“It – A Coisa”: Faltou enxugar o excesso

Descontados aqueles efeitos de sempre, há um belo filme na história do palhaço assassino de Stephen King

A intervalos regulares, It – A Coisa põe em cena aqueles efeitos especiais que são o feijão-com-arroz do terror de segunda linha: um cadáver meio decomposto tenta agarrar Eddie (Jack Dylan Grazer), o menino que tem germofobia; a pintura disforme de uma mulher sai do quadro para agarrar Stanley (Wyatt Oleff), o garoto que se acha uma decepção para o pai; Pennywise, o palhaço que assombra a cidadezinha de Derry, no estado americano do Maine, abre o sorriso e mostra fileiras medonhas de dentes. Nada que já não se tenha visto antes em dezenas de outros filmes. E, no entanto, dentro de It – A Coisa há um filme bem melhor do que a maioria; se o diretor argentino Andy Muschetti (de Mama) tivesse resistido a essas mesmices ocasionais, o que se teria ali é a grande aventura íntima de seis garotos e uma garota: as últimas férias de verão, igualmente aterrorizantes e excitantes, em que eles ainda estão com um pé na infância. A partir dali, o que essa turma de 13 anos tem pela frente é a entrada na vida adulta. Se vencerem os medos e traumas que Pennywise simboliza para cada um deles, têm uma chance de que essa vida seja plena. Se forem derrotados por Pennywise, serão como quase todos os adultos que conhecem – indiferentes, ou abusivos, ou neuróticos, ou violentos. Serão, enfim, pessoas presas em um pesadelo pessoal, paralisadas numa quase-vida.

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De acordo com o escritor Stephen King, It é a sua criação favorita. Mas, ao contrário de O Iluminado (1980) Conta Comigo (1986) ou Um Sonho de Liberdade (1994), ela nunca ganhara uma adaptação que fizesse jus à sua alegoria tão bem bolada: para ser liberada para menores, a minissérie de TV lançada em 1990 aguava até o ponto da insipidez os pavores terríveis que atormentam os “otários”, como os sete protagonistas se autointitulam. Todos sofrem bullying na escola e, em casa, enfrentam coisa pior ainda. Bill (Jaeden Lieberher, de Destino Especial) gagueja e convive com o desaparecimento de seu irmão caçula (obra de Pennywise, embora ele não o saiba). Beverly (Sophia Lillis) é vítima do abuso sexual do pai, e tachada de vadia entre os colegas. Mike (Chosen Jacobs) perdeu os pais num incêndio criminoso provocado por racistas, e agora tem de viver com o avô truculento. Ben (Jeremy Ray Taylor), gordinho e sonhador, recém-chegado à cidade e sem amigos, é brutalmente espancado por um trio de adolescentes que tortura todos os alunos menores. Stanley sofre com a frieza do pai, e Eddie tem mil doenças imaginárias que a mãe, uma figura tenebrosa, inculca nele. E Richie (Finn Wolfhard, de Stranger Things) é seu próprio e maior problema, com a mania de dizer a pior coisa na hora errada. (Finn, aliás, é uma oportuna ponte entre Stranger Things e It, que se vale daquela mesma ambientação nostálgica nos anos 80 da série.)

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Quando eles estão juntos, porém, algo especial acontece: aquela cumplicidade mágica das primeiras amizades (que King e o diretor Rob Reiner tão bem retrataram em Conta Comigo) que é como um outro mundo, feliz e protegido, dentro do mundo real. Ajudado por seu elenco excelente (do qual Sophia Lillis e Jeremy Ray Taylor, ambos encantadores, são as grandes revelações), Andy Muschietti faz um belo trabalho de criar essa atmosfera que é a espinha dorsal do filme, e de casá-la às imagens às vezes mais sugestivas dos terrores que ameaçam furar essa bolha de sabão dos otários – entre as quais a figura do próprio Pennywise, interpretado com muita imaginação pelo sueco Bill Skarsgard, da série Hemlock Grove (e irmão do Alexander de Tarzan e True Blood). Esse último verão antes do fim da infância é um tema mítico do cinema americano, e honrar a tradição já é um feito em si. Se tivesse sido permitido a Muschietti descartar a obviedade de muitos dos sustos e efeitos, It – A Coisa poderia facilmente subir ao pódio do melhor “pós-terror” atual, junto com Corrente do Mal, A Bruxa, Ao Cair da Noite e Corra!.


Trailer


IT – A COISA
(It)
Estados Unidos, 2017
Direção: Andy Muschietti
Com Jaeden Lieberher, Sophia Lillis, Jeremy Ray Taylor, Bill Skarsgard, Finn Wolfhard, Jack Dylan Grazer, Chosen Jacobs, Wyatt Oleff, Nicholas Hamilton, Owen Teague, Jackson Robert Scott
Distribuição: Warner

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