Descendência e mortalidade nas noites azuis de Joan Didion

Giuliana Seerig
4 min readMay 26, 2021

Passamos a vida sabendo que ela acaba, mas com a sensação de que nunca termina, que sempre haverá mais — carregamos uma crença falsa de que para nós, exatamente para nós, existirá uma isenção especial, algo que nos salvará. Saber, em teoria, dessa nossa condição de mortais e de fato deparar-se com ela são processos diferentes. É no traço dessa diferença que Joan Didion nos conduz, por meio de sua própria biografia, para compor os caminhos de uma mudança que parece delicada, sutil, ao mesmo tempo que é definitiva e irrefreável, como os gradientes de luz em certas latitudes.

A morte e o luto tornaram-se tema para a escritora desde a perda súbita do marido, John Gregory Dunne, em 2003, vítima de um ataque cardíaco. Se em suas obras ensaísticas anteriores ela debruçou-se sobre variadas questões do seu tempo — como as mudanças sociais, culturais e políticas dos anos 60 em Rastejando até Belém, ou a cultura de massas em The White Album — no caso de O ano do pensamento mágico, obra que escreve em seguida à morte do marido, Didion se propõe a analisar o luto, olhar nos olhos da dor, enfrentá-la. Com a mesma argúcia que a consagrou como uma das maiores escritoras de seu país, ela explora a devastação causada pela perda súbita daquele que foi seu grande companheiro de vida — a morte separou dois escritores que escreviam juntos, que se editavam mutuamente, que tinham por costume continuar as frases um do outro e que souberam encontrar um lugar firme e harmonioso lado a lado. Em Noites azuis, obra subsequente, entra em cena a reflexão sobre a doença, a proximidade do fim, sobre a continuidade de vida que se confia aos filhos. Quintana Roo, a bela criança que chega como por um milagre, linda e perfeita, é a protagonista das memórias da mãe, que explora os meandros da maternidade — a narrativa sobre a adoção, as lembranças sublimes, as alegrias, a culpa.

Embora possa ser considerada uma espécie de continuação, Noites Azuis possui autonomia em relação à narrativa sobre a perda de John. Já não há mais a sombra de um pensamento sobrenatural, esse atravessamento de uma espécie de insanidade que nega a natureza dos fatos: aqui o luto toma outros contornos, alcança câmaras mais profundas, assume uma textura ainda mais densa. Com a perda de Quintana, sua única filha, sobrevem a certeza, agora sentida como palpável, real, de que os dias brilhantes da sua vida se encerram, o fim da vida se aproxima veloz e de que, atrás de si, não deixará ninguém.

O sanduíche de pepino e agrião servido no casamento, o coelho de pelúcia esquecido, o gorgolejar dos tubos de plástico das UTI’s, o romance escrito apenas para mostrar aos pais — por meio da reiteração de imagens precisas, de palavras e frases dissecadas que, após a morte, assumem outros contornos, Joan reconstrói todas as fases de crescimento de Quintana e a complexidade de sua relação com ela. Entende então que somente agora consegue alcançar a dimensão do que significa ser adotada: trazer, entranhado em sua história, um abandono que, a despeito do amor recebido, não pode ser apagado. Compreende, em retrospecto, os difíceis processos psíquicos da adolescência de Quintana, seu desejo de estar só e o fato de sentir-se à margem da vida de intelectuais que ela e John levavam. É um livro sobre a perda, sobre a dor, sobre o processo de adoção como uma vida que é confiada a alguém, mas sobretudo é uma narrativa sobre uma mãe e uma filha que se encontram e se despedem. “Como ela não entendia o quanto precisávamos dela?”.

Longe do tom de lamentação, Joan usa uma linguagem sintética, econômica; não se furta de destrinchar com precisão os conflitos, os eventos traumáticos, a se autoanalisar. Como se tomasse os fatos e seus efeitos emocionais na palma da mão e os observasse de modo diligente, como quem cumpre um dever. “Precisei escrever sobre a dor porque não me haviam contado como era.” e, com seu estilo cortante, sentencia: “Diante da dor, você não chorominga”.

Não há consolos de ordem espiritual ou mesmo uma mensagem de esperança ou fé — ao menos não naquilo que se convencionou entender, em linhas gerais, como consolação: John e Quintana se foram, foi-se a própria sensação de tê-los vivos, irão embora suas memórias, e logo, irá ela mesma, cruzando o azul, para a escuridão e até mesmo o suposto consolo do tesouro das lembranças é posto em dúvida. No entanto, sua lucidez diante dos eventos, sua negação de atalhos de fuga, a maneira laboriosa como tece as memórias, sua atitude corajosa diante do que lhe ocorre e de como olha para si mesma, tudo isso consola. É alentador pensar que o atravessar de todos esses eventos por um intelecto capaz de reportá-los tenha feito despontar, como um presente ao coletivo, um compilado de experiências tão bem decantadas, em um tom que pode ser, alternadamente, grave e delicado, mas sempre honesto. Podemos ver o livro também como uma contundente demonstração da força da escrita, pois ela é o que sobrevive, o que a mantém em pé, a nutre, mesmo depois que todos se foram.

Será possível que haja alguma preparação para as perdas que, inevitavelmente, nos alcançarão ao longo da vida? Quando o fim da luminosidade se aproximar, talvez ter algum repertório possa nos ajudar a fazer desse processo algo significativo, tecido com as particularidades das nossas vidas; algo a que recorrer, com a esperança de que inclusive nossa despedida deste mundo possa ainda pulsar de significado. Se essa possibilidade existe, e se estivermos dispostos a esse desafio, Noites Azuis certamente é uma das obras incontornáveis nesse trajeto. ⧫

Blue nights. Joan Didion. Tradução Ana Carolina Mesquita. Rio de Janeiro: Harper Collins, 2018.

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