor de CEPACs nos diferentes subperímetros Tabela de Valores de Conversão de CEPACs em m²* Sub-

Zona Uso

perímetro

Eq. 1 CEPAC em m² de

Eq. 1

Eq. 1 CEPAC em m² de área de terreno

construção computável

CEPAC em

referente à mudança de uso * 2

m² de área de construção comp. para ocupação do térreo *1 Com./

R2.02

R3.01

COM/SERV/

Serv. Pinheiros

Z2

4,00

Habitação

Multifamiliar

Corredor Z8

R2.02

R3.01

CR1.1

4,50

5,00

Multifamiliar 4,50

5,00

2,5

4,00 Itaim

Z2

1,50

1,80

2,20

1,00

-

-

-

V.

Frente J.

2,00

-

3,00

1,3

2,00

-

3,00

Olímpia

Kubitschek

V.

Z2/ Z3

4,00

5,00

6,00

2,5

-

-

-

Funchal

Z4

4,00

5,00

6,00

-

-

-

-

Uberaba

Z2

-

4,00

6,00

-

-

-

-

*: Aplicável a lotes com mais de 1.000 m² . *1: Acima de 50% até 70%. *2: Com ou sem outorga de potencial adicional de construção. Reproduzido conforme anexo 2 da Lei n.º 11.732, de 14 de março de 1995.

Seu valor foi fixado pela CNLU em 14 de setembro de 1995 em R$ 600 (equivalentes à época a US$ 600), com base em “estudos elaborados pela SEMPLASecretaria Municipal do Planejamento, considerando os valores de terreno [sic] praticados pelo mercado no entorno das Áreas Diretamente Beneficiadas” Segundo a SEMPLA, esses estudos haviam definido valores entre R$ 754 a R$ 1.050, mas, considerando-se a fase inicial de implantação da Operação Urbana, a CNLU teria resolvido adotar um desconto-estímulo de 20% na fase inicial da Operação, visando “permitir que em qualquer um dos subperímetros, as contrapartidas a serem pagas pudessem disputar com vantagem sobre o mercado imobiliário concorrente (...)”

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(SEMPLA, 2000: 13). Pensou-se em organizar um megaleilão onde se venderiam, de uma só vez, todos os CEPACs da Operação Urbana Faria Lima. Esperava-se a arrecadação de algo em torno de US$ 300 a 500 milhões. Os CEPACs seriam lançados na BMF (Bolsa Mercantil de Futuros), que por sua vez os lançaria também no mercado internacional (FSP: 06.11.95: 3-5). O principal “alvo” nas vendas da Prefeitura seriam os chamados Fundos de Pensão, considerados os únicos agentes capazes de viabilizar a operação (“Hoje em dia quem tem recursos para investir no mercado imobiliário são os Fundos de Pensão. Sem eles não é possível esta operação”, afirmou Roberto Paulo Richter, então secretário Municipal do Planejamento, e presidente da CNLU, FSP: 06.11.95: 3-5)153. Em 1º de agosto de 1996, o CEPAC foi “reajustado” para R$ 660 e em 1º de julho de 1997 o valor era de R$ 700. Segundo a SEMPLA, buscava-se recuperar, progressivamente, o desconto de 20% dado inicialmente a título de “incentivo”. O então vereador Maurício Faria (PT) alertava para o risco de concentração de investimentos (e de área construída) em áreas restritas, ocasionando congestionamento da infra-estrutura. Para tentar evitar essa concentração, a aprovação de cada projeto incluído na Operação Urbana Faria Lima deveria pela CNLU (Comissão Normativa de Legislação Urbanística), que deveria exigir o RIV (Relatório de Impacto na Vizinhança), para todos os projetos apresentados (FSP: 19.05.95: 3-3)154.

153

De fato, Fix (2001) dá conta de que os fundos contariam com R$ 90 bilhões (2000),

representando então aproximadamente 11% do PIB nacional, mas teriam grande potencial para crescimento (Fix, 2001: 113), encontrando no mercado imobiliário e especificamente no setor de grandes projetos comerciais um de seus nichos mais importantes de investimento. (Apud Bianca Deo, Jornal do Brasil, 30.04.2000) Segundo Fix, citando dados da Revista Abrapp, o patrimônio dos fundos nacionais seria pequeno em relação ao PIB, se comparado com as outros países, como Bolívia (39,8%), Chile (41,8%), EUA (84%), Holanda (120%) e Suíça (170%) (Fix, 2001: 113, apud Revista Abbrap). 154

Sobre a isenção da CNLU pairavam dúvidas após a constatação de que pelo menos oito

projetos de mudanças pontuais de zoneamento na região de Paraisópolis ( Morumbi), haviam sido propostos pelo arquiteto Arnaldo Furquim Paoliello. Paoliello era representante da Prefeitura na Comissão e preparava um estudo de reurbanização e revalorização que integraria um projeto da Prefeitura chamado “Programa São Paulo 2020”, na FGV. Ao mesmo tempo, mantinha um escritório de empreendimentos e participações que prometia “promover” junto à

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Porém, desde antes da aprovação da Lei, a constitucionalidade do dispositivo do CEPAC foi duramente questionada, incluindo parecer da Comissão de Constituição de Justiça da Câmara Municipal, impedindo sua utilização desde então. Como todo o funcionamento da Operação Urbana havia sido baseado na sua existência, foi necessária a criação de novos modos de encaminhamento. Em entrevista (23.05.2002), o engenheiro Luiz Roberto Rolim de Oliveira (SEMPLA/DEPLANO), explicou os procedimentos institucionais para a aprovação de um projeto na Operação Urbana Faria Lima: Os pedidos de inclusão de projeto na Lei de Operações Urbanas são geralmente encaminhados concomitantemente a duas instâncias: a SEHAB e a SEMPLA. Esta é encarregada de elaborar um parecer preliminar que é encaminhado à CNLU. A SEMPLA é encarregada de relatar, numa comissão intersecretarial, se o projeto é passivo de aceitação ou não em primeira instância, isto é, se apresenta algum inconveniente legal ou urbanístico para sua implementação. Nesta comissão intersecretarial são analisadas as condições urbanísticas do local em sentido amplo (infra-estrutura existente, condições viárias, condições paisagísticas etc.). A comissão não é deliberativa, explica Rolim, mas apenas analisa o projeto em suas linhas gerais. Em caso de decisão favorável (isto é, no caso em que não se viram inconvenientes maiores para a aprovação), o parecer é encaminhado para um colegiado misto da CNLU e que congrega secretarias, órgãos e empresas da Prefeitura (EMURB, EMPLASA, SEHAB, Secretaria de Vias Públicas etc.), órgãos de classe (SECOV, SINDUSCON, OAB, IAB, FIESP etc.) e representantes da sociedade civil (associações de moradores, ONGs etc.). A reunião do colegiado é pública e pode aceitar a participação de indivíduos diretamente afetados pelo projeto em questão, tanto para defendê-lo como para criticá-lo. Rolim explica que as associações de amigos de bairro têm grande poder e podem inclusive atrasar ou impedir um empreendimento, como se viu no decorrer do próprio prolongamento da avenida Faria Lima. Uma vez aprovado por este colegiado, o empreendimento recebe uma certidão que permite que se alterem os parâmetros urbanísticos, conforme solicitado.

Câmara Municipal mudanças de zoneamento, mediante pagamento de honorários (JT: 21.03.96: A-13).

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Os CEPACs nunca foram efetivamente lançados no mercado. Entretanto, toda a Lei de Operações Urbanas foi elaborada contando com sua existência como valor de referência para a venda de potencial construtivo. Portanto, foi necessário atribuir um valor referencial ao CEPAC, que em maio de 2002 era de R$ 850/ m2 . Este valor referencial define o valor que a Prefeitura recebe pela outorga onerosa de potencial construtivo, de acordo com o número de m2 a serem acrescentados ao limite antes estabelecido pela Lei de zoneamento em vigor. Assim, o empreendedor que deseja acrescentar 100 m2 ao limite máximo antes definido, deverá pagar R$ 8.500 aos cofres da Prefeitura. Uma vez que este valor referencial não pode ser “corrigido” pelo mercado (já que os CEPACs não são comercializados em bolsa nem podem ser objeto de negociação ou troca), foi necessária a criação de um coeficiente denominador que corrigiria as distorções de preço conforme as características do imóvel (se comercial, institucional ou residencial) e as características específicas de cada um dos 5 sub-perímetros em que se divide a área de intervenção direta da Operação Urbana Faria Lima (Pinheiros, Itaim, Vila Olímpia, Uberaba e Vila Funchal). Entre variáveis relacionadas ao uso e as características e limitações de cada sub-perímetro (ligados principalmente a exceções quanto à mudança de uso, alterações máximas no coeficiente de aproveitamento, alteração na taxa de ocupação etc.), há 15 variáveis que determinam os fatores de homogeneização dos custos (ver planta 5-9 e ‘Apêndice’ para condicionantes específicos de cada área). Os fatores de homogeneização variam entre 0 e 5 (isto é, o valor total definido a partir da multiplicação do valor referencial do CEPAC pela área suplementar pode ser dividido até 5 vezes, com o que empreendedores em áreas com características legais-urbanísticas distintas podem ter seus custos mais ou menos equiparados. Isso visa equilibrar os custos nos diferentes sub-perímetros. Uma vez de posse da certidão dada pelo colegiado da CNLU, o empreendedor pode dar andamento ao processo já aberto na SEHAB, órgão responsável pela aprovação final de qualquer empreendimento imobiliário. No caso da Operação Urbana, é obrigatório que o poder público invista o dinheiro arrecadado no próprio perímetro da operação. Ou seja, conforme vimos anteriormente, a Operação Urbana visa principalmente ressarcir os custos das melhorias em infra-estrutura promovidas pelo poder público (principalmente no que tange a infraestrutura viária) dentro do perímetro de sua intervenção. No caso de haver saldos desse

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ressarcimento, a Lei prevê a reaplicação dos recursos para melhorias dentro dos limites da operação. Não haveria possibilidade de transferência dos recursos gerados pela Operação Urbana para obras em outras áreas da cidade, nem para o pagamento de dívidas da Prefeitura não relacionadas diretamente à operação. Entretanto, as críticas aos CEPACs se multiplicaram ao longo dos anos. Fix e Whitaker (2001), resumiram essas críticas em seu artigo “A urbanização e o falso milagre do CEPAC” (FSP: 17.04.01: 1-3), onde contestavam declarações anteriormente publicadas por Marcos Cintra (“A mina de ouro que Marta ainda não descobriu”, FSP: 12.03.2001: 1-3). Para Fix e Whitaker (2001), o controle exercido pelo Poder Público sobre um mecanismo como o CEPAC só poderia ser “relativo”, pois os CEPACs seriam necessariamente encarados primariamente como uma fonte de recursos para a administração municipal, que adotaria assim a tendência a multiplicar o número de Operações Urbanas como mero meio de arrecadação de fundos. Nesse caso, avaliam os autores, institucionalizaria-se a especulação imobiliária como elemento motivador da renovação urbana na cidade, pois a conformação de seu desenho não se daria em função da ação planejada do Poder Público e das prioridades urbanas que ele estabelecesse a partir de uma demanda participativa da população, mas através da subordinação da agenda pública aos interesses do mercado. Para Fix e Whitaker, as parcerias com a iniciativa privada deveriam fazer parte de um plano global onde o Poder Publico, em conjunto com os habitantes, estabelecesse necessidades e metas, gerando, a partir daí, a possibilidade de contrapartidas ao investidor privado. “Quando as áreas são escolhidas apenas pelo potencial de gerar dinheiro através dos CEPACs, esquecem-se as condicionantes urbanísticas do espaço público” (FSP: 17.04.01: 1-3). Fix e Whitaker (2001) lembram um aspecto importante: a associação do CEPAC às Operações Urbanas e a utilização dos recursos gerados somente dentro do perímetro dessas Operações privilegiaria os bairros já de antemão valorizados, pois a própria lógica da Operação Urbana determina que estas sejam realizadas em áreas onde já exista

interesse de investimento por parte dos agentes privados. Não havendo

Operações Urbanas na periferia, esta também não seria beneficiada pelos recursos gerados, a não ser que houvesse mudança na legislação. Para Fix e Whitaker, o CEPAC exacerba a lógica mercantil do solo urbano, pois sendo um título, ele só funcionaria em área de valorização imobiliária, tornando-se um “mico” [sic] em outras situações.

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O embate estabelecido entre as duas posições pode ser explicado pelas distintas visões sobre a produção do espaço urbano. Para os defensores dos mecanismos como o da Operação Urbana e do CEPAC, trata-se de estabelecer, pragmaticamente, um compromisso entre gestão pública e interesses privados, onde estes não se sobreporiam aos interesses coletivos, mas trabalhariam em parceria com o Estado para a consecução de programas de melhoria que beneficiariam tanto investidores quanto a cidade e os cidadãos. Conforme discutido em capítulos anteriores, essa visão nos parece ideologizada, à medida em que mascara, legitimando, a real natureza do Estado e de sua associação com os interesses privados. Trata-se, em suma, de mecanismos que legitimam a ação do Poder Público na consecução de interesses privados, e que, em suma, permitem uma mercantilização ainda maior do solo urbano através de mecanismos legais de parceria, onde o governo renuncia a um planejamento complexo e de caráter global, em favor de políticas casuísticas de intervenção urbanística. Em princípio, parece-nos legítimo a taxação onerosa do direito de construir acima dos limites estabelecidos pelo zoneamento. Este encontra-se desatualizado e funciona sabidamente como indutor de especulação. Entretanto, fora de um Plano Diretor que incluísse os mecanismos estudados dentro de um projeto coerente e global de cidade e onde a mercantilização do solo fosse atenuada e controlada, o CEPAC representa um instrumento pragmático, pontual e oportunista de arrecadação de verbas.

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5.5- O desenrolar da Operação: favorecimentos, irregularidades, desapropriações e a atuação das associações de bairro Uma das consequências da Operação Faria Lima foi a desapropriação de aproximadamente 374 imóveis (de 500 originalmente previstos), a um custo de aproximadamente US$ 100 milhões155 (FSP: 10.08.96: 3-3 e OESP: 13.08.96:C5). As previsões para o número de imóveis desapropriados e para o custo total da obra variaram muito ao longo do projeto e da construção. Em 25 de abril de 1994 eram estes os números para as desapropriações: Trecho 1-Largo da Batata-Pedroso de Morais: 106 imóveis. Trecho 2-Cidade Jardim-Juscelino Kubitschek: 208 imóveis. Trecho 3-Vila Olímpia: 58 imóveis. (OESP: 25.04.94: C-1) Pagar aos desapropriados, em dinheiro, o valor de mercado dos seus imóveis era uma das premissas básicas do projeto da Nova Faria Lima (FSP: 03.06.93: 3-2), premissa que não teria sido cumprida. Os imóveis teriam sido inicialmente avaliados por uma comissão formada por representantes do Secovi, do Instituto de Engenharia, do Instituto Brasileiro de Avaliação Imobiliária, do Sindicato de Corretores de Imóveis e da EMURB (OESP: 26.05.93: 5). Em meados de março de 94, os primeiros desapropriados começaram a receber as indenizações em juízo. Os valores correspondiam ao valor venal dos imóveis, muitíssimo inferior ao seu valor no mercado. O juiz encarregado do caso nomearia um perito para avaliar novamente os imóveis pelo seu valor de mercado e exigiria a complementação do pagamento (OESP: 19.03.94: G1). Entretanto, juristas já alertavam que este procedimento faria com que o processo se arrastasse, podendo demorar anos até que os desapropriados fossem convenientemente ressarcidos. Em alguns casos, o valor pago pela Prefeitura correspondeu a 1/5 do valor do imóvel, impossibilitando a compra de um imóvel do mesmo nível: “Para o corretor de 155

US$ 120 milhões segundo dados da SEMPLA (SEMPLA, 2000: 7).

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imóveis Roberto Capuano, o valor de mercado do sobrado de Cestari está entre US$ 30 e US$ 35 mil [contra cerca de US$ 6,4 mil pagos pela Prefeitura]. Pelo valor venal, ele só conseguiria comprar uma casa menor na ‘alta periferia’, como Mauá ou Ferraz de Vasconcelos. Em São Paulo não dá para comprar nem um terreno’, afirma (...).” (OESP: 19.03.94: G1). Alguns proprietários conheciam a Lei de 1968 que declarava parte da área como de utilidade pública para a desapropriação156, mas o projeto aprovado em 1995 era muito mais extenso. Para as áreas onde a desapropriação sempre havia sido uma possibilidade, quase 30 anos se passaram entre a promulgação da Lei e a efetiva desapropriação. Neste período, os imóveis não estiveram inseridos dentro de um processo “normal” de valorização e desvalorização. Ainda que estivessem numa área potencialmente valorizada, muitas áreas permaneceram estritamente horizontais e, em muitos casos, de caráter predominantemente residencial. A comercialização dos imóveis residenciais tornou-se difícil após 68. Isto implica num prejuízo não quantificável dos proprietários dos imóveis. Os Movimentos Vila Olímpia Viva e Pinheiros Vivo, organizações que lideraram a oposição ao prolongamento da avenida Faria Lima, surgiram entre os moradores de classe média daqueles bairros e tinham como objetivo básico proteger as características das áreas afetadas e evitar as desapropriações. Temos relativamente poucos subsídios para analisar todos os aspectos que envolveram a atuação desses movimentos nas muitas negociações que empreenderam com a Prefeitura, mas tentaremos tecer considerações sobre alguns aspectos que resultaram de sua atuação, o que incluiu: -

A recusa do projeto original do arquiteto Júlio Neves, que implicaria em grandes desapropriações e alteração da qualidade de vida do bairro.

-

A proposta de alternativas, elaboradas ou sugeridas por alguns arquitetos, com destaque para a proposta de “Plano Diretor de Bairro”, elaborado especialmente para os Movimentos pelo urbanista Cândido Malta Campos Filho.

-

A negociação com o poder municipal, num segundo momento, visando minorar as perdas com o prolongamento, agora fato consumado.

156

Novas áreas, não previstas naquela Lei, foram depois incorporadas ao projeto.

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Em março de 1995, paralelamente à aprovação da Lei que regulamentava a Operação Urbana Faria Lima, o arquiteto Carlos Bratke, autor de mais de 40 projetos na Avenida Engenheiro Luiz Carlos Berrini, defendia uma nova alternativa de traçado para a ligação da Avenida Faria Lima com a “sua” avenida, projeto que pouparia inúmeros imóveis residenciais, desapropriando mais terrenos vazios (FSP:15.03.95: 3-3). Imagem 5-11: Alternativa de Carlos Bratke para a interligação entre a Avenidas Faria Lima e Engenheiro Luiz Carlos Berrini. Fonte: FSP:15.03.95: 3-3.

Em julho de 1995, dois acontecimentos marcaram a Operação Urbana Faria Lima. Aparecem denúncias de favorecimento ilícito no vazamento de informações que permitiram a pessoas próximas ao Prefeito Paulo Maluf a compra de imóveis na região da operação. A imprensa paulistana registrou que os compradores sabiam de antemão sobre os planos de modificação da Prefeitura, coordenando seus investimentos com estes planos. Segundo reportagem de Bruno Paes Manso (“Calim Eid é um dos felizardos da Faria Lima.”, OESP: 25.06.95: C16), a região do Largo da Batata esconderia uma “mina de ouro”: “Os imóveis da região do Largo da Batata, dominada

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por casas simples e comércio popular, terão valorização mínima de 100% quando as obras de extensão da Avenida Faria Lima estiverem concluídas. Entre os proprietários que vão se beneficiar com a explosão imobiliária da área está o advogado e empresário Calim Eid, coordenador de duas campanhas eleitorais de Paulo Maluf, e que tem pelo menos 20 imóveis na região, entre apartamentos, casas e terrenos” (OESP: 25.06.95: C16). Esta denúncia engendrou a formação, dois dias mais tarde, de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) na Câmara de Vereadores do Município. Paralelamente, ocorre a redução do projeto de extensão da avenida, que não se estenderia mais até a Avenida Engenheiro Luís Carlos Berrini, mas somente até a avenida Hélio Pellegrino, evitando a desapropriação de 100 imóveis. O Prefeito justificou a decisão argumentando que o preço das 100 desapropriações seria demasiado elevado. A desistência, entretanto, evitava o desgaste do Prefeito numa disputa com os moradores num momento bastante delicado, quando as denúncias de favorecimento tomavam vulto. De fato, o então vereador Arselino Tatto (PT) entrou com representação contra Paulo Maluf junto à Procuradoria Geral de Justiça no dia 27 de julho de 1995, tendo em vista a liberação pelo Prefeito de 1 bilhão de dólares para as empreiteiras que o haviam ajudado a eleger-se (OESP:27.07.95: C5), agravando a situação do prefeito. A manobra engendrada pelo prefeito, claramente visando amenizar a oposição ao projeto, causou estranheza. “Ninguém entende a decisão do Prefeito”, escreveu Flávio Mello (OESP: 27.06.95: C5). “A decisão do Prefeito (...) deixa todo mundo perplexo” diria em editorial o Jornal da Tarde (31.07.95: 4). A decisão de não fazer a ligação prevista é criticada por muitos, inclusive pelo idealizador do projeto, arquiteto Júlio Neves, para quem a extensão da avenida era “muito importante”. Até mesmo o então coordenador do Movimento Pinheiros Vivo, arquiteto Roberto Saruê, declarou que achava “muito estranha” a decisão do Prefeito, pois o trecho poupado apresentava o menor número de desapropriações de todo o projeto (OESP, 27.07.96: C5). Coincidentemente, o responsável pela aprovação da modificação do projeto na Câmara Municipal, deputado Maurício Faria (PT), foi também o responsável pela abertura da CPI mencionada. Este fato não foi destacado pela imprensa. Entretanto, a utilização de CPIs como instrumento de “intimidação” e negociação na Câmara paulistana parecia ser um procedimento corriqueiro. Em caderno especial, o jornal

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Folha de S. Paulo afirmava: “As CPIs também acabam sendo usadas como forma de pressão política. Exemplos: durante as negociações para o projeto da Faria Lima, Arselino Tatto tentou emplacar uma CPI que investigasse a EMURB e o escritório do arquiteto Júlio Neves, responsável pelo projeto da Faria Lima. O PT, que era contra o projeto, tentava assim “intimidar” o prefeito. A estratégia petista não vingou” (FSP: 27.09.96, Especial A-8). Não teria realmente vingado? Faria já havia sido coordenador da negociação entre a Prefeitura e os moradores de Pinheiros, Vila Olímpia e Itaim, por ocasião da aprovação da votação da própria Operação Urbana Faria Lima, em março daquele ano. Na votação, onde a operação foi aprovada por unanimidade, como vimos, a Prefeitura recuou do projeto original e foram poupados 58 imóveis antes condenados, naquilo que foi visto como uma “barganha”. Além disso, assegurou-se que parte do bairro continuaria como Z-9, (classificação que impede a construção de edificações com gabarito superior a 13 m e área superior a uma vez a área do terreno) e também definiu-se que, entre a Av. Juscelino Kubitschek e a Av. Hélio Pellegrino, os carros que transitassem pela Faria Lima não poderiam entrar nas ruas adjacentes, impedindo que o trânsito de automóveis da nova avenida se espalhasse as ruas dos bairros. Naquela ocasião, Faria “monopolizou” as negociações entre Prefeitura e os moradores, segundo o depoimento de vereadores do PT descontentes com o apoio do partido à aprovação da operação Faria Lima. Este episódio havia aberto uma crise na bancada petista na câmara. Segundo artigo da vereadora petista Aldaíza Sposati (FSP: 20.03.95: 3-3), a aprovação teria ocorrido por três motivos: “a prevalência da política do fato consumado, executada por Reynaldo de Barros, que demoliu mais de cem imóveis enquanto era discutido o projeto de Lei do Executivo na Câmara; a sujeição da mesa e da maioria dos vereadores aos ditames de Paulo Maluf, desrespeitando normas regimentais e legais na tramitação de projetos de Lei e, em sentido contrário, a capacidade de luta e pressão de um movimento da sociedade civil que criou condições de construir uma proposta alternativa na região157”. Entretanto, os vereadores petistas teriam sido orientados a votar em conjunto, seguindo os resultados da negociação da Prefeitura com a Associação Vila Olímpia

157

Uma referência ao Plano Diretor de bairro elaborado pelo urbanista Cândido Malta Campos

Filho para os Movimentos Vila Olímpia Viva , Pinheiros Vivo e Itaim Vivo.

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Viva através de Maurício Faria, o que surpreendeu as direções municipal e estadual do Partido dos Trabalhadores (FSP: 09.03.95: 3-2). Odilon Guedes, então líder da bancada do PT na Câmara Municipal de São Paulo, respondia às acusações de barganha política dizendo que a bancada do PT teria se reunido com representante da executiva municipal do PT, com técnicos do partido na área de urbanismo e com o Movimento Vila Olímpia Viva e, após ouvir as explanações do movimento, teria decidido consensualmente o apoio ao projeto aprovado (FSP: 11.03.95: 1-3). De fato, entre os 58 imóveis poupados pelo novo traçado da avenida, estava o escritório de Ziegbert Zanettini, então presidente da Associação Vila Olímpia Viva. Logo após a aprovação da Operação Urbana Faria Lima (onde também foi aprovada a utilização do mecanismo do CEPAC para esta operação), Maluf pressionava os vereadores para que aprovassem os CEPACs para todas as regiões da cidade, desvinculando-os da Operação Urbana. O Prefeito encontrou então forte oposição dos vereadores petistas, que alegaram que a aprovação do mecanismo para toda a cidade não fazia parte do “acordo original” que havia sido firmado para a aprovação da Operação Urbana Faria Lima. Em 08.03.95, esses vereadores obstruíram na Câmara a votação da generalização do CEPAC, o que provocou a fúria de Maluf, que ameaçou vetar o novo traçado da avenida e “derrubar o escritório de Zanettini” se o PT não votasse a favor do projeto de generalização (FSP: 09.03.95: 3-2). O prefeito pressionava pela aprovação do mecanismo, ávido por novas verbas que permitissem a continuação de seu programa de grandes obras na cidade, e ameaçava “continuar” usando verbas do orçamento da Prefeitura para a conclusão da Faria Lima se os CEPACs não fossem aprovados em todo o perímetro do município (FSP: 09.03.95: 3-2). Segundo Maluf, a aprovação do Cepac para toda a cidade fazia parte do “acordo” entre a bancada malufista e o PT. O vereador Odilon Guedes negava que a aprovação do Cepac para toda a cidade fizesse parte desse acordo (FSP: 09.03.95: 3-2), entretanto isso acabou acontecendo em sessão da Câmara realizada no dia 09.08.95. Urbanistas como Raquel Rolnik e Cândido Malta expressaram sua contrariedade à extensão do mecanismo para toda a cidade. Rolnik afirmava que a generalização do CEPAC “jogava para o espaço o Plano Diretor”. Malta completava dizendo que “sem Plano Diretor, o CEPAC vira instrumento especulativo” (FSP: 10.03.95: 3-1). Naquele

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mesmo ano, a justiça anulou em decisão provisória a sessão na qual a Câmara aprovou a generalização do CEPAC, restringindo-o à Operação Urbana Faria Lima, como vimos. A atuação de Maurício Faria aproximou-o incontestavelmente de algumas lideranças dos bairros atingidos pela operação. Horácio Galvanese, coordenador do Movimento Pinheiros Vivo, uma das principais oposições ao prolongamento da avenida, tornou-se mais tarde assessor de Faria na Câmara Municipal (Arantes et al., 1996 : 5). De fato, se num primeiro momento, os movimentos Pinheiros Vivo e Vila Olímpia Viva estabeleceram oposição frontal ao prolongamento da avenida, com ações agressivas que incluíram a ocupação da Câmara dos Vereadores, num segundo momento esses movimentos foram “convencidos” de que a “negociação seria a melhor saída”. Esta negociação se faria através da apresentação de um “plano alternativo”, elaborado pelo urbanista Cândido Malta Campos Filho. Segundo Arantes et al. (1996), é a partir deste ponto que movimentos perdem força, pois a proposta alternativa acaba servindo para “legitimar o projeto de Júlio Neves, aprovado por unanimidade graças a uma pequena mudança no traçado da Avenida no trecho de Vila Olímpia, o que não alterava em nada sua essência especulativa” (Arantes et al., 1996: 5). Segundo depoimento prestado por Horácio Galvanese, então coordenador do combativo Movimento Pinheiros Vivo, após a derrubada da igreja japonesa de Pinheiros e da elaboração de uma proposta alternativa à de Júlio Neves pelo urbanista Cândido Malta Campos Filho, “Nós ficamos no dilema se era melhor deixar que o Maluf acabasse com tudo ou salvar um pouco. Nós preferimos salvar um pouco” (Arantes et al., 1996: 40). Entre agosto e setembro de 1995, questão no mínimo curiosa tomou conta dos debates em torno da avenida. A Prefeitura havia decidido desviar o traçado da avenida para preservar um jequitibá-rosa. Plantada em 59, a árvore tinha mais de 15m de altura e ficava na esquina das ruas Aspásia e Sertãozinho, no Itaim (zona oeste). Para que o jequitibá-rosa não fosse derrubado, a Prefeitura fez um desvio de cerca de 20 m no trajeto da avenida e desapropriou mais 5 casas, num total de 890 m², a um custo de até R$ 2 milhões para os contribuintes. No final de setembro de 1995, começava a tramitar na Câmara Municipal projeto de decreto legislativo que visava anular a desapropriação das cinco casas e terrenos devido ao desvio no traçado. Para os moradores do Itaim, a atitude da Prefeitura era demagógica e justificavam-se dizendo que seu objetivo ao protestar contra a derrubada das árvores

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para a passagem da avenida, era preservar todas as árvores e não uma. “A Prefeitura derrubou a casa da moradora que plantou o jequitibá e agora quer desapropriar mais casas para deixar a árvore lá”, dizia uma moradora. Os possíveis desapropriados teriam então proposto à Prefeitura o transplante da árvore, cujos custos seriam cobertos por eles (FSP: 22.09.95: Especial A-2). A associação de moradores para a consecução de fins específicos neste caso insere-se num quadro pouco efetivo no campo da luta pelos direitos gerais da sociedade. O discurso dos movimentos buscava incluir todos os cidadãos, ou antes, todos os habitantes da cidade de São Paulo, para a defesa de alguns direitos que os movimentos consideravam fundamentais e portanto, em tese, generalizáveis para a toda a cidade. Entretanto, sua ação não estendeu suas poucas vitórias para além do campo da defesa da propriedade de alguns moradores dos bairros atingidos pelo projeto da Nova Faria Lima. Colocando em jogo seus objetivos manifestos, sua ação efetiva não visou reduzir os efeitos da sociedade de consumo (nos termos de Santos, 1993) sobre a utilização do solo urbano, mas, ao contrário, visou inserir os sujeitos proprietários de maneira privilegiada na dinâmica reinante. Os resultados da ação, para além dos discursos, indicam que tudo foi feito para que menos moradores fossem desapropriados, certamente diminuindo o impacto da avenida nessa questão, mas reduzindo as conquistas a vitórias estritamente locais, já que uma vez tendo seus objetivos atendidos, os indivíduos se desmobilizaram e a as associações perderam representatividade e força. Conforme observa Santos (1993) a respeito das associações de moradores ou sociedades de amigos de bairros, “cada qual no seu nível se defende dos outros, mas é [apenas] para obter uma posição melhor no mercado. As sociedades de moradores têm um inegável papel organizativo, mas não têm fôlego para ultrapassar o funcional, deixando intacto o estrutural” (Santos, 1993: 75). Foi justamente o que aconteceu quando não se buscou generalizar as reivindicações surgidas da ameaça da desapropriação e da degradação ambiental ocasionadas pelo projeto de prolongamento da avenida Faria Lima. O papel das associações se esgotou com o atendimento das reivindicações de alguns indivídoschave e a avenida Faria Lima foi afinal prolongada, com todas as suas implicações para a cidade.

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Nos termos de Santos (1993), o tipo de ação desenvolvida por associações como a Pinheiros Vivo e Vila Olímpia Viva constitui-se numa “(...) ação política puramente espacista, mas não propriamente espacial. O espaço é uno e global, funcionando segundo um jogo de classes que tem sua demarcação territorial. Agir sobre uma fração do território sem que a ação seja pensada de maneira abrangente, pode oferecer soluções tópicas e de eficácia limitada no tempo, servindo sobretudo ao reforço dos dados estruturais contra os quais se imaginava combater” (Santos, 1993:75)158. Segundo Galvanese, o Movimento Pinheiros Vivo jamais deveria ter aceito a negociação, mas “deveria ter sido intransigente até o final. A democracia é assim, tem os seus papéis, tem o cara que diz sim, o que negocia, e o que diz não. Nós deveríamos ter sido o não. Quando a gente fazia o papel do ‘não’, saiu uma pesquisa dizendo que 55% dos paulistanos eram contra a avenida. Depois que a gente cedeu este índice mudou” (apud Arantes et al., 1996: 40). Galvanese chama a atenção para o fato de que os objetivos distintos da Associação Vila Olímpia Viva e do Movimento Pinheiros Vivo acabaram facilitando a aprovação da Operação. “Na Vila Olímpia o que estava em jogo era a preservação da Z9, porque no projeto original a avenida fazia uma curva e cortava todo o bairro. Quando chegou a negociação, eles realmente conseguiram preservar a Z9 e a avenida passou ao lado. (...) Pinheiros sempre foi contra a negociação nas condições que eles colocavam. Mas para o pessoal da Vila Olímpia era diferente, eles queriam preservar a Z9. Então os vereadores de oposição acabaram votando a favor da Avenida desde que a Z9 fosse mantida” (apud Arantes et al., 1996: 41-42). De fato, as questões de preservação e qualidade de vida se colocavam de maneira diversa para os moradores das duas “pontas” do prolongamento da avenida. No caso do Alto de Pinheiros, tratava-se de salvar o maior número possível de proprietários da desapropriação e manter a qualidade de vida num bairro residencial, arborizado e valorizado, enquanto que no caso da Vila Olímpia, tratava-se principalmente de impedir o grande número de desapropriações, modificando o traçado originalmente proposto por Júlio Neves. Isso acabou determinando a não ligação da Nova Faria Lima com a Berrini 158

Santos cita R. Guidicci: “(...) nada pode estar mais errado, visto a grande dimensão, que agir

somente ao nível da pequena (dimensão), quebrando iniciativas que somente em determinada escala podem fazer sentido e obter eficácia no mundo moderno” (Guidicci, 1980: 174, apud Santos, p.75).

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no projeto levado a termo nos anos 90, mas não impediu imensas modificações de paisagem, ambiente e uso na área. No caso de Pinheiros, a resistência dos moradores resultou no projeto de “bolsões” para o bairro, o que na prática representaria o fechamento de algumas ruas, isolando áreas restritas do trânsito gerado pelo prolongamento. Planta 5-12: Proposta de ‘bolsões’ residenciais para o bairro de Alto de Pinheiros. Fonte: Sociedade Amigos do Alto dos Pinheiros (SAAP).

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Mas o núcleo tradicional de Pinheiros159, ou “Baixo Pinheiros”, não teve a mesma reação. Segundo o relato do Sr. Luís Rodolfo Vieira de Barros (1996), então presidente da Associação dos Amigos de Pinheiros, os moradores e comerciantes do núcleo mais tradicional de Pinheiros não teriam oferecido a mesma resistência quando do prolongamento da Avenida Faria Lima, ainda que as transferências e desapropriações tenham sido reconhecidamente traumáticas. Uma parcela dos moradores e dos comerciantes da região, reunidos em torno da Associação Comercial de Pinheiros e da Associação dos Amigos de Pinheiros, via com bons olhos prolongamento, pois este representaria a valorização de suas propriedades. Além disso, identificavam nos terminais de ônibus localizados no Largo da Batata focos de atração para os indesejáveis camelôs. A retirada dos terminais de ônibus do Largo da Batata levaria consigo a clientela do comércio ambulante daquela região, preparando o terreno para uma “limpeza social”, com vantagens óbvias para a incorporação imobiliária e para o comércio estabelecido. Segundo Malta e Vilaça (Seminário Pinheiros e a Qualidade de Vida, 1996), era mais do que provável que algumas áreas do núcleo mais tradicional do bairro fossem profundamente modificadas, incorporadas ao mercado imobiliário mais lucrativo da cidade, de prédios de classe média, mas principalmente pequenos ou médios prédios de escritórios. Isto significaria a expulsão de sua população tradicional, mudando radicalmente o caráter do bairro. Entretanto, avaliação da própria EMURB e da incorporadora Richard Ellis em meados da década de 90, indicava que, na altura do núcleo tradicional de Pinheiros, o impacto maior não ultrapassaria os limites da periferia da nova avenida, pois existiria na região uma população estável ocupando terrenos de 159

De acordo com os urbanistas Flávio Vilaça e Cândido Malta (seminário “Pinheiros e a

Qualidade de Vida”, 1996), a dinâmica de ocupação do quadrante Sudoeste da cidade pelas classes altas teria deixado um “resíduo”, uma área com características totalmente distintas do seu entorno imediato: o bairro de Pinheiros. Graças a seu desenvolvimento como povoado e depois vila separada de São Paulo, Pinheiros guardou características próprias, com traços de cidade do interior. Sua dinâmica de ocupação não obedeceu aos mesmos esquemas do núcleo principal, ainda que estivesse largamente subordinada a estas. O núcleo pinheirense já estava consolidado quando as classes altas começaram a abandonar o centro tradicional em direção Oeste; a área já estava ocupada quando são lançados os empreendimentos de alto padrão do Jardim América, Cidade Jardim ou Alto de Pinheiros.

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estrutura fundiária “difícil” para a incorporação. Barganhas e negociações para a incorporação desses terrenos seriam dificultadas pelo tamanho dos lotes e tipo de ocupação da área. Haveria no entanto, áreas onde estas negociações poderiam ocorrer com mais facilidade, isto é, áreas de galpões de depósitos e algumas grandes áreas pouco adensadas.

Foto 5-13: A Rua Paes Leme, no núcleo mais antigo do bairro de Pinheiros. Ao fundo, a Igreja Nossa Senhora de Mont Serrat. A Paes Leme conservou suas características de entreposto madeireiro. Foto do autor, 1996.

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Foto 5-14: Vila

residencial

na

região da rua Paes Leme, no “Baixo-Pinheiros”. A extensão das

quadras

propiciou

o

surgimento de inúmeras vilas residenciais naquela área. Foto autor, 1996.

Foto 5-15: Edifício comercial na rua Butantã, “Baixo Pinheiros”. Poucos projetos foram aprovados para a região do “Baixo Pinheiros” (AIB 3 Baixo Pinheiros), devido à dificuldade de incorporação

de

terrenos

para

grandes projetos. A maioria dos projetos

aprovados

nessa

área

concentram-se nas áreas lindeiras à Avenida Faria Lima.

231


Entretanto, sabe-se que o impacto na região não foi pequeno. Segundo o arquiteto Paulo Bastos, a Faria Lima “enterrou uma boa parte de Pinheiros histórico”, mas o prolongamento da avenida não bastou para alavancar mudanças profundas no miolo do bairro. De fato, em 2002 foi promovido concurso para a reurbanização dos Largos de Pinheiros e da Batata e há planos para a transferência de parte das linhas de ônibus intermunicipais que hoje chegam ao Largo da Batata para a área contígua à futura estação Pinheiros do Metrô (linha amarela), junto à Marginal Pinheiros. Também há propostas para a transferência das linhas para o outro lado do rio, junto à nova estação de Metrô Vital Brazil. Imagem 5-16: Distrito de Pinheiros, Serviços e instituições. FSP: 06.10.2002: Imóveis- 2

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Tabela 5-17: Perfil Sócio Econômico do Distrito de Pinheiros em 2002. Pinheiros: Perfil Sócio-Econômico (1º semestre 2002) População: 62.997 hab. IDH (2000): 0, 833 (4º lugar no município. 1º lugar: Moema (S), 0,884, último lugar Marsilac (S), 0,245. Média do município: 0,520. Distribuição Sócio-Econômica (% por classes de poder aquisitivo): Classe A (41,5) Classe B (24, 6) Classe C+ (19,4) Classe C (7,6) Classe D (2,8) Classe E (4,1) Classificação no Plano Diretor (2002): Urbanização consolidada (Área saturada, onde a diretriz é conter o adensamento com outorga onerosa mais alta) Fator para cálculo outorga onerosa: Fator residencial: 0,90 Fator não-residencial: 1,00 * (Não inclui perímetro da Operação Urbana Faria Lima) Agências bancárias: 61 Bares: 38 Cinemas: 5 Teatros: 5 Restaurantes: 69 Shopping Centers: 6 Escolas públicas: 10/ Escolas particulares: 35 Total: 45 Hospitais: 3 Hotéis: 2 Lançamentos de imóveis em 2001: Comerciais: 3 Res. 1 dormitório: 3/ Res. 2 dormitórios: 4/ Res. 3 dormitórios: 3/ Res. 4 dormitórios: 5 Total residencial: 15 Total comercial: 3

Fontes: IBGE, Secretaria do Desenvolvimento, Trabalho e Solidariedade do Município de São Paulo, Plano Diretor do Município de São Paulo (2002), Urban Systems Brasil e Amaral D’Ávila Engenharia de Avaliações (FSP: 15.08.2002: C3/ 14.08.2002: C3/ 06.10.2002: Imóveis- 1).

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Finalmente, em outubro de 1995, é inaugurado o primeiro trecho do prolongamento da avenida, entre o Largo da Batata e a Avenida Pedroso de Morais. Em setembro, alguns trechos da avenida já haviam sido provisoriamente liberados, visando desafogar o trânsito da região. Neste momento a Câmara Municipal ainda não havia regulamentado o uso de CEPACs, porém Maluf dava entrevista afirmando que a avenida teria “custo zero”: “O Prefeito Paulo Maluf afirmou ontem que as obras de extensão da Avenida Faria Lima terão ‘custo zero’, apesar de as mudanças de zoneamento aprovadas na região representarem apenas 10% do custo oficial das desapropriações. ‘O retorno financeiro já começou, continuará nas próximas gestões e não só vai cobrir o custo, como ultrapassá-lo’, afirmou”160 (OESP: 21.10.95:C-6). O então secretário do Planejamento, Roberto Paulo Richter, justificou a não emissão dos CEPACs, evitando comentar os problemas legais que dificultavam a aprovação do mecanismo, dizendo que aqueles não haviam sido lançados porque teria havido uma “retração no mercado imobiliário” e não haveria garantias de que o CEPAC tivesse boa aceitação. Para contornar o problema legal criado pela não regulamentação do mecanismo (que havia sido aprovado juntamente com a Operação Urbana Faria Lima, em 07.03.95) e acelerar os investimentos imobiliários na região, a CNLU estabeleceu em reunião realizada em 14.09.95 que um Cepac equivaleria a R$ 600,00. Assim, os leilões de venda dos CEPACs foram substituídos, na prática, por uma contrapartida financeira direta, ainda que os valores fossem calculados com base no número de CEPACs necessários para o projeto. Como cada CEPAC equivalia a 1 m² de área adicional, na prática os investidores pagariam R$ 600 por m² adicional além do previamente permitido pela Lei de zoneamento. “Com isso, 312 mil m² dos 1.250.000 m² da área de potencial de construção na região de influência direta da Faria Lima serão adensados”, declarava Richter (FSP: 15.09.95: 3-2).

160(continuação da reportagem) “Ele disse que as despesas com as obras de prolongamento da Faria Lima ficarão abaixo do custo previsto inicialmente. O inicial era de R$ 200 milhões e deve ficar em R$ 140 milhões, considerando obras viárias e desapropriações, segundo seus cálculos. O investimento poderá retornar em até 20 anos com a venda do espaço aéreo por meio dos CEPACs e com o reajuste da Planta Genérica de Valores (PGV) em função da valorização dos terrenos e imóveis”. Flávio Mello in “Maluf garante que avenida vai ter ‘custo zero’”, OESP: 21.10.95:C-6.

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Os planos municipais foram então temporariamente frustrados por uma explosão nos preços da nova avenida, cujos terrenos tiveram valorização de até 100% (OESP: 27.10.95: C5), diminuindo o interesse dos investidores. Especialistas imobiliários identificaram um grande exagero nesta elevação de preços, atribuindo-a à grande expectativa de valorização criada pela própria Prefeitura. No mês seguinte, a Prefeitura tentava articular uma venda massiva de CEPACs aos Fundos de Pensão das grandes estatais (FSP: 06.11.95: 3-5), tentando alavancar os investimentos apesar da sobre-valorização dos terrenos que inibiu inicialmente os investidores. Era preciso vender rapidamente os CEPACs para fazer “caixa” para novas obras da administração Maluf, apesar da resistência do mercado. A expectativa de arrecadação com a operação variavam. Em maio de 95, esperava-se aprovar o equivalente a 300 edifícios, arrecadando mais de 1 bilhão de dólares. Este valor, que se revelou mais tarde bastante bastante otimista, baseava-se no cálculo da “venda” pela Prefeitura de 2.250.000 m2 de área edificável além do que permitiria a Lei de zoneamento. Este dinheiro seria destinado às obras de prolongamento, principalmente o pagamento das desapropriações necessárias. Em maio de 1995, foi aprovado o primeiro projeto no âmbito da Operação Urbana Faria Lima pela CNLU: um edifício residencial de luxo com 27 andares na rua Professor Artur Ramos, no Itaim. Era um empreendimento da Kauffmann Incorporadora, que pagou US$ 1.100.000,00 para adquirir uma área potencial de construção de 4.192 m² acima dos 4.263 m² permitidos pela Lei de zoneamento. Reportagem publicada em junho de 1995 dá conta da “euforia” que dominou o mercado da incorporação e construção a partir de então: Romeu ChapChap, da construtora homônima, Renato Genioli Jr., da Concyb, além de Sérgio Mauad, presidente do Conselho Consultivo do Secovi - SP, davam o testemunho de seu entusiasmo com a possibilidade de novos negócios na região. Mauad previa a instalação majoritária de escritórios, inclusive de empresas que se transfeririam da região da Avenida Paulista (FSP: 11.06.96: 3-9). Mas a especulação estaria emperrando os empreendimentos na região, já que os proprietários de terrenos estariam a esta altura pedindo cerca de 900% a mais do que era cobrado antes da extensão da avenida (FSP: 10.08.96. 3-4). Até agosto de 1996

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nenhum terreno havia sido comercializado, segundo o próprio autor do projeto, o arquiteto Júlio Neves. O mercado imobiliário foi unânime em concordar que a sobrevalorização dos terrenos inviabilizava qualquer projeto à época. Segundo o então Secretário Municipal do Planejamento, Roberto Paulo Richter, a existência de muitos terrenos vazios começava a normalizar os preços a partir do 2° semestre de 1996 (FSP:10.08.96. 3-4). Segundo estudo da SEMPLA, “(...) embora os preços unitários dos imóveis na região tivessem sofrido um aumento desde o anúncio da obra, até aproximadamente o mês de julho de 1996, até então o mercado estivera sempre mais vendedor que comprador, constatando-se grande especulação, principalmente na Área Diretamente Beneficiada (ADB), cujas ofertas se apresentavam com valores muito acima da real capacidade de negócios” (SEMPLA, 2000: 13). Segundo o mesmo estudo, a partir do segundo semestre, houve estabilização dos preços e um crescimento dos negócios, ainda que o comportamento do mercado fosse distinto para cada subperímetro da Operação. Naquele ano, a construtora Kauffmann teria gastado R$ 5 milhões em quatro Operações Urbanas. Em uma dessas operações, a construtora pagou R$ 1 milhão para poder construir 5.400 m² a mais de área no edifício residencial Palazzo Reale, cujos apartamentos teriam custo aproximado de R$ 1 milhão. A empresa tinha quatro empreendimentos em obras na região (três residenciais e um comercial), com investimentos totais de R$ 40 milhões. “É bom negócio construir ali. A localização é o ponto forte”, dizia Paulo Kauffmann, seu diretor (FSP: 24.08.97: 6-7). Com o aquecimento dos negócios, houve pressão para que o preço anteriormente fixado para os CEPACs (R$ 600), fosse aumentado, de modo a aumentar a receita arrecadada na Operação. Como a SEMPLA havia determinado um “desconto” de 20% sobre os valores aferidos em suas pesquisas quando da fixação do preço do CEPAC, resolveu-se eliminar progressivamente o “desconto”, sendo o valor do CEPAC reajustado em 1º de agosto de 1996 para R$ 660. Em 11 de agosto de 1996 foi inaugurado o último trecho da Avenida “Nova Faria Lima”, o trecho “Vila Olímpia”, ligando as Avenidas Juscelino Kubitschek e Hélio Pellegrino. De certa forma, este foi o trecho mais “problemático” para a administração municipal, pois aí ocorreu a maior resistência ao projeto por parte de moradores organizados em associações, resultando em complicadas negociações, concessões e barganhas. Entretanto, a área ao redor da Avenida Juscelino Kubitschek

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(incluída nos Subperímetros -Áreas Diretamente Beneficiadas: Itaim -2- e Vila Olímpia -3-), viria a ser a mais atrativa para investimentos em novos imóveis comerciais de todo o perímetro da Operação Urbana, com 13 projetos até 2000161. O trecho de 900 metros foi realizado ao custo de 107 desapropriações, número bem menor que o inicialmente previsto. A ligação com a Avenida Engenheiro Luiz Carlos Berrini não foi completada. Figura 5-18: Trechos inaugurados da Avenida Nova Faria Lima: extensão, custo e desapropriações. Fonte: FSP:10.08.1996.

161 Incluem-se aqui os projetos de n.º 17, 59 e 90 (ADB 3 Vila Olímpia), 41,51,62, 129 e 130 (ADB 2 Itaim) e 12, 15 e 91 (AIB 6 Itaim Inferior) (ver Tabela de Projetos aprovados na Operação Urbana Faria Lima).

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Figura 5-19: Traçado da Avenida Faria Lima nos distritos de Pinheiros e Itaim, com serviços e instituições. Fonte: FSP: 06.10.2002: Imóveis-2.

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Ao final do mandato de Paulo Salim Maluf (dezembro de 1996), já agora totalmente terminada, a chamada Nova Faria Lima estava longe de ter custo zero. Esperava-se, entretanto, que a avenida se pagasse no médio e longo prazo. Apenas 15 empreendimentos tinham sido aprovados desde junho de 95 até março de 1997, gerando uma receita para o município de aproximadamente US$ 31 milhões (A SEMPLA fala em gastos públicos totais de US$ 150 milhões na Operação Urbana Faria Lima, sendo US$ 120 milhões apenas para as desapropriações). Das 15 “operações”, apenas uma ficava na avenida Faria Lima. As restantes situavam-se em ruas próximas, nas chamadas Área Indiretamente Beneficiadas (AIB). Entretanto, logo este quadro se inverteria e a nova avenida se consolidaria como um dos pontos mais “quentes” para empreendimentos imobiliários, tanto na área comercial como na área residencial. Um ano depois de inaugurado o novo trecho da avenida, o mercado imobiliário da região vivia um boom de investimentos, que totalizavam R$ 125 milhões (FSP: 24.08.97: 6-7). Os empreendimentos de grande porte se localizavam principalmente no trecho entre as avenidas Cidade Jardim e Hélio Pellegrino, indicando diferenças importantes de demanda por novos terrenos nos diferentes subperímetros, pois nos subperímetros de Pinheiros e Vila Funchal problemas fundiários dificultavam a incorporação de grandes lotes. A grande procura pela inclusão de projetos na Operação Urbana através da compra de CEPACs levou a mais um aumento no seu valor. De R$ 660 (1º de agosto de 1996), os CEPACs foram reajustados para R$ 700 (1º de julho de 1997). A SEMPLA teria elaborado novos estudos, onde obteve uma faixa de valores entre R$ 528 e R$ 968, “denotando uma diminuição nos valores limites encontrados no período anterior, explicada pela euforia daquele primeiro momento” (SEMPLA, 2000: 13). Apesar da diminuição dos valores limites, a SEMPLA indicou um valor médio de R$ 765 para os CEPACs e a CNLU deliberou o reajuste para R$ 700. Em agosto de 1997, as construtoras Cyrela e Inpar lançaram dois empreendimentos de grande porte na área de flats e hotéis, que juntos somavam investimentos de R$ 74 milhões. A construtora GHG adquiriu um terreno de 3.300 m², onde iria construir um edifício de escritórios, cujo investimento total ficaria em torno de R$ 51 milhões. O grupo francês Societé Vendôme, por sua vez, adquiriu um terreno de 19.000 m², onde seria erguido um Shopping Center e duas torres de escritórios, com projeto de Júlio Neves, o mesmo arquiteto responsável pelo projeto de ampliação da

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avenida. A Turner Brasil tinha pronto o projeto de um edifício comercial de “padrão internacional” (FSP: 24.08.97: 6-7). No segundo semestre de 1997, o conselho da CNLU aprovou um pacote de projetos incluídos na Área Indiretamente Beneficiada (AIB) da Operação Urbana Faria Lima. A Prefeitura de São Paulo visava arrecadar cerca de R$ 10,8 milhões com a venda de CEPACs. Apenas na região da avenida República do Líbano, seriam arrecadados R$ 3,6 milhões (valores da época). Mas para a arquiteta Regina Monteiro, então diretora do Movimento Defenda São Paulo, o valor seria insuficiente para fazer melhorias necessárias na região ou, em outras palavras, as obras viárias necessárias para atender ao volume de trânsito trazido para a região pela Operação Urbana não poderia ser pago pelo valor arrecadado por esta. Na mesma reunião (09.10.97), a CNLU aprovou um pacote de Operações Interligadas, arrecadando cerca de R$ 3,5 milhões, que seriam empregados no programa municipal de habitação de interesse social (HIS). Segundo Monteiro, com a verba arrecadada seria possível construir apenas 253 apartamentos do Cingapura: “A relação custo-benefício não compensa. É muito pouco dinheiro se comparado ao estrago que os novos empreendimentos vão causar ao bairro. Além disso, será uma ação definitiva, pois, uma vez feita, a urbanização da área não tem volta”, afirmou a arquiteta (FSP: 10.10.97: 3-9). Em 1997, a Vila Olímpia começava a apresentar índices de desempenho nas áreas de locação e venda de imóveis comerciais muito superiores a outras áreas da cidade. Em setembro daquele ano, a Bolsa de Imóveis do Estado de São Paulo indicava que a região tinha o maior “índice de absorção”162 da cidade (2,71%), superior ao alcançado nas avenidas Paulista (2,37%) e Faria Lima (2,08%). Na época, a Vila Olímpia teria comercializado 5.000 m² úteis, de um estoque de 200.000 m² disponíveis (enquanto a avenida Paulista teria comercializado 28.000 m² de um total de 1.190.000 m² disponíveis. FSP: 10.10.97: 3-9). O destaque eram os empreendimentos com conjuntos de escritórios, de área média de 25 m², que incorporavam o conceito de pool de locação no mercado, ou aqueles que apresentavam uma mistura de conjuntos comerciais e flats. Esses edifícios vinculavam-se claramente ao caráter de cidade mundial de São Paulo, pois atendiam a uma demanda típica das atividades 162 Índice calculado tendo como base o volume de imóveis negociado e o estoque existente.

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desenvolvidas em conexão com a globalização (pequenos escritórios que serviam a profissionais liberais, prestadores de serviço, funcionários trabalhando em atividades terceirizadas, empresas de desenvolvimento de sites na Internet etc.). Apesar disso, os altos preços praticados por proprietários de terrenos ainda eram motivo de descontentamento para as incorporadoras. Em agosto de 1997, o metro quadrado na Vila Olímpia chegava a uma média de R$ 5.000, contra média de R$ 3.000 nas outras regiões da cidade, o que, segundo investidores, inviabilizava um preço final competitivo dos imóveis (FSP: 24.08.97: 7-3). Como vimos, o alto valor do m² estava longe de desanimar os compradores. A construtora GHG adquiriu um terreno de 3.300 m² no início de 1997, pagando cerca de R$ 5.000 o m² , visando a implantação de um edifício de escritórios com 18 andares, com área total de 25 mil m². Tal investimento se justificaria, nas palavras do diretor da CHG, Elie Hamaoui, por ser este um “produto especial, voltado para multinacionais” e que teria demanda assegurada, apesar do alto valor do terreno. Segundo Hamaoui o preço de venda do imóvel ficaria em torno de R$ 4.500 o m² , enquanto o um imóvel similar na Avenida Paulista na mesma época teria valores próximos a R$ 4.000 m² (FSP: 24.08.97: 7-3). Paralelamente a esse movimento de super valorização dos terrenos, imobiliárias tentavam convencer moradores a vender suas casas para criar lotes para incorporadoras. Em 1998, agravou-se a situação orçamentária da Prefeitura de São Paulo. A falta de recursos foi provocada sobretudo pelas dívidas herdadas por Celso Pitta de seu antecessor,

Paulo Maluf (1993-96). Maluf

havia implementado uma política de

multiplicidade de obras em ritmo de urgência, o que acabou duplicando a dívida municipal. Com as obras, Maluf elegeu o seu sucessor, mas comprometeu irremediavelmente a dotação orçamentária da gestão Pitta, que foi obrigada a fazer cortes nas despesas de praticamente todos os setores, inclusive de bandeiras eleitorais de Maluf, como a habitação (projeto Cingapura) e os grandes projetos viários163. 163 Quando Maluf assumiu a Prefeitura em 1993, a dívida municipal girava em torno dos R$ 4,2 bilhões. Quatro anos depois, já alcançava R$ 8,89 bilhões (em valores de janeiro de 1998: IPC/Fipe). Deste montante, cerca de R$ 1 bilhão tinham vencimento no primeiro ano da gestão Pitta (1997). Com os juros e os novos empréstimos contraídos por Pitta, principalmente para pagar compromissos anteriores, a dívida em agosto de 1998 giraria em torno de R$ 10,9 bilhões (FSP: 27.08.98: Especial: 5-8). Além de ser obrigado a cortar novos investimentos, Pitta teve ainda de saldar débitos e “restos a pagar” da gestão

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Tal quadro obrigou a uma paralisação quase total das grandes obras viárias, além de inviabilizar as obras de infra-estrutura complementar às obras viárias realizadas na gestão de Maluf164, como no caso da Avenida Brigadeiro Faria Lima onde havia, desde a gestão anterior, o projeto para uma passagem em desnível entre esta Avenida e a Avenida Juscelino Kubitschek165. Em meados de 1998, por sugestão do Tribunal de Contas do Município, a SEMPLA criou uma comissão com 15 “peritos” que deveriam estudar e propor uma atualização do valor dos CEPACs. Esta comissão seria constituída por “representantes de empresas e profissionais especializados, de reconhecida capacidade técnica e experiência no mercado e contando com a participação especial do IE- Instituto de Engenharia e do IBAPE- SP – Instituto Brasileiro de Avaliações e Perícias de Engenharia de São Paulo” (SEMPLA, 2000: 17). A Comissão de Peritos concluiu que os valores do CEPAC poderiam ser utilizados como instrumentos de política urbana, em função das atividades que se quisesse estimular e do subperímetro em que se pretendesse implementar maior ou menor aproveitamemto do solo (SEMPLA, 2000: 18). A Comissão teria concluído também pela inadequação da tabela de correção de valores, anexa à Lei n.º 11.732/95 recomendando a avaliação caso a caso. Os resultados obtidos foram resumidos numa análise paramétrica (tabela 5-20), onde simulou-se o efeito da adoção de cada valor do CEPAC encontrado (SEMPLA, 2000: 17):

anterior, já que obras concluídas por Maluf tiveram o vencimento de suas contas na sua administração, contribuindo para o agravamento da crise. 164 As dez obras mais importantes, incluídas no orçamento municipal de 1997 e que haviam sido paralisadas em 1998 eram: Canalização do córrego Pirajussara, Canal entre o córrego Pirajussara e o rio Pinheiros, Passagem em nível na esquina das avenidas Faria Lima e Juscelino Kubitschek, Ampliação e piscinões no Córrego Cabuçu de Baixo, Sistema viário Jacu-Pêssego (prolongamento até Rodovia Ayrton Senna), Complexo viário Sena Madureira, Retificação e canalização do córrego Aricanduva, Canalização do córrego Jacu-Pêssego, Canalização do córrego Água Espraiada, Pavimentação e prolongamento da avenida Água Espraiada até a rodovia dos Imigrantes (FSP: 05.01.98: 3-4). 165 Existiriam planos para sua retomada na gestão Marta Suplicy. As obras seriam financiads com os fundos arrecadados na própria Operação Urbana.

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Tabela 5-20: Tabela paramétrica com simulação do efeito da adoção de valores diferentes para o CEPAC no perímetro da Operação Urbana Faria Lima. Fonte: SEMPLA, 2000: 17 Valor do CEPAC

Conclusões

400-500

Há condições de fomento da política urbana almejada em todos os subperímetros

501-600

Há condições de fomento da política urbana almejada em todos os subperímetros, à exceção do subperímetro de V. Olímpia.

601-700

Há condições de fomento da pol´tica urbana almejada para os seguintes usos e subperímetros:

701-800

Residencial e comercial/serviços em Pinheiros;

Comercial/ serviços no Itaim;

Residencial e comercial/serviços Vila Funchal;

Residencial em Uberaba.

Há condições de fomento da política urbana almejada para os seguintes usos e subperímetros:

801-900

Comercial/ serviços em Pinheiros;

Comercial/ serviços na Vila Funchal;

Residencial em Uberaba

Há condições de fomento da política urbana almejada para os seguintes usos e subperímetros: –

Comercial/ serviços Vila Funchal;

Residencial Uberaba.

Para justificar esses valores e “melhor orientar a deliberação da CNLU quanto ao valor do CEPAC (...) a SEMPLA acrescentou uma série de considerações que fundamentaram o método para a definição do valor básico de equivalência do CEPAC” (SEMPLA, 2000: 18). Nessa exposição de motivos encontraremos muito do discurso que embasou a própria noção de Operação Urbana dentro da esfera institucional do órgão encarregado de dar-lhe forma e conduzi-la. Assim, a SEMPLA busca embasar suas conclusões sobre os valores de equivalência do CEPAC através de sua definição de Operação Urbana. Para a SEMPLA, a Operação Urbana é “antes de tudo um instrumento de política de

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desenvolvimento urbano, não possuindo finalidades tributárias” (SEMPLA, 2000: 18). Isso contrasta com o uso eminentemente tributarista decorrente do uso da Operação Urbana Faria Lima como forma de “fazer caixa” e as manobras para a comercialização em massa dos CEPACs durante a gestão Paulo Maluf, o que acabou não ocorrendo, pelas questões legais já abordadas. A visão da SEMPLA era escorada pela análise da Exposição de Motivos que acompanhou o Projeto de Lei do Executivo e que viria a se transformar na Lei n.º 11.732/95, onde o texto rezava que: “A Zona Sul, como toda a cidade de São Paulo, não tem uma política adequada de ocupação de sua área ou um planejamento específico formulado a partir da correta utilização de seu sistema viário” (...) A Operação Urbana objetivada nessa mensagem foi proposta de forma a garantir que a introdução e a integração de diversos melhoramentos viários na marginal Pinheiros e nos bairros de Pinheiros, Itaim, Vila Olímpia e Vila Funchal, seja complementada pela adoção e uma política de adensamento e ocupação do solo na região, compatível com a maximização do uso das redes de infra-estrutura, de transportes e de serviços, que serão implementadas juntamente com o novo sistema viário” (apud SEMPLA, 2000: 18). Para a SEMPLA, “a intenção do legislador era exatamente incentivar o adensamento e maximização do uso das redes de infraestrutura, transportes e serviços, de forma a compatibilizá-las com o novo sistema viário” (SEMPLA, 2000: 18). Parece-nos que esse diagnóstico esconde uma contradição, pois sendo a região de intervenção uma região consolidada e relativamente bem servida de infra-estrutura (em comparação com outras áreas da cidade), o adensamento e a valorização imobiliária produzidos pela intervenção viária traduziu-se em congestão dessa infra-estrutura (o que analisaremos mais adiante). Em suma, os motivos primeiros se confundem com os resultados perseguidos. Afinal, era preciso fazer melhorias viárias por que havia grande adensamento na região, ou queria-se adensar para aproveitar as melhorias viária que seriam feitas dali para frente? Sendo assim, porque fazê-las em primeiro lugar? Já vimos que os motivos estruturais expostos para o prolongamento da Faria Lima (alternativa de trânsito para a Marginal Pinheiros e desafogamento do tráfego na região), eram no mínimo frágeis diante do quadro de uma intervenção violenta em bairros já consolidados, sendo que o principal nó viário da região do baixo Pinheiros

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(entroncamento de três grandes avenidas e auto-estradas na região da Ponte Eusébio Matoso e penetração do trânsito advindo da região oeste da área metropolitana e do Sul do país na região do Largo de Pinheiros), continuava sem solução. A SEMPLA continuava a sua exposição: “Na mesma mensagem que compôs a referida Exposição de Motivos, pode-se ler ainda: ‘O instrumento Operação Urbana, previsto no artigo 152 da Lei Orgânica do Município de São Paulo, enseja, através de sua mecânica de funcionamento, a participação conjunta do Poder Público e da iniciativa privada, onde o primeiro estabelece, por Lei específica, os objetivos e as diretrizes urbanísticas para que a ocupação e o desenvolvimento de uma área ou região da Cidade sejam efetuados de forma adequada e, ainda, fixa os incentivos que induzem a iniciativa privada a participar na contrapartida para o fornecimento de recursos técnicos e financeiros necessários à sua viabilização” (SEMPLA, 2000: 18). A SEMPLA vê aqui um dos “objetivos explícitos e uma das premissas” da Operação Urbana, que seria “justamente o incentivo à participação da iniciativa privada, pois sem ela não há Operação Urbana. Novamente, confundem-se instrumentos e objetivos e subordina-se o planejamento urbano aos interesses privados. As “melhorias viárias” teriam sido feitas para atender que necessidades? Uma vez realizadas, que impactos teriam sobre o ambiente construído circundante se não houvesse flexibilização do zoneamento restritivo através dos mecanismos embutidos na Operação Urbana? Sendo necessária a flexibilização das leis de zoneamento para o adensamento, para que serviria esse adensamento, se a própria extensão da avenida tinha tido como motivo principal o alívio da congestão provocada por um super adensamento preexistente? Parece-nos que a exposição dos motivos para o prolongamento da Avenida Faria Lima e a flexibilização do zoneamento advindo da adoção do mecanismo da Operação Urbana não teria sido bem elaborado pela SEMPLA, pois evidencia-se o amalgamento dos interesses da iniciativa privada e do Poder Público no redesenho e na redefinição do caráter de grandes áreas já consolidadas da metrópole, que no mais das vezes deixariam de ter um caráter eminentemente residencial para passar a ter um caráter sobretudo comercial. Sendo assim, admite-se implicitamente que mecanismos como o da Operação Urbana Faria Lima só podem funcionar em áreas de grande qualidade ambiental e bem servidos de infra-estrutura (muitas vezes áreas residenciais) onde a iniciativa privada tem interesses imobiliários ou onde esse interesse é criado a

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partir de grandes intervenções infra-estruturais. Em suma, áreas que não possuem pressão para a mudança de zoneamento restritivo não se incluem no rol das áreas passíveis de sofrer intervenção através de mecanismos similares. Isso nos leva a concluir que a Operação Urbana entra em conflito direto com o objetivo primeiro do zoneamento, que é o de assegurar uma coerência na ocupação do solo e a manutenção de algumas qualidades ambientais existentes. Nossa conclusão é a de que a Operação Urbana só poderia funcionar a contento dentro de um esquema de planejamento global para a metrópole, onde os esquemas de zoneamento fossem cuidadosamente revistos de acordo com uma lógica ecológica e socialmente sustentável de ocupação e que fosse adotado um coeficiente de ocupação igual para todo o território municipal, sendo que o direito de construir para além desse coeficiente seria sempre outorgado onerosamente, com valores variáveis conforme as áreas de desenvolvimento alvo. A própria SEMPLA (2000:18-19), reconhecia que “do ponto de vista da iniciativa privada, a área da Operação Urbana, de per si [sic], já é atraente para o setor imobiliário e tende a sê-lo ainda mais com os melhoramentos públicos previstos [grifo nosso]. Contudo, se as contrapartidas a serem pagas situarem-se numa faixa distante dos valores de mercado, há um risco de desinteresse em participar da Operação Urbana, preferindo o investidor o enquadramento de seu empreendimento na legislação regular de zoneamento , alternativa que a Lei n.º 11.732/95 lhe permite, mas indesejável para a consecução dos objetivos da Operação Urbana Faria Lima e para o aferimento dos recursos necessários à sua viabilização [grifo nosso]”. Mais uma vez, explicita-se o verdadeiro caráter da Operação Urbana Faria Lima: a mudança dos padrões de zoneamento restritivo vigente, com prejuízo para a qualidade de vida dos moradores (e a eventual congestão da área, como se verá), a modificação do caráter residencial da região (ver imagens 5-21 e 5-22) e a arrecadação de receita.

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Figura 5-21: Edificio Premium na AIB 3 (Baixo Pinheiros), Anúncio Publicitário, FSP: 28.08.1996: B-12.

Figura 5-22. Idem. Vista para as Avenidas Faria Lima e Rebouças. Anúncio Publicitário,.

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Para a SEMPLA, “o que deveria ser perseguido era o ponto de equilíbrio entre os dois interesses, o público e o privado, expresso em valor equivalente de CEPAC que pudesse equalizar o valor das contrapartidas nas Áreas Indiretamente Beneficiadas [AIB] e Áreas Diretamente Beneficiadas [ADB] (SEMPLA, 2000: 19). Considerava-se que nos lotes localizados em vias limítrofes entre ADB e AIB, as contrapartidas deveriam apresentar benefícios iguais ou muito similares (SEMPLA, 2000: 19). Em função das premissas estabelecidas pela SEMPLA, calculou-se para um determinado benefício padrão a contrapartida provável a ser paga, visando o estabelecimento de um valor padrão de equivalência do CEPAC. Segundo a SEMPLA, realizada a simulação, obteve-se uma faixa entre R$ 433,70 e R$ 791,00, dentro da qual o CEPAC deveria oscilar. A SEMPLA ponderou esses valores em função do montante das áreas compreendidas em cada subperímetro, chegando a um valor final de R$ 750,00 (dezembro 2000), valor acatado pela CNLU.

5.6- Mudança acentuada de usos e congestão da infra-estrutura Desde o início da Operação Urbana, a região da Nova Faria Lima e Vila Olímpia começaram a experimentar um fenômeno novo, além do boom de escritórios, flats e edifícios residenciais de luxo: a transferência de bares, restaurantes e casas de show para a região. No mesmo ano em que começaram as obras para a ampliação da avenida (1995) o bairro recebeu a casa de shows Tom Brasil, uma das maiores do gênero. Mas foi em 1998 que a região se firmou definitivamente como um dos pólos do entretenimento de alto nível na metrópole paulista. Nesse ano, 15 novos estabelecimentos abriram suas portas e chegava ao bairro a casa de espetáculos Via Funchal, empreendimento de US$ 40 milhões apto a abrigar mega-shows internacionais, com capacidade para até 3 mil espectadores sentados e 6 mil em pé. A localização (entre bairros residenciais de alto poder aquisitivo) e a facilidade de acesso, justificam o boom do entretenimento na região. “Segundo o SHRBS

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[Sindicato de Hotéis, Restaurantes, Bares e Similares], os empresários estão preferindo abrir novos negócios no Itaim e Vila Olímpia porque os imóveis são mais baratos e de fácil acesso pelas avenidas Faria Lima e Juscelino Kubitschek. (... ) Hoje, nos emergentes Itaim e Vila Olímpia estão seis dos dez bares em ascensão, segundo a pesquisa do Guia [da Folha de S.Paulo]. A Vila Madalena, que há cinco anos era a vedete, possui cinco dos dez ‘em baixa’, mas continua a receber novos bares” (FSP: Revista: 31.07.98: 76). Figura 5-23: O Distrito do Itaim. Instituições e serviços. FSP: 06.10.2002: Imóveis-2

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Tabela 5-24: Configuração sócio-econômica do distrito do Itaim-Bibi Itaim-Bibi: Perfil Sócio-Econômico (1º semestre 2002) População: 81.456 hab. IDH (2000): 0, 811 (5º lugar no município. 1º lugar: Moema (S), 0,884, último lugar Marsilac (S), 0,245. Média do município: 0,520. Distribuição Sócio-Econômica (% por classes de poder aquisitivo): Classe A (45,2) Classe B (24, 1) Classe C+ (17,6) Classe C (6,6) Classe D (2,6) Classe E (3,9) Classificação no Plano Diretor (2002): Urbanização consolidada (Área saturada, onde a diretriz é conter o adensamento com outorga onerosa mais alta) Fator para cálculo outorga onerosa: Fator residencial: 0,90 Fator não-residencial: 1,00 * (Não inclui perímetro da Operação Urbana Faria Lima) Agências bancárias: 65 Bares: 37 Cinema: 1 Teatros: 2 Restaurantes: 107 Shopping Centers: 3 Escolas públicas: 11/ Escolas particulares: 32 Total: 42 Hospitais: 7 Hotéis: 17 Lançamentos de imóveis em 2001: Comerciais: 2 Res. 1 dormitório: 3/ Res. 2 dormitórios: 5/ Res. 3 dormitórios: 5/ Res. 4 dormitórios: 6 Total residencial: 19 Total comercial: 2 *Exemplo de cálculo de outorga oneosa para imóvel no Itaim-Bibi, fora do perímetro da Operação Urbana Faria Lima: Prédio de 13 andares, construído em Z-3, com dois apartamentos por andar, coeficiente construtivo = 3. Cada apartamento tem 150 m² de área útil:

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– – – –

Terreno: 1.000 m² Potencial construtivo básico (3): 3.000 m² Área construída total: 3.900 m²/ Área adicional (3.900- 3.000): 900 m²

Fontes: IBGE, Secretaria do Desenvolvimento, Trabalho e Solidariedade do Município de São Paulo, Plano Diretor do Município de São Paulo (2002), Urban Systems Brasil e Amaral D’Ávila Engenharia de Avaliações (FSP: 15.08.2002: C3/ 14.08.2002: C3/ 06.10.2002: Imóveis- 1)

Entretanto, a invasão da região por bares, restaurantes e casas de espetáculo, entre outros estabelecimentos similares, acabou por comprometer a qualidade de vida dos moradores ainda mais que a instalação de torres de escritórios e flats no bairro outrora residencial e horizontal. Reportagem do jornal universitário Momento (1999), dava conta da insatisfação dos moradores. “Excelente para os investidores, ótimo para quem procura entretenimento. E para os moradores? Até aqueles que suportaram bem a chegada dos escritórios, não conseguem conviver com as casas noturnas. ‘É muito barulho, mesas na calçada atrapalhando a passagem, carros parados na frente das garagens’, reclama a dona de casa Isabel Vincenzo, há seis anos no bairro. ‘É tanto trânsito que quem entra não consegue sair, quem sai não consegue entrar’, completa o corretor de seguros Ivan Soares” (Momento, 1999). Em 2002, o problema dos bares e casas noturnas, geradores de trânsito e ruído noturno, além de violência e, segundo alguns, tráfego de drogas, também era apontado como o principal do bairro por Marco Antônio C. Branco, presidente da Sociedade Amigos do Itaim Bibi e pelo vice presidente da AMAVO (Associação dos Moradores e Amigos da Vila Olímpia), Cláudio Renaud (FSP: 06.10.2002, Imóveis: 1). Os vários problemas decorrentes da instalação de casas noturnas e bares, acabaram por produzir dois fenômenos distintos, ligados ao mercado imobiliário da região. Por um lado, a decadência na qualidade ambiental engendrou uma desvalorização dos pequenos imóveis residenciais (casas), abrindo caminho para a sua compra por grandes incorporadoras. Por outro, houve “desistência” de moradores de defender um estilo de vida já irremediavelmente comprometido. O periódico Momento registrava que, “na seção São Paulo Reclama do jornal O Estado de S. Paulo, não são poucas as cartas de protesto. Em uma delas (28.03.99), Eduardo Dickmann, morador da Rua do Rocio escreve: ‘Os imóveis já estão depreciados em mais de 20%, pois ninguém quer morar no meio da bagunça. As drogas correm à vontade, na mão de garotos

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(muitos, moradores da favela da rua Funchal, conhecida como o maior centro de distribuição de cocaína e crack da zona sul). Onde está a polícia? O trânsito na rua tornou-se caótico. Além de por ela passarem várias linhas de ônibus, a rua termina na esquina da Funchal, a 50 metros da favela, um cruzamento recorde em assaltos. A situação é de desespero. Onde está a CET?’” (Momento, 1999 apud OESP: 28.03.99). Desse modo, objeto de uma intervenção viária gigantesca, a região começava a sofrer com a insuficiência de sua infra-estrutura viária secundária e a deterioração ambiental causada pelo descontrole na ocupação e na regulação dos usos. De fato, a degradação ambiental e a “desistência” de moradores tradicionais por lutar pela manutenção das qualidades ambientais do antigo bairro residencial abriram caminho para que o prolongamento da Avenida Faria Lima até a Avenida dos Bandeirantes ganhasse força mais uma vez, como se verá mais adiante. Como vimos, a resistência inicial dos moradores de Vila Olímpia organizados em associações não impediu que profundas modificações ocorressem na área. Segundo reportagem de Marcus Lopes (OESP: 14.01.2002: s.p), a Vila Olímpia teria “pago caro” para tornar-se um dos principais pólos econômicos da cidade: “Ruas estreitas, trânsito caótico e equipamentos urbanos obsoletos. (...) No decorrer dos anos, a infra-estrutura do bairro, tipicamente residencial, não acompanhou a velocidade dos empreendimentos imobiliários que tornaram a região um dos símbolos de poder econômico e modernidade arquitetônica, representados por edifícios de última geração” (OESP: 14.01.2002: s.p.). Porém, ainda que o bairro tenha sido profundamente modificado pelos escritórios e bares que se instalaram na região a partir de 1995, a região não perdeu totalmente sua função residencial. Porém, isso ocorreu às custas de grande verticalização e de grande mudança nos padrões de ocupação, sugerindo um fenômeno gentrificatório ainda insuficientemente estudado. Entre 1996 e 1999, dados da Empresa Brasileira de Estudos de Patrimônio (Embraesp) mostram que teriam sido lançados na Vila Olímpia 13 novos empreendimentos residenciais de alto padrão. Desse total, mais de 50% eram flats, com 1.589 apartamentos. No mesmo período, os lançamentos comerciais somaram 15 novos projetos e um total de 1.209 conjuntos de escritórios. Os edifícios de apartamentos eram, em sua imensa maioria, de alto padrão, destinados para a classe “A”: Na área dos empreendimentos comerciais, pesquisa da Cushman & Wakefield Semco (2000) indicava que o estoque de área construída na região saltou de 8 mil m²

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em 1997 para 46 mil m² em 1998, o que representava um crescimento de 575% em apenas um ano. Em 1999, mais 42 mil m² foram acrescentados ao estoque comercial do bairro. De acordo com a assessoria da construtora Cyrela, que atuava há mais de 20 anos na região, haveria vários motivos para o investimento em imóveis comerciais na região: essa seria uma área cercada por bairros nobres (Vila Nova Conceição, Itaim Bibi e Moema), servida por importantes vias de acesso (Marginal Pinheiros e avenidas Santo Amaro e Juscelino Kubitschek) e localizada no mais importante eixo corporativo da capital (Faria Lima/Berrini). Devemos destacar uma área da Vila Olímpia (ANB Vila Olímpia: 3) (ver mapa 3-9) onde os moradores preferiram ficar de fora da Operação Urbana Faria Lima, recorrendo a grande pressão sobre a Prefeitura, através da mídia e na própria Câmara dos Vereadores. Na prática isto significava que a área não sofreria modificações tão drásticas quanto nos trechos pertencentes à operação, sendo que os terrenos não se valorizariam da mesma maneira, já que o potencial construtivo permaneceria o mesmo. “É o pior de dois mundos”, dizia Gonçalves (EMURB), “já que todos os efeitos negativos da nova Avenida já estão presentes, sem nenhum benefício em contrapartida. A verdade é que estas pessoas foram muito mal orientadas”, concluía (Gonçalves, 1996, entrevista). Gonçalves diagnosticava um “sentimentalismo bobo” nos moradores, que se apegariam demais aos seus bairros, sem perceber que “no atual esquema da metrópole, deveriam valorizar mais a mobilidade, já que assim poderiam estar mais perto do trabalho e da escola”. Sob a ótica de Gonçalves, não aceitar a contrapartida oferecida pela Prefeitura seria perder a oportunidade de minorar os males inevitáveis que suas políticas acarretariam. Visando evitar o agravamento da deterioração ambiental e urbana (o que levaria à desvalorização também dos novos imóveis comerciais e torres de apartamentos) e apressar a interligação da Faria Lima com a Berrini, um grupo de mais de 90 empresários fundou, em 2001, o “Movimento Colméia SP”166.

166 A diretoria da ONG Colméia era composta originalmente por: Adalberto Bueno Netto, Diretor Presidente (dono da Bueno Netto Gestão Imobiliária, antes conhecida como RGB), José Paim de Andrade Júnior, Diretor Vice-Presidente,

Lincoln da Cunha Pereira Filho, Diretor

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A Colméia é uma organização não governamental (ONG), presidida pelo engenheiro Adalberto Bueno Netto, dono da Bueno Netto Gestão e Empreendimentos Imobiliários, possuidora de vários projetos na região da Operação Urbana Faria Lima. Seu principal objetivo era “corrigir as contradições criadas por 20 anos de explosão imobiliária” no bairro de Vila Olímpia (Asbea, 2001167), atuando em áreas tão diversas como a segurança pública, a coleta seletiva de lixo, a melhoria dos padrões urbanísticos e de acessibilidade etc. Figura 5-25:

Mapa limites atuação movimento Colméia. Fonte:

FSP:08.09.2001

Técnico, Roberto Aflalo Filho, Diretor de Projetos e Urbanismo, Marco Antonio Vasconcelos, da Eletropaulo e Marcelo Terra, Diretor Jurídico. 167 Entrevista com Adalberto Bueno Netto, Jornal Asbea n.º 67, novembro 2001, Seção registros e Anotações. Vide www.asbea.org.br/jornal/j67/registros67.htm.

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Segundo Bueno Netto (Asbea, 2001), o diferencial da associação Colméia em relação a outras ONGs do gênero seria o “enfoque”: “Em geral associações de bairro levantam problemas levando-os à Prefeitura. Essa forma de atuação não está sendo produtiva. A Colméia quer não só levantar os problemas como propor e aplicar as soluções. Por nossa própria atividade, podemos dar encaminhamento diferente do tradicional. Levantamos um problema, encontramos a solução que atenda aos interesses dos moradores e usuários, levamos a sugestão ao poder público e pretendemos aplicá-la. Como, entre os associados, contamos com urbanistas e empresários da construção civil, temos maior facilidade na interação com o setor público” (Asbea, 2001). Indagado sobre os membros constituintes do Movimento, Bueno Netto respondia que a Colméia pretendia reunir moradores e usuários da Vila Olímpia, mas que o Movimento teria começado reunindo empresários “por uma questão pragmática”: “(...) Sabemos que sem dinheiro não se faz nada e não adianta pedir recursos para moradores se você não apresentar algum tipo de solução - esse modelo está desacreditado. Usamos então nossos relacionamentos e solicitamos R$ 500 de cada uma das 100 empresas - que são as nossas sócias-fundadoras -, para constituirmos um caixa e arcar com nossos primeiros projetos. Temos um sentido prático. Na questão da segurança, por exemplo, não ficamos só no discurso - já há viaturas e homens contratados fazendo o trabalho no bairro. Com isso, acreditamos, será mais fácil conseguir a adesão dos condomínios e dos moradores” (Asbea, 2001). Porém, o projeto mais ambicioso do Movimento Colméia era sem dúvida o projeto de prolongamento da Avenida Hélio Pellegrino até a Marginal do Pinheiros, em “parceria” com a PMSP. Segundo o então diretor-técnico do movimento, Lincoln da Cunha Pereira Filho, donos de áreas por onde passaria a futura avenida estariam dispostos a doar faixas de terrenos para a Prefeitura para que esta prolongasse a avenida Hélio Pellegrino, a partir da Avenida Faria Lima. Segundo Pereira, isso se justificaria pelas “melhorias” trazidas à região, salientando que o maior custo para o poder público nesse tipo de obra seriam as desapropriações de terrenos. As principais alterações nas vias teriam lugar na Rua das Olimpíadas (continuação da Hélio Pellegrino), que passaria de 14 para 36 metros de largura, e na Rua Funchal, que seria alargada em 16 metros (JT: 12.01.02: s.p.). O projeto da avenida proposta pelo movimento à Prefeitura teria sido realizado por escritórios de arquitetura localizados na região (mais precisamente, o escritório de

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Aflalo e Gasperini Arquitetos Associados) e contaria com um projeto complementar para a construção de um estacionamento subterrâneo com mais de 2 mil vagas, construído sob a futura avenida, resolvendo um dos problemas mais graves da região, segundo Pereira: a falta de estacionamentos (OESP: 14.01.2002 : s.p.). Em janeiro de 2002, Roberto Aflalo, diretor de operações do Movimento Colméia, dizia que, embora o projeto já fizesse parte dos planos da Prefeitura, faltariam recursos. Apesar disso, “80% dos terrenos em torno das duas avenidas foram doados pelos empresários da região o que possibilitou a viabilização a obra” (Gazeta Mercantil: 29.01.02: s.p.). Para Aflalo, iniciativas como essas é que “possibilitariam melhorar a vida nas grandes cidades”, pois “não dá para ficar de braços cruzados esperando que a Prefeitura e o governo do estado façam tudo” (Gazeta Mercantil: 29.01.02: s.p.). Segundo o então presidente da EMURB, Maurício Faria, apesar de ainda não haver na época uma previsão para o início da obra, a iniciativa dos empresários deveria apressar o projeto, que também contaria com recursos da Operação Urbana Faria Lima (OESP: 14.01.2002: s.p.). Para Faria, as obras não seriam viáveis sem a ajuda da comunidade. “A capacidade de investimento da Prefeitura é limitada. O metro quadrado da região é caro e, se o município tivesse de arcar com as desapropriações, a viabilização das avenidas seria difícil” (JT: 12.01.02: s.p.). Ao final de 2002, reportagem publicada pelo Estado de São Paulo (OESP: 05.11.2002) dava como certo o prolongamento da Hélio Pellegrino até a Avenida dos Bandeirantes, através das ruas Olimpíadas, Gomes de Carvalho e Funchal, na Vila Olímpia. O projeto de alargamento das vias já estaria pronto e a EMURB deveria lançar o edital de licitação em dezembro de 2002, sendo que 44 desapropriações estariam sendo feitas desde junho de 2002. Com a posse das áreas, os empresários poderiam iniciar as ações acordadas com a Prefeitura: a Colméia faria uma pista na rua Gomes de Carvalho e outra na rua das Olimpíadas e o Município cuidaria das desapropriações e do alargamento da rua Funchal, além da adequação nas novas ruas. As obras teriam um custo total de R$ 40 milhões, obtidos através Operação Urbana Faria Lima, sendo que mais da metade deste valor seria utilizada para o pagamento de desapropriações. A Colméia arcaria com R$ 10 milhões para o alargamento das ruas Gomes de Carvalho e das Olimpíadas. Segundo reportagem do jornal O Estado de São Paulo, “a ligação das duas avenidas era esperada pelas empresas que foram para a Vila Olímpia após o

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prolongamento da Faria Lima. Quando os prédios passaram a ocupar lotes onde antes havia casas, viu-se que as ruas estreitas não comportariam o movimento” (OESP: 05.11.2002): Segundo Roberto Aflalo (Colméia, OESP: 14.01.2002 : s.p.), estas obras serviriam para estruturar o sistema viário, mas seriam necessárias outras obras que tirariam o impacto do trânsito na Marginal do Pinheiros. Para isso, a EMURB planejava a construção de duas novas pontes sobre o rio Pinheiros: uma funcionaria como mão contrária à Ponte Engenheiro Ari Torres e a outra seria erguida no eixo da Avenida Juscelino Kubitschek, como alternativa à Ponte Cidade Jardim. Na mesma época, a EMURB informava em entrevista que as negociações para uma eventual parceria com o Movimento Colméia ainda estavam em andamento, visando definir as formas de participação da entidade na viabilização da obra. Um carta de intenções teria sido trocada entre as duas partes, mas seu caráter seria ainda bastante preliminar. A EMURB negava que os papéis de cada agente já estivessem acertados. Entretanto, a Empresa confirmava que as obras seriam realizadas e que teriam início em março de 2003, simultaneamente à intervenção programada para o Largo da Batata, definida em concurso público nacional em 2002 (ver ítem J) . Ambas as obras contariam com recursos gerados pela própria Operação Urbana. Sobre a questão de interferência do Movimento Colméia em áreas geralmente sob domínio do poder público (como limpeza e segurança), Bueno Netto, fundador do Movimento Colméia, apelava para o pragmatismo: se o poder público “não cumpre seu papel”, caberia à iniciativa privada agir para ver atendidas suas necessidades (OESP: 14.01.2002 : s.p.). Como exemplos dessa atuação, Bueno Netto citava a segurança, a coleta seletiva de lixo e “uma orientação de caráter maior” que visaria corrigir a dificuldade na circulação de pedestres na região, que sofreria com a má qualidade das calçadas e dos acessos, contando para isso com parcerias com a Eletropaulo (distribuidora de energia na capital) além de apoio da EMURB e da CET. A Eletropaulo teria se disposto a estudar e fazer o cabeamento subterrâneo num quarteirão “modelo” (uma quadra da alameda Vicente Pinzón), que serviria como vitrine do projeto para moradores e usuários da região. O quarteirão modelo teria projeto urbanístico desenvolvido pelo escritório Aflalo & Gasperini. Segundo Bueno

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Netto, quatorze empresas com projetos geradores de tráfego no bairro doariam todo o sistema de sinalização viária e semáforos automatizados, sendo que o problema de estacionamento de veículos seria resolvido com concorrências públicas para a construção de estacionamentos subterrâneos. Bueno Netto citava novamente os projetos de alargamento da rua das Olimpíadas e da rua Funchal, como oportunidades para a construção desses estacionamentos168, além da criação de bolsões de estacionamentos externos (Asbea, 2001). O Movimento Colméia dava aqui testemunho importante do discurso e da ideologia que colocavam o poder público como “parceiro” e eventual “espectador” das iniciativas privadas na cidade. Tal papel secundário a que o poder público se via mais e mais reduzido estava inserido no quadro ideológico do neo-liberalismo, de um Estado “mínimo” e de caráter gerencialista, conforme analisado anteriormente neste texto. Esse papel secundário, mas necessário, assumido pelo Estado na condução das políticas urbanas era calcado em construções ideológicas que abriam caminho e de certa maneira legitimavam certas ações do setor privado na conformação do espaço urbano, como veremos a seguir. Prevendo o prolongamento da Avenida Hélio Pellegrino com o alargamento e prolongamento da rua das Olimpíadas e a consecução do que chamaremos preliminarmente “Eixo Corporativo Faria Lima/ Berrini”, ao final de 1998 a construtora brasileira Inpar oferecia aos investidores estrangeiros uma parceria para a construção de um mega-empreendimento comercial na região, o “Continental Square Faria Lima”, em um terreno de 12 mil m² na própria rua das Olimpíadas com a rua Quatá (rua Quatá, 1117) [Proposta Operação Urbana n.º 80. Ver tabela]. O projeto, também de autoria do escritório Aflalo & Gasperini, previa a construção de 400 unidades de flats, 300 conjuntos comerciais, um centro de convenções para 1.800 pessoas, dez cinemas e ainda outras nove salas de 2.000 m² de escritórios e consultórios, num investimento calculado em R$ 12 milhões (Valores da época. FSP: 29.11.98: Imóveis- 11). O impacto de tal projeto na região seria extraordinário e catalizaria forças no setor privado para a 168 Mais tarde, constatou-se que por causa da rede hidrográfica da área, as opções de aproveitamento do subsolo eram limitadas e as garagens seriam retiradas do projeto (OESP: 05.11.2002).

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consecução da ligação entre a Nova Faria Lima e a Avenida dos Bandeirantes, constituindo um eixo contínuo com a Avenida Engenheiro Luiz Carlos Berrini/ Nações Unidas169 . Figura 5-26: Projeto ‘Continental Square’. Projeto Aflalo & Gasperini. Fonte: Informativo Planeta Imóvel, março 2002.

169Mais tarde, com a escassez de investimentos externos, a Inpar propunha que o empreendimento fosse financiado por uma nova modalidade de investimento imobiliário, o Fundo de Investimento Imobiliário de Objetivo Exclusivo, onde os investidores interessados em participar do investimento imobiliário se reuniriam num fundo de investimento, sob a forma de condomínio. Este fundo seria administrado por instituições financeiras, agindo sob ordem dos investidores na administração do patrimônio representado pelo portfolio imobiliário. Essa modalidade de fundo de investimento imobiliário é regulamentado pela Comissão de Valores Mobiliários (CVM), órgão que registra, controla e fiscaliza tais fundos. Na hipótese de não ocupação ou ocupação apenas parcial do imóvel, e após 6 meses da conclusão do empreendimento imobiliário, com a obtenção do auto de conclusão (“habite-se”), a Inpar garantiria contratualmente ao fundo de investimento, pelo período de 24 meses, a renda mínima de 12% ao ano, sobrepondo-se ainda o aluguel mínimo mensal pelo arrendamento de 10 anos do hotel. Os investimentos iniciais girariam em torno de R$ 29.800. www.planetaimovel.com/ conteudo/fundos/

materias/mercado/fl.asp

(27.03.2002)

(27.03.2002).

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e

www.continentalsquare.com.br


A “grande novidade” deste empreendimento seria a possibilidade da participação de pequenos e médios investidores na realização de um projeto imobiliário de grande porte, área de investimento antes dominada pelos fundos de pensão, megainvestidores e instituições financeiras, incorporando os médios e pequenos investidores domésticos ao processo de transformação da região. Apesar do grande alarde em torno do empreendimento feito pela Inpar e também pela Associação Colméia, alguns analistas inicialmente viram aí uma manobra meramente especulativa. Incorporadoras e construtoras estariam “apostando” no prolongamento da avenida Brigadeiro Faria Lima até a Avenida dos Bandeirantes como forma de valorização de seus imóveis. Como vimos, no início de 2001, a Prefeitura de São Paulo ainda negava que pudesse estar cogitando a conclusão da obra (FSP: 08.04.2001: Imóveis-1). Apesar disso, empreendimentos como o Continental Square Faria Lima se apoiavam no futuro prolongamento, incluindo-o inclusive em suas peças publicitárias. Imagem 5-27: Ligação Berrini /Faria Lima mostrada na publicidade do empreendimento imobiliário ‘Faria Lima Continental Square’. Fonte ‘Planeta Imóvel’, 2002.

“Construtoras que estão investindo no entorno da avenida ‘dão como líquido e certo seu alargamento’, justifica Gerson Luiz Bendilati, 43, diretor de incorporações da Inpar. ‘A expectativa no mercado é que as obras sejam feitas em no máximo dois anos’ (FSP: 08.04.2001: Imóveis-1), previsão que, ao final de 2002, tinha grandes chances de se concretizar. O suposto prolongamento provocou a valorização da região da rua das Olimpíadas, na Vila Olímpia, por onde se faria a ligação da Avenida Faria Lima com a Avenida dos Bandeirantes. Levantamento da empresa de logística urbana Urban

261


Science Brasil (2001)

mostrava que havia à época 12 lançamentos de prédios

comerciais, o que fazia da região uma das que mais concorridas à época. Figura 5-28: Perspectivas de extensão da Av. Faria Lima até a Av. Eng. Luiz Carlos Berrini e empreendimentos construídos na região até abril de 2001. FSP: 08.04.2001: Imóveis-1.

Sérgio Ferrador (Secovi-SP) discordava da garantia de valorização apresentada pelas incorporadoras e construtoras. Para Ferrador, a região já possuía preços “no limite do aceitável” e, mesmo havendo prolongamento, a demanda só se manteria no caso de uma “volta à realidade” dos preços na região. A Embraesp (Empresa Brasileira de Estudos de Patrimônio), dava conta que o valor médio do m² útil dos lançamentos na Vila Olímpia em 2001 era R$ 4.005, superior à média do distrito do Itaim-Bibi (que engloba bairro), com preços em torno de R$ 3.350 (FSP: 08.04.2001: Imóveis-1). Para Luiz Paulo Pompéia, diretor da Embraesp, a valorização não se deveria à construção do trecho final da Faria Lima, mas ao “conjunto de incentivos da operação

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urbana e a obras como os túneis Jânio Quadros e Ayrton Senna” (FSP: 08.04.2001: Imóveis-1). O Continental Square Faria Lima inseria-se assim numa “tradição” onde os empreendedores, prevendo a possibilidade de grandes investimentos infra-estruturais, apostavam em áreas relativamente menos valorizadas, mas que com investimentos públicos poderiam alcançar grande valorização em curtíssimo espaço de tempo. No caso do Continental Square, o empreendimento serviria ainda como “ponte” para o prolongamento da Avenida Hélio Pellegrino, valendo-se de sua grande área e da cooperação de vários atores imobiliários da região reunidos sob a égide do Movimento Colméia. O projeto catalizava a vontade do setor privado de incorporar uma área “residual”, localizada num ponto nevrálgico, cercado de grandes investimentos públicos em infra-estrutura (especialmente viária) e entre dois eixos de negócios imobiliários de extremo sucesso nos últimos anos. Em suma, o prolongamento da Avenida Hélio Pellegrino e a consolidação do Eixo Corporativo Faria Lima/Berrini foi um caso de “profecia que se autocumpre”: o mercado imobiliário fez grandes investimentos na expectativa de uma intervenção do poder público que valorizaria seus imóveis e criou as condições para que ela se realizasse, vencendo a resistência dos movimentos de vizinhança organizados através do “fato consumado”, da degradação das características ambientais defendidas por estes movimentos e da cooptação de uma parte dos moradores da área.

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5.7- Acentuamento do boom imobiliário, mudanças nos CEPACs e mais suspeitas de corrupção Em 1999 a SEMPLA constituiu uma nova comissão de peritos visando elaborar estudos para a atualização do valor de equivalência do CEPAC (ainda que este somente funcionasse como unidade de referência para a “outorga onerosa” de potencial adicional de construção, não tendo sido jamais comercializado). Utilizando a mesma metodologia adotada nos estudos conduzidos em 1998, a comissão concluiu que a região não havia apresentado, desde a última avaliação, valorização que pudesse se refletir no Valor Básico de Equivalência do CEPAC. Para a comissão, o valor do CEPAC (R$ 750: valor de referência), não estimulava a participação de forma homogênea em todos os subperímetros, limitando-se a fomentar alguns usos em subperímetros específicos. Porém, com base na estabilidade nos valores praticados pelo mercado na região, a SEMPLA optou pela manutenção do valor estabelecido em 1998, o que foi referendado pela CNLU. Em abril de 1999, denúncias de favorecimento na CNLU lançaram mais uma vez sombras sobre a isenção órgão no julgamento dos pedidos de inclusão de projeto na Operação Urbana Faria Lima. O DOM de 10.04.99 publicou convocação para que o empresário Jorge Yunes, que alegadamente havia feito um empréstimo pessoal de R$ 600 mil em dinheiro ao então prefeito Celso Pitta, assinasse o termo de compromisso da Operação Urbana aprovada para um imóvel na rua Frei Galvão (Jardins, Z-1), onde Yunes pretendia instalar um escritório (Proposta Operação Urbana n.º 69, processo 1997-0.217.138-5). O então vereador Carlos Neder (PT) entrou com representação no Ministério Público pedindo a investigação da relação entre o empréstimo e a aprovação da operação. Vereadores suspeitavam que os valores pagos como contrapartida para a Prefeitura fossem inferiores à valorização dos imóveis beneficiados. Por seu lado, a Secretaria de Comunicação Social da Prefeitura de São Paulo informava que não haveria nenhuma irregularidade na operação de Jorge Yunes, que teria tramitado dentro da Lei, junto com outros 90 processos (FSP: 14.04.1999: 3-4). Em junho de 2000, o Ministério Público Estadual analisou denúncia de o que o então prefeito interino da cidade de São Paulo, Régis de Oliveira (PMN), teria

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favorecido a construtora Tecnisa em fevereiro de 1998, quando era vice-prefeito do município e mantinha um escritório de advocacia. Oliveira teria recebido R$ 20 mil da empresa naquela época para fazer um parecer sobre a legalidade de um empreendimento imobiliário que seria incluido na Operação Urbana Faria Lima, segundo reportagem do jornal Valor (Valor: 06.06.2000). A Tecnisa foi acionada pelo promotor de Justiça da Habitação Mário Augusto Vicente Malaquias em 1998 porque pretendia construir um edifício na região da Operação Urbana Faria Lima. O Ministério Público, no entanto, considerou que o edifício não poderia ser construído no local porque agrediria os padrões urbanísticos da região. O advogado da Tecnisa, Sérgio Rubinstein, afirmou que procurou o então vice-prefeito para que ele desse o parecer por causa de seu nível de especialização e conhecimento da legislação municipal. Segundo ele, o Ministério Público errou ao considerar que a área analisada não estava incluída na área da Operação Urbana. Em 2000, constituiu-se mais uma vez comissão de peritos para a atualização do valor de referência do CEPAC. Segundo os estudos desenvolvidos, havia uma estabilidade nos preços, mas projetava-se para o futuro próximo uma recuperação do setor imobiliário que elevaria os preços na área da Operação Urbana Faria Lima. Entretanto, decidiu-se pela manutenção do valor de referência de R$ 750 até dezembro de 2000.

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5.8- A constituição de um novo Eixo Corporativo ao longo do rio Pinheiros Figura 5-29: Constituição de um novo eixo corporativo ao longo da Marginal do Rio Pinheiros. Fonte: Boletim Eletrônico Bolsa de Imóveis, ‘Databolsa’ (n.º 29), 2002. Mapa elaborado por Sírio Cançado

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As perspectivas de valorização dos imóveis de alto padrão localizados na região da avenida Faria Lima eram bastante promissoras no final dos anos 90 e apontavam, dada a magnitude dos investimentos na região, para a configuração de um extenso eixo de negócios, um “eixo corporativo”, que se estenderia, grosso modo, ao longo da calha do Rio Pinheiros. Este novo “eixo corporativo” incluiria, além da região Avenida Brigadeiro Faria Lima, as Avenidas Luiz Carlos Berrini e Nações Unidas. Seria cortado por eixos de negócios não menos importantes, como a Avenida Juscelino Kubitschek e a Avenida dos Bandeirantes. Este seria o espaço privilegiado de negócios descrito no capítulo 2, onde as atividades ligadas à atual fase de acumulação capitalista tomariam “forma” e produziriam “espaço” de maneira mais claramente conectada às atividades que fazem de São Paulo uma “cidade mundial”. Segundo a Jones Lang LaSalle, empresa transnacional especializada em consultoria imobiliária, a oferta de escritórios no local não aumentaria entre 2000 e 2001 (FSP: 26.07.99: 2-6). A falta de novos projetos se explicaria pela dificuldade em conseguir terreno para incorporação na avenida. “Os prédios nessa região só podem ser construídos na própria Avenida Faria Lima, pois ela está cercada nos dois lados por bairros residenciais”, afirmava Alberto Horn, diretor da Jones Lang LaSalle (FSP: 26.07.99: 2-6). Assim, não seria possível lançar projetos a um ou dois quarteirões da avenida, como aconteceria em outras regiões da cidade. A avaliação de Horn era de que com isso a avenida Faria Lima consolidaria sua posição como o metro quadrado mais caro de São Paulo. À época, o preço máximo de venda na Avenida Brigadeiro Faria Lima era de R$ 7.000 por metro quadrado útil, contra R$ 5.200 da Avenida Paulista. Para Horn, a valorização dos preços na região da Avenida Brigadeiro Faria Lima não deveria “enganar investidores incautos”, pois haveria um número grande de imóveis degradados na região, escapando à definição de “alto-padrão” exigida para a realização de lucros. O investidor teria de optar por prédios com infra-estrutura moderna, conectados com fibra ótica e localizados entre o shopping Iguatemi e a avenida Juscelino Kubitschek (FSP: 26.07.99: 2-6). De fato, investidores enxergavam na Avenida Juscelino Kubitschek um novo eixo estruturador de investimentos imobiliários. A Avenida Juscelino Kubitschek encontra-se no meio de dois eixos estruturadores, de um lado a Avenida Engenheiro Luiz Carlos Berrini, que era em 2002 a região com maior parcela de estoque de primeira linha da cidade, e de outro a Avenida Brigadeiro Faria Lima, região onde estavam localizados o maior número de edifícios

267


Classe “A” e “AA” em projeto ou em construção (2002). A Avenida Presidente Juscelino Kubitschek divide as regiões Itaim e Vila Olímpia, regiões de grande interesse imobiliário. Mapa 5-30: Mapa Itaim, Fonte: Boletim Eletrônico Bolsa de Imóveis, ‘Databolsa’ (n.º 26), 2001. Mapa elaborado por Sírio J. B. Cançado.

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Segundo relatório da COPLAM Planejamento e Marketing Imobiliário (2002), um dos primeiros grandes empreendimentos na Avenida foi o Condomínio São Luiz, ainda na década de 80. Desde então, vários outros empreendimentos teriam surgido no Itaim e na Vila Olímpia, regiões que se caracterizaram, segundo a COPLAM, pela predominância de edifícios voltados para pequenas e médias empresas (lajes de pequenas dimensões e especificações técnicas de médio padrão), com ocupantes não muito exigentes quanto à qualidade do espaço. Para a COPLAM, exemplo típico deste padrão de ocupante são as empresas “ponto.com” que, num curto espaço de tempo, absorveram uma grande quantidade de escritórios na Vila Olímpia. Na década de 90 iniciou-se a construção dos edifícios que abrigariam a sede administrativa da Eletropaulo, nunca terminados. Situados na esquina da Av. Presidente Juscelino Kubitschek com a Marginal Pinheiros, os 2 blocos apresentam uma localização privilegiada e excelente visibilidade, estando ao lado da Estação Vila Olímpia da Linha Azul da Companhia Paulista de Trens Metropolitanos (CPTM). Segundo

avaliação

da

COPLAM,

concluídos, os dois edifícios deveriam acrescentar ao estoque da Vila Olímpia quase 85.000 m² úteis de escritórios. Em outubro de 2000, foi anunciado que o gigantesco prédio seria transformado em uma torre comercial de serviços, sem data prevista para conclusão. Figura 5-31: Edifício Eletropaulo, inacabado. Esquina da Av. Presidente Juscelino Kubitschek com a Marginal Pinheiros Fonte: Asbea

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A proposta para o empreendimento foi aprovada pela CNLU, que incluiu o projeto na Operação Urbana Faria Lima [proposta n.º 114-FL. Ver tabela], em troca de R$ 30 milhões pagos à Prefeitura pela Eletropaulo e que seriam destinadas às obras de um novo viaduto de acesso à ponte Cidade Jardim e da duplicação da rua Funchal. Apesar da alta concentração de edifícios de médio padrão na região, os anos 90 assistiram também a emergência de um novo fenômeno: o surgimento de edifícios de altíssimo padrão e tecnologia avançada (padrão “A” e “AA”170), resultado da associação do capital nacional com investidores estrangeiros. Isso produziu uma série de edifícios adaptados às exigências de grandes firmas internacionais de serviços avançados, que colocavam São Paulo definitivamente no rol das cidades mundiais de maior importância (ver Capítulo 3 e BEAVERSTOCK, J.V. , SMITH, R.G. & TAYLOR, P.J., 1999). Da nova safra de edifícios de alto padrão, o primeiro a surgir na região foi o CBS (CBS Previdência, fundo de pensão dos empregados da Companhia Siderúrgica Nacional), localizado na Av. Pres. Juscelino Kubitschek n.º 50 com rua Ibiaté, concluído no final de 1995 como resultado de uma parceria entre a incorporadora Cyrela, a Construtora Boghosian e a Serplan. O empreendimento encontra-se no limite, mas fora do perímetro da Operação Urbana Faria Lima, aprovada naquele mesmo ano. Figura 5-32: Edifício CBS. Av. Pres. Juscelino Kubitschek, n.º 50. Fonte: Granimar Mármores e Granitos.

170 Edifícios Classe A: Planta regular e flexível, pé direito do piso ao teto de no mínimo 2,70 m, piso elevado, pé direito do hall de entrada duplo e acabamento nobre, gerenciamento de sistemas, fibra ótica, relação entre n.º de vagas e área útil > ou = a 1:35 m², ACC. Edifícios Classe AA: Além das especificações acima, lajes superiores a 800 m², elevadas especificações tecnológicas, completo gerenciamento e controle dos sistemas prediais (ar condicionado, elétrica, hidráulica, segurança patrimonial e incêndio, elevadores e acesso) e heliponto. Fonte: Jones Lang LaSalle, Perfil Imobiliário de São Paulo, Balanço Ano 2001.

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A partir da aprovação da Lei que regulamentou a Operação Urbana Faria Lima surgiram vários outros empreendimentos de vulto, tais como o JK Financial Center (Avenida Juscelino Kubitschek, 510), incorporado pela Brazil Realty, joint venture entre a brasileira Cyrela e a argentina IRSA, do investidor internacional George Soros. [Proposta Operação Urbana n.º 60. Ver tabela.], ou como o Spazio JK (Av. Juscelino Kubitschek, 1726), desenvolvido pela Construtora Kauffmann [Proposta Operação Urbana n.º 12. Ver tabela], ambos entregues no primeiro semestre de 2000. Figura 5-33: JK Financial Center. Fonte: Infomativo eletrônico Bolsa de Imóveis, ‘Databolsa’ (n.º 23) 2001. Foto Arquivo: Brazil Realty e

Foto 5-34: JK Financial Center. Fonte: Informativo eletrônico ArcoWeb n.º 153. http://www.arcoweb.com.br/

271


Figuras 5-35: Ed. Spazio JK. Fachada e planta. Projeto Edo Rocha Arquitetos Associados. Incorporação e Construção Kauffmann. Foto Especial Edifícios Comerciais, Informativo Eletrônico Flex Eventos. http://www.flexeventos.com.br/capa_edificios_coml.asp, 25.10.2002.

No ano de 2002, encontravam-se em fase de desenvolvimento ou finalização vários empreendimentos de porte na Avenida ou em suas imediações: – O Edifício Birmann 31, localizado na esquina das avenidas Brigadeiro Faria Lima e Presidente Juscelino Kubitschek com a Rua Leopoldo Couto de Magalhães Júnior, do lado do Itaim [Proposta Operação Urbana n.º 62. Ver tabela]; – O complexo International Plaza, na mesma esquina, mas do lado da Vila Olímpia, que incluia uma torre de escritórios e o Hotel Kempinski, de capital alemão, no terreno de propriedade da São Joaquim Administração e Participações, incorporado pela Hines do Brasil e Bradelcar Empreendimentos e cuja construção encontrava-se a cargo da Método Engenharia [Proposta Operação Urbana n.º 90. Ver tabela.];

272


Figura 5-36: Edifício International Plaza. Fonte Escritorio Tecnico Júlio Neves.

– O JK Century Plaza, a ser implantado no terreno da antiga choperia Dado Bier na própria Avenida Juscelino Kubitschek, incorporado pela Brazil Realty [Proposta Operação Urbana n.º 138. Ver tabela]. Figura 5-37: JK Century Plaza. Fonte Enit Projetos Consultoria Ltda.

273


– O Edifício Plaza JK, localizado na rua Minas da Prata (entre as ruas Brigadeiro Haroldo Veloso e Ramos Batista), fruto de uma parceria entre a Bolsa de Imóveis do Estado de São Paulo, Stan Desenvolvimento Imobiliário e Eran Administração de Bens e Participações. [Proposta Operação Urbana n.º 91. Ver tabela. Consta erradamente na tabela da SEMPLA como edifício residencial.] Figuras 5-38: Edifício Plaza JK Fonte: Informativo Eletrônico Bolsa de Imóveis, ‘Databolsa’ (n.º 28) e 5-39: Edifício Plaza JK. Fachada com iluminação noturna. Fonte: Stan Desenvolvimento Imobiliário.

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– O Brascan Century Plaza (Joaquim Floriano, 466). Não se encontra no perímetro da Operação Urbana, mas em área contígua. Projeto de Königsberger Vannucchi Arquitetos Associados e construído pela Método Engenharia, com fachada fornecia pela americana BPDL Precast Concrete. Figura 5-40: Brascan Century Plaza Fonte: Anúncio publitário, FSP: 24.11.2001: A-26

– O Edifício Corporate Park (rua Renato Paes de Barros com Eduardo de Souza Aranha), incorporado pela Brazil Realty. O edifício encontra-se no limite, mas fora do perímetro da Operação Urbana Faria Lima. – O Edifício Faria Lima Financial Center (Av. Brigadeiro Faria Lima, 1394), incorporado pela Brazil Realty [Proposta Operação Urbana n.º 138. Ver tabela].

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Figura 5-41: Faria Lima Financial Center. Fonte: Brazil Realty

– Edifício Leopoldo (quadrilátero entre a Rua Leopoldo Couto Magalhães Jr., rua Lopes Neto, Av. Brigadeiro Faria Lima e rua Horácio Lafer), incorporado pela Brazil Realty [Proposta Operação Urbana n.º132. Ver tabela]. – Edifício Faria Lima Square (Av. Brigadeiro Faria Lima, 3624, esquina com rua Leopoldo Couto de Magalhães Jr.), incorporado pela Brazil Realty, tem entrega prevista apenas para 2005 [Proposta Operação Urbana n.º 86. Ver tabela]171. A área próxima ao cruzamento das Avenidas Brigadeiro Faria Lima e Juscelino Kubitschek constitui-se em exemplo paradigmático dos fenômenos descritos

171 Há ainda dois empreendimentos da Brazil Realty na Avenida Juscelino Kubitschek, sobre os quais temos poucas informações: Avenida Juscelino Kubitschek n.º 1203 [Proposta Operação Urbana n.º 135-FL, referendada em reunião da CNLU (29 de outubro de 2002), publicada no DOM (Ano 47 - Número 207, 31 de outubro de 2002), mas ainda não incluídas nas planilhas da SEMPLA (não computado neste trabalho); Avenida Juscelino Kubitschek n.º 1455 [Proposta de Operação Urbana não localizada] [Figura 5F7: Av. Juscelino Kubitschek, n.º 1455. Fonte: Brazil Realty].

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neste trabalho, no que se refere ao tipo de investimento e à forma urbana resultantes da Operação Urbana Faria Lima. Os investimentos imobiliários na área são altamente internacionalizados e a tipologia dos edifícios atende a uma demanda surgida nos anos 90, profundamente ligada aos fenômenos de internacionalização e terceirização da economia, inseridos no quadro da globalização. A especificidade da área (compreendida dentro do novo eixo corporativo, constituído pelas Avenidas Faria Lima, e Engenheiro Luiz Carlos Berrini/ Nações Unidas) manifesta-se em projetos como o JK Financial Center, onde há associação do capital nacional com o capital estrangeiro para a consecução de um projeto de altíssimo padrão. Projeto de Collaço e Monteiro Arquitetos Associados, a partir de “conceito inicial” do escritório norte-americano Skidmore, Owings & Merrill (SOM), o edifício foi incorporado pela transnacional Brazil Realty, uma das maiores incorporadoras atuantes em São Paulo. A Brazil Realty foi criada em 1993, como uma joint venture entre os grupos Cyrela, brasileiro e o IRSA (Inversiones y Representaciones Sociedad Anónima), argentino, que tem a participação do mega-investidor internacional George Soros. Rapidamente tornou-se uma das principais empresas do mercado imobiliário nacional. Primeira do setor a abrir seu capital, em meados da década de 90, está presente em todos os segmentos da indústria imobiliária, com destaque para o que o mercado imobiliário chama “lajes corporativas” (grandes edifícios de escritórios), possuindo cinco projetos na região das avenidas Nova Faria Lima e Juscelino Kubitschek: um portfolio de valor superior a R$ 700 milhões, cuja área construída atinge 220 mil m² (em 2002). Segundo a própria Brazil Realty, a empresa “adota como estratégia o investimento expressivo na incorporação de empreendimentos comerciais de última geração”, com ênfase nos empreendimentos de padrão AAA (“Triple A” ) 172.

172 A expressão “Triple A”, originada nos EUA, define empreendimentos de altíssimo padrão, com lajes corporativas de grandes dimensões (próxima ou até superior a 1 mil m²) e recursos tecnológicos de última geração, principalmente nas áreas de segurança, automação predial e telecomunicações. “A Brazil Realty destina esses empreendimentos ao mercado de venda e locação, visando principalmente o atendimento das necessidades de instalações de empresas de grande porte, com elevado padrão de exigência em relação a tecnologia e segurança predial”. Fonte: http://www.brazilrealty.com.br/empresa.html# (06.11.2002)

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Outro exemplo de internacionalização do investimento imobiliário e de associação com agentes nacionais é o International Plaza, projeto do Escritório Técnico Júlio Neves e incorporado pela Hines do Brasil, subsidiária da americana Hines Interests Limited Partnership. Fundada em 1957 por Gerald D. Hines, em Houston, Texas, a Hines é hoje uma das maiores firmas de investimento, gerenciamento e incorporação imobiliária do planeta. Trabalhando com arquitetos consagrados como Philip Johnson, Cesar Pelli, I.M. Pei, and Frank Gehry, a companhia gaba-se de ter “redefinido o ambiente de trabalho contemporâneo, contribuindo para a sua melhoria e redesenhando skylines em grandes cidades ao redor do mundo” (Hines, 2002173). Segundo a própria Hines, a companhia já desenvolveu mais de 650 projetos de todos os tipos ao redor do mundo, gerenciando hoje mais de 6.5 bilhões m² e controlando propriedades estimadas em US$ 13 bilhões, com subsidiárias em 11 países, incluindo Inglaterra, França, Espanha, México Polônia, Rússia, Alemanha, Brasil, Itália, Argentina e China. O complexo International Plaza foi construído pela brasileira Método Engenharia em terreno de propriedade da São Joaquim Administração e Participações e inclui torre de escritórios e o Hotel Kempinski. O projeto do hotel é iniciativa do grupo empresarial brasileiro Srur em associação com uma operadora internacional, a rede alemã de hotéis Kempinski. A rede Kempinski é conhecida por ter o maior número de castelos transformados em hotéis na Europa, e este seria seu primeiro hotel na América do Sul. “É um local central e de fácil acesso. Da avenida Paulista até a avenida Bandeirantes não existe um hotel dessa categoria”, afirmava Maria Eugenia Srur, da Braldecar Empreendimentos (JT: 30.04.2000). Os investimentos totais girariam em torno de U$ 85 milhões e o público alvo seriamos executivos de multinacionais, principalmente da Europa ( a maior taxa de ocupação nos hotéis da rede Kempinski é de executivos alemães de grades multinacionais daquele país, com quem a rede possui acordos preferenciais). O BNDES participa do investimento, com a concessão de financiamento de R$ 54,3 milhões, no âmbito do Programa de Apoio ao Turismo, para a instalação do hotel de categoria super-luxo (“cinco estrelas-plus”174). O Kempinski Palace Hotel terá 282 173 Hines Interests Limited Partnership, http://www.hines.com/hines/about_1.asp (10.10.2002). 174 Como diferencial em relação a um hotel “cinco estrelas” tradicional, destacam-se o tamanho dos quartos (mínimo de 37 m²), decoração com alta sofisticação, prestação de serviços

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apartamentos, business center, heliponto, spa, centro de convenções para mil pessoas e restaurante de nível internacional. Para o BNDES, o investimento se justifica, pois geraria 600 empregos diretos e 2.500 indiretos. Os recursos seriam repassados pelo Banco Safra, na condição de agente financeiro do BNDES. O BNDES considera a cidade de São Paulo o grande centro de decisões econômicas da América Latina, tendo se tornado, segundo o Banco, “um dos locais mais atraentes do mundo para as grandes redes internacionais de hotelaria” (Informativo BNDES, 27.09.2001175). Nos últimos anos da década de 90, três delas inauguraram hotéis na cidade: Meliá, Intercontinental e Renaissance. O BNDES estimava, em 2001, que seriam investidos cerca de US$ 1,5 bilhão até 2003 em novos empreendimentos hoteleiros em São Paulo (Informativo BNDES, 27.09.2001). Segundo dados do Banco, somente na categoria “cinco estrelas” estariam sendo lançados dez empreendimentos até 2003, a maioria de grupos mundiais do ramo hoteleiro, como Marriott, Accor, Blue Tree, Hyatt, Four Seasons, Posadas, Hilton e Meliá. Destes novos projetos, os mais completos e luxuosos (os chamados “cinco estrelas-plus”), são o Kempinski e o Palácio Tangará Hotel, a ser operado pela rede americana Four Seasons. O empreendimento está localizado ao lado do Parque Burle Marx, e foi incorporado pela Birmann Empreendimentos Imobiliários (empresa de capital majoritariamente nacional). Segundo reportagem do Jornal da Tarde (JT: 30.04.2000), “os atrativos para um investimento financeiro tão grande na Capital paulista [na área de hotelaria] são a estabilidade da economia e a grande circulação de dinheiro proveniente de negócios e eventos que faz com que a terceira maior cidade do mundo seja a recordista de turistas de negócios [no Brasil], tanto estrangeiros quanto brasileiros (...): 5.035.944” (JT: 30.04.2000). 78% deste total estariam ligados ao chamado “turismo de negócios”. Os turistas brasileiros representariam 3.928.870 contra 1.107.074 estrangeiros (números de 1999), segundo a ABAV (Associação Brasileira de Agências de Viagem), citada na reportagem.

personalizados aos hóspedes, business center (escritórios com computadores interligados à Internet), salas de convenções com tecnologia de som, imagem e telecomunicações de última geração, possibilitando vídeo e teleconferência. 175 Informativo BNDES, www.bndes.gov.br/noticias/financia/not448.asp (27.092001).

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A reportagem de G. Padilha afirmava além disso que as regiões para a implementação dos mega-empreendimentos hoteleiros “já teriam sido escolhidas: avenidas Luiz Carlos Berrini, Brigadeiro Faria Lima e Juscelino Kubitschek e Marginal Pinheiros, onde estão concentradas as principais empresas nacionais e multinacionais, e em Guarulhos, por causa do Aeroporto Internacional de Cumbica” (JT: 30.04.2000). A associação do capital estrangeiro com o nacional se dá sob várias formas, influindo tanto na escolha dos projetos como na das técnicas e materiais construtivos. Em geral, os grandes empreendimentos hoteleiros estão associados a programas complexos que incluem várias atividades de negócios, conferências, lazer e algumas vezes comércio, reunidas no mesmo empreendimento. Este é o caso do já citado Continental Square Faria Lima, localizado na rua das Olimpíadas (Vila Olímpia), projeto do escritório Aflalo & Gasperini e incorporação da Inpar. O complexo empreedimento com mais de 100 mil m² contaria com um hotel 5 estrelas da marca Caesar Park, pertencente ao grupo mexicano Posadas. O grupo mexicano também estaria investindo em Guarulhos e na avenida Paulista (com um hotel da marca Caesar Business de 400 apartamentos) (JT:30.04.2000). Outros empreendimentos hoteleiros significativos incluem o Grand Hyatt São Paulo, do grupo norte-americano de mesmo nome, na avenida Luiz Carlos Berrini, ao lado do prédio da Rede Globo. Todos os 470 apartamentos do hotel seriam equipados com computador, linhas telefônicas e fax. O rede norte-americana Marriot também tem um empreendimento em andamento na rua Guararapes, nas imediações da avenida Nações Unidas. Instalado numa área de oito mil metros quadrados, o Hotel Marriot São Paulo terá padrão 5 estrelas, 560 apartamentos, salas de reunião para mais de duas pessoas, dois restaurantes com funcionamento 24 horas, academia e sauna. Segundo a rede, a “arquitetura do prédio será no estilo brasileiro, mas o desenho de interiores e a decoração vão seguir as linhas gerais dos hotéis da rede” (JT: 30.04.2000). A rede francesa Accor também tem em andamento vários projetos na cidade. A Accor no Brasil reúne 26 marcas nos segmentos de alimentação, restaurantes, hotelaria, viagens, produtividade e marketing. Na área hoteleira, a rede possui, somente no município de São Paulo, 40 unidades, entre hotéis e flats de várias marcas. A rede teria firmado acordo firmado com a PREVI

280

(Caixa de Previdência Privada dos


Funcionários do Banco do Brasil), para o investimento de

US$ 300 milhões na

construção de 43 hotéis no país176. Segundo a pesquisa da Herzog Imobiliária (FSP: 02.05.1999: Imóveis-1), São Paulo deveria receber em 1999 384 mil m² em imóveis novos no segmento de escritórios, o que representaria um crescimento de 85% em relação ao ano de 1998 (208 mil m²). A pesquisa mostrava que o frequente destaque dessas regiões estaria relacionado a três fatores: a localização (com boa infra-estrutura), a abertura da nova Faria Lima e a construção dos túneis da avenida Juscelino Kubitschek e do Ibirapuera. A Marginal Pinheiros (avenida Nações Unidas) correspondia a 9% do total das áreas pesquisadas e concentrava as atividades industriais exercidas em escritórios, que estavam presentes em 17% desses imóveis. As atividades financeiras ainda estavam concentradas nas regiões do Centro e da Paulista, com 27% dos imóveis. No setor de serviços, a Vila Olímpia empatava com a Marginal Pinheiros, com 17%. O levantamento da Herzog analisava 1.500 imóveis nas regiões do Centro, Paulista, Jardins, Itaim, Faria Lima, Vila Olímpia, Berrini, Verbo Divino e Marginal Pinheiros (FSP: 02.05.1999: Imóveis-1). A avenida Luiz Carlos Berrini, na zona sudoeste de São Paulo, era a região que mais crescia em área útil de escritórios. De 1990 a 1999, o incremento foi de 145% naquela avenida (de 181.500 m² para 443.900 m²), colocando a região em terceiro lugar em concentração de imóveis desse tipo na cidade (7% do mercado). A região da avenida Faria Lima responderia ainda apenas 5% do mercado, revelando seu imenso potencial, sendo que a região do Centro apresentava ainda a maior concentração de escritórios (43% dos imóveis desse tipo, ou 2.679.500 m² área útil), seguido da região da avenida Paulista, com 1.197.000 m² úteis (19%) e da Marginal Pinheiros, 446.500 m² (7%). Porém, o “Eixo Corporativo” ao longo da Marginal Pinheiros era o principal responsável pelo crescimento de mercado durante os anos 90. Apesar de ainda concentrar a maior metragem absoluta no setor de imóveis comerciais, o Centro não apresentava perspectivas de crescimento e valorização, apresentando além disso a maior taxa de vacância (15%) bem acima da média então verificada na cidade (de 7%). Isso 176 Informação corporativa Rede Accor Brasil. http://www.accorhotels.com.br (06.11.2202).

281


ocorreria, segundo analistas, devido ao grande número de edifícios antigos e “obsoletos” (FSP: 28.02.99: Imóveis-1). Segundo pesquisa da consultoria internacional Jones Lang Lasalle (Perfil Imobiliário 3º trimestre, São Paulo, Jones Lang Lasalle, 2001), o estoque total das regiões Itaim e Vila Olímpia somavam, ao final do 3º trimestre de 2001, quase 800 mil m² úteis de escritórios. Esse total dividia-se em: edifícios considerados tipo “C” (25%), tipo “B” (54%), tipo “A” (19%) e tipo “AA” (2%). Verificava-se a predominância de edifícios Classe “B” no estoque dessas regiões, produto tipicamente preferido por pequenos e médios ocupantes. Os prédios Classe “B” caracterizam-se por serem de boa qualidade já que possuem ACC (sistema de ar condicionado central), porém apresentam especificações técnicas de médio padrão. Esse padrão de escritórios é o preferido pelas pequenas e médias empresas do setor de comunicação e informática e as chamadas empresas “ponto com”, ligadas ao desenvolvimento e gerenciamento de sites na Internet. Também se prestam às atividades de profissionais liberais e prestadores de serviços terceirizados. Todas estas atividades estão intimamente ligadas às mudanças na economia descritas nos primeiros capítulos deste trabalho, dentro do quadro da globalização. Segundo avaliação da COPLAM (2002), até 2001, os níveis de oferta e demanda nas regiões do Itaim e da Vila Olímpia encontravam-se bem equilibrados. A taxa de vacância (indicador do nível de oferta) encontrava-se abaixo da média do mercado em ambas as regiões. Enquanto a taxa média na cidade de São Paulo era superior a 14%, a vacância no Itaim não atingiria 13%, e na Vila Olímpia seria inferior a 12%. A demanda também teria se mostrado aquecida, com a absorção líquida (diferença entre o estoque total ocupado no período anterior e o estoque ocupado no período em análise) sempre apresentando saldo positivo trimestralmente, ao longo dos 4 anos anteriores. Mas ao final de 2001, as perspectivas eram um pouco diferentes. Segundo a Consultoria Jones Lang Lasalle (2001), as taxas de vacância para edifícios Classe “AA” aumentaram de 6% para 14,7%, e a absorção líquida caiu de 146.000 m em 2000 para 2

somente 15.651 m em 2001. Segundo a consultoria, o mercado de escritórios de São 2

Paulo estaria provando ser “um dos mercados mais voláteis entre os das maiores cidades do mundo”: as taxas de vacância dos edifícios de escritórios Classe “AA” teriam

282


oscilado de 8% em 1998 a 16% em 1999, atingindo 6% em 2000, fechando o ano de 2001 em 14,7%. Na avaliação de Jones Lang Lasalle (2001), esta volatilidade seria resultado da “entrega esporádica do estoque especulativo, da demanda desigual por escritórios e da falta de estabilidade em comparação com outros grandes mercados globais”. Para a consultoria, o mercado deveria permanecer “desafiador” em 2002, mas apresentaria crescimento nos valores de locação nas regiões nobres da cidade, à medida que edifícios de alto padrão localizados nessas regiões voltassem a ser entregues ao mercado após dois anos de escassez, como no caso da região onde se desenvolve a Operação Urbana Faria Lima. O baixo índice de empreendimentos com perfil “AA” na região da Operação Urbana Faria Lima tenderia a aumentar nos anos seguintes, com o término das obras dos empreendimentos em andamento, conforme analisado, ainda que as taxas de vacância dos imóveis deste tipo tenham crescido consideravelmente ao final do ano de 2001 e primeiros meses de 2002, graças à conjuntura econômica desfavorável externa e internamente. “Os edifícios de escritórios de alto padrão (Classe “AA”) em São Paulo são ocupados, em sua maioria, por corporações multinacionais. O desaquecimento econômico nos países de origem destas empresas em 2001 reduziram sua disposição e possibilidade de tomar decisões positivas em relação às suas necessidades de ocupação em mercados estrangeiros como São Paulo. (...). O cenário atual para o futuro da economia norte-americana é o de retração econômica no princípio de 2002 com retomada de crescimento no final do ano, levando à uma recuperação da demanda interna no mercado imobiliário, porém, em níveis modestos. (...) Há previsão de entrada no mercado de um total de aproximadamente 250.000 e 315.000 m² úteis de espaço Classe “AA” e “A” em 2003 e 2004, respectivamente. Entretanto, tanto a entrega efetiva quanto a demanda por espaço de alto padrão serão fortemente influenciadas pela situação econômica interna do país e pelo cenário econômico externo. Entre os fatores que podem influenciar o negativamente o mercado de escritórios em São Paulo em 2002 estão: as eleições presidenciais em Outubro, eventual deterioração do quadro político/econômico na Argentina, atraso

283


na recuperação das economias globais, instabilidade econômica interna e conseqüente saída de capital estrangeiro” (Jones Lang Lasalle, 2001). O diagnóstico traçado pela Jones Lang Lasalle demonstra a complexidade dos cálculos no investimento imobiliário em edifícios de alto padrão na cidade de São Paulo, altamente influenciado pela globalização e por fatores domésticos que afetam o fluxo de investimento internacional no país. Para o ano de 2002, a consultoria Jones Lang Lasalle (2001) avaliava que, de 96.000 m² úteis de espaço Classe “AA” a ser entregue ao mercado, 90% estaria localizado na região da Avenida Brigadeiro Faria Lima. Nessa região também seriam entregue aproximadamente 50% do novo estoque previsto para 2003, o que posicionaria a região em segundo lugar em volume de espaço Classe “AA” na cidade (atrás apenas da Berrini/Nações Unidas). Entretanto, esse aumento de estoque viria acompanhado de um aumento nas taxas de vacância das principais regiões de escritório da cidade, principalmente na região da Faria Lima (Jones Lang Lasalle, 2001). Apesar de um regrudescimento nos investimentos a partir de 2001, as perspectivas para a Vila Olímpia e Itaim (distritos onde se localiza a Operação Urbana Faria Lima) eram bastante animadoras do ponto de vista dos investidores imobiliários e confirmava a tendência de consolidação do Eixo Corporativo Sudoeste. Se numa ponta (Noroeste), a Nova Faria Lima era “sufocada” pelos bairros residenciais que a ladeavam (Pinheiros e Alto de Pinheiros), impedindo o lançamento de novos empreendimentos comerciais (o que só ocorreu numa faixa ao longo da Avenida Pedroso de Moraes _ ADB 1 Pinheiros: Z2_ e em pontos isolados do bairro de Pinheiros tradicional _ AIB 3 Baixo Pinheiros: Z2_ próximos à Avenida Faria Lima), na outra extremidade, a avenida acompanhava o boom imobiliário que varria a região da Vila Olímpia e Itaim e as regiões da marginal Pinheiros e da Avenida Engenheiro Luiz Carlos Berrini. Assim, o quadrante Sudoeste da cidade de São Paulo teria se constituído, durante a década de 90 e início do século XXI, num grande pólo empresarial concentrando os mais maiores investimentos em edifícios comerciais da cidade, com alto grau de sofisticação projetual e construtiva.

Segundo analistas do setor

imobiliário177, este fenômeno poderia ser intensificado com a construção de um grande 177 Ver Informativo Bolsa de Imóveis do Estado de São Paulo, Databolsa, n.º 29, 2002.

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eixo unindo a Zona Oeste (Alto de Pinheiros) à Zona Sul (Santo Amaro) da Capital, formado pelos prolongamentos das avenidas Hélio Pellegrino e Doutor Chucri Zaidan, respectivamente a continuação das avenidas Brigadeiro Faria Lima e Engenheiro Luiz Carlos Berrini. Enquanto o primeiro prolongamento fará a ligação da Nova Faria Lima com a Berrini, o segundo interligará as regiões Berrini e Verbo Divino, através da continuação da Chucri Zaidan até a Avenida João Dias. (Ver planta 5-5). Segundo o Databolsa (2002), o principal impacto dessas modificações urbanas para o mercado imobiliário seria o “crescimento do estoque imobiliário já existente e a possibilidade, através das operações urbanas aprovadas, do aumento do potencial construtivo nas regiões influenciadas por estas intervenções” (Databolsa, 2002, n.º 29). Esse fenômeno será possivelmente reforçado pela construção de um novo grande eixo que integrará a Avenida das Nações Unidas à Rodovia dos Imigrantes, com o prolongamento da Avenida Águas Espraiadas. Em dezembro de 2001 foi aprovada a Operação Urbana Consorciada Água Espraiada (Lei Municipal n.º 13.260), agora incorporada ao Plano Diretor aprovado pela Câmara Municipal de São Paulo em setembro de 2002 (Lei 13.430/2002, publicada no DOM em 13.09.2002). Essa Operação criará um novo vetor de desenvolvimento e investimento em direção ao ABC, podendo potencializar a estruturação do Eixo Corporativo na Zona Sudoeste. As obras e intervenções previstas na Operação Urbana Consorciada Águas Espraiadas teriam por objetivo complementar o sistema viário e de transportes existentes, sendo que o transporte coletivo, a drenagem, a oferta de espaços livres de uso público com tratamento paisagístico, e o provimento de Habitações de Interesse Social (HIS) para a população moradora em favelas atingidas pelas intervenções.

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Figura 5-42: Detalhe da planta do Projeto de Plano Diretor, Administração Marta Suplicy. Em destaque a Operação Urbana Consorciada Águas Espraiadas. Fonte: FSP: 01.07.2002: C-4. (Ver também planta 5-5: Projeto Operação Urbana Águas Espraiadas).

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Mesmo uma área relativamente pouco extensa dentro do território da metrópole como a compreendida pela Operação Urbana Faria Lima apresenta uma variedade considerável no que concerne a história, o desenvolvimento, a forma urbana e a configuração social. Estas diferenças estão na base da própria necessidade de estabelecimento de perímetros e subperímetros na área da Operação, sendo os impactos produzidos por esta bastante distintos. Assim, para que pudéssemos proceder a uma análise um pouco mais aprofundada do impacto da Operação Urbana nas diferentes áreas, fez-se necessária a subdivisão das Áreas Indiretamente Beneficiadas (AIB), além do estudo dos fenômenos ocorridos nas Áreas Diretamente Beneficiadas (ADB), que têm seu perímetro legalmente definido. Definição das AIB: Obedeceu-se critérios de proximidade, concentração de projetos e zoneamento para definir as seguintes AIB (Áreas Indiretamente Beneficiadas), dentro do perímetro definido pela Operação Urbana Faria Lima: – AIB 1 Nações Unidas, – AIB 2 Faria Lima tradicional, – AIB 3 Baixo Pinheiros ou Pinheiros histórico, – AIB 4 Cidade Jardim, – AIB 5 Hungria, – AIB 6 Itaim Inferior, – AIB 7 Parque do Povo, – AIB 8 Itaim Superior (Leopoldo C. de Magalhães e JK), – AIB 9 Helio Pellegrino: (com destaque para a área Z1-018, próxima à Avenida República do Líbano), – AIB 10 Vila Olímpia Inferior, – AIB 11 Vila Olímpia/Bandeirantes, – AIB 12 Eusébio Matoso,

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Planta 5-46: AIBs Operação Urbana Faria Lima sobre base SEMPLA 2000:14-15.

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Também identificamos as ANB (Áreas Não Beneficiadas), contidas dentro do perímetro da Operação Urbana: Planta 5-47: ANBs Operação Urbana Faria Lima sobre base SEMPLA 2000:14-15.

– ANB Jardim Europa Inferior (1): Área entre a Avenida Eusébio Matoso, Praça Joaquim Roberto, Rebouças, terrenos contíguos, mas não lindeiros à rua Hungria, Dr. Emb. R. Fernandes, Dr. A. Assis e Angelina Maffei Vita. – ANB Esporte Clube Pinheiros (2): Perímetro do clube esportivo, entre a Avenida Faria Lima, ruas Tucumã, Hans Nobling e Angelina Maffei Vita – ANB Vila Olímpia (3): Ramos Batista, Elvira Ferraz, Sta. Justina, Atílio Innocenti, Comendador Calfat Clodomiro Amazonas. Monsenhor A. Oliveira, lotes lindeiros à rua Ministro Jesuíno Cardoso.

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As tabelas fornecidas pela SEMPLA (2000 e 2002) indicam as seguintes tendências: Até outubro de 2002, 130 projetos haviam sido aprovados para inclusão nos mecanismos previstos na Operação Urbana Faria Lima. Estas correspondiam a 851.027,02 m² de área construída adicional ( 37,82 % do estoque de 2,25 milhões de m² previstos). Não possuímos os valores arrecadados até outubro de 2002, porém até outubro de 2000, a venda de potencial construtivo adicional arrecadou o equivalente a 158 milhões de UFIR, equivalentes a R$ 168.127.800,00 no ano de 2000 (US$ 91.024.547, em valores de outubro de 2000). Gráfico 5-48: M² de área construtiva adicional aprovados na Operação Urbana Faria Lima, em ADB e AIB, 1995 a outubro de 2002.

300000 250000 200000 150000 100000 50000 0 1995

1996

1997

1998 ADB

1999

2000

2001

2002

AIB

Números de 2002 até outubro. O interesse nas Áreas Direta Beneficiadas (ADB) e Indiretamente Beneficiadas (AIB) não é o mesmo. O número de propostas apresentadas para a área diretamente beneficiada (ADB) representa apenas 38% do total, o que a SEMPLA atribui à extensão muito maior da Área Indiretamente Beneficiada (AIB) e também ao valor do CEPAC na Área Diretamente Beneficiada (ADB), considerado elevado pelos

290


empresários (SEMPLA, 2000: 9). No entanto, o número percentual de propostas na ADB vem aumentando desde outubro de 2000, quando era de apenas 29% do total (SEMPLA, 2000). Em termos de zoneamento, a maioria do total de propostas aprovadas até outubro de 2002, 93 (71%) localizam-se em Z-2 (áreas de predominância residencial, com permissão para uso comercial, de serviços, industrial de pequeno porte e institucional). Estes projetos totalizavam 612.975,77 m² de área construtiva adicional (72% da área construtiva adicional total aprovada). Apenas 21 das propostas aprovadas até outubro de 2002 (16,15 %) eram localizadas em Z1, Z18 ou Z9 (áreas de uso estritamente ou predominantemente residencial, com densidade demográfica baixa), totalizando 90.260,42 m² de área construtiva adicional aprovada (10,6 % do total da área construtiva adicional aprovada.). Apenas 11 projetos modificavam o caráter estritamente ou predominantemente residencial dessas zonas. O restante dos projetos aprovados era distribuído entre outras zonas e corredores especiais. Das 93 propostas aprovadas em Z-2, uma boa parte localizava-se em AIB: -

37 localizam-se em ADB (39,8 % das propostas aprovadas em Z2)

-

56 localizam-se em AIB (60,2 % das propostas aprovadas em Z2).

Em termos de área construtiva adicional aprovada em Z-2, a diferença entre ADB e AIB é praticamente a mesma: -

ADB: 250.284,24 m² (40,9 % da área construtiva adicional aprovada em Z-2).

-

AIB: 362.291,53 m² (59,1 % da área adicional aprovada em Z-2).

Quanto aos usos, dentre os 130 projetos aprovados até outubro de 2002: -

21 eram edifícios de escritórios (16, 15%)

-

65 eram edifícios residenciais (50%)

291


-

44 eram edifícios destinados ao comércio e serviços diversos (sedes de empresas, hotéis, hospitais, escolas, postos de gasolina etc. (33, 85%)

Observa-se um notável equilíbrio entre os empreendimentos de caráter residencial (65) e edifícios de escritórios, comerciais ou de serviços (65). Entretanto, é preciso qualificar esses números. Os empreendimentos residenciais são geralmente de alto padrão e significam um número relativamente baixo de novos moradores no perímetro da Operação Urbana Faria Lima. A área construtiva adicional aprovada para esses empreendimentos era de 272.203,15 m², o que significava apenas 32% do total de área construtiva adicional aprovada na área da Operação. Já os empreendimentos comerciais ou de serviços teriam 578.823,87 m² de área construtiva adicional aprovada (68 % do total). A classificação apresentada pela SEMPLA falha na distinção entre edifícios de escritórios e edifícios comerciais e de serviços diversos. Não foi possível estabelecer com precisão os edifícios de escritórios classificados como comerciais ou de serviços, pois em muitos empreendimentos há mistura de usos comerciais e de serviços com torres de escritórios. Há portanto uma indiscutível vocação da região para os edifícios de escritório, os serviços e o comércio, ainda que os edifícios residenciais formem uma importante parcela dos empreendimentos. Estes concentram-se sobretudo na AIB 9 Hélio Pellegrino (com destaque para a área Z1-018, próxima à Avenida República do Líbano) e também na AIB 6 Itaim Inferior. A própria SEMPLA (2000) chamava a atenção para alguns fatores que poderiam provocar distorções na avaliação geral dos números: – “Esses valores globais agregam resultados de procedimentos muito diferentes nas Áreas Diretamente Beneficiadas e nas Indiretamente Beneficiadas; nas primeiras, para definição da contrapartida, é utilizada a tabela de valores de equivalência do CEPAC, constante do Anexo 2, da Lei da Operação Urbana [ver quadro 5-I], e nas segundas, há uma avaliação caso a caso, mediante apresentação de laudo de avaliação elaborado por empresas ou profissionais habilitados;

292


– há uma grande diversidade no tamanho e nas características das propostas de participação; – o valor das contrapartidas nem sempre corresponde à área construída adicional, mas também a outros benefícios concedidos” (SEMPLA, 2000: 11). Sendo assim, verifica-se que os valores arrecadados com a venda de potencial construtivo na área da Operação Urbana Faria Lima tiveram constante aumento até 2000, só interrompido em 1998 pelos efeitos da Crise Asiática e da desvalorização do real, sendo em seguida retomados de com grande intensidade em 1999. A SEMPLA analisa estes números levando em consideração as inúmeras mudanças conjunturais ocorridas no período (agosto de 1995 a outubro de 2000): “Em 1995, primeiro ano de vigência da Lei n.º 11.732/95 (o decreto regulamentador n.º 35.373/95 é de 9 de agosto [de 1995] e a primeira resolução da CNLU, fixando o valor de equivalência do CEPAC, é de 14 de setembro [daquele mesmo ano]), o período de operacionalização foi de menos de quatro meses, com 18 propostas de participação protocoladas (...)” (SEMPLA, 2000: 12). Para a SEMPLA, esse número elevado de propostas poderia ser atribuído a uma demanda acumulada na expectativa da aprovação da Lei. Já no ano de 1996 há a transição para uma nova administração na Prefeitura (Celso Pitta), o que teria acarretado um aumento no número de pedidos protocolados (de 18 para 36), graças ao receio dos investidores de que as regras estabelecidas pudessem vir a sofrer mudanças na nova administração. Em 1998, há uma acentuada queda no número de propostas apresentadas, graças, entre outros fatores, aos efeitos da Crise Asiática, que na segunda metade de 1997 havia abalado a economia mundial e acarretado a desvalorização do real, ocasionando uma retração nos investimentos imobiliários, seguindo uma tendência geral na região metropolitana a partir daquele ano. De fato, como aponta a SEMPLA (2000: 12), em 1998 o Ministério Público abriu representação junto ao Procurador Geral do Estado, questionando a constitucionalidade da Operação Urbana Faria Lima. Entretanto, em 5 de agosto daquele mesmo ano, o Procurador arquivou o pedido, sem encaminhá-lo ao Tribunal de Justiça, argumentando que, no caso da Operação Urbana Faria Lima, “a Lei em exame

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delimitou com precisão os limites geográficos de sua incidência (arts. 1º, 2º e 3º); fixou objetivos claros de melhoramentos e diretrizes urbanísticas (arts. 4º e 5º); estabeleceu condições, valores e critérios específicos de outorga de potencial adicional de construção e alteração dos parâmetros urbanísticos (arts. 6º, 7º e 8º) e limitou a concessão dos incentivos que cria, tanto para as áreas diretamente beneficiadas, como para aquelas indiretamente beneficiadas pelo programa (arts. 14 e 16)” (apud SEMPLA, 2000: 12). Tal decisão assegurou a continuação da Operação e o interesse dos investidores privados, que voltaram a apresentar grande número de propostas nos anos seguintes. Um grande numero de propostas foi aprovado nos últimos meses da gestão Pitta (outubro a dezembro de 2000). Até outubro daquele ano, 14 propostas haviam sido aprovadas, totalizando 175.543,61 m² de área construtiva adicional. Em dois meses e meio, outras 19 novas propostas foram aprovadas, adicionando 189.874,37 m² de área construtiva adicional vendida naquele ano. Houve também uma explosão no número de m² de área construtiva adicional vendidos em AIB naquele ano. Vários fatores podem explicar o fenômeno: a vontade dos investidores de concluir negócios antes da mudança de administração (o que poderia acarretar mudança de regras) e a agilização dos processos em andamento ao final da gestão Pitta, entre outros fatores possíveis. A explosão na metragem em AIB deve-se também em parte à aprovação da venda de 104.167,67 m² para o projeto de reaproveitamento do gigantesco edifício da Eletropaulo situado na esquina das Avenidas Juscelino Kubitschek e Nações Unidas. O número de propostas aprovadas em 2001, primeiro ano da gestão Marta Suplicy, foi o menor de toda a vigência da Operação Urbana Faria Lima: apenas 4 propostas aprovadas, mesmo número de 1995, quando a Lei que regulamentava a Operação entrou em vigor. Novamente, fatores institucionais podem explicar o fenômeno: a nova administração foi cautelosa na aprovação de novas propostas em seu primeiro ano. Porém, em 2002 há forte recuperação no número de propostas aprovadas (22, até outubro).

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5.10- Perspectivas da Operação Urbana Faria Lima Como vimos, as drásticas mudanças e a degradação ambiental sofrida, acarretando a desvalorização dos pequenos imóveis residenciais, além da substituição da população residente desde a inauguração do prolongamento, abriu caminho para o fortalecimento da opção pela interligação Faria Lima-Berrini, através principalmente da atuação do Movimento Colméia. Ao assumir a Prefeitura da cidade em 2001, Marta Suplicy, “sem recursos orçamentários para tocar as obras que podem mudar a cara e a dinâmica da cidade”, apostaria nas Operações Urbanas como maneira para lograr intervenções de maior peso urbanístico. Nas palavras de Suplicy, “elas [as Operações Urbanas], são a saída para os investimentos na atual situação financeira da cidade” (FSP: 01.07.01: s.p.). Na gestão de Suplicy (2001 a 2004), a EMURB executava obras que visavam complementar a estrutura física, formal e de funcionamento da área de intervenção da Operação Urbana Faria Lima, através de intervenções que “contemplem a melhoria da acessibilidade viária e de pedestres, a priorização do transporte público, a ampliação e organização da infra-estrutura instalada, e principalmente a reestruturação dos espaços públicos (ruas e praças)” (EMURB: 13.06.2002). A verba disponível para estes projetos e obras seria resultado das contrapartidas pagas à Prefeitura em troca de potencial construtivo adicional àquele permitido pela Lei de Parcelamento, Uso e Ocupação do Solo ( a “outorga onerosa”), previsto na Lei que aprovou a Operação Urbana. Os principais projetos administrados pela EMURB na região eram (em 2002): -

Paisagismo no canteiro central das avenidas Faria Lima e Hélio Pellegrino;

-

Prolongamento da avenida Hélio Pellegrino até a avenida Nova Funchal;

-

Duplicação da avenida Nova Funchal entre a avenida Chedid Jafet e avenida dos Bandeirantes;

-

Ligação da rua Baltazar Carrasco com a rua do Sumidouro;

-

Redefinição geométrica e tratamento paisagístico do cruzamento da avenida Faria Lima com avenida Cidade Jardim;

295


-

Redefinição geométrica e tratamento paisagístico da Marginal Pinheiros conforme projeto SMT/CET;

-

Organização

da

infra-estrutura

viária

e

de

saneamento

básico

(enterramento das redes aéreas, recuperação do pavimento flexível e implantação de pavimento rígido para transporte público, reforma da passarela da rua Cardeal Arcoverde); -

Projeto de reconversão urbana do largo da Batata a partir de propostas definidas no Concurso Público Nacional de Projetos (2002) prevendo, entre outras ações, a valorização em quantidade e qualidade dos espaços públicos da região, destinados à circulação, acessibilidade, lazer e cultura e sua compatibilização com a implantação da Estação Faria Lima da linha 4 do Metrô (financiada pelo Estado e pelo BNDES, segundo edital publicado pelo IAB (EMURB, http://www.emurb.com.br/farialima.htm, 13.06.2002).

Entretanto, antes da gestão Suplicy, a contrapartida financeira gerada pela venda de potencial construtivo adicional na Operação Urbana Faria Lima era encaminhada ao Tribunal de Contas do Município, e depositada num fundo comum. Por essa razão, segundo a EMURB, o destino do dinheiro seria de difícil mapeamento (se aplicado em obras da própria Faria Lima ou não). Entretanto, a EMURB destaca que, em termos arrecadatórios, a Operação Urbana Faria Lima seria um sucesso. Somente até outubro de 2000178 teriam sido arrecadados R$ 168.127.800,00 (SEMPLA, 2000), valor que ultrapassava o necessário para a amortização os gastos do poder público com o prolongamento da Avenida (estimados em R$ 150 milhões). Na gestão Suplicy, o controle dos gastos dos valores arrecadados na Operação Urbana Faria Lima passou diretamente à EMURB, responsável pela administração das obras na região da Operação. Os valores arrecadados, agora depositados num fundo específico, estariam financiando os melhoramentos listados acima e seriam um dos fatores que tornariam possível, segundo a própria EMURB, o prolongamento da Avenida Hélio Pellegrino até a Avenida dos Bandeirantes, com início das obras previsto para março de 2003.

178

A EMURB não forneceu os números até outubro de 2002 em tempo para a conclusão deste

trabalho.

296


Mais do que um prolongamento “lógico e necessário” dentro da malha urbana, visando, entre outros objetivos alegados, “desafogar o trânsito das Marginais”, a avenida Nova Faria Lima aparece como espaço estruturador de um novo eixo corporativo que se constrói às margens do rio Pinheiros, a exemplo de vários projetos de criação de centros ou eixos corporativos em outras cidades mundiais (desde o precursor La Défense num município vizinho à municipalidade de Paris à árida experiência das Docklands londrinas).

Figura 5-49: Vista panorâmica Avs. Nações Unidas e Águas Espraiadas, agosto de 2001. Foto: Roberto Caldeyro Stajano.

Ação extremamente lucrativa para o mercado imobiliário local (já internacionalizado), representa também, na sua origem, uma das faces da estratégia política de visibilidade a todo custo promovida pela administração de Paulo Salim Maluf. Parece-nos que Sérgio Carneiro, sociólogo e então vice-presidente da Associação Vila Olímpia Viva, formulou corretamente o problema ao indagar, referindo-se à Nova Faria Lima: “Em que proposta de estrutura urbana fundamenta-se tamanha intervenção no desenho e no aproveitamento desse espaço da metrópole? O município de São Paulo não dispõe de um plano atualizado de desenvolvimento como em outras cidades mundiais, tais como Tóquio ou Paris, que oriente a concepção de projetos coerentes e eficazes. Por que nossa cidade precisa estar sempre à disposição

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dos interesses específicos e circunstanciais de empresários do setor imobiliário, sem que estes adeqüem seus necessários investimentos aos interesses maiores de um progresso estrategicamente formulado?” (FSP: 13.02.94:10-2). De fato, a busca de soluções globais e locais exigiria uma articulação de propostas e escalas muito díspares, porém esta parece ser uma resposta para a alegação de que os Planos Diretores não têm sido satisfatórios porque não têm base numa “problemática local”. O espaço existente entre um conjunto de leis urbanísticas tecnicamente “ideais” e a realidade da cidade, que se produz a mais das vezes fora dos esquemas contemplados por aquelas leis, seria bastante diminuído por uma aproximação ao mesmo tempo globalmente compreensiva e localmente fundada.

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Capítulo 6 : Conclusões Schiffer (1989) chama a atenção para o papel do Estado, “(...) não como sujeito da história, mas [como] aquele que, ao implantar os projetos políticos da classe dominante, assume uma condição histórica”, tendo não somente a responsabilidade de construir diretamente a infra-estrutura física necessária à acumulação e reprodução capitalista, mas também difundir a ideologia para manter as condições de dominação entre classes.

Para Schiffer (1989), “avaliar o papel do Estado, uma vez que as

condições de reprodução das relações de dominação evoluem de acordo com os estágios de desenvolvimento, só faz sentido num estágio determinado do processo de acumulação” (Schiffer, 1989: 21-22). Procuramos, ao longo do texto, caracterizar o papel do Estado como condutor do processo de acumulação e reprodução capitalista no país e seu papel como um dos veículos e difusores da ideologia que torna possível esse papel e legitima suas ações. Visando situar nossa análise num quadro amplo, buscamos caracterizar o estágio de desenvolvimento do país e analisar sua inserção no capitalismo global e o comportamento de suas elites frente aos desafios da abertura do mercado nacional, das privatizações e do acentuamento da internacionalização da economia, para em seguida analisar os resultados desse processo em nível local, com o estudo do caso da Operação Urbana Faria Lima.

Buscamos entender e avaliar o impacto desta Operação na

configuração de uma área onde as atividades ligadas à aceleração no processo de acumulação do capital, com ênfase nas atividades terciárias (serviços, comércio e cultura, principalmente) pudessem operar, com impactos evidentes sobre a forma urbana e a organização do território intra-urbano. Concluímos que, no caso em estudo, o poder público trabalhou ao mesmo tempo no sentido de atender a certos interesses do capital individual (as empreiteiras, as incorporadoras, os proprietários de terrenos na região) e da acumulação capitalista em geral, trabalhando tanto no sentido de confirmação de tendências históricas estabelecidas (como o privilégio das obras e a criação de grandes infra-estruturas na zona Sudoeste da metrópole), como na criação de um espaço para a instalação de atividades dinâmicas de uma “nova economia” globalizada.

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Nas economias de localização, com predomínio das chamadas atividades dinâmicas terciárias, os serviços de alto nível necessitam localizar-se vantajosamente no território e o fazem seguindo circunstâncias que não são inteiramente ditadas por interesses externos, mas obedecem à dinâmicas e processos pré- existentes de produção do espaço. Concluímos portanto que a Operação Urbana Faria Lima pode ser encarada como um instrumento de adequação do território e da forma urbanos às exigências decorrentes da multiplicação e ascensão dos serviços de alto nível como atividades dinâmicas privilegiadas ligadas à globalização no cenário da metrópole Este instrumento acentua uma tendência pré-existente para a concentração de investimentos, equipamentos e renda na sua zona Sudoeste. Nesse quadro, a própria “adaptação” do território urbano às exigências do capital internacionalizado pode ser interpretada tanto como mais uma ficção ideológica, que embasou discursos “progressistas” por parte do poder político, como também uma necessidade real ligada ao estágio particular de acumulação capitalista no território nacional, levando em conta a real mudança na base produtiva no território intra-urbano da metrópole paulista. Além dos aspectos propriamente materiais, há também a criação de espaços de representação simbólica, tanto para uma parcela dos habitantes da metrópole como para as próprias empresas (com suas “identidades corporativas”), que buscam afirmar sua imagem institucional e ligá-la a espaços e edifícios distintivos. Esse processo se amparou em elaborações ideológicas de caráter quase sempre “subordinado”, isto é, seria necessário incluir o país no “Primeiro Mundo” e “tirá-lo do atraso”, dando-lhe mais competitividade no mercado internacional, mesmo que para isso fosse necessário desvalorizar o trabalho e a produção, liberalizar a economia e associarse estreitamente ao capital estrangeiro, aceitando as regras de um mercado financeiro desregulamentado e fugaz. Mas, ao contrário do que possa parecer, esses fenômenos não se dão contra um fundo de capitalismo “dependente”, mas no âmbito de um “acordo de classe” entre vários setores das elites no Brasil e do capital internacional, o que permitiu uma retirada programada do capital nacional de inúmeras áreas produtivas, assegurando porém sua dominação política e econômica e a manutenção dos seus privilégios através de inúmeras modalidades de associação com o capital estrangeiro.

300


Ao interpretarmos a configuração da territorialidade intra-urbana de São Paulo no estágio atual do desenvolvimento do capitalismo no Brasil, deparamo-nos com um modelo que reproduz fielmente o modelo de acumulação entravada descrito por Déak (1991), caracterizado pela expatriação de capitais, pela excessiva concentração de renda e pela desigualdade na distribuição dos ganhos, o que se reflete diretamente no espaço. No caso paulistano, é óbvia a fragmentação espacial e social ditada por esse modelo, o que se reflete principalmente na acentuada concentração de bens e serviços numa área restrita da metrópole e na ausência de infra-estrutura de porte metropolitano que pudesse tornar o mercado imobiliário mais homogêneo e menos especulativo. Cremos possível uma transposição para o intra-urbano das teorias que afirmam que as transformações impostas à territorialidade do Estado-Nação visam implantar uma crescente generalização da forma-mercadoria, mas aqui novamente devemos recorrer à teoria da acumulação entravada para explicar o caso paulistano. Trabalhando com a hipótese de que a excessiva concentração de infraestrutura, bens imobiliários e serviços é resultado de um processo de acumulação onde não há a generalização da forma mercadoria e portanto do assalariamento como base para a criação de uma classe consumidora que sustentasse um processo de acumulação livre, concluímos que essa seria a causa para a excessiva concentração espacial dos investimentos públicos e privados na metrópole paulista, gerando uma mercantilização exacerbada do solo urbano. Em outras palavras, a forma atual da acumulação capitalista no país determinou padrões sócio-econômicos e políticos específicos que resultaram em concentração de investimentos numa zona limitada da metrópole, ocasionando a sobrevalorização do solo e gerando uma dinâmica acentuadamente especulativa, processo apenas exacerbado pela Operação Urbana Faria Lima. Esta promoveu e acentuou a valorização especulativa calcada naquela dinâmica histórica pré-existente, ao invés de amenizá-la. A acumulação entravada reflete-se portanto na extrema valorização da zona Sudoeste da cidade, tendo como resultado direto a conformação de um Eixo Corporativo de Negócios ao longo da calha do rio Pinheiros, profundamente ligado à globalização da economia e a instalação de atividades do setor terciário mais sofisticado_ os chamados serviços corporativos de alto nível. A iniciativa privada, por sua vez, procura ocupar espaços antes identificados com a esfera do público. Porém, sua

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atuação está calcada em estratégias de convencimento e publicidade que podem redirecionar investimentos públicos, direcionando-os para a geração de melhores condições ambientais e paisagísticas naquelas áreas privilegiadas. Sendo assim, a macro-metrópole paulista parece adaptar-se às novas condições e especializar-se ainda mais como pólo de serviços de alto nível, procurando aperfeiçoar uma rede de serviços e comunicação que tornaria possível a coordenação da acumulação capitalista no Brasil e em todo o Mercosul. Verifica-se, ao nível da macro-metrópole, a implementação de um espaço econômico mais ou menos unificado, onde há circulação de capital, mercadoria e trabalho de modo intenso. Porém, este processo é limitado pela fragmentação social e espacial resultante do processo de acumulação entravada. Nossa análise nos faz crer que a criação de uma região onde a livre acumulação do capital pudesse se realizar só poderia ocorrer no âmbito de profundas mudanças no processo de acumulação em nível nacional. Já em nível local e regional, parece haver urgência na elaboração de um plano global para a macro-metrópole paulista que incluísse mudanças profundas nos padrões de investimento público e privado através do território intra-urbano. Refutamos portanto a idéia da falência do Planejamento Urbano. Pelo contrário, não só verificamos que mecanismos como os da Operação Urbana só se poderiam justificar no âmbito de uma ação global e coordenada na metrópole (e não pontual e casuística, como de fato ocorre), mas também vislumbramos a necessidade de que essas ações e mecanismos se insiram num quadro ainda mais abrangente de Planejamento Regional. Em suma, a Operação Urbana, da maneira como foi conduzida nos anos 90, constitui-se num instrumento de legitimação da dominação política e econômica prevalecente. Os inúmeros defensores do mecanismo da Operação Urbana alegam que a venda de potencial construtivo significaria a liberação de verbas públicas para investimento em áreas menos favorecidas da metrópole, mas não há indícios de que essa liberação de recursos tenha de fato ocorrido, tendo em vista o crescente endividamento da Prefeitura paulistana no período estudado e suas tímidas ações na consecução de políticas de maior impacto para as classes menos favorecidas, como a habitação social e o transporte público. É verdade que a Operação Urbana “se pagou”, como afirma a EMURB, mas os recursos gerados pela Operação não serviram para nenhuma ação

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coordenada do poder público no sentido de aliviar as pressões sociais decorrentes da ausência de infra-estrutura urbana ao nível metropolitano. Consideramos que a manutenção da ideologia, ou de várias ficções ideológicas que sustentam a ideologia (nos termos de Chauí_ 1993), foi uma das principais “vitórias” da Operação Urbana Faria Lima, tal como foi implantada durante a administração Paulo Maluf (1993-1996) e Celso Roberto Pitta (1997-2000), contribuindo sobremaneira para a consecução de objetivos políticos e econômicos imediatos, reforçando também um projeto econômico-político de longo prazo. A articulação dos interesses do poder público e os interesses dos diversos atores em cena não se fez às claras, mas à custa de acordos e concessões em diversos níveis e com diversos graus de transparência.

A Operação Urbana exigiu modos

relativamente sofisticados de efetivação graças à sofisticação da própria sociedade, que se democratizava e passava a exigir uma separação maior, pelo menos em aparência, entre os negócios do Estado e os negócios da elite, sem que essas relações fossem alteradas em essência. Em suma, concluímos que a Operação Urbana Faria Lima serviu como um mecanismo de legitimização de um discurso pretensamente “público” para a defesa de interesses eminente privados.

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Quadros anexos e apêndices

Quadro Apêndice 1: As diferentes opiniões sobre o projeto de prolongamento da Avenida Faria Lima CONTRA: OSCAR NIEMEYER, arquiteto: “O caso da Faria Lima é complexo demais, exigindo reflexão. Trata-se de transformar uma área habitacional num setor urbano diferente, dinâmico, com sua densidade imprevisível, seus problemas de tráfego e poluição, sujeito –quem sabe?– às aventuras nocivas do poder imobiliário. Para mim, que sinto o problema social mais importante, principalmente nessa fase de desrespeito e falta de ética irreprimidos, a solidariedade se impõe”. FÁBIO KONDER COMPARATO, professor titular da Faculdade de Direito da USP e fundador e diretor da Escola de Governo: “Toda a obra da Faria Lima é uma violação à Lei Orgânica do município. O artigo 10º da Lei declara que o Legislativo e o Executivo tomarão iniciativa de propor a convocação de plebiscitos antes de proceder à discussão e aprovação de obras de valor elevado ou que tenham significativo impacto ambientel. A obra da Faria Lima reúne condições de aplicação do artigo 10º. É uma obra de custo elevado e provoca impacto ambiental na medida que modifica as condições de vida da região. O Legislativo e o Executivo são responsáveis pela violação frontal da Lei Orgânica. A obra não é prioridade social. Prioridade é educação e saúde”. FÁBIO FELDMANN, então deputado Federal pelo PSDB: “Sou contra por uma razão preliminar: fazer uma obra sem ter Plano Diretor da cidade é um absurdo. Um empreendimento desta magnitude, e com impacto tão grande, deveria ter mais discussão. Deveria sr mais democrático. A obra induz um tipo de urbanização que eu acho questionável, além de induzir também o uso do carro.” De EMERSON KAPAZ, sócio-gerente da Elca e coordenador-geral do PNBE (Pensamento Nacional das Bases Empresariais): “Uma das grandes prioridades esquecidas da administração Maluf é a área social. Os problemas de habitação popular, saúde e educação são grandes. Priorizar essa obra com todas as demandas que precisam ser cumpridas dentro de um orçamento apertado, é muito polêmico. Nesse momento sou contra”. CELSO BASTOS, professor de direito constitucional da PUC e diretor-geral do Instituto Brasileiro de Direito Constitucional: “Existem áreas que estão sendo desapropriadas sem necessidade. Isso chama-se desapropriação por zona. É inconstitucional. Não tem interesse social. O poder público está fazendo isso para absorver a valorização imobiliária da área. Sou contrário por considerar inconstitucional a desapropriapão por zona. À primeira vista, a obra não é prioritária porque ela limita-se a um trecho específico da cidade. A Faria Lima beneficiará um número muito pequeno de pessoas. A solução para os

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problemas de transporte de São Paulo é o metrô. O alcance da obra é imobiliário”. ANTONIO FERNANDO PINHEIRO PEDRO, coordenador da Subcomissão de Meio Ambiente da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil): “Sou contra. O Prolongamento tem que se visto nas circunstâncias do projeto de Lei em tramitação na Câmara Municipal. Tenho dúvidas quanto a validade da operação toda, que nada mais é do que um reloteamento de terrenos. É um projeto imobiliário para a cidade. Isso não é prioridade para São Paulo. Fica claro que é uma aventura imobiliária. Tenho a impressão que querem fazer uma enorme avenida Luiz Carlos Berrini ao redor dos Jardins.” CELSO LAFER, professor titular da Faculdade de Direito da USP e ex-ministro das Relações Exteriores (1992): “Em matéria de políticas públicas deve haver escalas de prioridade. O projeto Faria Lima é interessante e até justificável, mas não creio que seja impreterível neste momento. Existem outras prioridades como transporte coletivo, moradia, saúde e escolas. Entendo que fazer deste projeto carrochefe da administração municipal é não dar, até simbolicamente, a hierarquia dos problemas da cidade de São Paulo”. A FAVOR: CÂNDIDO MALTA CAMPOS FILHO, urbanista e professor doutor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo: Para Malta a especulação imobiliária se constituiria numa das importantes formas de concentração de renda no Brasil. “Seu mecanismo principal ocorre quando, através do investimento público, valoriza-se propriedades imobiliárias, sendo que os recursos públicos utilizados têm origem em sua maior porção no contribuinte de baixa renda” (FSP: 02.06.94: 2-2). Malta via a Operação Urbana como uma forma de captação de recursos adicionais aos orçamentos públicos, “(...) através da outorga onerosa da parcela adicional de direito de construir a ser gerada na própria operação”, ou seja, como se disse, a “venda” do direito de potencial construtivo acima do que a Lei de zoneamento permitiria num local específico. Segundo o urbanista, esta parcela a ser outorgada onerosamente justificava-se justamente pela ampliação infra-estrutural embutida na operação. No caso das cidades brasileiras, as obras viárias teriam destaque, pois seria esta a “infra-estrutura” mais “estrangulada”. O mecanismo tornaria possível, “como exemplo”, abrir avenidas com recursos obtidos através da própria valorização imobiliária gerada pelas avenidas que assim se “auto-financiariam”, minorando os custos para o poder público (FSP: 02.06.94: 2-2). ROBERTO DE ABREU SODRÉ, ex-governador do Estado de São Paulo (1968-1972) e ex-ministro das Relações Exteriores do governo José Sarney: “A cidade de São Paulo cresce desordenadamente e prevêse um caos no seu trânsito até o final deste século. Diante dessa previsão, não posso deixar de ser fvorável à abertura de vias que espremam São Paulo. A cidade cresceu neste último decênio para o sul. Portanto, não se compreende uma avenida como a Faria Lima iniciar num largo e terminar em outro, com ruas estreitas. Sabemos que seu prolongamento vai dar acesso à nova via que é a Luiz Carlos Berrini. O urbanista não pode pensar no presente. Ele tem que pensar grande e no futuro. Ninguém será prejudicado quanto à indenização. O conforto comum vale mais que o de cada cidadão. É uma obra prioritária”.

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ROMEU CHAP CHAP, presidente da Fiabci (Federação Internacional das Profissões Imobiliárias): “Sou favorável ao projeto pois não devemos perder esta oportunidade de renovação urbana de toda essa região. Nunca estivemos tão próximos de realizar uma obra de tal envergadura, que outras administrações pretenderam realizar, mas não tiveram condições ou coragem para fazê-lo. As duas regiões afetadas, Vila Olímpia e Pinheiros, encontram-se abandonadas há 25 anos, desde a aprovação da Lei de 68. A Prefeitura deve induzir e incentivar a iniciativa privada em áreas onde aconteçam reurbanizações –onde evidentemente haja interesse para o capital privado”. JOSÉ CARLOS FIGUEIREDO FERRAZ, professor da USP e ex-prefeito de São Paulo (1971 a 1973): “Na suposição de que as desapropriações sejam justas e pontualmente pagas, sou de opinião que o prolongamento é uma obra necessária, que já de há muito deveria ter sido realizada”. ALFREDO MÁRIO SAVELLI, presidente do Instituto de Engenharia: “Faz 10 anos que queremos que sejam feitas Operações Urbanas. A Prefeitura não tem como arrumar dinheiro para tudo que precisa. A Faria Lima, com o potencial imobiliário que tem, reúne condições de ser o estopim do processo de Operações Urbanas de São Paulo. Por tudo isso sou francamente favorável à obra, que vão melhorar a região. Hoje o trânsito lá é uma calamidade. É preciso ser feita uma intervenção viária e os desapropriados receber o valor justo. É uma obra importante dentro das muitas prioridades de São Paulo”. JOÃO DE SCANTIMBURGO, membro da Academia Brasileira de Letras: “Sou favorável ao prolongamento. Abrindo a Faria Lima, ela vai dar vazão ao fluxo do trânsito. Como observador acho necessário o prolongamento. O tráfego está sempre engarrafado. Se é prioritário, é outra coisa. Mas que é necessário, é”. Fonte [complementada]: “Os que são contra... e os que são a favor [do prolongamento da Avenida Faria Lima]”, FSP: 22.05.94: Especial-4

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