Qual a estratégia para a população sem-abrigo?

Qual a estratégia para a população sem-abrigo?


Em Portugal existem mais de três mil sem-abrigo,uma população que só foi alvo de uma estratégia oficial em 2009. O que sabemos sobre os sem-abrigo do país?


Não foi há muito tempo que Portugal começou a fazer o retrato, de forma integrada por todo o país, do panorama do fenómeno dos sem-abrigo. A primeira Estratégia Nacional Para a Integração de Pessoas em Situação Sem-Abrigo remonta a 2009 e decorreu até 2015. Dois anos depois, foi lançada a segunda estratégia, que vigora até 2023. E a verdade é que hoje, como nunca antes foi possível, sabemos quantos sem-abrigo existem em Portugal: 3396.

Por sem-abrigo, como explica ao i fonte do gabinete de comunicação do Instituto de Segurança Social, que coordena o Grupo de Implementação, Monitorização e Avaliação da Estratégia (GIMAE), entende-se “pessoa sem teto, a viver no espaço público, alojada em abrigo de emergência ou com paradeiro em local precário ou sem casa, encontrando-se em alojamento temporário destinado para o efeito”. A definição, também ela, foi oficializada pela estratégia, aprovada em Conselho de Ministros em 2017. Quanto aos números, são o lado mais visível do trabalho que tem vindo a ser desenvolvido. Foram divulgados em novembro no relatório de “Inquérito aos conceitos utilizados e aos sistemas locais de informação 2018”, realizado entre fevereiro e março deste ano nos 278 concelhos de Portugal Continental e especificam mesmo que existem existem no país 1443 pessoas sem teto e 1953 sem casa. O i procurou, junto do Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social, que tutela a área, saber números de anos anteriores para perceber a evolução do fenómeno, mas a resposta veio confirmar que nunca houve uma coordenação nacional de norte a sul do país nesta matéria: este inquérito foi “o primeiro a ser feito com o conceito de sem-abrigo harmonizado por todos os concelhos”, disse fonte do gabinete de comunicação.

O que sabemos então nesta altura sobre o fenómeno? Os números mostram, em primeiro lugar, uma tendência clara: há mais sem-abrigo nas grandes cidades. É na área metropolitana de Lisboa que existem mais sem-abrigo (44,2%) , seguida pela região do Norte (32,5%) e área metropolitana do Porto (23,8 %). Depois, estão a zona Centro (11,6%), Algarve (6,8%) e Alentejo (4,8%).

Em segundo lugar, o documento dá conta de um dado positivo: em 25 concelhos – dos 275 concelhos que responderam à questão -, “apenas foi reportada a existência de pessoas sem casa, não se registando situações de pessoas sem teto”. As pessoas ditas sem casa vivem, segundo o relatório, em várias realidades: centros de alojamento temporário ou albergues, onde a pernoita é limitada e sem acesso a alojamento de longa duração; alojamentos específicos para pessoas sem casa, como apartamentos de transição (conhecidos como “housing first”), onde a pernoita também é limitada e não há acesso a alojamento de longa duração; pensões ou quartos pagos pelos serviços sociais.

Contudo, existem evidências de que ainda há muito por fazer para que exista, a nível nacional, um conhecimento profundo do fenómeno. De acordo com as contas do relatório, apenas 12% dos concelhos em Portugal Continental que responderam – 33 têm sistemas informatizados de recolha de informação relativa à população sem-abrigo. “Os sistemas locais de recolha de informação apresentam realidades muito distintas”, lê-se no documento, o que condiciona logo à partida “a possibilidade de poder contribuir para a atualização de uma base de dados centralizada a nível nacional”.

O relatório dá ainda conta de um indicador inesperado, relativamente a pessoas “em situação de risco habitacional” no país. Existem, em 169 concelhos de Portugal continental, 11.113 pessoas em risco habitacional e que residem em habitações não convencionais, como caravanas, por exemplo, ou em casa de família ou amigos por falta de habitação alternativa. Para o número final foram tidas em conta também pessoas em situação habitacional insegura – isto é, com aviso de despejo.

Sem-abrigo: qual a estratégia? A “Comissão Interministerial da ENIPSSA 2017-2023 reuniu pela primeira vez em novembro de 2017 e aprovou o Plano de Ação 2017-2018” com os objetivos a alcançar no biénio, explica ao i o Instituto de Segurança Social. Dividido em três eixos, o plano quer a “promoção do conhecimento do fenómeno das pessoas em situação de sem-abrigo, informação, sensibilização e educação”, o “reforço de uma intervenção promotora da integração das pessoas em situação de sem-abrigo” e a “coordenação, monitorização e avaliação da ENIPSSA”.

Agora que os dois anos estão a chegar ao fim, o Instituto de Segurança Social elucida que “muitas medidas” já foram desenvolvidas, como “o acolhimento residencial, alargamento e integração da intervenção na área da saúde e a promoção da formação e da integração profissional das pessoas em situação de sem-abrigo”. Outro objetivo importante alcançado foi a realização do inquérito e consequente relatório, que traçou um primeiro retrato coordenado da população sem-abrigo do país, bem como a criação do site da ENIPSSA 2017-2023, que agrega informação e legislação sobre a estratégia nacional.

Ao longo de mais de 50 páginas, o plano, seguindo a filosofia da estratégia, “em termos de habitação, destaca a priorização do alojamento permanente em habitações individualizadas, através da criação de uma bolsa de casas, em articulação com diversas entidades. Já na área da saúde, o plano prevê o alargamento e integração da intervenção, desde cuidados primários, hospitalares, continuados, saúde pública, saúde mental, comportamentos aditivos e dependências. Existe, ainda, uma aposta na formação e integração profissional das pessoas em situação de sem-abrigo”.

Mas não é possível falar da estratégia que agora vigora sem falar da anterior, verdadeira rampa de lançamento da atual e que levou à implementação de uma importante resposta a nível local: os Núcleos de Planeamento e Intervenção Sem-Abrigo (NPISA). A estratégia 2009-2015 tinha entre os objetivos a criação de condições para garantir a promoção da autonomia das pessoas sem-abrigo e, como dá conta o relatório de avaliação da estratégia, os NPISA contribuíram em muito para o alcançar desse objetivo.

Aos NPISA cabe a realização do diagnóstico do fenómeno localmente, bem como intervir junto da população sem-abrigo, disponibilizando respostas. São criados consoante a dimensão do fenómeno das pessoas sem-abrigo, quando a dimensão o justifica. Atualmente, existem 20 no país.

Lisboa, o concelho pior posicionado No concelho com mais sem-abrigo, o vereador dos Direitos Sociais da Câmara Municipal de Lisboa (CML), Manuel Grilo, já disse por várias vezes que o NPISA “revolucionou” o atendimento à população sem abrigo. No NPISA da capital – onde vivem, respetivamente, 350 e 645 pessoas sem teto e sem casa – existe uma Unidade de Atendimento para a Pessoa Sem-Abrigo (UAPSA) que disponibiliza um atendimento de emergência às pessoas sem-abrigo. O i contactou a assessoria de comunicação do vereador para perceber qual o real impacto da criação do NPISA e compreender as várias ramificações do núcleo da capital, pedindo também informações sobre a estratégia da autarquia para as pessoas sem casa. Contactámos, também, Maria Teresa Bispo, coordenadora no NPISA de Lisboa. Contudo, nenhuma resposta nos foi avançada. A verdade, porém, é que desde a criação do NPISA, em 2015, a população de pessoas sem-teto na capital diminuiu 50%: em 2015, 760 pessoas dormiam nas ruas.

Em novembro, a Câmara Municipal de Lisboa (CML) foi criticada publicamente por várias associações que prestam apoio às pessoas sem-abrigo. A autarquia negou as críticas e respondeu com o anúncio de que Programa Municipal Para a Pessoa Sem-Abrigo (PMSA) 2019-2021 vai ser dotado com mais de cinco milhões de euros.

Quanto à estratégia nacional, o ISS confirmou ao i que o “2º Plano de Ação da ENIPSSA 2017-2023 para o biénio 2019-2020 está em fase de elaboração”. No âmbito do plano, o instituto destaca “a necessidade de se incrementarem as medidas relacionadas com a área da saúde, a operacionalização do Protocolo Habitação – que tem por finalidade criar uma parceria para fomentar o aumento de soluções de alojamento, em permanência, dirigidas a pessoas em situação de sem-abrigo, através da celebração de contrato de arrendamento – e o envolvimento das autarquias locais”.