Dürer e o rinoceronte

Talvez o leitor já tenha visto alguma reprodução desta famosa gravura de Albrecht Dürer, feita por volta de 1515. Aparece com frequência em revistas, posters, capas de livros, e mostra um volumoso rinoceronte reproduzido com riqueza de detalhes e de imaginação. A gravura tem uma história tão fantasiosa que parece inventada. O rinoceronte foi dado de presente pelo Sultão de Gujarat a Alfonso de Albuquerque, que era o governador das Índias no tempo do império português. O governador repassou o presente para o Rei de Portugal, Dom Manuel I, e o paquiderme foi embarcado num navio de especiarias, rumo a Lisboa.

Ali chegando, causou sensação, como era de se esperar. Era no auge da riqueza de Portugal, e os soberanos da época gostavam de espetáculos radicais. Dom Manuel botou o rinoceronte para brigar, diante da corte, com um elefante que ele havia ganho algum tempo antes. Reza a lenda que o elefante bateu em retirada sem querer enfrentar o “quindim” do rei. Logo depois, Dom Manuel mandou o rinoceronte de presente ao Papa Leão X. De passagem por Marselha, o navio fez uma parada para que a fera fosse vista e admirada pelo Rei da França, Francisco I. Logo em seguida, foi colhido por uma tempestade e foi a pique; o rinoceronte estava acorrentado e não pôde escapar.

Baseando-se em desenhos e relatos por escrito, Albrecht Dürer fez essa gravura. Ela é uma notável obra de arte e ao mesmo tempo um “caveat”, um sinal de alarme para que sempre vejamos com desconfiança os relatos alheios, por mais honestos e bem intencionados que possam ser. Dürer, guiando-se pelos testemunhos de terceiros, produz um animal cheio de adornos fantasiosos. A pele coriácea do animal (de onde vem a designação “paquiderme”, “pele grossa”) foi substituída por placas que parecem de armadura, e que em alguns trechos imitam, com suas subdivisões geométricas, o casco de uma tartaruga. As pernas são cobertas de escamas, detalhe totalmente fantasioso. Na verdade, Durer, conscientemente ou não, reproduz no animal detalhes que lembram as armaduras e as cotas-de-malha dos guerreiros da época. É uma espécie de linguagem metafórica levada ao pé da letra.

Outro aspecto interessante é que olhando com cuidado a gravura de Dürer não há como não reconhecer nela um certo toque “manuelino” em termos de estilo, como se o artista holandês tivesse inconscientemente se deixado influenciar pelo estilo arquitetônico que os portugueses estavam criando. O animal é tão enfeitado quanto a Torre de Belém (em cujo museu, hoje, há uma reprodução da gravura de Dürer, pois foi nesse local, durante a construção da Torre, que ele ficou preso na sua passagem por Lisboa). Por trezentos anos, manuais científicos usaram a fantasia de Dürer como se se tratasse de um retrato cientificamente exato, o que mostra o poder das lendas, das fantasias e das modas estéticas.