Para 87 pessoas na cidade de Lisboa, a entrada no ano de 2022 significou, por outro lado, a saída de uma crise profunda nas suas vidas: viver em situação de sem-abrigo. 87 pessoas passaram a ter uma morada numa habitação dita permanente, que já não é o céu da cidade, e nesse ano abandonaram as estatísticas recolhidas pelo NPISA – Núcleo de Planeamento e Intervenção Sem-abrigo. Mas, por lá, continuaram 3138 outras pessoas. Sem teto, sem casa, na mesma cidade.

E, nas ruas, as tendas não param de aumentar.

São sobretudo homens (2509) e têm, em grande parte, entre 45 a 64 anos (1372). E porque pagar uma renda ou assegurar um empréstimo em Lisboa é ainda mais difícil se for tarefa assegurada por um só, são também sobretudo pessoas solteiras (2278).

Fonte: NPISA/Relatório sobre o ano de 2022

Nem o diploma parece ter sido saída para 118 deles (que têm o ensino superior), nem o trabalho para 174 dos que têm um salário regular e, ainda assim, vivem na rua. Fazem parte de um outro grupo de estatísticas: o dos chamados “trabalhadores pobres”, como Márcio e Sara, que vivem em tendas na Avenida Almirante Reis. E representam mais de uma em cada dez pessoas empregadas em Portugal para quem a habitação já é mais do que 40% dos rendimentos, segundo o estudo “Portugal, Balanço Social 2022” da Nova/SBE, em parceria com a Fundação “la Caixa” e o BPI.

Fonte: NPISA/Relatório sobre o ano de 2022

Não será por acaso que, para 728 das pessoas em situação de sem-abrigo identificadas pelo NPISA em 2022, a precariedade no trabalho ou o desemprego tenha sido apontada como a principal causa para irem parar à rua. Uma causa só ultrapassada nos números pela ausência de suporte familiar: 829 dizem não ter um familiar capaz de os acolher.

E, neste assunto, em Lisboa, portugueses e estrangeiros estão par a par: ainda 1725 sejam naturais de Portugal (859 nascidos nesta cidade), 1377 chegam de outros países – e há ainda 36 cuja naturalidade é desconhecida.

Fonte: NPISA/Relatório sobre o ano de 2022

Mas, afinal, são cada vez mais ou menos?

Equipas de rua indicam que as próximas estatísticas podem inflacionar, eles que veem tantos a chegarem à procura de uma refeição, de uma manta ou uma tenda para se abrigarem. Por força das feridas que a pandemia por covid-19 deixou, primeiro, e depois da crise habitacional, económica e internacional atual.

Para já, os dados do NPISA referentes a 2022 dão conta de menos pessoas em situação de sem-abrigo: se por um lado aumentaram em 28% os sem-teto (aquele que habita no “espaço público, alojada em abrigo de emergência ou com paradeiro em local precário”), diminuíram em 9% aqueles a quem chamam os “sem-casa” (a viver em alojamento temporário). E há 87 pessoas, como já vimos, para quem viver sem-abrigo deixou de ser preocupação.

Mas as alternativas de resposta habitacional na cidade, ainda que temporárias, ainda não acompanham o número de pessoas que vão chegando à rua.

Esta é uma urgência sem cura imediata. Mas para a qual alguns países e cidades têm experimentado diversas (e polémicas) soluções – como passar milhares de euros para as mãos de um sem-abrigo ou construir pequenas casas nos quintais para lá irem dormir.

Será possível replicar algum destes modelos em Lisboa?

As tendas na Avenida Almirante Reis. Foto: Carlos Menezes

Casa primeiro

Este não é um problema português, bem pelo contrário. Talvez num país do sul a situação seja até amaciada pelas condições atmosféricas e o clima que não é tão agreste para quem não tem um teto. Mas todas as grandes cidades o têm. E foi em muitas delas que se desenharam as soluções – algumas das quais já são seguidas em Lisboa.

Como a Housing First.

Façamos o seguinte exercício: se oferecermos um voucher de habitação a uma família, assistência temporária a outra, casa por tempo limitado com apoio médico a uma outra e os tradicionais abrigos de emergência à última família, que resposta vai produzir efeitos mais positivos? Foi a conclusão a que uma experiência realizada nos Estados Unidos em 2015 pretendeu chegar e que serviu o estudo “The Family Options Study”.

E este exemplo pode ajudar-nos a compreender em que ponto se encontra exatamente Lisboa na luta pela erradicação da pobreza nas ruas.

Partindo de 2300 famílias sem-abrigo de 12 cidades americanas, o estudo procurou, durante 18 meses, acompanhar a reação das famílias. O resultado não surpreendeu no país onde desde 1992 havia o que o estudo veio a comprovar ser o caminho mais certo: o modelo Housing First (ou, traduzido, Casa Primeiro).

No final, foram as famílias que tiveram acesso ao voucher de habitação que conseguiram responder melhor: as crianças destes agregados mudaram de escola com muito menos frequência, as famílias reduziram o tempo passado em abrigos, os pais tiveram menos problemas de saúde, menor incidência de violência doméstica e eram mentalmente mais estáveis do que aquelas que receberam as tradicionais intervenções.

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Juha Kaakinen discursa sobre o impacto do programa Housing First.

A iniciativa já foi replicada em países como Espanha, França, Dinamarca e na Finlândia, o único país na Europa onde o número de pessoas sem-abrigo sentiu um decrescimento de forma significativa – entre 2008 e 2015, cerca de 35%, potenciado pelo modelo Housing First. Já se conseguiu erradicar os abrigos noturnos, todos transformados em casas de apoio.

E a ideia já se instalou há anos em Lisboa também.

Na cidade, os sem-casa distribuem-se entre albergues e centros de acolhimentos, ao abrigo da autarquia ou da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa. Mas centenas de pessoas em situação de sem-abrigo já foram integradas numa opção permanente: a iniciativa Housing First, dinamizada, por exemplo, pela associação CRESCER.

A ideia é a seguinte: a CRESCER cede uma casa a cada sem-abrigo (ou núcleo familiar), sem tempo limite de ocupação – todas elas dispersas pela cidade e não agregadas numa rua ou bairro, por contraste à ideia de ‘guetizar’ esta população. O programa garante parte do valor do arrendamento e todas as despesas associadas à casa, como água, eletricidade e gás, e mobiliário. E o dever dos arrendatários é contribuir com 30% do seu rendimento mensal para o pagamento desta renda.

Américo Nave, diretor da Associação CRESCER Foto: site CRESCER

Atualmente, há mais de 400 casas ao abrigo deste programa, financiado pela Câmara Municipal de Lisboa e a segurança social.

Explica Américo Nave, da CRESCER, que não se trata apenas de largar estas pessoas numa habitação, mas de acompanhar: há uma equipa especializada que visita as casas, no mínimo, seis vezes por mês.

Um trabalho fundamental junto de quem vive com algum tipo de dependência, com problemas de saúde mental e física. Dizia antes à Mensagem que “as pessoas com patologias psicológicas, quando entraram na casa, começaram a reverter os sintomas e a ter uma melhor saúde psíquica.”

Juha Kaakinen, do grupo de trabalho que iniciou o Housing First e chefe executivo do programa Y-Foundation, na Finlândia, acrescenta que não se trata apenas de criar soluções para quem vive em condições indignas nas ruas de uma cidade: resolver o problema é poupar às autarquias e ao Estado, garantiu em entrevista à Mensagem.

“Há uma evidência ampla vinda de vários países que nos mostra que é sempre melhor, em termos de custo-benefício, procurar acabar com situações de sem-abrigo em vez de tentar geri-las. Os gastos com um sem-abrigo podem chegar a 9600 euros por ano”, diz, pensando nos cuidados que acarreta.

Um emprego num restaurante

Além de uma casa, um emprego é um passo necessário na reintegração. “Nunca encontrámos uma pessoa que não quisesse sair da situação de sem-abrigo ou que não quisesse arranjar emprego”, diz, assim, brutalmente, Américo Nave, arrasando todos os estigmas e ideias feitas – muitas delas nas petições que correram.

Ou seja, ninguém “é sem-abrigo porque quer”.

Um exemplo: o restaurante de Lisboa que contrata pessoas que até então e encontravam em situação de sem-abrigo e que Américo ajudou a criar em 2019, com a CRESCER. Chama-se “É um Restaurante”, na Rua São José, paralela à Avenida da Liberdade, e tem homens e mulheres que encontraram ali a oportunidade para começar a mudar as suas vidas. Já colocaram mais de dez pessoas no mercado de trabalho.

No restaurante criado para ajudar pessoas sem-abrigo, a carta é da autoria do chef Nuno Bergonse. Foto: CRESCER

Contrataram a ajuda do chef Nuno Bergonse, conhecido Master Chef, que desenhou menus, fichas técnicas e o projeto. Após a formação de um mês na Escola de Hotelaria e 15 dias de formação, ficam aptos para trabalhar, durante seis meses, no restaurante.

Aqui, abrem a porta para o restante mercado de trabalho ao iniciarem um currículo novo.

No ano passado, abriu também o “É uma Mesa”, no Bairro Padre Cruz, em Carnide – um restaurante italiano que foi montado de raiz no Centro Cultural de Carnide com a ajuda do programa americano The Fixers.

5 mil euros para a mão

Não haverá exemplos perfeitos no que toca à gestão de pessoas que vivem nas ruas, mas há países pioneiros e que caminham para resultados históricos. Já falámos da Finlândia, onde o modelo Housing First singra. Mas há outros: no Canadá, uma experiência ofereceu cinco mil euros a 50 sem-abrigo e os resultados excederam as expectativas.

No Canadá, em outubro de 2020, a associação de cariz solidário Foundations for Social Change lançou o resultado de uma experiência com a University of British Columbia: o New Leaf Project, onde tinha sido feita uma transferência direta de 7500 dólares canadianos – o que equivale a 4850 euros – para 50 sem abrigo, em 2018, em Vancouver. Dinheiro sem qualquer condição em troca.

A ideia parece mirabolante, mas trouxe resultados inesperados.

Durante um ano, o contacto entre os participantes na experiência e os investigadores foi regular, e a resposta foi comparada com 65 outros sem-abrigo que não tinham recebido qualquer valor monetário – ambos os grupos acompanhados em workshops de planeamento de vida e de integração profissional.

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Katherine dá o seu testemunho como uma das participantes na experiência

No final, os 50 participantes não só ganharam uma casa arrendada, como conseguiram diminuir em 39% (média) os gastos que revertiam para drogas, tabaco e álcool e aumentar os gastos em comida e roupa. O estudo acabou por servir de refutação a preconceitos que assentam na ideia de que estas pessoas ficaram nesta condição devido à falta de racionalidade para gerir as suas vidas e o seu dinheiro.

E permitiu também provar que esta é uma forma de poupar dinheiro ao estado. De acordo com a Foundations for Social Change, os centros de abrigo de Vancouver têm gastos até 8100 dólares por ano só para garantir o acolhimento de uma pessoa. No caso da experiência seriam 405 mil – cerca de 262 mil euros. Mais do que o total investido no projeto: 375 mil dólares canadianos.

Já Américo Nave, da CRESCER, questiona a ideia de dar dinheiro em vez de nos focarmos em dar uma casa.

“Depois de ter uma casa já não vão ser pessoas em situação de sem-abrigo, já são pessoas em situação de pobreza, que precisam de ajuda ou tratamentos, por exemplo, mas já não são pessoas em situação de sem-abrigo. A única razão pela qual dizemos o termo pessoa em situação de sem-abrigo é a falta de casa. Enquanto nós não nos focarmos no essencial, as pessoas continuam em situação de sem-abrigo durante anos e anos e anos.”

Tudo o resto, diz, “são respostas que funcionam como uma porta giratória: as pessoas entram e saem durante anos da situação de sem-abrigo, em vez de apostar efetivamente nas respostas que estão provadas em Portugal e no resto do mundo que funcionam e que não são mais caras que os albergues e os apartamentos partilhados”. “O Housing First não é mais caro que essas medidas. Há centros de acolhimentos mais caros”, remata.

Casas nos quintais

Em Los Angeles, Seattle e Portland, o programa piloto Tiny Homes permite ajudar proprietários de moradias com quintais de áreas generosas a construir casas que possam alugar a pessoas em condição de sem-abrigo.

Um exemplo de uma pequena “tiny home” a ser construída. Foto: site do projeto

Elvis Summers, o fundador da iniciativa, conta que tudo começou quando construiu uma pequena casa para uma mulher de 61 anos que dormia perto do seu apartamento. “Este não é o tipo de mundo em que eu quero viver, por isso, estou a fazer alguma coisa para mudá-lo”, testemunha no site do projeto.

A ideia é aproveitar o espaço que não usamos nas cidades e colocá-los ao dispor de quem não é dono de nenhum. A construção das casas é um trabalho verdadeiramente comunitário que une vizinhos em prol do bem-estar coletivo.

Quem deve assumir a responsabilidade?

Ainda nos EUA, o programa Built for Zero uniu 85 cidades numa metodologia que consiste em fazer uma lista detalhada de cada pessoa que está sem-abrigo na comunidade. Desta forma, conseguem trabalhar caso a caso, com o que cada pessoa necessita de forma individual e, por isso, com um acompanhamento mais próximo.

O objetivo é envolver a comunidade inteira em busca de resultados: mais empatia, mais preocupação, mais ação. “Eles deixam de ser ‘os sem-abrigo’ para serem pessoas que nós conhecemos”, lê-se na página do programa.

Américo Nave, da CRESCER, acredita que a responsabilidade na resolução deste problema em Portugal deve ser tanto nacional quanto local.

“É um problema que nós temos em todo o nosso país e a dimensão já é muito significativa, as respostas acho que podemos assumir que têm falhado, os modelos têm falhado, as políticas nesta área têm falhado, e eu acho que perante um cenário destes nós deveremos assumir um envolvimento tanto nacional como local.”

Mas talvez cada um de nós devesse trabalhar por mudar o que vemos nas cidades, diz: “Acho que é uma questão que se devia desenvolver no público, no privado e na sociedade civil no seu geral”.

Resta saber se Portugal e Lisboa se assumem também como exemplo nos próximos anos.


Catarina Reis

Nascida no Porto, Valongo, em 1995, foi adotada por Lisboa para estagiar no jornal Público. Um ano depois, entrou na redação do Diário de Notícias, onde escreveu sobretudo na área da Educação, na qual encheu o papel e o site de notícias todos os dias. No DN, investigou sobre o antigo Casal Ventoso e valeu-lhe o Prémio Direitos Humanos & Integração da UNESCO, em 2020. Ajudou a fundar a Mensagem de Lisboa, onde é repórter e editora.

catarina.reis@amensagem.pt


Tomás Delfim

A paixão pelo jornalismo aflorou apenas durante a própria licenciatura em jornalismo, mas, como se costuma dizer, mais vale tarde que nunca. Entrou para a Mensagem com a missão de praticar o jornalismo que lhe proporciona uma maior realização pessoal e profissional: contar histórias de pessoas e da sua cidade. Mas, para ele, “o jornalista é apenas o mensageiro das histórias que as pessoas têm a contar.” More by Tomás Delfim


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3 Comentários

  1. Em Portugal é preciso 1°ficar na rua 2°perder os seus bens, emprego e a dignidade humana e aí com a vida destruída talvez alguns anos depois chegue uma pequena ajuda!As pessoas tal como eu já fiz procuram soluções e ajuda logo que percebem que com 720 de ordenado líquido não vão conseguir arrendar uma casa …. todos encolhem os ombros e dizem que compreende mas não á solução.,,. É de curtar os pulsos á faca .,!

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