Uma análise da Roma Antiga: A Sociedade Romana, de Paul Veyne

Por Giovanna Mauro, graduanda em História pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp)


 

Paul Veyne iniciou os seus estudos na Escola Superior de Paris. É um dos inauguradores do modelo narrativo de reflexão sobre a histórica enquanto ciência. O historiador francês foi, também, um célebre intérprete das obras de Michel Foucault. Em suas análises, busca desconstruir conceitos pré-definidos e já naturalizados. Além disso, defende a ideia de que muitos fatos são aleatórios e acontecem ao acaso e, assim, o historiador nem sempre deve se ater a busca por uma explicação lógica.

Em um primeiro momento, apresenta-se um texto que, embora não sendo um documento histórico oficial, parece profundamente realista e até mesmo típico. Para provocar uma reflexão histórica, utiliza-se uma fonte considerada “não oficial” ou convencional. A narrativa em questão, por exemplo, conta a história de Trimalquião, um escravo que, ao receber a herança de seu senhor, em decorrência do falecimento desse último, se torna rico e liberto.

Ao mesmo que conta os pormenores da narrativa, o historiador critica a teoria elaborada por Michail Rostovcev, um também historiador, que, com base na vida do fictício escravo liberto, estuda o suposto caráter capitalista da economia romana do século I do Império Romano. Rostovcev afirma que esse escravo representaria um grupo de indivíduos que inaugurou aquilo que chamamos de empreendedorismo ao vender as terras herdadas, investi-las no comércio e navegação e se tornar um “protótipo de burguês”. Porém, essa possível transformação em um membro da nova classe que estaria, segundo Rostovcev, sendo criada (a burguesia), só seria possível a partir da ascensão de Trimalquião a uma classe acima da sua. Tal situação é refutada por Veyne ao longo da narrativa e veremos o porquê.

Antes de tudo, é preciso explicar como o escravizado consegue a sua emancipação e toda o patrimônio na forma de herança do patrão. No Alto Império, período que se estende das origens de Roma até o século III d. C, o senhor de escravos poderia preferir seus servos à sua própria família, se relacionando com esses de uma forma amistosa. Assim, como os laços, na antiga Roma, eram constituídos a partir de nome e não de sangue, ao contrário da nossa concepção hodierna, era comum que escravos ou outros indivíduos livres, que não da família do senhor, herdassem o seu patrimônio com a morte desse, na tentativa de fazer o seu nome perpetuar ao longo dos anos, uma vez que o herdeiro, se servo, herdava o nome gentílico do patrão. Dessa forma, Trimalquião se torna livre e enriquece graças a relação escravo-patrão existente na época. Mas porque, então, ele não pode ser considerado um burguês, para Paul Veyne?

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O status e a classe social, em Roma, eram medidos com base na propriedade fundiária do indivíduo e sua família. Assim, quando Trimalquião vende as terras do ex-senhor, o faz com um único proposto: conseguir aplicar esse capital no comércio, para aumentar a quantidade de dinheiro e, assim, adquirir terras. Em nenhum momento ele pretender lucrar o máximo possível por um tempo indeterminado, como faria um burguês, de fato. O comércio é por ele utilizado com o propósito de multiplicar o seu capital para que mais propriedades possam ser adquiridas. Dessa forma, temos aqui exposto o principal ponto que impede que o escravo liberto em questão seja classificado como burguês.

O segundo ponto é a ascensão social que não ocorre com Trimalquião. Em nenhum momento ele deixa de ser visto pela sociedade romana como um escravo liberto, mas ainda escravo. E ele talvez nem ao menos almejasse atingir um status além desse: ele se orgulha de sua classe e não teria porque se envergonhar dela: muitos escravos ou escravos libertos viviam em melhores condições do que homens livres da plebe, em decorrência de gratificações e privilégios concedidos por alguns senhores aos seus servos “favoritos”. A única diferença, por vezes, entre os escravizados e os plebeus era que esses últimos possuíam o direito de exercer sua cidadania, enquanto os primeiros não.

No momento em que, enfim, nosso personagem consegue multiplicar seu capital a uma quantidade suficiente para a compra de algumas terras, retira o seu dinheiro do comércio. Adquire sua propriedade ao sul da Península Itálica e, ainda que admita que é bem sucedido, considera-se um pertencente à classe dos libertos, mas nunca um nobre patrício. Trimalquião representaria, então, a nobreza dentro da classe dos libertos, confirmando a teoria de Veyne de que a emancipação criaria uma carreira paralela a dos homens livres. Com essa análise, a teoria de Rostvcev é refutada.

Em seguida, Veyne visualiza o suicídio como um fato social para refletir sobre os costumes e tradições que reinavam entre os habitantes do Império e que diferem em muito dos modernos e contemporâneos

O suicídio, à época, não era um ato passível de condenação. O indivíduo poderia se suicidar, por uma série de motivos, sem que esse ato fosse considerado crime, ou seja, sem que fosse indigno de uma sepultura ou que a seus herdeiros fosse negado o seu patrimônio como herança. Para os juristas, as leis diziam respeito somente à assuntos de família, patrimônios e conflitos de interesse.

Essa concepção não era utilizada somente em duas situações: caso o suicida estivesse sendo acusado de crime capital ou se fosse um escravo. No primeiro caso, o ato de se suicidar seria, para o Estado romano, o atestado de culpa e, nesse caso, o fisco (aparelho de coleta de impostos estatal) poderia confiscar o patrimônio do indivíduo, impedindo que seus herdeiros tivessem acesso a ele. Já no segundo caso, como o escravizado era considerado uma mercadoria e parte da mão de obra do local onde servia, o seu suicídio o provaria inútil e preguiçoso, já que não haveria conseguido atender o seu único objetivo de vida: o de servir.

Nas páginas seguintes, se discorre sobre os diversos aspectos da economia romana. Conforme atestam diversas fontes consultadas, a base econômica de Roma era a autarcia. O significado desse, para a época, era de autossuficiência, de independência da economia.

Para ilustrar o conceito, é utilizado um velho ditado da época citado por Cícero: trata-se de um herdeiro que conduz um tipo de existência que o levará à ruína e que vende o bosque antes das vinhas. Depreende-se que, ao contrário da economia atual, baseada em especulações, os romanos buscavam segurança econômica. Isso é, independentemente da atividade exercida, o indivíduo buscava sempre um possível “refúgio” caso algo acontecesse. E essa segurança, por sua vez, não era baseada no temor de uma possível falência econômica, mas sim, no medo de perder a sua posição social, já que essa era medida pelas posses latifundiárias. Assim, o bosque desempenharia a função de uma caixa de poupança ou de uma apólice de seguro, pois enquanto a certeza dos lucros com a produção das vinhas era incerta, com os bosques essa era quase garantida.

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O próximo objeto de discussão histórica é a família e o amor. Como seria a relação dos romanos com os seus parentes, com a sua sexualidade e com as suas paixões?

Também se constata existência de certa autonomia nas relações sociais romanas, principalmente antes da chegada da moral cristã. No Alto Império Romano, predominava uma certa bissexualidade eminentemente dirigida ao ato sexual. É a partir do século III, já no Baixo Império, que a homossexualidade será mal vista e considerada, até mesmo, um crime, devido a uma visão que será, em períodos posteriores, adotada pelo cristianismo, em que as relações homoafetivas não tinham propósitos naturais e desafiavam a integridade das instituições.

Até mesmo as relações heterossexuais não eram concebidas da forma como as conhecemos hoje, na maioria das sociedades ocidentais. Os matrimônios, até o século III, eram raros em todas as camadas sociais. Quando dois indivíduos se casavam, o faziam com o único objetivo de transmitir seu patrimônio aos próprios filhos de sangue (o que acontecia poucas vezes, uma vez que os laços biológicos eram pouco importantes para os romanos).

A vida pública dos romanos era também tão interessante quanto as suas diferentes formas de pensar.

Mesmo depois de se ter tornado um grande império, Roma conservou a mentalidade de uma coletividade restrita, na qual a opinião pública julgava tudo. Sobre quaisquer acontecimentos da vida cotidiano, os romanos emitiam o seu parecer. Saíam as ruas para discutir sobre os acontecimentos, gritavam injúrias àqueles que julgavam culpados, escreviam textos obscenos para supostos inimigos e realizavam seus cultos religiosos nas vias públicas. Mas esse aspecto folclórico da vida em comunidade não estava restrito às camadas mais baixas da sociedade: os nobres e até mesmo alguns imperadores prestavam contas de suas vidas privadas para a cidade, uma vez que se considerava a opinião pública essencial e de extrema importância.

Destarte, pode-se dizer que uma das estratégias do cristianismo para ganhar cada vez mais adeptos, no Baixo Império, foi incorporar morais pagãs já existentes e adaptá-las, em buscando criar uma moral única e, supostamente, verdadeira. Dessa forma, a relação dos romanos com seus diversos deuses pagãos foi se alterando de forma sutil. A presença do divino se tornou gradualmente multiforme e informal e, assim, a doutrina do livro conseguiu se perpetuar em uma das mais tradicionais sociedades pagãs dos séculos II e III. Em suma, em decorrência das diversas mudanças e com a esperança de  formar uma rede de apoio entre os marginalizados e menos favorecidos, os romanos acabaram, pouco a pouco, a enxergar no cristianismo um sentido aceitável, culminando em uma ampla aceitação, no século IV.

 

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