Falta bom senso à Justiça

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Entrevista

Fátima de Sousa jornalista fs@briefing.pt

Já foi dirigente partidário, secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros, administrador da autoridade transitória do Iraque. Hoje, aos 58 anos, José Lamego é advogado e professor universitário. Mas sempre observador atento da realidade. Da Justiça diz que peca por medidas de bom senso. E que o essencial seria reformar a fundamentação das sentenças, porque “a justiça deve ser célere, não apenas boa”

José Lamego, sócio da Lamego & Horta

Ramon de Melo

Falta bom senso à Justiça

Advocatus | Enveredou recentemente por novo projecto profissional. Foi um regresso à advocacia? José Lamego | Nunca deixei de exercer. Estou inscrito na Ordem desde 1980, sou, aliás, um dos advogados mais antigos, o que se nota no meu número de cédula, que é o 4000 e poucos… Tive algumas interrupções, da primeira vez 6

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porque fui trabalhar para o Banco Mundial e da segunda quando fiz o doutoramento na Alemanha. E depois, por razões óbvias, requeri a suspensão da inscrição quando exerci funções governativas. Esta sociedade tem pouco mais de ano e meio. Somos quatro sócios, estávamos em projectos diferentes e resolvemos juntar-nos em parte por afinidades pessoais.

Advocatus | Como encara actualmente a profissão? JL | A profissão, particularmente em Lisboa, exerce-se em moldes muito diferentes do que quando eu comecei. Então não havia praticamente sociedades de advogados, o que era dominante era o exercício em regime de prática individual. O advogado era polivalente, cobria quase todos os ramos do Direito; hoje já

uma muito maior especialização e, portanto, as condições de exercício da profissão são completamente distintas. Advocatus | Mas considera natural essa evolução para um modelo em que as sociedades de advogados são dominantes? JL | Nos anos 90 constituíram-se várias sociedades de advogados, alguO agregador da advocacia


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mas com um número muito grande de advogados, comungando do espírito de relativa euforia que havia no País. Há quatro ou cinco sociedades com mais de 100 advogados e eu duvido que o mercado português, que está em retracção, comporte, com níveis de rentabilidade razoáveis, sociedades dessa dimensão. É um facto que essas sociedades são as únicas que estão adaptadas e têm meios para grandes operações, por exemplo de fusão e aquisição, mas como não vai haver mais do que uma ou duas por ano em Portugal, o que resta é o mercado mais dirigido a sociedades de menor dimensão. Às vezes, as de maior dimensão também têm de se ocupar bastante com a litigância de massa, com os processos executivos, e isso diminui naturalmente a rentabilidade. De qualquer forma, eu não sou muito regulamentador e penso que o sucesso ou insucesso das actividades profissionais é o melhor caminho a seguir para a correcção das trajectórias. Penso que aprendemos mais com os insucessos do que com os sucessos.

“Há quatro ou cinco sociedades com mais de 100 advogados e eu duvido que o mercado português, que está em retracção, comporte, com níveis de rentabilidade razoáveis, sociedades dessa dimensão”

Advocatus | A Lamego & Horta é deliberadamente de menor dimensão? JL | Fomos, de facto, para um projecto um pouco mais prudente. Somos nove advogados, penso que no próximo ano faremos uma pequena expansão, mas sempre com prudência. Advocatus | A sociedade nasce já em ambiente de crise económico-financeira. Onde vão buscar a vossa rentabilidade? Qual é o vosso mercado? JL | A única maneira de respondermos à situação presente da profissão é com uma actividade muito intensa. É com mais trabalho e com mais eficiência, até porque voltámos a ter níveis de remuneração da década de 90. O nosso princípio é o de manter os postos de trabalho, mesmo que venhamos a diminuir a rentabilidade. De qualquer modo, não nos queixamos. Trabalhamos com regularidade com parceiros espanhóis – em Novembro

“Fazem-se reformas sobre o acessório e não sobre o essencial. E o essencial é, por exemplo, a fundamentação das sentenças. Uma sentença em que o relatório dos factos ocupa dezenas e dezenas de páginas e a fundamentação outras dezenas é um absurdo”

vamos mesmo anunciar um acordo com um escritório na Catalunha -, trabalhamos bastante com o Brasil, que é um país que os nossos clientes estrangeiros procuram, temos uma grande relação com a Alemanha e com fundos de investimento em Londres. Trabalhamos também regularmente com um escritório em Luanda, mas não estamos a encarar a abertura de um escritório próprio, quer devido aos elevados custos de instalação, quer porque há um ambiente de hostilidade geral dos colegas contra a presença de advogados estrangeiros. Eu diria que o mercado português não representa mais de um terço – não tenho os números certos, mas a maior parte dos nossos clientes são estrangeiros, de países europeus, o que nos dá uma relativa folga. Advocatus | Alguns advogados ganharam grande visibilidade mercê de alguns casos muito mediatizados. O que pensa desta exposição? JL | Há uma mediatização excessiva da Justiça, mas diria que, muitas vezes, mais por parte das magistraturas do que dos advogados. O meu modelo é o de um magistrado que observava um grande resguardo em matéria de aparição pública, como considero que o modelo de advogado é mais tradicional, de um profissional que normalmente não se pronuncia sobre os casos que lhe estão confiados. Mas a Justiça é uma das áreas da vida portuguesa onde há demasiada turbulência comunicacional. Com algum anseio de protagonismo, às vezes com aparições excessivas dos órgãos sindicais, e isso leva a que haja um excesso de ruído na política de justiça, o que não ajuda a que todos os operadores concorram para a melhoria da prestação de serviços de administração da Justiça. De qualquer modo, penso que todos somos aliados potenciais na melhoria do funcionamento do sistema. Advocatus | Nessa crítica deixou de fora a Ordem dos Advogados… JL | É verdade que, de há 15 anos para cá, a Ordem assumiu um

“A única maneira de respondermos à situação presente da profissão é com uma actividade muito intensa. É com mais trabalho e com mais eficiência, até porque voltámos a ter níveis de remuneração da década de 90”

protagonismo público maior. Quero dizer-lhe, com toda a franqueza, que votei no dr. Marinho e Pinto e não vejo que haja maior turbulência ou maior tensão do que em mandatos anteriores. Outros bastonários assumiram, até com maior contundência, posições públicas. O actual bastonário, de que fui contemporâneo na faculdade, tem um estilo próprio, são características idiossincráticas. Mas, às vezes, as pessoas para serem ouvidas têm de falar alto. Advocatus | A Justiça está sempre em reforma mas não há reforma que chegue. O que falta? JL | Diria que, às vezes, até em excessiva reforma… Fazem-se reformas sobre o acessório e não sobre o essencial. E o essencial é, por exemplo, a fundamentação das sentenças. Uma sentença em que o relatório dos factos ocupa dezenas e dezenas de páginas e a fundamentação outras dezenas é um absurdo. Não se pode pedir a um juiz que produza sentenças destas. Há sistemas jurídicos em que só quando as partes manifes>>>

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“A Justiça é uma das áreas da vida portuguesa onde há demasiada turbulência comunicacional. Com algum anseio de protagonismo, às vezes com aparições excessivas dos órgãos sindicais”

tam intenção de recorrer é que a fundamentação é mais extensa. Caso contrário, deve ser bastante estrita, é a única maneira de ter uma justiça mais célere. Os magistrados têm uma boa formação académica, mas há um excessivo formalismo na nossa lei processual que leva a que a produtividade dos magistrados diminua. Era para aí que o essencial das reformas devia ser dirigido. Haverá também sempre contra-indicações, dir-se-á que as sentenças terão menos rigor, que a fundamentação será tecnicamente mais sofisticada, mas a justiça deve ser célere, não apenas boa. E é em matéria de celeridade que a percepção dos cidadãos gera mais crítica. Não se compreende que haja sete ou oito anos para ter uma sentença transitada em julgado. Não há razão para que os processos se arrastem. Estou a lembrar-me do caso UGT (relacionado com o uso de verbas do Fundo Social Europeu). Arrastou-se 20 anos, com pessoas sob suspeição, pessoas que não puderam ver satisfeitas alternativas profissionais porque estavam presas a um processo judicial que demorou 20 anos até transitar em julgado com a absolvição dos principais arguidos. O princípio da estabilidade das leis é importante, mas as reformas que venham a ser feitas devem ter esta visão cirúrgica de desatar os bloqueios, nomeadamente em matéria processual. Advocatus | Diria que as medidas contidas no entendimento de memorando são uma reforma em si ou pistas para uma futura reforma da Justiça? JL | O programa da troika é um programa de emergência, destinado a responder às dificuldades financeiras do País. Genericamente, vai ser benéfico, por introduzir alguma disciplina ainda que por via externa. Eu preferia que fosse introduzida por via interna e por consenso, mas é um guião para um conjunto de reformas. É mais um impulso. As reformas na área da Justiça têm de ser feitas de acordo com um espírito mais programático e menos académico.

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“As reformas na área da Justiça têm de ser feitas de acordo com um espírito mais programático e menos académico. Não é fazer a melhor lei do ponto de vista teórico, mas fazer a lei processual que resolva os problemas fundamentais”

“É um facto que somos muito pouco atreitos à mudança. Há um corporativismo e uma cultura de inacção muito grande; em Portugal, é-se penalizado pelo que se faz e não pelo que não se faz”

Não é fazer a melhor lei do ponto de vista teórico, mas fazer a lei processual que resolve os problemas fundamentais, que são a dilação na elaboração da decisão final, ou seja, a fundamentação. Advocatus | Dito assim parece tão óbvio. Porque é que não tem sido feito? JL | Eu não tenho a pretensão de ter soluções no bolso, nem tenho varinhas mágicas… Mas é um facto que somos muito pouco atreitos à mudança. Há um corporativismo e uma cultura de inacção muito grande; em Portugal, é-se penalizado pelo que se faz e não pelo que não se faz. Do ponto de vista da consolidação orçamental, por exemplo, o que a troika diz é o que toda a gente já falava há seis ou sete anos, tomaram-se medidas parciais, mas a crise de 2008 agravou o contexto internacional da economia portuguesa. As medidas previstas no memorando são, na sua maioria, medidas de bom senso, à excepção da chamada taxa social única, que é uma medida de falta de senso, e da redução de municípios, que também não me parece muito factível. De resto, tudo assenta numa filosofia de senso comum, que muitas vezes traz melhores respostas do que perspectivas muito programáticas e muito elaboradas. Advocatus | Como advogado, mas também como professor da Faculdade de Direito, como vê o acesso à profissão? JL | A situação dos jovens profissionais preocupa-me bastante. O arrastamento do estágio, com exame de entrada e exame de saída, mais do que um controlo de qualidade é uma maneira de restringir o acesso à profissão e de regular questões que serão necessária e impiedosamente reguladas pelo mercado de trabalho e que não deviam ser reguladas por via administrativa. O estágio é muito duro e não garante necessariamente um melhor apetrechamento dos futuros profissionais. Além de que tem implicações socio-económicas graves. Só quem tenha apoio económico O agregador da advocacia


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familiar é que consegue suportar este protelamento de entrada na profissão e na remuneração. Advocatus | Foi dirigente partidário e membro de um governo. É um capítulo encerrado? JL | É. Mantenho as minhas fidelidades de sempre, sou militante de base do Partido Socialista. Fiquei muito satisfeito com a eleição do recente líder, em quem votei, mas é uma satisfação pessoal que faz parte dos meus sentimentos, não da minha actividade diária. Hoje, sou advogado, professor, cidadão. A minha actividade política decorreu até 2001, 2002, enquanto António Guterres foi primeiro-ministro e líder do partido. A partir daí, procurei desenvolver uma vida profissional. Entendo que, em democracia, os políticos devem saber sair a tempo. Já viu a longevidade das lideranças partidárias e sindicais em Portugal? Em democracia, a alternância é a regra, entre partidos e dentro dos partidos. Advocatus | Foi responsável pelas Relações Internacionais do PS, membro do Comité do Médio Oriente da Internacional Socialista e secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros, administrador da autoridade provisória do Iraque. À luz desta experiência, como vê os recentes acontecimentos no mundo árabe? JL | Ainda é muito cedo para fazermos o balanço das ditas primaveras árabes. É um facto que há um afastamento das autocracias e uma maior expressão do desejo de participação dos cidadãos na vida dos seus países, mas pode vir a acontecer uma agudização das condições de instabilidade em todo o Médio Oriente. Temos de estar prevenidos para o facto de determinados movimentos terem sempre efeitos colaterais. O impacto de toda esta enorme alteração ainda não está clarificado e não estará nos próximos meses. Vamos ver como será a situação pós-conflito na Líbia, que é uma sociedade muito dividida em tribos, veremos como coexistem sectores O agregador da advocacia

“Ainda é muito cedo para fazermos o balanço das ditas primaveras árabes. É um facto que há um afastamento das autocracias, mas pode vir a acontecer uma agudização das condições de instabilidade em todo o Médio Oriente”

islamistas com sectores tecnocráticos. Há o papel do Egipto, que era o grande estabilizador da região em termos geopolíticos. Temos de ver também qual o papel que a Turquia vai jogar na região, qual a consequência da retirada norte-americana do Iraque – aqui houve um ganho muito grande, que foi o derrube de uma ditadura implacável e perturbadora do equilíbrio na região, mas o pós-conflito foi gerido de uma maneira pouco sábia, sem conhecimento do país, cometeram-se erros cujas consequências ainda estamos a pagar, sobretudo os iraquianos. É preciso ainda ver como se vai posicionar o Irão e se a estabilidade na Argélia se manterá. É um xadrez muito complexo e não o podemos analisar apenas a partir do sentimento positivo do acréscimo de democracia em dois ou três países. Vai ser fascinante

seguir todo o processo de evolução. Advocatus | A situação actual do País tem dado voz a muitos descrentes na União Europeia. Portugal tem futuro fora do euro? JL | Contra esse cepticismo, eu penso que a nossa saída (da crise) só é possível num quadro europeu e mediante o aprofundamento do processo de construção europeia. Estou completamente contra essas vozes que acham que há um destino para Portugal fora do euro. Claro que, se o euro implodir, teremos de caminhar pelos nossos próprios pés, mas o que eu desejo para Portugal é que se ancore na construção europeia. Temos de fazer o trabalho de casa, arrumar as finanças públicas, dinamizar a economia, custa muito mas é incontornável, não há outro caminho.

PERFIL

Prazer e privilégio

“A nossa saída (da crise) só é possível num quadro europeu e mediante o aprofundamento do processo de construção europeia. Estou completamente contra essas vozes que acham que há um destino para Portugal fora do euro”

Das várias actividades que exerce, leccionar é a que dá “mais prazer pessoal” a José Lamego. Na Faculdade de Direito da Universidade Clássica, ensina actualmente Filosofia do Direito a alunos do 1.º ano. E o prazer que retira começa logo na preparação das aulas: “É uma maneira de aprendermos, de continuarmos a aprender, e isso é fundamental”. Prazer dá-lhe igualmente a música clássica. Que ouve em concertos ou em casa, não no escritório porque se concentra melhor no silêncio. Em nome deste prazer, no Verão em que foi doutorando na Alemanha cruzava fronteiras para se deleitar com o talento reunido no festival de Salzburgo. Um “contexto de privilégio”, reconhece, enriquecido pelo facto de ter assistido a todo o processo de reunificação alemã e conhecido personalidades como Willy Brandt, o chanceler da altura, ou Vaclav Havel, líder da então Checoslováquia. “Acompanhei os acontecimentos dia-a-dia. Foi uma experiência importantíssima”. Outubro de 2011

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